segunda-feira, 9 de setembro de 2013

Ana de Castro Osório: “Sombras"

SOMBRAS

Para a minha rica mana Rosa!...»

Por acaso, numa caixa aromática de xarão vinda de minha avó, encontrei um dia, entre pequenas coisas de outro tempo e cartas de família, uma que decerto foi — ha muitos anos já— lida e relida por uns adoráveis olhos azuis que bastante devem ter chorado as tristezas do exílio...

Velha carta amarelecida, quebrada de antigas dobras, num antiqüíssimo papel — como ela evoca, ao meu espírito historias quase fantásticas para nós, dessas existências decorridas ha tantos, tantos anos!...

«Minha querida mana Rosa do meu coração!...»

São adoráveis essas cartas de antigamente, feitas com uma simpleza e uma ingenuidade quase infantis — como não somos já capazes de fazer! E eles sentiam tanto como nós sentimos; mais ainda talvez...

Não eram as separações quase eternas? Quem poderia esperar, ao sair de Macau, numa longuíssima viagem em navio á vela, que decorridos anos tornaria a ver essa família muito querida, deixada por outra mais querida ainda?!

Quanta amargura, quanta tristeza, nos dizem essas pequenas cartas criancilmente simples, a quase nos fazer sorrir! É que a alma humana não tinha chegado ainda á suprema tortura de se sentir pensar, de se saber despedaçar aos bocadinhos, palavra por palavra, letra por letra, lagrima por lagrima!... Não tinha chegado ainda ao espiritual impudor com que nós procuramos traduzir em frases bem redondas, bem nítidas, bem palpitantes, a amargura que nos cava fundo no coração.

Ao dar com essa singela carta de ha muitos anos, uma grande simpatia, envolta em uma espécie de saudade, me veio por as encantadoras figurinhas do tempo passado, sorridentes, frágeis, movendo-se musicalmente na graça antiga do minuete passeado...

Vejo-as: com os seus grandes chapéus á diretório, de cintas muito curtas e leques de plumas, levantando gráceis os vestidos compridos, — mostrando, numa coquetterie quase infantil, a meia de seda clara arrendada, com fitas a enlaçar, como era a moda.

Têm uma doçura pálida, um encanto murcho de outros tempos, um perfume apagado, imaterial, — essas historias tão graciosas e tão puras.

É com meiga tristeza que recordamos todas as que foram lindas e amadas ha muitos anos e hoje desaparecem no pó!... Finas silhouettes que os nossos filhos nem já saberão distinguir no montão de saudades que lhe vamos acumulando!

É um delicado prazer do espírito relembrá-las assim, uma por uma, essas empalidecidas figuras de mulheres formosas vestidas com antigos trajos — que eu só posso imaginar bonitas e  moças, e tão velhinhas seriam se ainda pudessem existir!

E foram belas e foram novas e foram amadas — essas que hoje não são mais do que sombras!

Mas para escrever uma historia dessas — feita de ligeiríssimos esboços, de recordações muito vagas, quase de tenuidades de sonho...— quanta concentração de bondade, e delicadeza e amor é necessário?!...

Ao olhar, ao tocar um pequenino retalho de seda que serviu outrora num vestido de noivado, — toda a nossa alma há de estremecer numa saudade fugitiva, o nosso coração vibrar palpitando, como próprias, as alegrias e as tristezas de todos aqueles que no mundo passaram...

É como se os víssemos diante de nós, sangrando ainda todo o amargo sofrimento da vida...

Minha querida mana Rosa...

Rosa — apesar de se chamar Ana, essa linda irmãsinha, a que o rosado das faces dera esse nome deliciosamente familiar e perfumadamente fresco — numa caligrafia larga, antiga, num português estrangeirado, ela vai dizendo as saudades e as tristezas que a vinda para Portugal da irmã mais amada lhe deixara na alma.

Nem um grito, nenhuma revolta. Na retidão do seu espírito de inglesa essa partida era um dever sagrado, que não se devia amargurar por inúteis lagrimas.

E nada literária essa ingênua carta de uma doce e loira inglesinha nascida lá muito longe, na velha terra de Macau. Conselhos para a viagem, de uma graça toda maternal e muito prática: — «Não é bom tomar caldo de galinha enquanto está enjoado. Há de fazer muito mal. Eu mando doce de laranja. Diz que é muito bom comer quando está enjoada. E um pouco de gengibre salgado. Deixa ficar um bocado na boca, sempre...» — E por fim, quase num soluço: «Adeus minha querida mana, mande noticias suas sempre, para sossegar este aflito coração.» — Saudades, beijos aos sobrinhos,—assinado: Juliana Moor.

Ao ler este nome eu recordei, quase involuntariamente, toda essa historia, bem certa, que minha avó contou aos filhos, que os filhos nos contaram a nós.

Sim, era ela, foi ela, essa pobre e querida irmã deixada para sempre, que á despedida lhe disse: — «ai minha rica mana que não nos tornamos a ver!... Mas eu irei despedir-me de ti!...»

E veio. É tão simpática ao meu espírito essa pequena historia, ouvia-a tanta vez contada por minha mãe — que eu também a posso contar como se a ela assistisse.

Primeiro, eu as imagino, a essas cândidas figuras de inglesitas, vestidas de seda clara, muito loiras, com a ingenuidade idealista da sua raça, apaixonadas aos quinze anos por estrangeiros, que as levariam para longe — o pai bem o previa!.. Mas nessa idade quem presente as lagrimas que as alegrias trazem consigo?!

E também a contemplo, á minha linda avózinha, com os seus deliciosos quinze anos, o cabelo muito loiro em bandós encaracolados, uma fita estreita a fazer a cinta debaixo dos braços, os ombros quase infantis a destacarem muito brancos na seda rosa do vestido império...

Muito linda, muito linda! Tal qual me sorri na miniatura encantadora que tenho aqui diante dos meus olhos.

E a outra devia ser parecida — quase iguais, como duas pombas saídas do mesmo ninho. Alegres e felizes ambas por bastantes anos ainda, na terra que as vira nascer, crescer e amar. E os filhos da outra, tão amados por ambas que só na separação distinguiram a verdadeira mãe...

Mas tinha de ser. Uma vinha para Portugal na nova família que ela criara; tão estremecidamente amada no dia em que morreu como no dia em que casou. A outra lá seguiu com o marido para Goa, na lógica dos seus destinos e da sua raça.

Mas uma noite...

Já muitos anos tinham passado; aquela que fora uma gentil criança era então uma formosa mulher, ao de leve empalidecida, de sorriso a murchar, conhecendo já o amargor das lagrimas... Ela não esquecera ainda essa família querida, deixada tão longe, deixada para sempre!... E a irmã, que amava mais que a todos, quando a veria?... Pedia-lhe o coração que fosse bem tarde — porque era uma certeza para o seu espírito que só á alma, desprendida do corpo para sempre, seria dado esse infinito prazer...

Uma noite ela dormia serena, junto do marido, quando uma voz a chamou de manso... Como não acordasse de todo, julgando-se a sonhar, — três pancadas dadas muito de leve na cama despertaram-na completamente.

Era ela, a irmã muito querida, numa sombra suave, que não assustava ninguém. Sentava-se-lhe á cabeceira, sorria, dizia-lhe numa caricia de voz ciciada: — «Cumpro a minha promessa, venho despedir-me!...» E muito baixo, com uma infinita mágoa de mãe: — «Ah, custa-me muito deixar a minha Juliana! É a mais nova... E não lha poder entregar!...» — Levantando-se, desvaneceu-se silenciosamente num raio de luar que vinha pela janela mal fechada.

Ela olhava, olhava ainda, procurando na solidão do quarto a imagem da irmã, que lhe aparecia tal qual era e tão diferente do que fora! Só a voz era a mesma. De resto — quase a não poderia reconhecer nessa ligeira sombra vestida á moda do tempo, tão diferente daquela em que a deixara: a cinta muito comprida, a saia de largo balão, o fecho de rendas que aconchegava com a mão esguia, muito fina, ao pescoço nu!

Era ela, bem certo que era ela!... A cor do vestido ficou-lhe bem nítida na memória —azul pálido, quase prateado...

Os soluços sufocavam-na, chorava sem consolação a amada morta que se viera despedir a tantas léguas de distancia!

Foi em vão que o marido a quis convencer a esperar noticias. Ele escreveu logo confiando em que a resposta á sua carta a tiraria daquela tristíssima impressão... Para ela é que não havia duvida possível!

E a fatal noticia — que a morta viera trazer numa noite de luar tão branca como a santa amizade que as ligara — só passados seis meses era confirmada por cartas vindas de Goa. — «E na ultima hora, minha querida tia, a minha mãe falava em V. Ex.ª...»

É bem dolorosamente triste essa pequenina carta em letra miudinha, de míope, frágil como o coração da pobre órfã abandonada tão longe dos seus! — Família talvez em França, de onde era o pai, família em Macau, família em Portugal... Em Goa, eles sós! Como é triste essa carta, triste a fazer mal! Pobre pequena carta que eu guardarei eternamente — a relembrar as vagas, esparsas tristezas de exilada que me andam na alma...

E mais tarde, morta a minha avó rodeada de filhos e netos, feliz na serenidade do seu lar, que ela soube sempre fazer tão querido, — a que longínquos países iria a sua alma peregrinar em amorosa despedida a algum dos seus?!...

Fevereiro de 96.


---
Nota:
Ana de Castro Osório: “Infelizes: Histórias Vividas”  (1898)

Nenhum comentário:

Postar um comentário