segunda-feira, 9 de setembro de 2013

Ana de Castro Osório: “Hamlet"

HAMLET

Quem o via, embrulhado em flanelas, apoiando-se a um grosso bambu, sorumbático, fugindo a todo o convívio, aparecendo só de longe com a mulher e filhitos, procurando as estradas desertas para passear, tudo sujeitando á higiene, — decerto nunca imaginaria que a sua lúcida inteligência de subtil penetração e réplica pronta nas mais intricadas questões cairia naquele fantasmagórico sonho de grandezas, que o levou á cela de um hospital de alienados.

Jurisconsulto erudito, advogado eloquente e cuidadoso, tinha sempre que fazer; mas são poucos os lucros numa terra onde a propriedade está acumulada em meia dúzia de felizes e só os pobres se metem com justiças.

Vivia modestamente, num grande orgulho de trabalhador. Não queria favores de ninguém. Se tivesse muito, muito daria; pedir, nunca!...

E, súbito, de volta de uma estação d'aguas, eis que ele muda completamente. Luxo, passeios, viagens, projetos de compras, tantos e tais, descritos com tal aparência de lógica, com tão ardente entusiasmo de frase, que chegava — não a convencer-nos da realidade de tais sonhos, mas a fazer nos viver na alcinante miragem em que o seu espírito se perdia.

Depois que, no regresso da vilegiatura, vira representar o Hamlet, apaixonara-se pela loira e ideal Ofélia, por essa pálida figura tão intensamente dramática na sua passividade de amorosa, tão angelicamente resignada e feminil, que é já uma forma palpável do ideal... Verdadeiras e dignas de piedade as suas lagrimas — simbolizando todas as que no mundo tem vertido olhos de tristes desprezados.

E o simpático doutor, um bom, um sincero, um sentimental, apaixonara-se por essa irmã da sua alma, que vai desfolhando as níveas flores do seu doce amor, cedo queimado pela ingratidão.

A crueza de Hamlet resgatou-a ele, levantando no seu coração de romântico um templo auriluzente onde a incensava com a mirra do seu talento, que a loucura, parece, exacerbara, requintara, fazendo-o subir ás etéreas regiões onde as mais solidas cabeças sentem vertigens!...

Todas as mulheres passaram a ser para ele suaves Ofélias; nelas via a amada, o seu puro ideal; adorava-as como se essa adoração fosse ainda uma homenagem rendida á dama dos seus pensamentos — alma de cavaleiro trovadoresco, vencendo enfim a gélida couraça da materialidade burguesa.

A medicina, o amor e o delírio das grandezas eram as suas ideias fixas. E então — vendo uma loira e anêmica rapariga de silencioso porte, obrigava-a a beber águas de Vidago e gritava com grandes braçadas entusiastas: «beba, beba, que eu hei de fazer de um pastel de nata um pastel de carne!...» Logo respondia irado a um primo, que, por troça, aconselhava uns tamancos e passeios pelas serras como remédio mais eficaz: «falou o livro Caixa!... Uma estrela de tamancos!... É uma blasfêmia sideral!...»

Tinha agudezas de ditos que nos punham em duvidas. Doido?!... Se isso podia ser, falando ele tão prodigiosamente bem, encontrando com tanta facilidade a memória da sua juventude!

A sua palavra quente, de uma fluência correntia e de um enternecimento tão sincero que pelas lagrimas tinha arrancado muito perdão aos jurados comovidos — tomara um tom de inspirado, quase profético!

Doido, doido!?... E que seriamos nós, que o não compreendíamos? A imperceptível linha que separa o juízo da loucura tremia diante da nossa duvida.

Os seus pobres nervos exacerbados estalavam em ditos faiscantes, desfaziam-se em lagrimas, espalhavam o seu imenso talento em estilhaços — e apesar disso tão brilhante!—como aerólitos, atravessando a deprimente vida provinciana. Fazia-nos uma atmosfera de sonho, de desvairamento e de exotismo; que a terriola já parecia—una casa de locos sem loucura!...

Ele, que só por muito favor pegava dantes no violão, recordava agora todas as antigas musicas com uma revivescência da sua vida boemia de estudante. Cantava, com a mesma alegria da mocidade, a triunfal recita do quinto ano.

Fazia pena ver o pobre violão dobrar-se todo para gemer trechos de musica já passados de moda ha mais de vinte anos. E mais pena ainda vê-lo tão alegre, dessa alegria que tanta vontade de chorar nos causa!

Ia ao cemitério conversar com a mãe — afirmava. Narrava, em voz estrangulada, extraordinárias coisas que, parece, ela lhe dizia baixinho... Essa familiaridade com o desconhecido fazia errar em torno de nós as sombras dos bons mortos... uma nevoa revoluteante de estranhos sonhos...

Que as cabeças não andavam lá muito seguras, não!...

Quando o levaram para o hospital, despediu-se radiante — certo de que ia ser o diretor, projetando grandes reformas e esperando encontrar lá a sua pálida Ofélia, absorvida num delicioso sonho feito de sorrisos de noivos e de camélias idas na corrente de luar...

Com os seus cabelos flutuantes, as suas mãos translúcidas desfolhando flores, arrastando as alvinitentes vestes — ela o aguardava...

Assim se extinguiu aquele brilhantíssimo espírito! Assim ficou silenciosa aquela eloquentissima voz, que fazia repuxar lagrimas aos olhos dos mais ferozes julgadores! Assim morreu aquele coração de românticos arrebatamentos, naufragando na banalidade ultima da vida material!
  
Setembro de 96.


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Nota:
Ana de Castro Osório: “Infelizes: Histórias Vividas”  (1898)

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