segunda-feira, 9 de setembro de 2013

Ana de Castro Osório: “A Senhora Angélica"

A SENHORA ANGÉLICA

A senhora Angélica forneira era a cara mais fenomenalmente feia que eu tenho visto—e verei. Espero esse favor de Deus Nosso Senhor, que nos fez á sua imagem e semelhança...

Eu nem sei explicar aquela mascara de gente! Não se pode mesmo compreender como a face humana perde assim toda a forma macia de carne e se torna enrugada e musgosa como um velho carvalho — que vai morrendo aos pedaços e que todas as primaveras enverdece menos, lá para o cimo dos ramos.

Pois, apesar da horrível fealdade da senhora Angélica, ela resumiu para mim, durante a minha infância, um mundo de sonhos e fantásticas imaginações.

Mal a via assomar ao cimo do largo; a saia de riscado curta a mostrar um começo de pernas gretadas e uns pés enormes, deformados e sujos; saracoteando-se desgraciosa com o tabuleiro de broa cozida á cabeça; corria logo á cozinha para lhe ouvir recontar pela milésima vez o estranho caso.

E se disséssemos ainda que ela sabia muitas historias! Não, era só uma... Mas essa única, verdadeira, acidentada de peripécias, era de efeito. Enchia-me a cabeça e dava até assunto para um grande romance rocambolesco.

Todas as semanas, quando a velha trazia a fornada de pão de milho para os criados, os três alqueires do costume, era certo eu lá estar na cozinha á espera dela. Fazia-me muito amável; pedia o meu bolo; mastigava fastienta em pequenas dentadas de coelho esse pão grosseiríssimo, sabendo a farinha crua, adocicado e peganhento, ao qual nunca o amor á terra natal me pôde habituar.

A velha ria parvamente, metia com as negras mãos encarquilhadas o cabelo frisado, de um branco sujo, para dentro do lenço de chita, e contava sempre a mesma coisa, dita com as mesmas palavras, com uma precisão de fonógrafo. O bastante porém para fermento da minha fantasia.

Era no tempo em que os rapazes de um certo nome imitavam, com mais ou menos parecença e espírito, as extravagâncias do conde de Vimioso.

Por moda, por chic e muito por gosto também, faziam sociedade com os ciganos sem eira nem beira, embriagavam-se pelas tabernas, vestiam-se de fadistas e pouco ou nada se distinguiam deles, moral e intelectualmente. Aquilo que no Vimioso era um artístico grãosinho de loucura, nos outros não passava de  uma ridícula imitação, muito grosseira até.

Como houvesse lá na terra um destes esperançosos moços — também conde, por sinal — os ciganos passavam frequentemente por ali e assentavam arreais mesmo no interior da vila.

Á noite as barracas iluminavam, deixando entrever, num clarão de mágica, os finos perfis das gitanitas de cabelo negro e olhar mortífero, envoltas em flamantes trajos; os acobreados ciganos vestidos de gala, jaqueta curta com alamares de prata; e ao fundo, acocoradas num espasmo de profunda estupidez, velhas repelentes, cobertas de trapos sujos, fumando por cachimbos de barro.

As forjas onde concertavam caldeiras, tachos, bacias, toda a bateria de cobre da gente da vila e arredores, abriam-se num crepitar incandescente, mostravam boqueirões de fogo a lembrar infernos dantescos.

As mulheres vendiam panos, lenços, contas, tudo que podia seduzir a garridice feminina das boçais aldeãs. Eles eram soberbos! O verdadeiro zíngaro, com ares de grande de Espanha e condottiére italiano; vendendo e trocando cavalos, experimentando-os em correrias pelo largo sem arvores, com uma maestria e uma elegância de gaúchos.

Nada tinham dos miseráveis ciganos que atravessam os campos, melancólicos, seguindo-nos numa guincharia lamurienta, acompanhada pelos urros dos pobres ursos espancados e famintos e pelos intoleráveis macacos  com os seus gritos de convulsionar os nervos... Perseguidos pelas autoridades e pelo ódio do povo, que encontra sempre para contar arrepiantes historias dos vagabundos — crianças dadas a comer aos animais, colheitas devastadas, roubos... — esgueiram-se logo, passam de largo pelos povoados, com a falsa humildade dos cães batidos.

Nesse dia tratava-se de um casamento e o arraial estava em grande animação. O conde era o padrinho; mandara para lá vinho a rodos e levava convidados. Prometia ser luzida, falada por muitos anos, a festa.

Os beirões, de cabeça dura, enraizados na terra como pinheiros selvagens, olhavam, com um misto de espanto e de desprezo, para esses eternos vadios, instaveis como a areia do deserto. Alguns, mais entendidos, contavam o que aquilo era: — Nada de padre, nem de pregões, nem de igreja! Quebrava-se uma bilha e ficariam juntos tantos anos, quantos os cacos em que ela se fizera. — Horrores!... E as velhas benziam-se, assustadas. — Credo, Santo nome de Jesus! E viviam assim! Criaturas que nem eram de Deus!... E o sr. conde metido com aquela gente! Oxalá a mãe não andasse aos tombos no outro mundo pela estragação de mimos em que o criara!...»

A senhora Angélica forneira, nesse tempo era ainda uma rapariga, casada de pouco com o seu Joaquim, que sempre fôra bom homem, isso é verdade! Amigo da pinguita, por isso não juntaram vintém; morrendo porque ela lhe levasse pontas de cigarro para se entreter lá pelo forno; mas bom homem, no fim de contas, bom homem. Se lhe batia ás vezes, era por amor — claro!...

Nesse dia, como toda a gente da terra, embasbacava-se a sr.ª Angélica diante do acampamento em festa. Como se adiantasse mais, curiosa de ver a noiva, depois de ter admirado a gentil figura do noivo, chegou-se a ela uma rapariga, a sair da infância, de uma brancura de pele, de uma cor de cabelo, de uma reserva de maneiras que acusava uma raça bem diferente. Aproximou-se com o disfarce ondulante do gato, que quer fugir sem ser visto pelo dono; puxou-lhe pela saia e murmurou-lhe ao ouvido: — que a levasse dali, tinha uma coisa importante a dizer...

A senhora Angélica, que tinha todas as virtudes femininas, excedia quase o seu sexo na curiosidade. Como pôde lá se meteu com a rapariga por entre o povo, sem que nem dentro nem fora do acampamento dessem por isso, e levou-a para o cimo da vila onde ninguém estava áquela hora.

Imaginem o espanto da pobre mulher, quando a pequena se agarra a ela a chorar: — que a escondesse, que ela não era cigana! Tinha sido roubada lá muito longe, numa povoação da raia. Seus pais eram ricos — o que eles a não teriam chorado e procurado por toda a parte!... Havia dois anos que andava com os ciganos pelo mundo, sem ter podido fugir! Era raro que eles acampassem em povoado e quando assim acontecia não a perdiam de vista nem uma hora. Nesse dia a festa do casamento, com a assistência do conde, pusera tudo em confusão e ela pudera escapar-se numa aberta. Que a não abandonasse, a senhora Angélica!... — O que lhe fazia mais horror era o seu próximo casamento com um dos mais lindos rapazes da tribo! Dois anos a viver com aquela gente e ainda não pudera vencer a repugnância que a afastava dele cada dia mais! A inferioridade de raça enchia-a de um instintivo tédio, quase aversão, por esse sadio rapaz que a escolhera, sem duvida o mais amado das outras raparigas.

A senhora Angélica era mulher de expediente. Consolou-a como pôde e levou-a a um sitio isolado, um cabeço árido, cemitério dos velhos cavalos lazarentos que os corvos vêem comer deixando os ossos a branquejar ao sol, tristemente apertado entre pinhais, onde só ela conhecia uma gruta formada pelos rochedos sobrepostos — que decerto era a Cova da Moira.

É que uma vez, ainda em solteira, fora para ali ao mato e descobrira a caverna. Calara-se com aquilo porque é uma tradição velhíssima na terra: que entre modorno e modorninho ha sete cargas de ouro fino,— que uma moira encantada as guarda, tecendo num tear de marfim e chamando alta noite de luar, por quem a vá desencantar!... E ela não quisera dizer a ninguém a sua descoberta, esperando talvez que a moira lhe desse um dia os tesouros.

Meteu lá a sua protegida e foi levar-lhe comida á boquinha da noite.

Três dias a teve escondida ali, com medo dos ciganos. Eles é que, postos em rebate pela fuga da prisioneira, foram-se andando sem dizerem nada e sem ninguém lhes pôr estorvos.

Só então a senhora Angélica tomou ânimo, e lá foi, mais medrosa do que vaidosa da sua obra, sem ter grande consciência de ter andado bem, contar o caso ao administrador...

Foi um alvoroto na terra! Toda a gente quis ir ver a menina, que veio em triunfo para a vila. Todos lhe queriam falar e tocar, perguntando-lhe, cada um por sua vez, a historia, que ela repetia sempre, contente por poder desabafar as suas mágoas. Os que não conseguiam chegar até junto dela abraçavam a senhora Angélica, davam-lhe os parabéns, tinham-na já como uma gloria pátria, quase uma padeira d'Aljubarrota. Ela andava radiante, contando e recontando o caso.

Nova e maior alegria foi ainda quando chegaram os pais da menina, no louco entusiasmo de quem chora uma filha morta e a encontra cheia de vida e saúde.

A senhora Angélica foi bem recompensada, mas sempre me dizia: «que dinheiro nenhum lhe pagaria o susto em que andara muito tempo, parecendo-lhe ver ciganos em todos os cantos, punhais e navalhas reluzentes que de todos os lados lhe dirigiam ao coração!...

Não era mentira! Tão certo como haver Deus, que aquele rapaz, que devia casar com a menina, rondara por ali muito tempo!... Um medo assim! Nem ela sabia em que se metera!...»

Esta era a historia da velha. Depois, o que eu compunha e arredondava!... Muitas vezes visitei a Cova da Moira e não era essa com os seus lamentos de triste encantada, com os seus cabelos de ouro, com o seu tear de marfim, a que me enchia a imaginação. Era a pobre rapariga fugida aos ciganos, ali sozinha, temendo ser descoberta, temendo o silencio da noite, a sombra dos pinhais, os gritos lúgubres dos corvos!... Punha-me no seu lugar e pensava: Senhor, como pôde ela não morrer de susto?!...

Depois, como os amantes infelizes me fizeram sempre muita pena, acabava por ter dó do cigano que queria casar com a menina e que no dizer da senhora Angélica por ali rondara muitos anos, como alma penada.

 Agosto de 1896

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Nota:
Ana de Castro Osório: “Infelizes: Histórias Vividas”  (1898)

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