IRADO ATÉ À
CURA...
Ampla alcova:
no armoire-à-glace refletida como
outro vasto cômodo...
Rico mobiliário
de pau-setim com incrustações de jacarandá reluzente...
Um leito de
casados, e sobre ele, cadavérico, peles e ossos, despojado de carnes, ventrudo,
olhar ansioso, o louro ORMINDO, lutando com a morte...
É um erro de
diagnostico, rebelde a enfermidade à medicação despropositada.
Junto do
leito, uma banca, e sobre esta, alem de um termômetro e de um cronômetro,
desenvolta frascaria...
Aos pés da
cama, fatigada, sonolenta, às vezes, DOCA é heroína na vigília: o seu semblante
merencório só consegue alguma graça quando ELOY visita o enfermo.
—A morte
acena-me, e eu me vou indo aos pedaços sorrateiramente... Doca, tu bem vês como
eu morro todos os segundos, como eu mínguo sem cessar...
—Tem fé em
Deus, Ormindo.
—Morrerei
com ela, sim. A fé! Ela é o facho iluminador da estrada eterna... Como deve ser
doloroso não crer em nada, Doca!... Sentir a alma cair no vácuo... Ah! não me
conformo, porem... Morrer quando tanto preciso é viver... Vou deixar-te na penúria...
a braços, por certo, com os créditos da medicina e da farmácia...
—Tu pensas
demais.
—Como não
hei de pensar? Vejo-te, e sei que rilharás a côdea endurecida e atrasada. É com
horror que prevejo as tuas infelicidades... És nova. Mas de que servirá a tua
mocidade sem pão, os teus verdes anos sem um amparo? És bela. Mas de que
prestará a tua lindeza se não tiveres um manto para o frio e um abanico para o
calor? Nova e bela... na viuvez! Quem sabe o teu destino mulher a quem tanto
amei?
—A pobreza é
um estimulo, Ormindo: saberei trabalhar afim de haver com honra um pedaço de
pão e alguns côvados de fazendas...
—Não te peço
nada, e peço-te muito: não macula o nome de teu marido. A herva reverdesce a
fronde dos vegetais, aumenta-lhes a copa, enobrece-lhes o aspecto: crava-lhes,
porem, até ao durano, as raízes assassinas e rouba-lhes a seiva até à morte. A
arvore cessa de existir com a trepadeira fitócida que lhe rendilha os
contornos. A mulher deve pensar que o bem-estar não é a honra, e que ha
tranquilidades mais homicidas do que a erva do passarinho... A desonra não
provem da pobreza, da fome ou mesmo da nudez. A desonra é fruto das transigências
de alma, e a mulher viúva é a que pode piormente transigir... Que dores!...
Ui!...
—Estás
vendo: pioras quando falas!
—Doca, no
meu caso extremo, a morte é assim qualquer coisa como uma sorte grande...
—Num bilhete
branco para mim que fico sem ti... Não sabes aproveitar o silencio como um meio
de cura, não sabes tirar partido, poupando forças para momentos mais graves...
—Durarei
muito pouco.
—Não podes
saber mais do que os médicos.
—Ah! mulher!
Só eu posso saber o que sinto, o que senti, e como se avizinha o instante
derradeiro... Dizem que os extremos se tocam. É verdade, pois tenho neste
momento a visão mais lúcida dos meus primórdios. Que é isto senão que se vai
fechar a circunferência de minha traslação em torno do vácuo universal? O
aneurisma cresce, avoluma-se, rouba-me a vida, bem o sinto agora. Tem a forma
de uma espera, é um globo pequenino de vivos, na luta pela existência. Vai
arrebentar, latejando e doendo, pulsando e abafando-me de vez... Pensas tu que
nunca me iludi com a esperança da cura? Iludi-me, mas antes de todos...
—Quem está
vivo, Ormindo, ainda não está morto, e toda a cura é plausível.
—A tua
dedicação é cega. Desde que adoeci, desde que sobre o coração senti a formação mortífera
do mal circulatório, certifiquei-me estar mais longe do mundo do que do nada. E
deste momento para cá, que fiz para denunciar que creio na cura? Ao contrario,
a minha vida tem sido a chama de uma vela a lutar com o sopro das auras. Não ha
um instante em que não me morra uma alegria, em que não nasça uma saudade. Em
torno de mim bailam as ondas frias do nada, como brinca a mariposa teimosa em
torno de uma lâmpada.
—Agravas-te,
Ormindo! Cala a boca por piedade! As tuas palavras são outros tantos punhais
que me sangram o coração.
—Que horas
serão?
—Já é noite.
—E os médicos
que não vieram?
—Vieram,
sim. Tu estavas dormindo.
—Os médicos
não vieram, não... Até a minha esposa conspira contra a minha existência...
—Não pesas
as tuas palavras, Ormindo.
— Já sei de
tudo. Perderam a esperança, abandonaram-me. Não passarei de hoje. Estou condenado
a horas.
—Descansa um
pouco.
—Descansar,
agora, só de vez. Bem curta foi a minha felicidade, e parece-me que foi ontem à
tarde que nos vimos pela primeira vez. Um sonho às vezes tem existência mais
real, porque nos acompanha do momento da concepção em criança ao instante da
morte na velhice. Ai!... falta-me o ar...
—Assim
queres! Falas tanto...
—Deixa-me
ir, Doca, ao meu destino: não ha rio que não chegue ao mar. Demorado, se
grandes e muitas curvas descreve; rápido, se retas consegue... Quatro anos e
parecem quatro horas! Tu talvez não te lembres mais do meu enfeitiçamento; não
me esqueço eu do sorriso único com que festejaste o nosso encontro. Toda a
tarde, toda a noite... Oh! que lindo luar te prateou as pupilas, te diademou os
cabelos e te banhou luciferamente as espáduas! Meses depois, o casamento... A
noite de núpcias vivazes... O nosso lar... O nosso amor insatisfeito sempre
para acordar novas caricias, para fomentar alegrias... A esperança de um
filho... O recuo da esperança... E tudo isto acabar quando mesmo
principiava?!...
—Não temas a
morte: um cérebro que pensa como o teu dá confiança na renascença da vida.
—A alma não
morre, Doca! É ela quem esta vivendo agora. Os pulmões fraqueiam, o coração tem
espasmos, a visão escurece-se, a voz arrasta-se, mas o cérebro pensa... Crês tu
que, porque não falam, todos os moribundos não pensam? Iludes-te! É a hora de
maior pensamento. Só recompor todo o passado afim de o ligar ao presente e
encerrar o circulo das sensações mundanas, é pensar robustamente. Um moribundo
que eu vi, não tinha a fala. Os membros eram paralíticos, os olhos envidrados e
fotografavam a luz do dia para a eternidade... Pois bem! esse homem assim
amortecido, repeliu com o gesto brusco de uma perna o suplício de uma injeção
nos últimos instantes... Acaso, não pensaria mais aquele cérebro de tanta
vontade? Outros ha que conhecem até o segundo derradeiro: fazem despedidas...
Ah! como deve ser tocante o adeus de um esposo que aí deixa a companheira sem a
certeza de um agasalho... Um que vai, a outra que fica... Qual dos dois padecerá
mais no extremo momento? Doca, ouve-me bem: tu vais entrar num terceiro
mundo... Alegras-te com a nova?... Pensas que deliro ou que não falo certo?
—Não me
alegro, confranjo-me: viste um lampejo maior de esperança iluminar-me o
rosto...
—Como és
amante?!... Quererias de coração e de alma, com todos os afetos e vontades, a
minha cura?
—Tenho
provado o meu desejo de ver-te salvo e tornado à saúde.
—É bem pouco
um desejo!
—Duvidas que
todas as minhas forças funcionam só na intenção de possuir-te novamente são?
—Não duvido!
Pareceu-me que te aborrecias, inda ha pouco, com a prolongação de minha
tortura...
—Aborrecer-me
eu!...
—E
então?!...
—Tens
coragem! Só me representa que gravaràs na alma uma eterna desconfiança da
amizade de tua esposa...
—Isto não!
—Pois
parece, Ormindo!
—Neste caso,
escutas-me com agrado?
—Sim.
—Posso
falar?
—Não.
—Ah! já
sei... É a mesma quizília de que falar é um desperdício de forças orgânicas...
—Diz o
doutor...
—Nenhum
deles sabe nada... Quem pensa deve falar. Onde o meu cérebro conteria tanta
palavra que tenho pensado? Eu te dizia que tu vais entrar num terceiro mundo, e
para cada um desses mundos, devido às intenções animais dos homens, a equação
da mulher é perigosamente diversa. Virgem, ela tem a expressão de um sonho;
esposa, representa uma realidade; e viúva, ela é uma alma em que se derramam os
mananciais copiosos da luxuria humana... Virgem, foste uma criadora; esposa,
uma inspiradora; viúva, serás, em nome da honra de teu marido, uma redentora...
Ai!... Doem-me os pulmões... Morrerei, porem, com todas as sensações...
—Não morrerás,
Ormindo!
—São os teus
votos?
—Duvidas de
mim, dos meus afetos, dos meus afagos, do meu amor, inda no instante
derradeiro?
—Não duvidei
jamais: fui um esposo feliz, muito feliz.
—Pois
então?!...
—Dá-me a tua
mão...
—Estás frio!
—É a gelidez
da morte... Não tardará... Fazes-me um favor?...
—Se o
faço...
—É para
depois de minha morte...
—Juro-te.
—Mas,
responde franca e precisamente, para que eu não sucumba com uma duvida...
—Pede o que
quiseres... Pede... não!... ordena!
—Estou
acabado. Lutou comigo a morte, que, se não me derrubou de vez, vai invadindo-me
com o gelo de seu hálito das extremidades para o coração. Bestam-me instantes.
Vais enviuvar e a viuvez é um despenhadeiro. Peço-te em nome de minha
tranquilidade, que te cases, imediatamente, afim de que não paire uma só nuvem
sobre a limpidez do teu e do meu nome... Casarás logo... Peço-te... É o ultimo sacrifício
em prol do teu defunto...
—Intranquilizas-me,
Ormindo.
—Não ha
razão para isso.
—Se tu
mandas...
—Mando, não;
peço... Agradar-te-à Eloy?
—Queres,
Ormindo, a verdade antes da morte?
—É isso...
—Pois bem! O
que tu propões já estava assentado entre nós outros...
A ira irrompe
brutalmente na alma do traído moribundo, que faz um grande esforço e se salva com
o despedaçamento brusco do mioma desconhecido, do assassino erro de
diagnóstico...
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Nota:
Almachio Diniz: "Mundanismos" (1911)
Almachio Diniz: "Mundanismos" (1911)
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Advertência:
Alguns termos inseridos neste conto podem apresentar sentidos obscuros, podendo ser o resultado de erros no processo de digitalização da obra ou mesmo termos específicos atreladas ao contexto histórico no qual viveu o autor. Assim, caso possa contribuir para o esclarecimento de algumas dessas dificuldades ortográficas, por gentileza entre em contato conosco, no e-mail: iba@ibamendes.com
Alguns termos inseridos neste conto podem apresentar sentidos obscuros, podendo ser o resultado de erros no processo de digitalização da obra ou mesmo termos específicos atreladas ao contexto histórico no qual viveu o autor. Assim, caso possa contribuir para o esclarecimento de algumas dessas dificuldades ortográficas, por gentileza entre em contato conosco, no e-mail: iba@ibamendes.com
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