A FEITICEIRA
«La peur qui met dans les chemins
Des personnages
surhumains
La peur aux invisibles
mains qui revet l'arbre
D'une carcasse ou d'un
linceul
Qui fait trembler
comme un aïeul
Et qui vous rend,
quand on est seul,
Blanc comme un
marbre.»
MAURICE ROLLINAT.
De todos os rapazes da aldeia era
o Manoel da Clara o mais querido das raparigas.
Fora sempre um belo rapaz de
afugentar rivais, mas, desde que viera da tropa e de lá trouxera aquele ar
desdenhoso de feliz D. João, aprendido no convívio dos camaradas presunçosos e
mulheres de vida airada, parece que as enlouquecia.
Acostumado a ajustar a farda,
como apertava bem a cinta de lã preta ou carmesim, que parecia trazer
espartilho, o demo do rapaz!
Os sapatos com o lustro bem
puxado, que pareciam de verniz; o chapéu garbosamente descaído sobre a
esquerda; a ponta do cigarro atrás da orelha; e o lenço, com flores e uma
legenda bordadas a cores vivas, a sair da pequena algibeira da jaqueta, as mais
das vezes levada ao ombro; o Manoel era na verdade a nata da rapaziada do
logar.
No meio dos outros, com as suas
caras rapadas de lorpas, valentes mas sem a elegância dos gestos disciplinados
pelo exercício regular, o seu pequeno bigode de cidadão retorcia-se aos
domingos com uma petulância irresistível.
Nas feiras e romarias, firmado no
varapau metido debaixo do braço, toda a vaidade satisfeita a brilhar-lhe nos
inquietos olhitos garços, desafiava toda a concorrência desagradável. Ás raparigas
iam-se-lhes os olhos nele, e mediam-se com o rancor de rivalidades latentes.
E valentão!? — como aquilo
poucos! E, como sempre, era a superioridade material da força e da coragem o
que mais o fazia valer aos olhos de primitivas fêmeas, oferecendo-se
orgulhosamente ao vencedor, ao macho forte e soberbo.
Quando o Manoel, com um rápido
piparote atirava para a nuca o chapéu mole de largas abas, dava um passo atrás,
fazia girar o varapau em sarilho sobre a cabeça, e torcia a boca espumante num
esgare de raiva... podiam fugir dele!
Contavam-se na aldeia as
valentias do Manoel com o mesmo entusiasmo e ufania com que se contariam as de
um herói da historia, um herói autêntico, de que a tradição nos deixasse o nome
e a memória de largos feitos.
Uma vez era todo o povo de Infias
que se juntara para o desafiar, raivosos por uma questão de mulheres de que o
Manoel era afortunado protagonista, e que ele enfiara pela serra abaixo — que
até parecia que o vento os levava.
«Ó Manoel, lembras-te?...
«E daquela vez na romaria da
Senhora dos Verdes?...
«E na feira, quando foi da compra
dos meus bois?!...
As perguntas, as respostas, as
diferentes versões e comentários, envolviam o Manoel num coro de louvores, que
ele recebia mal disfarçando a vaidade num meio sorriso modesto enquanto ia
enrolando o cigarro entre os dedos fortes onde brilhava um anel de cobra, o
encanto e a inveja dos mais rapazes.
No jogo da bola, ao domingo, no
terreiro da igreja, nenhum o excedia, como ninguém era capaz de o vencer numa
partida de chinquilho ou no jogo do pau. Um valentão, um rapaz ás direitas, sempre
pronto a fazer um favor, riso franco, coração nas mãos para os amigos; ninguém enfim
mais digno da estima dos seus patrícios e ninguém que de facto fosse mais
estimado do que o Manoel da Clara.
Além de todos estes merecimentos físicos,
que o superiorisavam, ainda era senhor de algumas belgas, e único herdeiro da
meação da mãe, a viúva do Rezadeira, que ajuntara o seu peculiosito na casa dos
fidalgos. E era uma mulher de trabalho, a velha Clara do Rezadeira, que só
tinha olhos e coração para o filho, o seu enlevo e orgulho. Primeiro do que ninguém,
como o galo da manhã, saltava da cama, onde a asfixia dum coração emperrado mal
a deixava sossegar, e começava a labuta de todos os dias: amassando o pão,
chegando ao forno a prevenir a forneira, cozinhando a vianda para os cevados,
chamando a gente para o trabalho, despachando serviço, ralhando com um,
combinando com outro, e sem nunca perder de vista a panela onde se cosiam as
batatas para o caldo verde que o seu Manoel havia de comer antes de sair, na
sua tigela bem meada de broa. Mal ele aparecia, ainda espreguiçando-se e os
olhos mal abertos mas já risonho e feliz como soberano que se julga credor de
todos os afetos e homenagens, a velhota aprontava tudo num ápice, rindo e
ralhando num visível contentamento de quem se revia no rapagão, que era o seu
filho.
É claro que não havia rapariga na
aldeia e arredores á qual não agradasse a ideia de poder vir a ser a mulher
estimada do Manoel, a senhora do seu coração e do rico bragal de linho que a
velha mãe guardava avaramente nos grandes arcazes de madeira de fora,
grossamente chapeados de ferro.
Ele ria-se com todas, o patife,
querendo gozar o mais possível a sua situação de desejado, sem até aí mostrar preferências
comprometedoras por nenhuma.
Mas, entre todas, havia duas que
nos últimos tempos mais preocupavam o Manoel, com grande contentamento da mãe
que ansiava por o ver casado com rapariga que fosse do seu calhar: — só assim
morreria descansada, pois uma cabeça alevantada como a dele precisava bem do
arrimo duma boa mulher de trabalho.
Por felicidade, as duas raparigas
que o Manoel trazia debaixo de vista agradavam por igual á velha Clara — assim
tinha liberdade para á vontade consultar o coração.
Uma, Maria Tereza — a Terezinha,
como lhe chamava quando acertava de a topar no seu caminho — era afilhada da
fidalga e lá pelo palácio se tinha criado com mimos e delicadezas que as outras
não conheciam. Era com uma graça toda senhoril que punha os olhos no chão e enrubescia
como romã bem madura quando ele a fitava de frente, bem de frente, como fazia
ás mais, sem conseguir com isso chamar-lhes o sangue ao rosto, mas fazê-las
explodir em jocundas gargalhadas. O seu andar lento e ondulado dava um realce
de elegância exótica ao seu corpo delgado de anêmica, flor tristemente
desabrochada entre paredes sombrias e velhas coisas impregnadas da melancolia
dos tempos passados. Como era a única que na terra sabia ler, eram também os
seus os únicos olhos que na missa se não levantavam do livro para andarem em
leilão pela igreja á procura dos rapazes, que lá de longe, e de soslaio, não
perdiam o grupo buliçoso da raparigada.
A madrinha queria-lhe muito, era
o que todos afirmavam, e se não tivesse morrido nem a Terezinha saía do palácio,
onde era respeitada como filha da casa, e, talvez, se a morte não fosse
repentina, tivesse ficado senhora daquela fortuna, quem sabe!?... Tem-se visto
coisas mais raras. E melhor teria sido para a terra, pois a casa dos fidalgos,
que fora sempre abrigo de miseráveis como consolação de desgraçados, mal a
senhora morgada fechara os olhos fechara-se também á pobreza, com uma crueldade
que revoltava toda a gente.
Os herdeiros, uns primos em
último grau legal, souberam da sua morte sem testamento e acorreram de Lisboa
em marchas forçadas. Mas, tudo liquidado á pressa, apartaram gulosamente, para
figurarem nos salões da capital, as preciosidades que enchiam e decoravam o
velho solar. Durante alguns dias não se ouviu senão o martelar dos carpinteiros
fazendo e pregando caixotes e não se via senão a moderna condessinha, muito
prática em antiqualhas preciosas, abrir portas e armários, percorrer os salões
e os sótãos, dar volta ás paredes e ás bojudas cômodas de floreados embutidos,
que seguiram com os candelabros, as jóias, os quadros e os Sèvres ricos como os
incontáveis Chinas para o sorvedouro de Lisboa. Depois, mal o Conde, com o seu
ar mais chic de fadiga, deu por
terminadas as contas e entregues as propriedades ao feitor trazido das lezirias
ribatejanas como pessoa de inteira confiança, fugiram atemorizados pela
tristeza pesada e úmida que resumbrava o casarão quase desabitado havia anos,
desde que a fidalga se tolhera de todo e passava os dias nos aposentos mais
ensoalhados onde fizera a sua habitação e a da Terezinha, que lhe lia os autores
prediletos e a arrastava na cadeira de rodas pelas ruas ensombradas pelos buxos
seculares do jardim.
Verdade seja que a Senhora
Condessa, sabendo o amor que a velha prima dedicava á afilhada e a docilidade e
o desinteresse com que ela a servira e cuidara até ao fim, ofereceu-lhe o lugar
de sua criada de quarto e obrigou o marido a pôr em seu nome algumas
propriedades arredadas ou a arbitrar-lhe o seu valor em dinheiro, coisa duns
cem mil réis, para os seus alfinetes, o que a tornaria na aldeia uma pequena
morgada.
A Terezinha agradeceu cheia de
reconhecimento a generosa munificência da condessinha, a quem serviu, como ela
nunca fora servida, até á última hora que se demorou no palácio. Depois, quando
se viu fora do ninho onde a sua alma se emplumara e o seu corpinho débil de
criança pobre crescera e se tornara de mulher perfeita, sentiu-se como que
isolada num vasto campo deserto.
Mas, séria e ponderada como era,
tomou logo a mais acertada resolução: indo viver com a tia, a Zéfa do Padre,
uma que fazia belos doces e fora por muitos anos ama do velho abade. E para
encher os dias, tão longos agora quanto lhe pareciam pequenos dantes a rodear
de cuidados a madrinha paralitica, metera-se a tecedeira. Em breve era a
melhor, sem favor, que havia na terra.
O seu tear, no monótono bater do
pedal e correr da lançadeira, só parava aos domingos e algumas horas da noite.
Aquela vida de reclusão mais lhe
amaciava a pele e dava um tom ligeiramente empalidecido ás suas feições miúdas.
—«Mas era alegre dantes!...
Agora, dês que o Manél da Clara veio de soldado e entrou de atentar nela, é que
de mais em mais se vai definhando, que nem já parece a mesma. Louvado seja
Deus, que só trabalhos e desgostos me chegam pró fim da vida.
Dizia isto a Zéfa do Padre á
Gertrudes Zarolha, velha conhecida dos longínquos tempos da mocidade,
assentadas á porta, com a roca á cinta e o fuso girando e torcendo o linho
cuspinhado pelas suas bocas palreiras.
—«Mas então aquele desaustinado
não diz nada cá á nossa cachopa?!...
—«Qual historia! Que eu saiba, ainda
não lhe disse fala pró bem nem pró mal.
—«Que desaforado! O que ele
precisava sei eu!... Uma rapariga como a nossa Terezinha!... Credo, santo nome
de Jesus! Mal empregada é ela para tal libertino, que veiu mesmo perdido da
tropa!...
—«Lá isso, ó Gertrudes, mau rapaz
não é ele, e tem o seu bocadinho...
—«Ah, mas tem uma cabeça mais
leve! No nosso tempo parece que não eram assim, ó Senhora Zéfa! Quando algum
pretendia duma rapariga, dizia-lho, e estava acabado, iam prá igreja os
banhos!...
—«Ora, eu sei lá! Haveria de
tudo. Estas coisas esquecem muito, e o nosso tempo já lá vai ha tanto!...
—«Ai eu cá lembra-me
perfeitamente, que o meu home assim fez. Foi até numa cava; calhou eu ficar ao
pé dele, e fomos ao desafio. Como eu é que ganhei, ele então deu-me um abraço
muito grande e disse-me assim: — Ó Gertrudes, és uma mulher duma cana; amanhã
se tu quiseres vou falar ao senhor abade e vamo-nos a botar os pregões. E assim
é que foi...
—«E eu que ainda me lembra do
senhor abade vir pra casa a rir muito e a contar o caso á minha tia—que Deus
haja! Ainda ela então andava rija e fera, coitadinha.
—«Mas vocemecê já lá estava, pois
não estava?
—«Pois estava, desde a idade de
oito anos que fui pra companhia da minha tia até á idade dos cinqüenta em que
aquele santo rendeu a alma a Deus! Ficou-me nos braços...
—«Coitadinho! Tão bom homem, tão
sério, era como o nosso pai de todos. Veja lá se tudo não vai a pior! Olhe-me
para o desatino em que este anda por aí, com as raparigas e as mulheres donas
de sua casa, atrás, sempre em cantorias, e em rezas novas, que nem podem
agradar a Nosso Senhor...
—«Já o dizia o senhor abade: a
religião deve ser a consolação da nossa vida e não o seu único fim. Mas essa
jesuitada entrou por toda a parte com este rapazelho do seminário — e bem mal
têm já feito e hão de fazer ás famílias!... O senhor abade bem dizia, bem
dizia... E bastantes desgostos teve nos últimos tempos, que lhe amarguraram o
resto dos dias... Coitadinho! Assim Deus lhes perdoe, que eu não posso
tragá-los. Até me custa ouvir a missa daquele avejão—Deus me perdoe se peco!
—«E o que me diz ás amizades dele
com os feitores da fidalga?! Ela toda trinques, caminho da missa logo de
madrugada; as filhas de goelas abertas com as tais onzênices de cantorias na
igreja, e mais florinhas para aqui, e mais rendinhas novas nas toalhas do
altar, confissão a cada passo... Eu nem sei, eu nem sei!...
—«E o marido? Vocemecê há de
ouvir alguma coisa — está ali á beirinha da casa...
—«Ora o marido!... Também gosta
muito daquelas coisas, e reza e canta e leva o padre pra casa a jantar e a
tomar o chá, as mais das vezes.
—«Eia! — vivem como fidalgos!
—«Aqueles grandes excomungados!
No tempo da fidalga, graças a Deus ninguém batia áquela porta com fome que não
trouxesse uma consolaçãosinha; agora nem um chavo! Tudo querem para eles, aqueles
ladrões!... Parece que ainda estou a ver a Terezinha ir a correr contar á
fidalga e vir logo com uma abada de pão ou de fruta, ou umas batatinhas, ou uma
tigelinha de papas e o bocadinho de carne!...
—«Pobre Terezinha, tão mimosa foi
da madrinha e agora tão triste a vejo!
—«Mas aquele maroto não lhe dizer
nada é o que me dá no gôto!...
—«Ele passa por aí ás tardes, e
ri-se para ela... Quando vai a alguma romaria sempre lhe traz uma prenda e um
cravo com um verso bem calhante, mas nada mais! Ela então é uma tola pelo
rapaz! Mas quando o vê faz-se encarnada como um pimentão, põe os olhos baixos,
e nem sequer o salva.
—«Ora essa! Tem sua graça, tem!
—«Eu nem posso explicar isto. Que
a minha Tereza—não é por ser minha sobrinha—não é de enjeitar... é a melhor
cachopa cá da terra.
—«Ora isso, nem se fala!
Compara-se lá! Basta saber ler e ter a educação que teve. É a florzinha da
nossa vila.
—«Pois isto dá-me cuidado, dá! E
não é pouco... A pequena só me tem a mim no mundo, e eu estou velha e cansada;
queria-a ver arrumada antes de fechar os olhos. E com o Manél da Clara do
Rezadeira gostava, lá isso gostava: a mãe é rapariga do nosso tempo, e ele tem
alguma coisa de seu, e no fundo não é mau rapaz. Mas então!... Parece bruxaria.
—«Ai senhora Zéfa, não ponha mais
na carta. Isso há de ser, há de! E não é mais nada senão coisas daquela
atrevida da Maria do Próspero! Aquilo sempre foram de má raça. Até o pai... há de
saber! Não?! Pois eu lho conto. Credo, santo nome de Jesus! Cada vez que me
lembra até os cabelos se me põem em pé. O que aquele malvado disse de mim, que
sempre entrei em casa da fidalga, que Deus tem, com toda a franqueza!...
—«O que foi então?
—«Ai não sabe?! Aquele grande
diacho, Deus me perdoe! Então não disse ele que eu é que chupara o morgadinho,
o filho da senhora fidalga!? Aquela aventesma!... Nem que eu não soubesse!...
Bom, calo-me, que é melhor...
E mudando de tom, muito
confidencial e amigável:
—«Posso dizer-lhe de certeza: a Maria
do Próspero conversa com o Manél e parece que o traz enfeitiçado. Olhe que lhe
ouvi eu dizer — que primeiro estava ela, que já o namorava ha muitos anos,
ainda antes de ele ir para a tropa, e que nunca a lesma da Terezinha o havia de
apanhar! Desculpe, senhora Zéfa, aquilo é uma atrevida, uma doida!... Pois de
que raça ela é!...
—«E o que é certo é que vai
levando avante o seu intento; tem artes do demônio!...
—«Deixe estar, deixe estar... Eu
sei cá umas coisinhas que hão de voltar o Manél, oh se hão de!... Assim eu
tivesse uma coisa que lhe pertencesse... Coisa de vestir era melhor...
Punha-lhe a pedra de ara e dizia a oração... É coisa certa.
—«A Terezinha tem um lenço que ele
lhe deu, mas fosse lá falar-lhe nisso!... Toda se zangava, não acredita nestas
coisas...
—«Pois são bem verdadeiras...
—«O outro dia ensinei-lhe que
cruzasse as pernas mesmo de pé quando a atrevida da Maria passar por ela...
Desatou a rir!
—«Ah, isso é uma coisa certa para
livrar do mau olhado de quem nos quer mal. Sabe o que era muito bom? Era fazer
á pequena um defumadoiro com ervas colhidas na manhã de S. João... É o alecrim,
o funcho, a dedaleira, o rosmaninho, o sabugueiro... Se quiser, eu tenho lá.
—«Muito obrigada. Assim ela quisesse!...
Bem se fazia um defumadoiro que a livrasse daquele enguiço.
Assim continuaram em conversa
larga, cheia de combinações e reticências, que muito as interessava, enquanto a
Terezinha dentro de casa trabalhava na teia branca, que parecia sempre a mesma,
eterna como as suas mágoas.
O tear monotonamente fazia subir
e descer os pentes com um barulho seco e igual, enquanto ela levantava a sua vozinha
agradável de soprano numa toada melancólica:
—«Eu hei de amar uma pedra,
Deixar o teu coração;
Uma pedra não me deixa,
Deixas-me tu sem razão».
E ao dizer a quadra, que parecia
sair-lhe do próprio coração, os olhos enturvecidos de lagrimas fitavam a
estampa ingênua que ele lhe trouxera da Senhora do Castelo, a grande romaria de
setembro.
Todos os anos lá ia — era o
costume — e também a Maria do Próspero, que punha nos ranchos um contínuo
esfusiar de gargalhadas terçando galhardamente com os mais afamados piadistas
as armas perigosas da chalaça e da resposta á letra.
Cantavam ao desafio, ela e o
Manoel. Tinham fama por todas aquelas redondezas, e, mal as suas vozes se
trocavam num principio de duelo, os auditores cercavam-nos e apertavam-nos num
círculo de admiração excitando-os com risos e apartes.
Também era o par certo em todas
as romarias — talhados um para o outro!
A Maria era alta e desempenada! A
sua tez, dum moreno intenso, fora brunida pelas soalheiras ardentes e curtida
pelas ventanias agrestes. A boca, sempre aberta em riso, era vermelha e fresca
como cerejas maduras, e os dentes brancos e agudos cravavam-se com delicia no
pão de milho, sua única escova.
As saias, rodadas em balão,
faziam-lhe mais altas as ancas já de si redondas e fortes; o cabelo, em duas
tranças pregadas, enchia-lhe a cabeça como uma touca de veludo negro.
Quando punha o cáchené vermelho e amarelo de grandes
ramagens verdes, o xale em bico traçado deixando livre o braço esquerdo, a
chinela branca pespontada na ponta do pé, nenhuma como a Maria do Próspero para
arrebanhar admiradores.
Depois, sempre satisfeita,
radiava em plena expansão dos seus vinte anos sadios, vividos em plena
natureza.
Nas ceifas, ao ardor dos sóis
caniculares, mangas arregaçadas mostrando os braços trigueiros e musculosos; ou
no gesto mecânico de juntar as paveias e sobraçar os molhos, tinha a harmonia
escultural e grave duma Céres fecunda.
Nas vindimas, era a primeira dos
ranchos, vermelha do mosto que corre como sangue generoso, a boca escancarada
em risos e cantigas... Tinha um aspecto quase trágico e uma beleza perturbante
e assustadora de bacante.
Pela apanha da azeitona, quando
os campos amanhecem brancos da geada que toda a noite caíra manso e manso, tudo
uniformizando sob a sua alvura de sudário, e o frio corta as mãos, que se
engatinham, e entorpece os dedos que mal se podem dobrar, ela motejava de
todos, sempre na frente, cantarolando e rindo, enchendo de ânimo os mais
desanimados, encorajando os mais entanguecidos pela friagem.
Sempre pronta para o trabalho, a
Próspera, em todas as sáfaras e com todos os tempos!
Mas, também, não faltava ás
romarias e ás feiras das cercanias, com o seu lenço berrante, o casaquito
branco engomado a capricho, e a sua alegria saudável, que fazia bem ver.
O Manoel não resistia áquela
força que chamava a sua força, áquela exuberância de mocidade que atraía a sua
mocidade. Quando a via, nem sequer pensava na Terezinha, que se ia finando
lentamente ao compasso triste e monótono do seu tear caseiro.
E, no fim de contas, para falar a
verdade, a Maria era tambem uma bôa rapariga, que nunca tivera outro
conversado. Nem havia lingua danáda de velha de soalheiro que se atrevesse a
debicar nos seus créditos. Alegre, sim; rir com todos, vá! Mas atrevimentos não
os consentia a ninguem. E tinham-lhe respeito — que a sua mão era lesta, e um
sopapo da Próspera não era brincadeira!
Só o Manoel gozava da sua
confiança e só com ele tinha as suas graças e brincalhotices mais livres, o que
mais o afervorava naquele amor crescente que o ia conquistando dia a dia.
Á noite, nas esfolhadas, quando o
luar é morno e as flores têm um perfume mais intenso, corriam um atrás do outro,
batiam-se fortemente, e caíam ás vezes sobre a palha ainda quente do sol, com
um cheiro seco que entontece.
As gargalhadas seguiam-nos de
todos os lados da eira, as chalaças cruzavam-se no ar como morcegos de pesado e
estonteado bater de azas: — Eh lá, Maria, vê se tens mais força do que ele!
Isso é que era um riso, o valentão deixar-se bater por uma mulher!...
—«Talhados um para o outro —i sso
é que não havia dúvida, nenhuma!
—«A Zéfa do Padre que se deixasse
de querer casar a sobrinha com o Manoel.
—«Bôa rapariga, lá sobre isso não
havia duas opiniões; mas a Maria é que estava a calhar para um homem de
trabalho, uma mocetona daquelas que era capaz de voltar um campo sozinha.
Os homens votavam pela Maria,
bela mulher para tudo e forte como uma torre. As mulheres, essas eram pela
Terezinha, delicada e amável, pondo sorrisos de aquiescência onde a outra só
tinha ruidosas gargalhadas de troça.
Era ela que lhes talhava e cosia
á máquina, sem paga, as chitas pobres, mas apesar disso tão dificilmente compradas,
e lhes ajustava os coletes de linho grosso que tão irmanados lhes erguiam os
seios até á raís do colo: — «Ora, sempre era outra louça! Podia lá comparar-se!
Bem se via que tivera outra criação, lá em casa da fidalga, que a tratara como
filha.
— «Que ele gostasse dela, vá!
Agora da Maria, uma cachopa como as outras!...
O Manoel, ainda indeciso, mas já
a inclinar-se para a Maria, irritava as mulheres que se ofendiam com a
insolente alegria da rapariga, que andava radiante com o seu ar de triunfo certo.
A velha Gertrudes Zarolha vivia
sobre brasas, nos últimos tempos.
Com meias palavras ou redundâncias
enigmáticas conseguia sobressaltar o coração do rapaz, mas não desviá-lo duma
paixão que se harmonizava inteiramente com o seu modo de ser moral e físico.
—«Casar com a Maria — dizia a
velha á boca cheia — era até um pecado!...— e benzia-se com gestos de
apavorada, que não explicava mas punha de sobre-aviso as consciências
timoratas.
Por uma noite de verão, sinistra
pelo negrume de nuvens carregadas de eletricidade e prometedoras de fortes
aguaceiros que toldavam o céu, voltava o Manoel da Clara da vila próxima onde
assistira á feira.
Um calor asfixiante pesava como
chumbo no abandono pungente da passagem lúgubre. Os pinheiros esguios tinham um
murmúrio mais triste e vago, como soluços suspensos de almas em pânico, e o
olival verde negro destacava-se no fundo, apertando como num cilício doloroso a
pobre terra que se dependura de fraguedos rudes, sempre ameaçada pela montanha
que a cavalga e lhe limita o horizonte, cortando-lhe toda a esperança de se
expandir por ali, como o pecado vela e corta toda a esperança da alma
piedosa...
O Manoel, que tinha ficado um
pouco para tarde, conversando com uns amigos na taberna do Jeitoso, vinha
assobiando alegremente, caminhando despreocupado e sem grande pressa.
Ao passar pela Fonte do Inferno...
diabo!... que ouviu ele?! Um rumor confuso de gargalhadas, que aflavam no ar
como grasnar longínquo de corvos...
Medo?.... Ele não tinha medo, mas
desde que acontecera aquela historia da casa dos Carneiros... Credo! Abrenúncio!
—E não se benzeu, o Manoel, como
lhe cumpria fazer, ao lembrar-se de coisas daquelas!... A tropa é que estraga
os rapazes, está visto...
Agora, as gargalhadas já soavam
mais perto... diria mesmo que ouvia a Maria do Próspero.
—Mas naquele sitio, áquela
hora!... Quem se atreveria?!...
—Em casa dos Carneiros, — lembrava-se
involuntariamente — aquele barulho de cadeias a arrastar, os ferros em brasa
que vinham cair aos pés da gente da família, o vozear sinistro que se escutava
em toda a aldeia e trazia apavorados os mais valentes... Deus do céu, que
terror fora na terra toda! Já ninguém dormia nem descansava. Muitas mulheres
tiveram então espíritos que os padres e os bentos esconjuravam, e se batiam com
eles como forças iguais.
—Só depois que o senhor Vigário
velho se resolveu a sair, de capa de asperges, para benzer a casa
endemoninhada, é que tudo sossegou...
O Manoel já não assobiava, e ia
olhando de soslaio para o Camborço, pedraria escalvada suspensa por milagre
sobre o abismo e que a toda a hora parece desabar e soterrar as pobres casas de
pedra solta tisnadas pelo tempo.
Um ventito picado e quente
levantou-se então, trazendo o rumor distinto de vozes, gritos surdos e
gargalhadas abafadas...
O Manoel era destemido; apesar da
má fama do sitio, tido como lugar de maléficas reuniões diabólicas, resolveu-se
a transpor o pequeno muro que separava o caminho da Fonte do Inferno, a
propriedade de mais estimação dos velhos fidalgos.
Primeiro, não viu nada; depois,
vaga e confusamente, luzinhas que saltavam e atravessavam-se corriam e
perseguiam-se, juntavam-se e tornavam a afastar-se...
Um calafrio lhe percorreu o corpo
e sentiu na espinha dorsal uma sensação desagradável que o fez tremer. O Manoel
era valente, — nisso não podia haver dúvida!—mas é que aquilo que via tão
realmente como se á luz do sol olhasse as suas próprias mãos eram as
feiticeiras, tal qual a sua mãe as tinha visto também quando em pequenino esteve
ameaçado de ser chupado por elas...
Entre curioso e medroso — já
agora não sairia dali sem ver o que aquilo era.
Acercou-se da eira onde a ronda
sinistra era mais febril... — Jesus, que coisa horrível! —Olharapos corriam
vertiginosamente, que mais pareciam voar, na noite negra, com o seu único olho
flamejante no meio da testa, lanterna mágica das profundezas do averno!...
Um lobisomem passou a galope, no
seu fado triste, procurando alma cristã á qual pudesse, antes da meia-noite,
entregar a sua cruz martirisante. Se ele o tivesse topado!... Até os cabelos se
lhe punham de pé.
As luzinhas continuavam correndo
alígeras, voando na escuridão dura da noite.
Sorrateiramente foi-se aproximando
da eira onde chamejavam em alucinado rodopio... A pouco e pouco ia-as
distinguindo na sua forma humana, girando buliçosas e gárrulas.
No meio da roda — cruzes! como
podia aquilo ser?!...— o Diabo passeando altivo, vestido de encarnado e de chapéu
guisalhante, poisando os pés de forquilha sobre as cabeças das feiticeiras, que
riam sarcasticamente.
Dessa vez o Manoel não pode
deixar de rir, tão patusca lhe pareceu a cena.
Ah! mas quando ele viu com os
seus próprios olhos — tão certo como haver a luz do sol que nos alumia! — adiantar-se
uma das luzinhas e, tornando rapidamente á sua figura de mulher, aparecer-lhe a
Maria do Próspero, tal qual ela!... E quando a viu chegar ao pé do homem
vermelho, estender-lhe os fortes braços roliços e trigueiros, abraçá-lo com ardor,
não pode reter um surdo grito de raiva.
Aqueles braços, que só o pensar
neles lhe fazia febre; aquela mulher, que o trazia preso havia tanto tempo e
com a sua honestidade alegre e simples conseguira o seu respeito e o seu amor,
estava ali em frente dele abraçando outro! E esse outro — Deus do céu, que até
a sua alma tremia! — esse outro era o próprio Diabo em pessoa!
Tremia de desespero e horror por
essa criatura, que não passava afinal duma feiticeira.
Uma tremura nervosa e um frio de
gelo o faziam vibrar todo. O sangue subia-lhe á cabeça, punha-lhe zoeiras nos
ouvidos, alucinando-o.
As luzitas recomeçaram a dança,
numa farandola de sabbat, correndo e
saltando, num delírio de gargalhadas frias como entrechocar de ossos numa dança
macabra.
Ao Manoel parecia-lhe que tudo dançava
á volta dele, que ele mesmo se sentia voar num rodopio de entontecer. Agora o
Diabo, sentado num trono luminoso de feiticeiras, os pés de bode torcidos e
negros a descansar sobre o formoso corpo de Maria, como se fosse um estrado,
lia um grande livro de capas encarnadas. A cada folha que voltava, saía uma
nuvem de diabitos fantásticos, saltitantes, folgazões como garotos ao sair da
escola, que iam juntar-se ás feiticeiras, e tudo corria, voava, num cabriolar
estonteante e doido.
Uma das luzes aproximou-se então
do Manoel, que ficara empedrado na contemplação da cena que o atordoava e lhe
tirava toda a sensação da vida, e rapidamente se fez mulher. Ficou boquiaberto,
pois a bruxa era nem mais nem menos do que a Gertrudes Zarolha, a velha amiga e
confidente da Zéfa do Padre.
Se tivesse pensado melhor não se
teria espantado tanto, pois essa era tida e havida por tal desde que o compadre
Marques, o alfaiate, a encontrara feita galinha, lá para as bandas da vila,
arrastando após si uma ninhada de frangas, as discípulas que ia exercitando
pela noite alta. Admirou-se: — uma galinha tão tarde fora da capoeira!? — e
dando-lhe com o metro partiu-lhe uma aza. Logo a Gertrudes tornou á sua forma
natural e lhe pediu que se calasse, pois em paga do seu silencio lhe daria
todos os anos uma camisa nova.
Mas o que é certo é que toda a
gente soube do caso, sob segredo, e ele nem por isso deixou de receber
anualmente a boa camisa de pano de linho.
A Gertrudes quedou-se diante do
Manoel: feia e engelhada, a boca vazia de dentes, o cabelo esbranquiçado e
crespo a fugir do lenço de chita, uma cavidade vermelha no lugar do olho
direito perdido não se sabia por que desastre.
—«Ai, Manoel, pobre rapaz,
desgraçado!... Se o Senhor te visse, estavas perdido neste mundo e no outro!...
Ele olhava-a emparvecido, numa
confusão labiríntica de ideias, que não explicava nem compreendia.
—«Ouves, Manoel? — continuava a
velha bruxa. — Eu sou tua amiga, não te quero ver perdido. Olha, escuta, toma
sentido no que te vou dizer: O Senhor vai perguntar quem corre mais, para lhe
entregar a caldeirinha que veio hoje do inferno para a nossa missa. Tu hás de
dizer que corres como o pensamento, agarra nelola, e foge. Corre quanto poderes!
Só estarás em segurança agarrado á corda do sino da igreja, depois do galo
preto romano cantar pela terceira vez depois da meia-noite. Corre, corre quanto
poderes, e livra-te de olhares para traz, ouças o que ouvires, sintas o que
sentires. Ainda que te chamem pelo teu nome, não olhes nem pares,— olha que depende
daí a tua salvação e a tua vida!
Afastou-se saltitando, outra vez
luzinha, a misturar-se com as outras na dansa macabra.
O Manoel ficou estarrecido, mas o
próprio medo lhe deu energia bastante para responder com segurança á pergunta
que o homem vermelho fazia em voz tão formidável e soturna que toda a natureza
estremeceu de pavor e os corvos no visinho cemitério grasnaram agoirentamente.
Tendo gritado, no meio de
vozearia geral, como lhe ensinara a Gertrudes Zarolha, — «corro como o
pensamento!» — agarrou na caldeirinha mágica que estava no meio da roda e
desatou a correr com quanta força tinha, em direção á igreja, cujo campanário
singelo donde pendia a corda do sino era agora a sua única esperança de
salvamento.
Mas, fosse porque o conhecessem
pelo andar ou fosse por penetração diabólica e subtil, o que é certo é que, logo
que voltou costas, uma grita ensurdecedora lhe chegou aos ouvidos. Sentiu-se
perseguido por toda uma canalha de demônios, fúrias vesgas e feiticeiras
esguedelhadas, pequeninos trasgos e enormes gigantes, que ardendo em sede do
seu sangue e da sua alma cristã lhe corriam no encalço.
Via-se quase perdido, sentia-se quase
agarrado por enormes braços descarnados e com unhas aduncas e enclavinhadas,
que se lhe cravavam na carne como tenazes... Chamavam-no pelo seu nome, ouvia
coisas pânicas, e ora o insultavam com palavras que se desprendiam como
pedradas de funda, ora o seduziam com promessas tentadoras.
E dizia mesmo que essas vozes sedutoras,
que se misturavam ás outras brutais e agressivas, eram ditas pela boca vermelha
e fresca da Maria...
Mas, fiel á recomendação da
Gertrudes, corria numa ânsia ofegante, num desespero de loucura. Na cabeça
enfebrecida duas únicas ideias se lhe espetavam, como navalhas agudas: — a
Próspera abraçando o Senhor, como lhe chamara a Zarolha, e o campanário humilde
onde estava a sua salvação.
Não compreendia nem via mais
nada, e nada mais lhe interessava no mundo. Mas chegaria a tempo de poder
agarrar a corda do sino antes do galo preto romano cantar pela terceira vez á
meia-noite?!...
Já as pernas lhe fraquejavam, a
cabeça andava-lhe á roda, e os gritos satânicos, que mais e mais se avizinhavam,
davam-lhe a certeza do seu triste fim, se não conseguisse chegar.
Mas já estava perto — num último
arranco, estava salvo!
Se fosse vinte passos mais longe
não poderia resistir. Quando deitou a mão á corda do sino, que deu na noite
negra uma badalada lúgubre, o galo preto romano soltava pela terceira vez a sua
voz clara e sonora de espancar visões e pesadelos.
Um gargalhar surdo e um rumor de
maldições e pragas perderam-se no ar, enquanto o Manoel caía pesadamente no
chão, agarrado ainda á corda do sino que tremia nas suas mãos crispadas. Ao
lado tombara a caldeirinha tilintando numa vozita escarnecedora.
Para quem duvide do caso, lá está
ela na igreja matriz, da pequena terra triste, cortada na rocha bruta,
estrangulada entre pinhais melancólicos e oliveiras de folhagem eternamente
sombria.
Lá anda ela, cheia de água benta,
tilintando sempre a sua vozinha escarnecedora e fantástica, acompanhando
enterros de cavadores tisnados que na terra encontram o seu único repouso, e
criancinhas frágeis que vão para o céu aspergidas com a água benta da
caldeirinha infernal...
Lá anda, muito serena, orgulhosa
do seu metal desconhecido forjado nas profundezas ardentes do mundo
sobrenatural, a acompanhar o senhor vigário na visita anual em dia de Páscoa
alegre e florida: — «Boas festas, boas festas, santas festas!, sorri no seu
arzinho petulante.
De madrugada, quando os homens
iam para o trabalho, encontraram o Manoel ainda desmaiado, agarrando-se á corda
do sino como naufrágio a tábua salvadora.
Levaram-no para casa, alvorotando
toda a vila com o extraordinário caso. A Clara de Rezadeira, — coitada! — mal
viu o filho, o seu Manoel, estendido como um cadáver sobre o leito de
cabeceiras embutidas, para onde os homens o atiraram já cansados da caminhada
com semelhante peso, ia morrendo também, sufocada pelo sangue cujos ímpetos o
pobre coração mal podia regular.
Mas o mestre barbeiro afiançou a
cura para breve, dando uma picadélasita no braço do rapaz — que era de humor
muito quente, e apanhara algum golpe de sol lá pela feira.
A febre sobreveio e teve-o entre
a vida e a morte, dias e noites ardendo num fogo de que o delírio e a agitação
eram o corolário lógico. O que ele via, os sonhos e os pesadelos que lhe
enchiam a pobre cabeça enfebrecida, mal o compreendiam os seus enfermeiros. E
todo aquele mal se agravava e a agitação chegava ao delírio furioso dum louco
se por acaso a Maria do Próspero chegava á porta, a pedir noticias ou a querer
ajudar a tia Clara nos arranjos domésticos.
Ninguém podia compreender tal horror
á rapariga, nem ela, que se consumia e chorava sem consolação por ver a mudança
brusca do seu Manoel.
Quando se levantou estava pálido,
cambaleava, e uma tristeza profundíssima lhe encovava os olhos.
No primeiro dia em que saiu, o
seu cuidado foi logo ir procurar a Gertrudes Zarolha, que encontrou sentada á
porta da casa, fiando e conversando com o gato preto gordo e pesado, seu único
companheiro e amigo.
O Manoel não esteve com cerimônias,
foi direito ao fim. Contou á velha tudo quanto tinha visto na Fonte do Inferno
quando viera tarde da feira, e exigiu explicações completas sob a ameaça duma sova
se ela não quisesse dizer a verdade.
Ao principio a Gertrudes
indignou-se, pôs as mãos no peito, jurou a sua inocência e negou que fosse
feiticeira.
— Na Fonte do inferno?!
— O Manoel que não sonhasse em
tal — credo! cruzes, canhoto! Fora aquele patife do Próspero que levantara aquela
calúnia e dizia a quem o queria ouvir — que fora ela quem chupara o filho da
fidalga...
Mas o Manoel atalhou: — não negasse
a Senhora Gertrudes; tinha-a ele visto, ora essa! Querer dizer-lhe que não era
verdade uma coisa que ele mesmo vira, com aqueles mesmos olhos que a terra
havia de comer?!... Demais, não tinha nada com a sua vida nem o contaria a ninguém,
pois até lhe estava muito agradecido por o ter ensinado a livrar-se de tamanho
perigo. Agora o que queria saber era a verdade — sobre a Maria do Próspero.
Seria ou não certo tê-la visto abraçar o Senhor?... Seria ou não certo o ser ela
feiticeira a valer?! Podia ter-se enganado... podia-a ter confundido com
outra... Ás vezes, e como foi ao longe...
Era a última esperança, e a ela
se agarrava com todo o afinco de quem não quer perder uma doce ilusão.
E pensava, horrorizado, que
aquilo poderia ser verdade e teria que deixar de pensar na Maria, agora que a
paixão por ela chegara ao alucinamento, hesitante entre o amor e o ódio.
Quanto daria para que a Gertrudes
lhe desse a certeza de que os seus olhos o tinham iludido, quanto daria!...
Tornar a ter na Maria a confiança que tinha dantes; podê-la levar para a sua
casa, como ainda na véspera lhe dissera a mãe, que morria pela rapariga — tão
trabalhadeira, tão desembaraçada e boa... Não tinha nada, mas isso o que
importava? Ela, a Clara do Rezadeira, não se importava nada com isso e aconselhava-lhe
a que escolhesse antes uma rapariga de trabalho do que uma com dinheiro, que
nada vale quando dá em mãos que o não sabem guardar nem aumentar.
Como ele esquecia, evocando a
formosa rapariga, a pálida Terezinha, que lentamente se ia definhando e
morrendo aos poucos, ao compasso surdo e monótono do seu tear!...
Mas a Gertrudes foi impiedosa. A
pouco e pouco começou a dizer tudo; primeiro timidamente, tenteando o assunto,
depois entusiasmando-se, contando detalhes, dizendo coisas que arrepiavam e
indignavam o Manoel.
Era certo e mais que certo ser a
Maria feiticeira! Havia pouco tempo que aprendera, mas já a consideravam das
mais finas e das mais queridas do Senhor.
—O lobisomem que tinha visto — mas
isso em grande segredo, porque tinha medo de levar alguma sova — era o Próspero
velho. Andava com o fado ha tantos anos! Não tinha sorte nenhuma, coitado!
Que de historias lhe contou, e ele
ouviu pasmado, vencido por aquela verdade irrefutável: — a Maria era
feiticeira!
A Gertrudes comentava com gestos
curtos e vozes de confidencia: — Ora essa! De que se admirava? Sempre lhe
dissera que não era mulher capaz para um homem de brio e de honra.
Tinha-lhe ódio, o ódio implacável
das velhas criaturas desprezíveis aos que têm a insolência da alegria, da
juventude e da beleza. E então, depois que a rapariga dissera numa sacha, entre
as gargalhadas do rancho, que não queria estar ao pé dela porque lhe podia dar
quebranto ou chupá-la como fizera ao filho da fidalga, a Gertrudes não a podia
tragar.
—Se fosse com a
Terezinha, — continuava convencedora — com essa era de sua aprovação. Uma
rapariguinha tão recolhida, sem uma nota, sem más palavras para ninguém, e
sempre tão boa, tão condoída! Mesmo um anjo do céu!
O Manoel calava-se, abismado no
seu desgosto, não podendo seguir-lhe a tagarelice nem dizer uma palavra que lha
fizesse estancar. De quando em quando, uma palavra ou outra feria-lhe o ouvido,
chamando-o á realidade, aos repelões, sobressaltando-lhe ainda mais a alma
amarfanhada.
Por vezes já a imagem da
Terezinha, com a sua esbelteza delicada, o seu vestido escuro de luto aliviado,
o sorriso magoado da sua boca virgem de beijos, se começava a esboçar na sua memória.
Via-a corada como a romã quando acertava de lhe dirigir a palavra, sofredora e
resignada quando o sabia mais preso pelos encantos de Maria; lembrava-a fugindo
arisca da porta para o espreitar da janela, mal assomava ao cimo da rua com os
seus ares triunfantes, bamboleando-se com a importância de janota de aldeia. — «Coitadinha!
Gostava tanto dele! Enquanto esteve doente, nunca ela deixou apagar a lâmpada á
Senhora do Castelo...
O Manoel afastou-se por fim — a
velha já o enjoava com as suas historias. E, ao sair dali, pensava com funda
melancolia em todo o passado extinto, nessa alegria radiosa que não voltaria
mais. Da sua vida, tão profundamente abalada, nem a si mesmo sabia dar conta.
Quando subia vagaroso e
preocupado a rua estreita e íngreme, os seus olhos puseram-se com sobressalto
na Maria do Próspero, que caminhava em sentido contrario, cabisbaixa, os braços
caídos ao longo do corpo, os olhos pisados postos no chão, o fato em desalinho
de quem perdeu o gosto e a garridice.
Que mudada estava! Nem parecia a
mesma, — não a reconheceria por certo fora dali.
O rapaz, olhando-a, sentiu
subir-lhe do largo peito um soluço doloroso.
Meteu-se na sombra duma porta e
deixou-a passar, avergada ao peso da tristeza e do remorso do seu pecado
sinistro.
Estremecia de horror como se a
visse ainda na noite demoníaca, cuja lembrança o perseguia como uma ideia fixa
de monomaníaco.
Como podia ser feiticeira uma
rapariga tão linda, tão alegre, tão sincera?!...
Mas era-o, tinha a certeza,
porque a vira abraçando o homem vermelho de negros pés de forquilha, e porque a
Gertrudes lho afiançara havia instantes.
Todo o pavor daquela noite trágica
o tomou de novo, e involuntariamente evocou o sabbat infernal: — as luzinhas bailando, entrechocando-se, e
afastando-se num compasso rítmico; as gargalhadas que soavam como crocitar de
corvos; os olharapos correndo, com o seu único olho a furar-lhes a testa; os lobisomens
galopando, no seu fadário triste; avejões, diabitos galhofeiros, lêmures,
trasgos, duendes, feiticeiras, e, sobre tudo, como ferro em brasa a causticar
uma chaga, a recordação da cena em que a Maria abraçava o homem vermelho e lhe
servia de estrado.
Era de endoidecer!
Quando despertou desse pesadelo
de acordado, já a Maria ia longe, andando lentamente, acurvada pelo imenso desgosto
de ver o Manoel tão diferente do que fora, e sem razão nenhuma que ela lhe
desse!
Se ao menos soubesse explicar o
motivo porque tão cruamente a repelira durante toda a doença, quando ela
passava as noites sem se deitar, sempre pronta á primeira voz, — uma verdadeira
filha para a Clara do Rezadeira, que já lhe queria como tal!...
Alguns meses depois, os sinos da
antiga igreja matriz repicavam freneticamente mostrando o entusiasmo do
sacristão pelo casamento do Manoel com a Terezinha da Zéfa do Padre.
A noiva ia radiante, mais linda
do que nunca. Os olhos brilhantes, os lábios ardentes, as faces ligeiramente coradas
pela felicidade inesperada que a chamava á vida, quando ia já caminhando para a
morte, ao compasso monótono do tear subindo e descendo no contínuo trabalho.
Satisfeito e feliz, também o
Manoel ia, triunfante, com o seu fato preto de pano fino, o seu chapéu
lustroso, a sua fina camisa engomada a primor, ao lado da noiva — uma santinha
do altar!, dizia a Gertrudes benzendo-se.
Também ele se sentia alegre e
despreocupado, sem pensar na pobre Maria do Próspero, que curtia sozinha, num
desespero torvo e sem remédio, a sua derrota miserável.
Quando a Gertrudes Zarolha
começou a espalhar o que se passara, o que vira o Manoel na noite em que viera
mais tarde da feira, por se ter demorado a conversar com uns amigos na taberna
do Jeitoso, a Maria teve um violento acesso de cólera, uma rubra indignação,
que estava na lógica da sua forte e sadia natureza. Quis bater na velha, que
fugiu espavorida, gritando-lhe que fosse perguntar ao Manoel — e ele lhe diria
tudo quanto vira...
E ela fora logo, forte da
tranquilidade da sua consciência, certa de que ele estaria ao seu lado para a
defender de tão absurda acusação...
Mas quando ouviu da boca dele a
confirmação dos ditos da velha, quando ele lhe atirou com desprezo o epíteto de
feiticeira, sucumbiu. Ficou quieta, a olhá-lo pasmada, sem encontrar uma
palavra para se defender, cheia de dúvidas e de desânimo... Sem a confiança do
Manoel, o que podia fazer?!
E desandou dali, com grossas
lagrimas a rolarem-lhe pelas faces, e um aperto na garganta que a estrangulava.
Fechou-se em casa; e, sem ninguém
que a consolasse, nenhuma alma compassiva que a ajudasse a levantar daquele
abismo em que a própria consciência desaparecia sob a sugestão alheia,
rebolou-se pelo chão, rasgou o fato, atirou contra as paredes a cabeça que
sentia perdida e desvairada, soltou gritos que lhe despedaçavam o peito, até
que, exausta, ficou como morta no meio da casa. Ao voltar do trabalho é que o
pai a levou para a cama, limpando, num repelão, á camisa suja de suor e poeira,
uma lagrima que teimava em rebolar-lhe pela face encarquilhada e dura.
— A sua pobre filha, a alegria da
sua vida — em que estado a encontrava! Maleitas ou mau olhado, espírito ruim
que lhe entrara no corpo e já a não largaria...
Quando voltou a si, pesou bem a
desolação da sua vida, e chorou toda a sua esperança, a sua alegria como a sua
mocidade exuberante que tinham fugido espantadas diante daquela noite negra e
sem fim.
Enquanto os sinos cantavam na manhã
clara, de sol radioso e céu azul em festa, as alegrias do casamento da
Terezinha com o Manoel da Clara, a caldeirinha mágica tilintava o seu risito
escarninho e macabro e todos a consideravam com admiração e respeito pelo
sobre-natural.
A Maria, agora feiticeira
conhecida e apontada por todos, já não canta nem vai ás romarias.
Nos trabalhos do campo, as mulheres
e as crianças afastam-se dela apavoradas, e os homens, lamentando-a, não têm
coragem de vencer esse pavor.
Um brilho ardente de febre queima
sempre os seus lindos olhos negros, que vagueiam inquietos, num medo doentio e trágico.
Atormentada de visões, mordida de
maus olhados, meses inteiros presa de delírios histéricos, sente-se, na
verdade, transportada nas azas do vento para sítios ermos em que luzinhas
saltitam em rondas buliçosas, lobisomens passam em cavalgadas doidas para se
irem espojar nas encruzilhadas sinistras, moiras encantadas tecem em teares de
ouro contando as saudades antigas da sua vida humana, e olharapos, duendes, lêmures
e trasgos povoam as noites horríficas de sabbat.
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Nota:
Ana de Castro Osório: “Quatro Novelas” (1908)
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