
A SENHORA ANGÉLICA
A senhora Angélica forneira era a
cara mais fenomenalmente feia que eu tenho visto—e verei. Espero esse favor de
Deus Nosso Senhor, que nos fez á sua imagem e semelhança...
Eu nem sei explicar aquela
mascara de gente! Não se pode mesmo compreender como a face humana perde assim
toda a forma macia de carne e se torna enrugada e musgosa como um velho
carvalho — que vai morrendo aos pedaços e que todas as primaveras enverdece
menos, lá para o cimo dos ramos.
Pois, apesar da horrível fealdade
da senhora Angélica, ela resumiu para mim, durante a minha infância, um mundo
de sonhos e fantásticas imaginações.
Mal a via assomar ao cimo do
largo; a saia de riscado curta a mostrar um começo de pernas gretadas e uns pés
enormes, deformados e sujos; saracoteando-se desgraciosa com o tabuleiro de broa
cozida á cabeça; corria logo á cozinha para lhe ouvir recontar pela milésima
vez o estranho caso.
E se disséssemos ainda que ela
sabia muitas historias! Não, era só uma... Mas essa única, verdadeira, acidentada
de peripécias, era de efeito. Enchia-me a cabeça e dava até assunto para um
grande romance rocambolesco.
Todas as semanas, quando a velha
trazia a fornada de pão de milho para os criados, os três alqueires do costume,
era certo eu lá estar na cozinha á espera dela. Fazia-me muito amável; pedia o
meu bolo; mastigava fastienta em pequenas dentadas de coelho esse pão grosseiríssimo,
sabendo a farinha crua, adocicado e peganhento, ao qual nunca o amor á terra
natal me pôde habituar.
A velha ria parvamente, metia com
as negras mãos encarquilhadas o cabelo frisado, de um branco sujo, para dentro
do lenço de chita, e contava sempre a mesma coisa, dita com as mesmas palavras,
com uma precisão de fonógrafo. O bastante porém para fermento da minha fantasia.
Era no tempo em que os rapazes de
um certo nome imitavam, com mais ou menos parecença e espírito, as extravagâncias
do conde de Vimioso.
Por moda, por chic e muito por gosto também, faziam
sociedade com os ciganos sem eira nem beira, embriagavam-se pelas tabernas,
vestiam-se de fadistas e pouco ou nada se distinguiam deles, moral e intelectualmente.
Aquilo que no Vimioso era um artístico grãosinho de loucura, nos outros não
passava de uma ridícula imitação, muito
grosseira até.
Como houvesse lá na terra um destes
esperançosos moços — também conde, por sinal — os ciganos passavam frequentemente
por ali e assentavam arreais mesmo no interior da vila.
Á noite as barracas iluminavam,
deixando entrever, num clarão de mágica, os finos perfis das gitanitas de cabelo
negro e olhar mortífero, envoltas em flamantes trajos; os acobreados ciganos
vestidos de gala, jaqueta curta com alamares de prata; e ao fundo, acocoradas num
espasmo de profunda estupidez, velhas repelentes, cobertas de trapos sujos,
fumando por cachimbos de barro.
As forjas onde concertavam
caldeiras, tachos, bacias, toda a bateria de cobre da gente da vila e
arredores, abriam-se num crepitar incandescente, mostravam boqueirões de fogo a
lembrar infernos dantescos.
As mulheres vendiam panos,
lenços, contas, tudo que podia seduzir a garridice feminina das boçais aldeãs.
Eles eram soberbos! O verdadeiro zíngaro, com ares de grande de Espanha e condottiére italiano; vendendo e
trocando cavalos, experimentando-os em correrias pelo largo sem arvores, com
uma maestria e uma elegância de gaúchos.
Nada tinham dos miseráveis
ciganos que atravessam os campos, melancólicos, seguindo-nos numa guincharia
lamurienta, acompanhada pelos urros dos pobres ursos espancados e famintos e
pelos intoleráveis macacos com os seus
gritos de convulsionar os nervos... Perseguidos pelas autoridades e pelo ódio
do povo, que encontra sempre para contar arrepiantes historias dos vagabundos —
crianças dadas a comer aos animais, colheitas devastadas, roubos... — esgueiram-se
logo, passam de largo pelos povoados, com a falsa humildade dos cães batidos.
Nesse dia tratava-se de um
casamento e o arraial estava em grande animação. O conde era o padrinho; mandara
para lá vinho a rodos e levava convidados. Prometia ser luzida, falada por
muitos anos, a festa.
Os beirões, de cabeça dura,
enraizados na terra como pinheiros selvagens, olhavam, com um misto de espanto e
de desprezo, para esses eternos vadios, instaveis como a areia do deserto.
Alguns, mais entendidos, contavam o que aquilo era: — Nada de padre, nem de
pregões, nem de igreja! Quebrava-se uma bilha e ficariam juntos tantos anos,
quantos os cacos em que ela se fizera. — Horrores!... E as velhas benziam-se,
assustadas. — Credo, Santo nome de Jesus! E viviam assim! Criaturas que nem
eram de Deus!... E o sr. conde metido com aquela gente! Oxalá a mãe não andasse
aos tombos no outro mundo pela estragação de mimos em que o criara!...»
A senhora Angélica forneira, nesse
tempo era ainda uma rapariga, casada de pouco com o seu Joaquim, que sempre
fôra bom homem, isso é verdade! Amigo da pinguita, por isso não juntaram vintém;
morrendo porque ela lhe levasse pontas de cigarro para se entreter lá pelo
forno; mas bom homem, no fim de contas, bom homem. Se lhe batia ás vezes, era
por amor — claro!...
Nesse dia, como toda a gente da
terra, embasbacava-se a sr.ª Angélica diante do acampamento em festa. Como se adiantasse
mais, curiosa de ver a noiva, depois de ter admirado a gentil figura do noivo,
chegou-se a ela uma rapariga, a sair da infância, de uma brancura de pele, de
uma cor de cabelo, de uma reserva de maneiras que acusava uma raça bem
diferente. Aproximou-se com o disfarce ondulante do gato, que quer fugir sem
ser visto pelo dono; puxou-lhe pela saia e murmurou-lhe ao ouvido: — que a
levasse dali, tinha uma coisa importante a dizer...
A senhora Angélica, que tinha
todas as virtudes femininas, excedia quase o seu sexo na curiosidade. Como pôde
lá se meteu com a rapariga por entre o povo, sem que nem dentro nem fora do
acampamento dessem por isso, e levou-a para o cimo da vila onde ninguém estava
áquela hora.
Imaginem o espanto da pobre
mulher, quando a pequena se agarra a ela a chorar: — que a escondesse, que ela
não era cigana! Tinha sido roubada lá muito longe, numa povoação da raia. Seus
pais eram ricos — o que eles a não teriam chorado e procurado por toda a
parte!... Havia dois anos que andava com os ciganos pelo mundo, sem ter podido
fugir! Era raro que eles acampassem em povoado e quando assim acontecia não a perdiam
de vista nem uma hora. Nesse dia a festa do casamento, com a assistência do
conde, pusera tudo em confusão e ela pudera escapar-se numa aberta. Que a não
abandonasse, a senhora Angélica!... — O que lhe fazia mais horror era o seu próximo
casamento com um dos mais lindos rapazes da tribo! Dois anos a viver com aquela
gente e ainda não pudera vencer a repugnância que a afastava dele cada dia
mais! A inferioridade de raça enchia-a de um instintivo tédio, quase aversão,
por esse sadio rapaz que a escolhera, sem duvida o mais amado das outras
raparigas.
A senhora Angélica era mulher de
expediente. Consolou-a como pôde e levou-a a um sitio isolado, um cabeço árido,
cemitério dos velhos cavalos lazarentos que os corvos vêem comer deixando os
ossos a branquejar ao sol, tristemente apertado entre pinhais, onde só ela
conhecia uma gruta formada pelos rochedos sobrepostos — que decerto era a Cova
da Moira.
É que uma vez, ainda em solteira,
fora para ali ao mato e descobrira a caverna. Calara-se com aquilo porque é uma
tradição velhíssima na terra: que entre modorno e modorninho ha sete cargas de
ouro fino,— que uma moira encantada as guarda, tecendo num tear de marfim e chamando
alta noite de luar, por quem a vá desencantar!... E ela não quisera dizer a ninguém
a sua descoberta, esperando talvez que a moira lhe desse um dia os tesouros.
Meteu lá a sua protegida e foi
levar-lhe comida á boquinha da noite.
Três dias a teve escondida ali,
com medo dos ciganos. Eles é que, postos em rebate pela fuga da prisioneira,
foram-se andando sem dizerem nada e sem ninguém lhes pôr estorvos.
Só então a senhora Angélica tomou
ânimo, e lá foi, mais medrosa do que vaidosa da sua obra, sem ter grande consciência
de ter andado bem, contar o caso ao administrador...
Foi um alvoroto na terra! Toda a
gente quis ir ver a menina, que veio em triunfo para a vila. Todos lhe queriam
falar e tocar, perguntando-lhe, cada um por sua vez, a historia, que ela
repetia sempre, contente por poder desabafar as suas mágoas. Os que não
conseguiam chegar até junto dela abraçavam a senhora Angélica, davam-lhe os parabéns,
tinham-na já como uma gloria pátria, quase uma padeira d'Aljubarrota. Ela
andava radiante, contando e recontando o caso.
Nova e maior alegria foi ainda
quando chegaram os pais da menina, no louco entusiasmo de quem chora uma filha
morta e a encontra cheia de vida e saúde.
A senhora Angélica foi bem
recompensada, mas sempre me dizia: «que dinheiro nenhum lhe pagaria o susto em
que andara muito tempo, parecendo-lhe ver ciganos em todos os cantos, punhais e
navalhas reluzentes que de todos os lados lhe dirigiam ao coração!...
Não era mentira! Tão certo como
haver Deus, que aquele rapaz, que devia casar com a menina, rondara por ali
muito tempo!... Um medo assim! Nem ela sabia em que se metera!...»
Esta era a historia da velha.
Depois, o que eu compunha e arredondava!... Muitas vezes visitei a Cova da
Moira e não era essa com os seus lamentos de triste encantada, com os seus
cabelos de ouro, com o seu tear de marfim, a que me enchia a imaginação. Era a
pobre rapariga fugida aos ciganos, ali sozinha, temendo ser descoberta, temendo
o silencio da noite, a sombra dos pinhais, os gritos lúgubres dos corvos!...
Punha-me no seu lugar e pensava: Senhor, como pôde ela não morrer de susto?!...
Depois, como os amantes infelizes
me fizeram sempre muita pena, acabava por ter dó do cigano que queria casar com
a menina e que no dizer da senhora Angélica por ali rondara muitos anos, como
alma penada.
Agosto de 1896
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Nota:
Ana de Castro Osório: “Infelizes: Histórias Vividas” (1898)
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