segunda-feira, 9 de setembro de 2013

Ana de Castro Osório: “A Terra"

A TERRA

Quando um homem se apega á terra, ela é por vezes de uma ingratidão que chega a revoltar. Com a sua impassibilidade de coisa morta irrita o amor até ao fanatismo, leva á loucura.

O Manuel Carpinteiro não tinha mulher, nem filhos, nem sobrinhos, ninguém que lhe ajudasse a levar a vida alegremente, que pelas manhãs o acordasse com sonoras alvoradas de risos.

Vivia só, num casinhoto ao cimo da vila. Ele mesmo fazia o caldo e cosia umas batatas; a broa comprava-a de caminho em casa da sr.ª Cândida, quando á noite recolhia da enxada ao ombro, tristonho, indiferente, para ali uma coisa sem nada lhe importar. Passava pelas mulheres com uma completa indiferença de desconhecido. Era um simples cavador, mas chamavam-lhe carpinteiro porque o pai o tinha sido; já em garoto alcunhavam-no de Manél do carpinteiro; depois, com o tempo, por abreviatura, ficara com aquele nome.

Á custa de muita avareza e muita miséria arranjou meia dúzia de vinténs, e tanto pediu, tantos empenhos meteu, que na câmara lhe emprasaram um bocado de serra. Mas, como a pobreza é muita naquela região, o povo miserável toma os maninhos como próprios. Ninguém lhes pode tocar, sob pena de revoltas e gritos do mulherio, dos sem eira nem beira, que por vezes tem percorrido a vila esbracejando, cabelos desgrenhados, lenços escarlates a agitarem-se como bandeiras de guerra.

Os invernos são rudes e os desgraçados vivem da serra como animais inferiores. Queimam pelas noites bravas de invernia os sargaços verdes, que enchem de fumo os casebres e nem ao menos se desfazem crepitando risos de ouro. Vendem aos lavradores molhos de fetos para comprarem o pão de cada dia e as ovelhas tem o seu magro pasto por essa serraria além, entre pedreiras e pinhais.

Temendo um levantamento, os graves senhores da câmara emprasaram ao Manuel carpinteiro uma courela de terreno inculto — aquilo que não prestava para os outros.

O povo todo explodiu numa sonora gargalhada: — que ia fazer aquele maluco com um bocado de maninho tão seco? Por mais que se matasse nunca lhe daria senão uma reles terra centeeira...

O Manuel arreliou-se fortemente com esses ditos e, cabeçudo como um verdadeiro beirão, arranjou uma cabanita, no meio da belga e ali vivia como um selvagem.

Trabalhava desde que o sol vinha, irrompente, até que se escondia nos poentes gloriosos dos dias longos do estio. No inverno apanhava a pé firme as chuvas, a neve, o vento e o frio. Era um labutar sem descanço, e ela, a ingrata, pagava-lhe com umas anêmicas paveias de centeio, que ondeavam palidamente, mostrando a terra branca de seixos como dentes descarnados de rapariga tísica. Ele mesmo assim a adorava, a essa belguita que ia fazendo com o seu trabalho, regando com o suor do seu rosto. Em metade plantou um bacelo, mas a uva não amadurava; deu-lhe um vinho palhete muito leve, muito agradável, mas para vender era uma desgraça — nenhum negociante lhe pegava. E no entanto ele amava-a como se fosse uma mulher formosa, sempre pronta a pagar-lhe em sorrisos os cuidados de que a rodeava.

O que lhe falta é só água, — dizia ele sombriamente — o mais é uma terra nova, boa de lei. E continuava a revolve-la com a ânsia de quem procura tesouros. Vinham homens entendidos, os vedores, ensinar o bom sitio para fazer os poços, mas tinha que os entulhar logo, quase desanimado. Água, onde é que ela aparecia ali?! Só a tal profundidade, que era absurdo pensar nisso.

E o povo a rir, a rir perdidamente do desgraçado!..

Picado por esses risos, foi hipotecar a belga e meteu jornaleiros a cavar, até darem com o sangue da terra. Pedras e só pedras é que apareciam, depois, rocha viva, que foi preciso despedaçar a tiro. E ele chorava, o pobre homem!

A face distendeu-se-lhe pela primeira vez, num sorriso satisfeito, no dia em que um delgado fio d'agua borbulhou no fundo do poço. Balbuciava coisas sem nexo ria por entre lagrimas que lhe avermelhavam os olhos. Nem parecia o mesmo; a alegria quase o endoideceu. Depois de ter o poço completamente forrado, tinha ainda pedra de sobejo para murar a territa; e ele tudo era pensar em grandezas.

Porque o povo começava a invejá-lo, quis ir até ao fim, começando pelo largo portal para carro...

Mas a terra não dava os juros a dez por cento que o triste pagava — ela que apenas rende, quando muito boa a cinco. Falavam-lhe em penhoras, desgraças... e o rude campônio começou andar aturvado de juízo.

Passava dias a olhar o fundo do poço onde a água se mostrava estagnada, negra, e ao mesmo tempo fascinante — como a prometer-lhe descanso no interior da terra bem amada.

A propriedade era tão nova que nem os fetos denticulados em primorosa renda o revestiam de verdura, nem a avenca delicada lançara ainda entre o musgo as suas hastes muito finas!...

E horas e horas que ele levava sobre uma frágil tábua, agarrado á varela do engenho com os seus braços cabeludos e fortes, fazendo descer o balde ao fundo para o tirar cheio d'agua fria, que, entornada na piasita ao lado, se ia perder na terra empapada!...

Queria muita, muita água — era a sua ideia fixa. Parecia-lhe que só assim ela lhe daria todo o seu dinheiro. Os paus do primivo engenho, friccionados no balanço compassado, rangiam lúgubres soluços, atiravam para o espaço uns gemidos estertorosos.

O desgraçado até já metia medo, com os olhos encovados e enfebrecidos, com a magreza musculosa do seu corpo afeito a trabalhos e fomes.

Levaram-no então para a vila; mas os cuidados indiferentes servem de pouco. Ninguém mesmo se atrevia a guardá-lo de noite porque as passava a gritar — que o diabo estava ali, que um gato preto o queria afogar, que lhe roubavam a fazenda!...

Mal o sino das ave-marias dava a ultima badalada — que se envolve já nos murmúrios nostálgicos da noite que se avisinha; o chocalhar dos rebanhos recolhendo ao curral, os carros chiando torturadamente, as cantigas e os risos das raparigas na fonte, as rãs, os grilos e ralos que despertam para a sua faina palreira — fechavam-lhe por fora a porta do casebre e deixavam-no sozinho esbravejar e gritar á vontade.

Até que um dia saltando da cama conseguiu arrombar a porta e a correr chegou á propriedade.

Quando de manhã deram por falta do Manuel, foram procurá-lo á fazenda. Decerto que não fugiria para outro sitio. Todo o camponês compreende aquela loucura. Foram encontrá-lo no fundo do poço. Um rito medonho mordia a sua face desvairada — nem a morte conseguira pacificar aquela fisionomia roída de ambições e terríveis desenganos!...

No fim de tudo, quem ganhou foi o usurário que lhe emprestara o dinheiro e ficou com a belga, já feita, pela divida pequena do pobresito.

Até faz pena vê-la agora, com o seu portão de ferro pintado de fresco, a nora cantante, o ar de quinta de ricaço que vai tomando.


Dezembro de 76.



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Nota:
Ana de Castro Osório: “Infelizes: Histórias Vividas”  (1898)

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