terça-feira, 17 de setembro de 2013

Almachio Diniz: "A Húngara"

A HÚNGARA 
Cômodo de hotel. Um foco elétrico esverdinhava o azul papel das paredes.
Revolvido, o leito denunciava em duas covas a pressão de dois corpos que nele se afundaram.
SARAH, a húngara, recebia GUANABARINO, o cronista teatral, com um estridente sinal de contentamento...
 —Aqui estou. Nem sei como acertei.
—Estás apaixonado?
—Crês, Sarah, que paixão desponte como um sorriso?
—Quem te disse o meu nome?
—Li-o nos programas.
—Ah! sim. Gostaste do meu canto?
—Não te ouvi.
—Como te agradei?
—Pertencendo a outro. A mulher sem dono custará a topar com um amante. Rolará uma eternidade como a pedra que não cria limo... Tenha um amante e dezenas surgirão...
—Como ele é experiente!
—Vejo todos os dias. Se quiseres arrebatar, deixa-te monopolizar por Gustavo. Ouve: agradei-me de ti porque, pelo braço dele, no teu longo manteau de sedas e rendas, pareceste-me uma conquista difícil. Vejo dezenas de mulheres no Café-Concerto. Tyroleanas, que encantam com o canariar de suas vozes; francesas, que arrebatam com o savoir-dire as malicias mais leves; espanholas, que excitam com o sensualismo de seus sapateados; americanas, que lembram bugios nos saltos do cake-walk... Todas são-me indiferentes, por todas passo na certeza de cruzar com cocottes para todo o mundo... De começo estive tentado a empreender uma ménage-à-trois com uma acrobata. Porque assim? A ginasta era um corpo proibido e vivia aferrolhado à concupiscência de seu próprio pai. Tive horror a essa monstruosidade e o desejo passou. Finalmente encontrei-me contigo...
—Ladrãozinho! Como ele sabe contar!
—Junto de Gustavo acendeste-me a centelha de um capricho: trair o teu amante. Tinha eu entrado no Teatro naquela hora mesmo. O grupo de amigos atraiu-me e a atração de todos eras tu. Olhei-te e fiz-te um cumprimento com a cabeça. Não me teres sido apresentada, significou que o teu galã zelava de mais. Ah! A cultura humana tem o maior testemunho de seu progresso na sabedoria dos olhares que as pessoas cultas podem trocar. Viste como te compreendi e logo te apertei os dedos, no caminho para o buffet? Atinaste como consegui retirar, por um momento, Gustavo de junto de ti e como tratamos, quais velhos conhecidos este encontro? Na sombra dos pés da mesa, os nossos corpos se trocavam desejos nos encontros, animavam-se também com os prometimentos mais claros, e as nossas carnes se queimavam por detrás dos tecidos de nossas vestias. Tudo isto, porem, ainda não é paixão. É um grito do instinto animal. Só nos não apaixonaremos se não quisermos...
—Como sabes a vida!
—Precisas prender Gustavo. A época é das melhores. O dinheiro passa-lhe pelas mãos como as águas pelos rios para o mar. Segura-o bem, porque, alem do mais, é um amante que, por força de ter mulher e filhos e morar longe, te dará muito tempo aos amores furtados.
—Não os quererei. Sempre fui parcimoniosa. Juro-te como o meu corpo não se tem dado a muitos. Fui concubina de um general, durante anos, e só o traí uma só vez: com o pai de meu filho. Gosto de um amor só, de ter um dono e de ser cobiçada. Nem sei como te recebi agora... Em todo o caso, o Gustavo não me agrada... Prefiro-te a ele, serás o meu amante...
—Errarás se assim preferires, Sarah. Não tenho posses para te manter, ao passo que o Gustavo...
—Que tem isso? Tenho eu o meu ofício. O empresário paga-me bem, ganho para o luxo e para a mesa. Dou-me a quem eu quero...
—Neste caso ficarás com ele...
—Porque então?
—Conheceste-o primeiro.
—Não importa isso. A ele conheci na manhã, a ti à noite, ambos no mesmo dia. Vi-o a bordo. Trouxe-me ele para a terra. Encaminhou-me do hotel, e... má recomendação tem dado com os multifários obséquios, com os gastos e as gentilezas, somente com essas coisas... Ora, uma mulher como eu, ou quer o homem, ou não o quer... De minha parte dispenso as galanterias...
—Tudo isto concorre para lhe fazeres teu amante, para dispores de sua bolsa...
—E fico contigo para o meu verdadeiro amante, para o meu especial amor...
—Lá com isto combino eu.
—Assim, vá que seja e comecemos...
—Que tenho eu para tanto me olhares?...
—Fixo a tua imagem. Tens um olhar de fogo. Os teus olhos incandescentes são dois vulcões. Como te chamas?
—Guanabarino, um nome difícil.
—Como?
—Gua-na-ba-ri-no!
—Gua-na...
—... barino.
—Ah! sei. Guanabarino. É a primeira vez que ouço esse nome. És brasileiro?
—De corpo e alma. E tu?
—Filha do sul da Hungria. Vim criança para a tua terra. Fui noiva, aprendi a cantar com um meu amante e vivo disto...
—Tens percorrido meio-mundo, hein?
—Não: conheço a tua pátria e a minha, em pálida reminiscência...
—Dize outra vez esse termo...
—Reminiscência.
—Que lindo! Parece-me, Sarah, que estás a dar uma serie de beijos...
—Como ele é ardente!
—De verdade?
—A tua alma está fugindo-te pelos olhos...
—Junto de um espírito como o teu, como ela não querer a transfusão carnal? Já notaste o frio que regela as mãos do homem emocionado junto da mulher que o escalda?...
—Ih!... Que gelo!
—Sabes explicar?
—Não. É difícil?
—Ao contrario. Bem fácil. O sangue todo afluiu-me ao coração. As extremidades resfriaram-se. Tudo isto já é começo de paixão... Falaste nos meus olhos! E os teus? São capazes de comprar o mundo com um só relance.
—Costumas ser gentil com todas as mulheres de teu conhecimento?
—Que graça! Se costumasse, haviam de estar bem gastas as minhas gentilezas.
—Tens gozado tanto?
—Inda perguntas?! Não sabes que o amor se fez para os temperamentos tropicais, para os homens das terras do Sol, como eu o sou? Tenho um desejo para cada mulher e, posso parodiar um dito desrespeitado a toda hora: sinto que todo o teu sexo não seja uma só mulher para esta ser a minha amante...
—Caloroso! Deita-te aqui, Guanabarino!
—Não.
—Desmentes o que asseguras.
—Já tiveste o teu quinhão.
—Como assim?
—Já te possuiu o Gustavo...
—Juro-te que não. Tem sido o meu apresentante, e, a verdade seja revelada, ainda não desejou...
—De fato?
—Juro-te eu.
—Ao depois dele... nunca!
—Mas, porque? Metes-me medo...
—Por nada! O Gustavo é um homem para se temer...
—E porque me influis para ser a sua amante?
—Porque o encontrei no fastígio da tua posse, porque vejo que do seu concubinato bem podes usufruir grandes proventos. E, já agora te direi: pouco mais fará ele do que hoje... Entretanto, como homem de recursos, talvez ainda não te desse a menor prova do que seja...
—Fez-me hoje a oblata de um colar de libras...
—Um colar?
—Sim.
—De libras esterlinas?
—Conheces?
—Acho que não. Agora reparo que tens dois fachos lindíssimos...
—Foram presente.
—Fico esmorecido. Nem sei como hei de portar-me para contigo sem outros meios que não esta aparência palavrosa e este atrevimento que me trouxe aqui...
—Não amo os homens pelas riquezas. Tenho os meus rendimentos de chanteuse. Ás vezes sucede amar os que podem. Neste caso, sou a primeira a não rejeitar o que me dão. Um deputado deu-me este anel...
—Adorável!
—Um advogado, ao depois de uma perseguição de meses, para eu o receber, ofertou-me estas pulseiras... No entanto, o pai de meu filho aquinhoou-me apenas com o seu amor... Assim vou passando, umas em cheio, outras...
—Muito em cheio, Sarah!
—Tu falas? Um mineiro, hoje desesperançado de conseguir a minha retribuição, deu-me estes correntões para atilhos...
—Que lindas formas!
—Mostro-te apenas os atilhos e não as pernas...
—E eu vejo tudo! É admirável como o fraise das meias se destaca no gesso das tuas peles...
—Pois bem, Guanabarino! Permite que eu te diga; amantes que me cobrissem de ouro tenho tido às carradas... mas, um só que me dissesse coisas tão lindas, nunca tive... A palavra inescutada é também uma jóia preciosa. E para retribuir tantas distinções inéditas só um beijo de muita paixão, só um beijo...
—Basta, Sarah! Basta! Prometeste um e deste mais de mil...
—Longe disto, tu não me recompensaste com um só... Reparei bem...
—Desculpa. Mas, quando sou beijado, não beijo. Esta caricia deve ser sempre espontânea e impagável. E eu não cometo a grosseira sensualidade de pagar uma caricia...
—Ao depois de ti, nem mais sei como receba Gustavo, amanhã...
—Com todo o fervor...
—Não te enciumas?
—Não. Estimarei que possas flutuar aos olhos do mundo na aeronave de ouro que ele te der.
—Queres ver o colar de hoje?
—Verei.
—Ele me prometeu para amanhã um relógio e um correntão.
—Aproveita, Sarah! Gustavo desperdiça dinheiros de herança...
—Vês tu o belo colar?
—É lindo!... Ele to deu?
—Sim.
—Esta jóia?
—Que significa o teu espanto?
—É que este colar é...
—Falso?
—Não! Uma jóia de família, uma jóia da mulher de Gustavo...
—Agora é minha!
—Estás no teu direito. Deixa-o amar-te e colhe os seus esbanjamentos...
—E só a ti amarei, Guanabarino!...
 Pela madrugada, a libertina abria a porta para o sucessor de GUSTAVO evadir-se, e recebia, instantes depois, reticenciando o silencio sonolento do casarão do hotel, a figura caprina de um mal conhecido visinho de quarto...

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Nota:
Almachio Diniz: "Mundanismos" (1911)
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Advertência:
Alguns termos inseridos neste conto podem apresentar sentidos obscuros, podendo ser o resultado de erros no processo de digitalização da obra ou mesmo  termos específicos  atreladas ao contexto histórico no qual viveu o autor. Assim, caso possa contribuir para o esclarecimento de algumas dessas dificuldades ortográficas, por gentileza entre em contato conosco, no e-mail: iba@ibamendes.com

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