Á VISTA DA
DENUNCIA
O interior
da envidraçada varanda, exornado com ipoméas
e glicínias, em cacos, orquídeas e arums
nos recantos, não tinha senão a luz pálida, muito pálida, de um luar de
inverno, coado preguiçosamente pelos vãos das grinaldas verdes.
Das quatro
portas que abriam para o interior, apenas uma cometia a indiscrição de
transportar para alem, ao conhecimento da criadagem bisbilhoteira, os amuos
graves de CLÓVIS e AMARÍLIA.
A denuncia,
amarrotada e em frangalhos, estava sobre uma banca de ferro, destorcendo-se,
como se nervos tivesse, dos amachucamentos grosseiros perpetrados pelas mãos violentas
de CLÓVIS, que, distraindo-se um pouco com as fumaradas de um havana, ouvia,
sem intervenções, as queixas de AMARÍLIA...
—Como eu, tão ladina para outras, compreendendo
tão bem o mal alheio, deixei-me cegar por tanto tempo?! Era um convite amável
hoje, tinha sido um presente valioso ontem, era uma lembrança expressiva amanhã...
E o meu filhinho servindo de passe para os maiores engôdos!... Toda hora o telefone
pedia Arturzinho. Lá se ia o inocente, coitadinho! E raramente voltava.
Prendiam-no dias seguidos com a ama. Poderia eu desconfiar do embuste? Ha gênios
capazes de todas as vilezas. O filho era o motivo da entrada do pai, os
presentes eram as cinzas nos meus olhos, e os convites eram a perfídia da
traiçoeira. Mas, agora, ou eu sucumbirei, ou estará tudo acabado. Ouve-me bem,
Clovis: nesta casa, enquanto eu viva for, Carlota jamais tornará, e se tu
desceres à indignidade de voltar à casa dessa mulher, ouve bem! Serei eu quem
irà buscar o tolo do esposo para te surpreendermos na sordidez. Sempre são os
interessados nas causas os que por ultimo se sentem logrados. Il n'y a qu'un mot pour dire les choses.
Essa palavra não devo, porem, proferir sem macular os meus lábios, sem regozijar
o meu enganoso marido, e sem elevar a perdida que me furta a tranquilidade, que
me logra no dom legal da fidelidade esponsalícia. Um dia desconfiei. A ama de
Arturzinho levava um pacote às escondidas, quando, para castigo, ele rolou ao
chão, na hora da partida, quase aos meus pés... Perguntei à cúmplice que
significava aquele embrulho... Foi o sr. Clovis quem tomou a palavra: «é um
romance que mando, a pedido, para D. Carlota ler...» Ingenuamente me convenci.
Pois seria possível que o meu marido trouxesse a beijar-me a mulher indigna que
me atraiçoava? que expusesse o meu filho à infamação de ser posto junto à pérfida,
em lugar de seu pai gozado?... Ó meu amado Jesus!... Tenho nojo de tudo
isto!... Olho-me e vejo-me só. Roubada naquilo porque mais zelos e mais ciúmes
alimento, eu que me tenho submetido maquinalmente à concepção de treze filhos,
esgotando a minha juventude para parecer velha aos trinta e dois anos,
assassinando a minha beleza, relaxando os meus tecidos, criando uma ruga nova
em cada manhã em que me olho ao espelho!... para ser recompensada duramente com
uma traição, uma tripla traição, em que se envolveram as minhas lealdades de
esposa, de mãe e... de amiga. Sim, porque, desgraçadamente o digo, tolerei a concubina
de Clóvis na intimidade cordial de amiga. Muitas vezes, por força dessa
leviandade comum a todas as mulheres, terei dado causa de riso à maldita que me
engazupava. Contava-lhe os meus esforços para trazer sempre o meu marido na
obrigação pontual de possuir-me. Disse-lhe mesmo que, muitas vezes, o recebia
com intimas indisposições, para que rejeitado uma feita ele se não atrevesse a
faltar-me outras, e nestas perseguir-me a duvida de sua saciedade noutra
fonte... Não sei onde estava escondido o sol de minha compreensão que agora
recena a minha inteligência. E uma miséria moral essa em que se prostitui, com
o cônjuge das outras, uma velha, desrespeitadora das cãs do esposo e da inocência
de suas filhas. Havia de ser lá, naquela alcova cheia de seduções, que o meu
companheiro se convertia em assassino da paz de minha alma. Aos olhos daquelas três
criancinhas—mulheres fáceis, por herança, que desabrocham nos comoros lamacentos
da podridão materna—eles dois se encaminhavam do leito, quantas vezes Clóvis ouvindo
a voz de meu filhinho chamando-o ardentemente com o nome de pai! Bendito o
poeta que já disse estar ao lado de cada homem uma fera monstruosa: o instinto.
E esse poeta foi o meu próprio esposo, acusando toda a humanidade com o seu próprio
mal. Foi preciso que uma generosidade estranha me avisasse para que eu
conhecesse essa nova Milita babilônica, torpe, pântano no qual até a traída
companheira do amante e o explorado amor de seu filhinho foram poderes
lascivos. Ó injustiça divina! Porque não me despertaste, a mais tempo, do sono
em que sonhei com a lealdade de um templo cristão e me achava desgarrada na nave
de um templo de Buda?!... Foi hoje o assinalado dia de minha vitória. A carta
chegou-me às mãos com as réstias violetas do sol posto. Li-a de um fôlego. O
meu primeiro ímpeto, naturalmente, foi de indignação contra o denunciante. Mas,
ali estavam os fatos verificáveis, possíveis, e terrorosos. A noite veio mais
depressa aos meus olhos do que ao resto do mundo. A verdadeira noite é essa em
que também a alma se recolhe na escuridão de uma dor apunhalante. O meu marido
jantaria fora, num banquete intimo, mas numa sociedade festiva. Resolvi
chamá-lo prontamente às explicações de suas infidelidades. E fi-lo sem tardada,
não o nego. Á criada de Arturzinho, a esta cancerosa alma de mulher que tinha afetos
meus por dar o seu leite à formação orgânica de meu filho, trouxe logo às
contas. Não lhe disse a denuncia, não lhe proporcionei ensejo de contestar a
sua ação, porque a interpelei segura do fato, inteiramente consciente do que
fazia. E ela me confessou que levava e trazia romances imorais, que levava e
trazia cartas e recados... O instante único! Ao depois, calma e friamente,
sabendo que aguçava a minha dor, revolveu-me na alma o punhal de seu descaro,
revelando-me a indignidade de ser o meu filho abraçado e beijado ardentemente,
durante a ausência do pai, com o nome deste entre os lábios da corruptora...
Nega, Clóvis, que não és o amante dessa barregã de padres, dessa imunda mulher
que maculou o meu lar com a sua abjeta convivência...
—Nego, sim!
—Forte
coragem! Jura que ontem não beijaste, quase aos olhos do publico, no salão de
visitas, os lábios roxos pelo cansaço da idade de Carlota.
—Juro-te.
—Leviano!
Mente como quiseres. Mas, ouve: enquanto o meu corpo sentir as comoções do nojo
pelo teu que se enlameou na companhia daquela devassa, enquanto as minhas
narinas sentirem o perfume daquela carta nas tuas vestias, que é o perfume de
uso na alcova de tua ervoeira, terei a coragem de repelir-te e de cerrar os
meus lábios às menores palavras para as nossas relações. E se, porventura,
desconfiar eu que foste buscar, como uma abelha sem sorte, o néctar que se
esconde na corola daquela flor murcha e fanada, dentro desta casa, escuta bem
Clóvis, haverá a incompatibilidade de nós dois... É tu entrares e eu sair, ou
só ficarei se tu te fores para sempre. Sabes quanto sou caprichosa, o bastante
para não me arrepender das resoluções tomadas. Negas, ainda, o teu erro? Serei fácil
de perdoar-te com a verdade, tão fácil quanto não te tolerarei com a mentira...
Nega a tua indignidade!
—Nego, sim!
—Quero
convencer-me. A pé firme?
—Com toda
lealdade.
—Pois bem! É
escusado irmos adiante: sabes o que está contido naquele pacote?
—Ignoro.
—São os
presentes com que me turvou a vista a tua amante. Quero devolvê-los.
—Mas, como?
—Não os
guardarei mais comigo.
—Vais
romper, então, com a família do Aurélio?
—Forçosamente.
—É de mau
alvitre.
—Incomoda-te
muito esse rompimento pelo que estou vendo. Deves acabar com uma amizade que me
aborrece, e se te escusares a esse acabamento, confessas o interesse que terás
em manter a verminação desse convívio imundo...
—Se encaras
por este lado, rompe Amarília, devolve tudo do modo mais grosseiro.
—Devolverei,
sim, não ha que ver.
—Estás no
teu direito.
—E espero a
tua sanção.
—Já a tens.
—Não. Não a
tenho ainda. A devolução não poderá ser feita sem uma carta.
—Pois
escreve-a!
—Não! Também
não! Serás tu...
—Eu?!...
—Ah!...
Esquiva-te de escreveres a carta?...
—Amarília,
pensa bem! Nós, os homens, ficaremos mal se nos envolvermos nessas rusgas de
mulheres.
—Compreendo-te:
romperei eu, e tu, às ocultas quiçá, com menores aparências, te dedicarás à
continuação de teu adultério. Hás de ser quem escreverá a carta hoje mesmo,
agora...
—Convencer-te-às
de minha inocência?
—De todo,
não. Encaminhar-me-ei de convencer-me.
—Não haja
duvida. Dá-me papel e tinta. Escreverei num momento...
—E pensas
que escreverás como quiseres?
—Não: como for
conveniente.
—Não te
concedo esse direito: vais escrever ao meu ditado.
—Quê?
—Nos termos
que me espocarem arrevesadamente aos lábios...
—Mas...
—Na
linguagem mais ferina que eu souber empregar contra uma inimiga...
—Amarília?!...
—Virulenta e
grosseira...
—Faça-se a
tua vontade.
—Escreves?
—Como
quiseres.
—E a quem
pensas vai ser dirigida a missiva daquele modo escrita?
—A Carlota!
—Não,
Clóvis. Quero que se escreva ao marido dela, com o seu nome em todas as
letras...
—É demais!
—Não
retrocedas!
—Abusas de
minha bondade...
—Enganas-te.
Clóvis, ou tu escreves como eu te determino, ou...
—Absolutamente,
não!
—... ou me
retirarei hoje mesmo de tua companhia... A casa de meu pai terá sempre, para a
filha digna, o agasalho mais confortável.
—Tua alma,
tua...
—Sei bem!
Queres o escândalo da separação para o renome do conquistador? Não te darei essa
vantagem... Debaixo deste teto, tragarás, Clóvis, o amargo da tortura mais
incondescendente, sofrerás a queimadura do inferno mais verdadeiro...
Ao longe, um
relógio temerário, arriscou o aviso tétrico da meia-noite, ao fim do qual, resolutamente,
AMARÍLIA se retirou para o seu leito...
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Nota:
Almachio Diniz: "Mundanismos" (1911)
Almachio Diniz: "Mundanismos" (1911)
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Advertência:
Alguns termos inseridos neste conto podem apresentar sentidos obscuros, podendo ser o resultado de erros no processo de digitalização da obra ou mesmo termos específicos atreladas ao contexto histórico no qual viveu o autor. Assim, caso possa contribuir para o esclarecimento de algumas dessas dificuldades ortográficas, por gentileza entre em contato conosco, no e-mail: iba@ibamendes.com
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