segunda-feira, 9 de setembro de 2013

Ana de Castro Osório: “Tio Barreiros"

TIO BARREIROS

O tio Barreiros: — Ora os senhores vão imaginar talvez que eu tenho para lhes contar a historia de algum tio ilustre, muito respeitável na sua gravidade de conselheiro... Ou ainda de algum general com o peito cheio de condecorações, fartos bigodes brancos, respirando nobreza e altivez... Nada disso. Era um simples e humilde criado de lavoura, de cara rapada, com uns olhos de um azul luminoso, o tio Antonio Barreiros.

Encantador o costume patriarcal de viverem as crianças com antigos criados, quase da família, que elas se acostumam a amar sem o respeito que enfastia, mas também sem a desagradável autoridade sobre essas velhas cabeças embranquecidas, sempre inclinadas para os mais pequeninos, os últimos...

Por isso, o tio Barreiros é uma das figuras mais simpáticas que na minha memória sorri.

Para criado de lavoura entrou ele em casa, já velho; pouco podia, o pobresito! Muito corcovado, o fato de saragoça grosseira, o chapéu braguez um pau na mão — quase nos pareceu um mendigo.

Mas não; tinha seus brios o tio Antonio. Trabalhava como um rapaz; rejuvenescia, coitado!

Um risonho ar filosofal dava-lhe á face uma certa finura aristocrática. E contava-nos: — «Que eu, meninos, dizem que sou filho do Deão de Decermillo. Mas que monta?... Fui pastor em rapazelho; depois entrei para criado dos fidalgos de S. Thiago e por lá estive até que me casei. Bons tempos, bons tempos!...»

— «E depois, tio Barreiros?»

Uma lagrima diluía-se no azul dos seus olhos finos.

— «Depois, depois... A mulher morreu para ali, negrinha das bexigas, que foi uma dor da alma!»

—...«A rapariga, essa... Já depois de grande, um dia morreu também, que nem eu sei de quê!... Agora, a minha família são os meninos, cá esta casa. Isto é como se fosse meu, pela amizade que lhes criei...»

A nota melancólica da conversa desaparecia por completo do nosso espírito para só avultar aquela estranha palavra: — Deão! — Que seria aquilo?... Talvez uma coisa escarlate franjada a ouro, como os guiões, que levavam uns pobres homens derreados, na procissão do Corpo de Deus!

E o velho Barreiros, com tal probabilidade de pai, avultava aos nossos olhos prodigiosamente, tornava-se quase divino, num hierático esplendor de festa religiosa.

Por fim, o pobre velho já não se atrevia a sair ás propriedades de fora — honestamente pediu que lhe baixassem a soldada, que ele ficava só para tratar da horta. E ás tardes, naqueles poentes tristíssimos das regiões montanhosas, nós passeávamos sob a parreira da horta: ele de sacho na mão, parando de quando em quando a apanhar uma folha velha das enormes couves, que só ele fazia crescer espantosamente. Nunca mais vi couves assim! Talvez por ser eu muito pequena, tudo me parecesse grande; talvez porque o tio Barreiros tivesse receita especial para as fazer crescer!... — «Que isto, meninos, as criadas não devem pôr mão na horta. Uma desgraça, decepam tudo, uma estragação!»

Claro; nós éramos sempre pelo velho contra elas.

—«Lá em casa dos fidalgos, havia couves ainda mais altas do que estas!...»—

—«Mais altas, tio Barreiros?!...»

Que grande coisa ser fidalgo!—pensava. Até a horta se ressentia de tamanha altura heráldica!

Ah tio Barreiros, tio Barreiros, que loucuras risonhas nos metia na cabeça a vossa bastardia fidalga! Que saudades, meu amigo!...

Uma vez — há quanto tempo isso vai! — mal começava a aprender a ler, por premio assinaram-me um jornal, que devia vir diretamente para mim.

Esperava numa febre a chegada do carteiro; e nada do jornal aparecer, para o meu nome, como eu sonhava noite e dia!... Desabafava com o tio Antonio, aquilo parecia-nos historia...—«Mas o papá pagou isso, menina?»

—«Pagou, tio Antonio, para vir para o meu nome.»

—«Pois olhe que foi no que ele andou mal. Nunca fiar!...»

E lá esperávamos, consternados, mais vinte e quatro horas. Mas um dia soube-se:— o jornal tinha vindo logo, mas, como eu tivesse numa terra próxima uma tia com o mesmo nome, os empregados do correio vá de lho remeterem. Eu, muito queixosa, fui ter com o Barreiros ao quintal. Ele indignou-se:

— «Vou já lá de caminho. Não, que uma coisa assim!... Nem que a minha ama nova não soubesse já ler, não fosse capaz de ter um jornal!» Era uma injuria para nós ambos. E eu ficava consolada, vendo-o atravessar o pátio, seguido das galinhas, galos, perus, marrecos, com o ganso pai á frente — o Caetano — como lhe chamávamos.

E ele lá ia com toda a pressa que as suas velhas pernas lhe permitam — um casaco lhe tinham dado, arrastando na frente e muito curto atrás, tão dobrado andava ele, o pobresito, a pender para a terra!..

E o caso é que fez um discurso no correio. Mas por fim discutimos:—«Menina, o melhor é mudar de nome. Olhe que há de haver sempre enganos!»

E esta coisa de haver enganos — tocou-me. Toda a vida a não receber os meus jornais...

— «Pois está dito, tio Antonio! É o melhor.» E assim foi.

Mas o velho começou a enfraquecer. De dia para dia o corpo se lhe dobrava mais para a cova. Já pouco comia, sustentava-se de vinho e marmelada, nada mais.

E num inverno muito rude, em que a neve caiu mais a miúdo e de manhã a água dos tanques aparecia gelada—o tio Antonio Barreiros apanhou uma tossita; levantava-se tarde, já não ia com o sacho para a horta...

Sentíamos que o seu espírito, risonhamente infantil, já andava longe, num meio sonho, quase desligado da terra...

Falava na mulher, falava na filha, com uma grande serenidade e um redobramento de afeto—como quem pensava em as encontrar breve. Depois olhava-nos com uma tal saudade...

E numa fria manhã de inverno, voltado para a parede, embrulhado na manta de riscas, ele apareceu serenamente adormecido para sempre. A sua boca irônica eternamente risonha; fechados os olhos azuis duma graça aristocrática... O seu perfil acentuado, desenhava-se muito nítido na brancura da parede. As glicínias, despidas de folhas, metiam os braços hirtos pela abertura da janela, numa ultima despedida ao velho amigo que as tinha plantado... E ele dormindo na manhã brumosa, sem responder ao nosso chamamento!...

E que falta ele fazia, á noite, na ceia dos criados, contando historias, oh! lindas historias de feiticeiras e lobisomens — de que o velho se ria, um poucochinho cético, vamos lá!...— Guerras que ele vira, dramas de família a que tinha assistido, trovoadas no meio da serra a quando pastor... Ah! tudo isso nos fazia muita falta, muita falta!... E nunca mais nós esqueceremos o tio Barreiros, dormindo sossegadamente junto dos patrões, que primeiro nos tinham deixado.
  
Junho de 96.


---
Nota:
Ana de Castro Osório: “Infelizes: Histórias Vividas”  (1898)

Nenhum comentário:

Postar um comentário