SOLTEIRÃO
A inesperada morte do velho
doutor Mendes fez-me volver os olhos um bom par de anos atrás —a quando
criancita gulosa lá ia ver passar as procissões e beber a minha xícara de leite
com sopas de biscoitos caseiros.
Essa morte rastejou-me na alma
uma pequena sombra de melancolia, não que eu amasse muito esse velho nem que a
sua falta seja desventura para alguém, — mas é que os sinos, dobrando numa
pardacenta tarde de fevereiro, são de uma tamanha tristeza!...
Com uma persistência dolorosa de
choro, as badaladas sucediam-se atirando para o espaço os seus pesados
lamentos— únicos que acompanharam o doutor Mendes na sua primeira noite de além.
Morreu, pobre velho inútil,
despertando apenas a irônica piedade que inspiram aqueles cuja alma subalternizada
não soube criar uma família nem chegou á consciente bondade dos fortes.
Ninguém o estimava já. Outrora
havia inspirado medo como mandão da aldeia; diziam-no vingativo e cruel nos
tempos áureos do seu poderio... Por fim, esse poder era uma triste caricatura.
...Porque — eu ainda lhes não
disse? — fazem-me tristeza as caricaturas. D. Quixote é para mim mais comovente
do que Jocelyn.
Em novo fora o doutor Mendes um
feliz conquistador de criadas e caseiras, que olhavam agora para os filhos
grosseiros e brutais, encarquilhando os olhos cúpidos, julgando-os possíveis
herdeiros da bela fortuna do velho. Tudo podia ser; se ele não tinha herdeiros
forçados!
E lá ia vivendo, certo em todas
as festas, imaginando-se imponente á força de tesura, o bigode branco cortado
em escova, a calva luzidia, a face sanguínea. Dava realce ás festas —diziam
rindo chocarreiramente aqueles que lhe tinham tirado o bastão de comando,
deixando-o, mono de palha, para a imposturice da figura.
Estou a vê-lo, o senhor doutor,
com a sua casaca pré-histórica, lustrosa, de um feitio único; o lenço
d'Alcobaça, azul escuro, com pintinhas brancas, a sair dos bolsos; cumprimentando
receoso, estendendo apenas dois dedos gordos e vermelhos; soprando contente a
cada palavra...
Levava a umbela em todas as
procissões e na minha poderosa imaginativa infantil aquilo engrandecia-o a tal
ponto que o revia no céu acompanhando as almas purificadas ante o trono de ouro
do Padre Eterno.
Se caiu de tão alto no meu
conceito, não foi dele a culpa, que impassível continuou ele a sua vida quase hierática
entre o incenso dos turíbulos e o cheiro fresco do rosmaninho — eu é que mudei,
infelizmente!
Porque não detemos nós a vida;
porque não conservamos o nosso espírito na meia alucinação doce da infância? Se
vale a pena isto!... Andar a primeira parte da vida a construir altares, a
enramalhetá-los, a venerá-los com todo o nosso entusiasmo; gastar outro tanto
tempo a destruí-los; e o resto da vida passar a chorá-los! Não, não acho que vá
bem assim o mundo! Ou as crianças tem que nascer com a sabedoria dos velhos ou
os velhos ficarem com a ingenuidade das crianças. Quanta tristeza se pouparia a
certos espíritos por demais vibráteis!... Assim, eu escusava de sofrer vendo a
pobre cabeça do velho doutor Mendes, que diziam inteligente, ser agora uma
coisa estéril e ôca.
O seu risito infantil, em hi, hi,
hi, como dava uma prova dos frágeis juízos humanos! E tinha sido terrível em
vinganças do tempo dos Cabrais, ele que hoje fazia rir as crianças!
A rodear o idoso doutor Mendes
fazia-se uma atmosfera de coisas envelhecidas e desbotadas. A sala de
recepção — forrada a panos d'Arrhas, com ingênuas cenas da Bíblia, onde as cores
já murchas se confundiam e empalideciam suavemente a dar um tom uniforme á
filha dos Faraós salvando um esperto Moisés e ao seu terrível pai afogando-se
nas justiceiras águas do Mar Vermelho—abria-se lá pelas festas ás raras
visitas. Impunha respeito com os seus tetos altos, o delgado friso doirado a dividir
os panos, as suas doze cadeiras formadas aos lados do sofá incômodo como um
potro inquisitorial, o indispensável tremó e espelho a encimá-lo.
Logo ao entrar no pátio, á noite
sempre iluminado esperando problemáticas visitas, uma gélida impressão de
silencio nos envolvia. Subia-se meio receoso a escadaria de pedra, a abrir-se
nobremente em dois lanços, como um velho amigo que nos recebe de braços
abertos. Essas belíssimas escadas das casas antigas, que dão bem a nota
carinhosa do nosso gosto pela hospitalidade, eram mais uma frisante ironia
naquele interior fechado, esquecido, só de longe em longe visitado por indiferentes.
Entrava-se a medo na sombria casa
e esperava-se, em silencio, que os donos aparecessem. Passado um tempo, que nos
parecia infindável, vinham, as quatro manas — miudinhas, desbotadas elas
também, muito parecidas umas com as outras, falando baixo, repetindo todas o
que dizia a mais nova, sentenciosamente, a modos de oráculo. Muito devotas, um
grande respeito pelo mano doutor, elas lá iam todos os domingos, em carreirinho
de formigas, á missa pacata da freguesia. Muito velhitas, com antigos enfeites
na cabeça, vestidos de seda passados de modas ha tempos imemoriais, lencinhos
de renda no pescoço, restos da antiga garridice, cheirando a alfazema e a cânfora.
Como isto vai longe, perdido no
montão de saudades que me enchem a memória; e como eu sinto ainda toda a
impressão de poeirento, de velhez, que me tomava toda quando as ia visitar cerimoniosamente!
Porque o tempo já ia longe em que
a minha inconsciente criancice ousava penetrar sem receio naquele tumulo. O
tempo das procissões e do leite frio passara com a minha primeira infância e
com as passeatas á igreja para ver as mudanças de toilettes que Nossa Senhora sofria de cada vez que a passeavam
procissional e dolorida.
E ainda hoje elas coram e baixam
os olhos admirando a imoralidade que vai por esse mundo. — «Tudo perdido, tudo
perdido, manas...» — dizia a mais nova, fechando os olhos a cada palavra.— «É
verdade, é verdade, é verdade...» — respondiam as três a um tempo. — «Ainda bem
que o mano não quis casar!... Nem nós também, que fomos bastante
pretendidas!...» — «É verdade, é verdade, é verdade!» — fazia o coro. — «Que modas,
santo Deus! Os homens cruzam a perna diante das senhoras e apertam as mãos!!
Que gente, que imoralidade!...» — E as outras abanavam a cabeça afirmativamente,
enquanto o doutor Mendes, á janela, lia a Nação, escondendo das boas irmãs um
sorriso velhaco.
E foi ele, tão corado e gorducho, o primeiro a
morrer.
A sua morte dera brado.
Murmurava-se: «Afinal não fizera testamento? Podera! Até na morte fazia
partida. Fora sempre assim.» — E lá iam seguindo o enterro, bocejantes, sem
nenhuma pena, maçados. Enterro de indiferentes que nenhum respeito contêm no
seu aborrecimento.
As pobres irmãs, mirraditas,
gemiam frouxos lamentos. Tão velhinhas, tão longe deste mundo— nem gritos já
tinham para se lamentar. Era um correr de lagrimas, sem soluços nem febre, um
resignado sofrer de pálidos fantasmas.
Por suprema ironia das coisas
humanas, até o enterro foi causa de riso. Do antigo mandão da aldeia, que
inspirara medo e profundos ódios, apenas restava esse corpo inerte deitado numa
eça branca, com a fita do caixão risonhamente branca. Se ele fosse vivo como a
levaria imperturbável!...
Mas os sinos lá ao longe tangiam mágoas,
que se iam alastrando como nodoa de azeite na pardacenta tarde de um fevereiro
triste.
Como é enervante pensar na vida
assim, sem interesse pelos outros, sem nenhum grande afeto que nos chore bem
alto, a fazer calar todos os risos!...
Nessa paisagem, paralisada pelo
inverno, só eu parecia viver — campos de vinha estorcendo os braços esqueléticos,
pinhais muito graves no seu eterno verde, o riacho a correr ao fundo do vale, e
como gigantesca parede as serras violeta, escarpadas e selvagens... Ao fundo, vaporizando-se
no poente, as torres alvas das igrejas lançavam pelo espaço o seu lamentoso
dobre: dão!... dão!... dão!...
Uma grande amargura me afogava a
alma, vinda dessa paisagem desolada, desse cair da tarde sombria, da lembrança
de morte que flutuava no ar — de qualquer coisa enfim que me segredava desalentos
e angustias...
A chuva começou de cair miudinha,
sem ruído, para o fim da tarde... Que desagradável noite essa primeira que o
velho doutor Mendes passou solitário no seu tumulo, guardado pelas sentinelas
esguias dos ciprestes!
1895
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Nota:
Ana de Castro Osório: “Infelizes: Histórias Vividas” (1898)
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