segunda-feira, 9 de setembro de 2013

Ana de Castro Osório: “Victória"

VICTÓRIA

Victória.

Tinha este nome triunfante, que sugere ao nosso espírito manhãs claras de sol a bater nas espadas polidas dos guerreiros, musicas estridulas que falam de sangue de heróis e de glorias coroadoras... E contudo nada mais triste do que a sua face de quase idiota, o seu olhar inexpressivo, o seu rir incolor!

Ainda aos domingos era boa de ver: as saias de chita muito rodadas, o lenço claro, o casaquito novo; o seu riso até era mais infantil e mais sonoro. Mas nos outros dias fazia pena, mesmo muita pena, vê-la tão pobresita, quase miserável — a saia de riscado muito remendada, o cabelo a sair-lhe do lenço, roto pelo cântaro sempre em equilíbrio sobre a sua cabeça tão vazia.

Dava água ás casas ricas, por três tostões ao mês. Senhor, como se é infeliz; como pode alguém viver assim, num mundo em que outros tem tanto de sobejo!

A mãe, viúva muito nova, ficara com uma ranchada de filhos, que fora criando á custa de muito trabalho. Depois, todos grandes, os rapazes começaram de morrer tísicos; e as raparigas, as que tinham préstimo, estavam a servir para Lisboa. Ela, a desditosa, para ali ficara abandonada no casebre enegrecido, feito de pedra solta e telha vã, onde todos os seus tinham nascido e morrido.

Fizera-se aguadeira — para que mais poderia servir tão inferior, tão desajeitada? E mesmo isso lhe ia a faltar: os ataques não a poupavam e os cântaros partiam-se todos os dias, num desespero para as donas de casa que ficariam pobres com tanta despesa.

E a Victoria, vá de entristecer, já por vezes a encontrava sentada no pateo, na ansiosa espera de uma esmola de pão...

Uma manhã — linda manhã que ela era! — na vila muito alegre, muito branca, passava um belo ar de dia festivo. Manhã domingueira. O sol, nada quente, no rigor do inverno. Da serra da Estrela vinha uma reverberação de neve imaculada e uma aragem fininha, aguda, que fazia bem.

Para a missa passavam as mulheres dos povos, vestidas de escuro, a capoteira de pano lustroso, o lenço de seda amarelo e vermelho. As da vila afidalgavam-se com os xales de borlas, os lenços de cores mais finas. E homens e mulheres iam apressados para a missa das onze — a ultima.

Criança, eu, á janela, olhava com certo prazer o movimento do largo, quase deserto áquela hora nos dias de trabalho.

Em frente, a estrada em sombra era toda branca ainda da geada da noite. Da fonte vinha uma grande alegria de vozes femininas, que riam alto, num bem estar de vida satisfeita.

A Victoria estivera lá, falara e rira como as outras; com o cântaro á cabeça, o fato dos domingos bem asseadinho, tinha quase um ar gentil, quando ia passando.

Preparava-me para lhe dizer adeus, numa alacridade de amigas velhas. Eu, que sempre amei os humildes, os infelizes, entendia-me com a pobresinha.

A infantilidade dos meus poucos anos compreendia bem a eterna infantilidade da sua alma inferior.

Mas, bruscamente, ela parou, estendeu os braços para a frente... — e não me esquecerá nunca a curva que o cântaro descreveu, indo despedaçar-se na terra endurecida, ao mesmo tempo que o corpo, numa rigidez cadavérica, caia para traz... E a cabeça no chão teve uma pancada seca, de arrepiar!

Correram de todos os lados a socorrê-la, a levantá-la, mas o ataque epiléptico veio-lhe todo inteiro numa loucura estrebuchante de desarticulações e esgares, num desespero de sofrimento que alucinava!

Na cara feiasita e habitualmente tão parada da pobre rapariga, passaram todas as expressões, as mascaras de todos os nossos sentimentos e paixões, de todas as nossas alegrias e lagrimas.

Todo um mundo cabe na cabeça de um pobre doido.

Estarrecida de pavor, eu ficara-me a olhá-la muito fixamente, a seguir o estranho espetáculo. Agarrava-me ás grades da varanda, como se numa vertigem algum vento de loucura me fosse levar também. Que terror infantil! Num empedramento de irresolução pela piedade e pelo espanto, eu permanecia ali, sem gritos na boca e sem lagrimas nos olhos! O meu pequeno coração modelava-se dolorosamente numa concentração profunda do sofrimento alheio! É por isso que, olhando para dentro de mim mesma, eu sempre encontro, nítidas, gravadas a frio, eternas, sofredoras sempre, — as figuras trágicas dos que vi padecer e chorar...

Quando levaram a Victoria, já sem sentidos, todo o seu fato dos domingos, cuidadosamente lavado e guardado com tanto amor, ia em farrapos!

Miserável criatura, vítima inconsciente, para quem a única alegria da vida será a morte redentora e pacificante!...

Só então ela dormirá em paz, no cemitério melancólico da terra agreste e linda que unicamente conheceu na vastidão do mundo!... Os pinheiros rumorejantes, as pedras, as flores, as coisas inanimadas, compreenderão melhor a sua pobre alma inferior.

Ás vozes mudas da natureza juntar-se-há a sua voz — queixume de triste desdenhada pelo egoísmo dos homens.

 18 de junho de 96.


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Nota:
Ana de Castro Osório: “Infelizes: Histórias Vividas”  (1898)

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