VICTÓRIA
Victória.
Tinha este nome triunfante, que sugere
ao nosso espírito manhãs claras de sol a bater nas espadas polidas dos
guerreiros, musicas estridulas que falam de sangue de heróis e de glorias
coroadoras... E contudo nada mais triste do que a sua face de quase idiota, o
seu olhar inexpressivo, o seu rir incolor!
Ainda aos domingos era boa de ver:
as saias de chita muito rodadas, o lenço claro, o casaquito novo; o seu riso
até era mais infantil e mais sonoro. Mas nos outros dias fazia pena, mesmo
muita pena, vê-la tão pobresita, quase miserável — a saia de riscado muito
remendada, o cabelo a sair-lhe do lenço, roto pelo cântaro sempre em equilíbrio
sobre a sua cabeça tão vazia.
Dava água ás casas ricas, por três
tostões ao mês. Senhor, como se é infeliz; como pode alguém viver assim, num
mundo em que outros tem tanto de sobejo!
A mãe, viúva muito nova, ficara
com uma ranchada de filhos, que fora criando á custa de muito trabalho. Depois,
todos grandes, os rapazes começaram de morrer tísicos; e as raparigas, as que
tinham préstimo, estavam a servir para Lisboa. Ela, a desditosa, para ali ficara
abandonada no casebre enegrecido, feito de pedra solta e telha vã, onde todos
os seus tinham nascido e morrido.
Fizera-se aguadeira — para que
mais poderia servir tão inferior, tão desajeitada? E mesmo isso lhe ia a
faltar: os ataques não a poupavam e os cântaros partiam-se todos os dias, num
desespero para as donas de casa que ficariam pobres com tanta despesa.
E a Victoria, vá de entristecer,
já por vezes a encontrava sentada no pateo, na ansiosa espera de uma esmola de
pão...
Uma manhã — linda manhã que ela
era! — na vila muito alegre, muito branca, passava um belo ar de dia festivo.
Manhã domingueira. O sol, nada quente, no rigor do inverno. Da serra da Estrela
vinha uma reverberação de neve imaculada e uma aragem fininha, aguda, que fazia
bem.
Para a missa passavam as mulheres
dos povos, vestidas de escuro, a capoteira de pano lustroso, o lenço de seda
amarelo e vermelho. As da vila afidalgavam-se com os xales de borlas, os lenços
de cores mais finas. E homens e mulheres iam apressados para a missa das onze — a
ultima.
Criança, eu, á janela, olhava com
certo prazer o movimento do largo, quase deserto áquela hora nos dias de
trabalho.
Em frente, a estrada em sombra
era toda branca ainda da geada da noite. Da fonte vinha uma grande alegria de
vozes femininas, que riam alto, num bem estar de vida satisfeita.
A Victoria estivera lá, falara e
rira como as outras; com o cântaro á cabeça, o fato dos domingos bem asseadinho,
tinha quase um ar gentil, quando ia passando.
Preparava-me para lhe dizer
adeus, numa alacridade de amigas velhas. Eu, que sempre amei os humildes, os
infelizes, entendia-me com a pobresinha.
A infantilidade dos meus poucos anos
compreendia bem a eterna infantilidade da sua alma inferior.
Mas, bruscamente, ela parou,
estendeu os braços para a frente... — e não me esquecerá nunca a curva que o cântaro
descreveu, indo despedaçar-se na terra endurecida, ao mesmo tempo que o corpo,
numa rigidez cadavérica, caia para traz... E a cabeça no chão teve uma pancada
seca, de arrepiar!
Correram de todos os lados a socorrê-la,
a levantá-la, mas o ataque epiléptico veio-lhe todo inteiro numa loucura
estrebuchante de desarticulações e esgares, num desespero de sofrimento que alucinava!
Na cara feiasita e habitualmente
tão parada da pobre rapariga, passaram todas as expressões, as mascaras de
todos os nossos sentimentos e paixões, de todas as nossas alegrias e lagrimas.
Todo um mundo cabe na cabeça de um
pobre doido.
Estarrecida de pavor, eu ficara-me
a olhá-la muito fixamente, a seguir o estranho espetáculo. Agarrava-me ás
grades da varanda, como se numa vertigem algum vento de loucura me fosse levar também.
Que terror infantil! Num empedramento de irresolução pela piedade e pelo
espanto, eu permanecia ali, sem gritos na boca e sem lagrimas nos olhos! O meu
pequeno coração modelava-se dolorosamente numa concentração profunda do sofrimento
alheio! É por isso que, olhando para dentro de mim mesma, eu sempre encontro, nítidas,
gravadas a frio, eternas, sofredoras sempre, — as figuras trágicas dos que vi
padecer e chorar...
Quando levaram a Victoria, já sem
sentidos, todo o seu fato dos domingos, cuidadosamente lavado e guardado com
tanto amor, ia em farrapos!
Miserável criatura, vítima
inconsciente, para quem a única alegria da vida será a morte redentora e
pacificante!...
Só então ela dormirá em paz, no cemitério
melancólico da terra agreste e linda que unicamente conheceu na vastidão do
mundo!... Os pinheiros rumorejantes, as pedras, as flores, as coisas inanimadas,
compreenderão melhor a sua pobre alma inferior.
Ás vozes mudas da natureza
juntar-se-há a sua voz — queixume de triste desdenhada pelo egoísmo dos homens.
18 de junho de 96.
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Nota:
Ana de Castro Osório: “Infelizes: Histórias Vividas” (1898)
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