segunda-feira, 9 de setembro de 2013

Ana de Castro Osório: “Freiras"

FREIRAS

Na palidez do poente, de um azul cinzento, a igreja destacava-se em negro na elegância da sua torre manuelina.

Em baixo, o largo era todo em festa; as luzes começavam a acender-se, pondo aqui e ali sorrisos de ouro.

Olhando a massa sombria do convento, uma vaga tristeza me ganhou o espírito. Lá em cima, na pequena janela gradeada, quantos lindos olhos terão chorado, vendo o mundo com o tumultuar das suas paixões e risos, alindado pela ignorância das suas almas prisioneiras?!...

Por mais artístico e lindo que seja um convento de frades, não me faz sonhar como os de freiras. Se eu compreendo tão bem o martírio das pobres almas femininas encerradas duplamente pelas grades e pela ignorância!...

As que fugiram do mundo, porque nele sofreram, essas não me fazem tanta pena —tinham para companheira da sua soledade a doçura amarga das lagrimas, que recordam venturas idas...

Mas, pobres entes muitas vezes votados antes de nascer á frieza claustral, arrepia-se-me a carne só em pensar nas vítimas inconscientes desses sacrifícios bárbaros!

Conta-se que aos quatro anos Santa Margarida d'Hungria tomou habito, tendo ido para o convento ainda com a ama. Aos seis trazia cilícios e aos doze professava — «já fadada para santa tinha vindo» acrescenta o cronista.

Mas as outras, que fossem mulheres verdadeiras, de carne e nervos e sangue a palpitar vida sadia e humana!... Ah, essas pobres plantas criadas em subterrâneos, cairiam estioladas na frescura dos anos. Então — sem mesmo serem choradas — iriam para a terra resgatar a mocidade em perfume de flores... Outras, afazendo-se á solidão, vivendo na fantasmagoria luminosa do flos sanctorum, iriam de degrau em degrau á loucura santificada. E, mortas também, seriam adoradas sobre os altares...

Não sei que doçura tristíssima encontra o meu espírito em visitar os conventos de freiras, em piedosa romaria evocativa!

Aquele de que eu mais gosto pela beleza da sua arquitetura rendilhada, acontece ser hoje um hospital servido por irmãs de caridade. Ao ver passar ao fundo do claustro deserto a mancha negra dos seus hábitos, não sei que lufada de outro tempo me enche a alma de sombras!

Calcando essas lajes desiguais, onde tantos corações arquejantes de fé foram descansar para sempre, uma historia me lembrou, que alguém, que ali viveu trinta anos, piedosamente me contava:

— Era quase noite; o céu de púrpura, onde o sol agonizava, esbatia-se gradualmente, vindo morrer num loiro cendrado, confundindo-se com a lua que se levantava em crescente. Duas freiras das mais novas passeavam pelo claustro, onde, já do seu tempo, tantas esposas do Senhor tinham ido esconder a face macerada, dormindo o eterno sono.

Que diriam elas, assim juntas, na hora das doces confidencias, deslizando como sombras no silencio religioso do velho claustro?... Que mágoas viriam subindo da memória longínqua dos seus amores mundanos?... Que sorrisos e que lagrimas?!...

Uma disse: — «Cheira tanto a terra!» — «Breve estarás com ela!...» — Respondeu-lhe uma voz formidável vinda do chão, vinda da noite, das grandes casas desertas!...

E o caso é que a pobre freira entrou de entristecer, de cair numa grande e incurável doença da alma, que em poucos dias a levou para o supremo descanso, fazendo certa a profecia.

Ainda este convento tinha a beleza incólume das suas colunas em mármore, a alegria dos grandes dormitórios cheios de luz, o encanto do coro todo em azulejos e atufado de imagens santas.

Mas, outro lá para a Beira, onde eu estive uns dias, escuro, enorme, sem beleza nenhuma, pesando sobre a nossa alma com a bruta espessura das suas paredes mestras... Ah, nesse, como seria horrível viver!

Apenas lá encontrei duas freiras. Uma, a prioreza, — santa senhora!—alma lavada, riso franco, uma encantadora ingenuidade no seu virgem coração de oitenta anos. A outra, sombria, um olhar por vezes desvairado a fuzilar sob a brancura da toalha de linho, que lhe emoldurava o rosto opalescido. Relativamente nova para ser freira professa ao tempo que acabaram os conventos, fez-me curiosidade. Perguntei á prioreza, e ela, a santa velhinha, — morreu o outro dia... que pena tive! — ela contou-me tudo:

— «É que sóror Maria fora metida no convento aos quatro anos. Para que o morgado ficasse livre de encargos? Promessa de pais muito piedosos? Não se sabia.

Mas a ela não a tinha Deus fadado para santa! O seu coração, nascido para viver, nunca se pudera aclimatar áquela existência de mortos.

Aos quinze anos, os parentes obrigaram-na a entrar para o noviciado. A ordem das bentas não reformadas, não era apertada, ao menos...

Pelas grades das janelas via-se a pequena cidade rumorejante e ativa como uma colmeia.

E a gentil noviça tinha prendido os olhos aos olhos de um lindo moço, que de fóra a contemplava em êxtase...

Á noite, nos outeiros sentimentais, a conversa corria alegre e fácil como a água clara que desce das montanhas. Que duvida? Se eles eram novos e os seus espíritos tinham tenteado o espaço que os separava, decerto que se haviam de amar!...

Depois, o eterno drama dos amores contrariados: — espiões, todos os olhos que a fitavam; criadas compradas; a família insistindo cada vez mais pela profissão...

Já vagamente se falava em liberdade. Da França vinham flâmulas de luz. O namorado pedia-lhe que resistisse... o governo miguelista seria vencido em breve. Era a sua esperança! E então, ninguém a poderia obrigar a ser freira, ninguém se oporia a que ela saísse, noiva feliz, da prisão fanática.

Ah! falar cedo de mais, meu pobresito, é um grande perigo!...

Desapareceu o namorado e a triste da noviça deixou de resistir á vontade dos pais.

Já quando no sul os liberais entravam, cantando a vitória que os atordoava a ponto de quase duvidarem, de inesperada que foi,— tomava ela o habito á pressa, tudo arranjado pela família, tumultuariamente, temendo de a verem sair.

Mas não. Com a morte do seu namorado tudo morrera nela! Sempre silenciosa, aquilo que ali estava!...

Desde esse dia, olhava com um romântico interesse, procurava a antiga beleza desse rosto marmóreo, amortalhado em vida, o capuz do habito cortado em bico sobre a testa, os lábios cerrados num silencio desesperador...

Parece-me ainda estar a vê-la, no coro, na reza da noite, enquanto a boa prioreza —acompanhada por duas meninas com velas na mão — ia lendo o seu latim e apagando as luzes uma a uma!... Sóror Maria abstraía-se da vida presente e a sua alma parecia voar para um mundo de recordações e sonhos trágicos...

A um canto, com o lencinho branco das recolhidas, eu seguia o oficio fúnebre da prioreza, nos olhos desolados da triste monja.

Depois de lhe saber a historia, dediquei-lhe um grande afeto, que os meus lábios jamais lhe confessaram, atemorisados por um não sei quê de altivo que havia na sua dor! São mais eloquentes, mais verdadeiros, os discursos que um delicado pudor espiritual apenas nos deixa balbuciar com os olhos. Nunca ela compreendeu esse afeto — porque, almas despedaçadas como a sua, já nada compreendem nos sentimentos alheios!...

 O que ha de triste no meio de tudo, é que o quebrar das cadeias também acarretou consigo muitas e pungentes lagrimas. Companheiras insubstítuidas, deixando um vazio de morte nos casarões sombrios... As cercas tiradas pelo governo... A miséria, a fome mesmo... Quanta tristeza na alma devastada das ultimas freiras!...

E as festas deste novo mundo, vistas das janelas gradeadas, seriam bem pouco compreendidas por elas!

No largo, em frente do convento onde a minha pobre Sóror Maria sofreu, fizeram barulhentas touradas cheias de pó e gritos selvagens, espetáculo que dá, a certos espíritos delicados, a mais frigida impressão de tristeza! Vendo esse divertimento todo material, podia ela sequer recordar, lá em cima da janela gradeada, os combates de poesia a que a sua mocidade assistira e onde o seu coração ficara tão mortalmente ferido?!...

E assim, se alguma freira de Jesus se levantasse da cova e arrastando o seu habito de franciscana fosse á ultima janela espreitar o largo — que diria ela ao ver os balões em linhas caprichosas, esboçando fantásticos desenhos de luz na escuridão da noite?...

E o povo passando em onda, em chusma, por entre a alegria clara dos vestidos femininos...

Que diriam elas, que diriam?!...


Julho de 96.


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Nota:
Ana de Castro Osório: “Infelizes: Histórias Vividas”  (1898)

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