A HÚNGARA
Cômodo de
hotel. Um foco elétrico esverdinhava o azul papel das paredes.
Revolvido, o
leito denunciava em duas covas a pressão de dois corpos que nele se afundaram.
SARAH, a húngara,
recebia GUANABARINO, o cronista teatral, com um estridente sinal de
contentamento...
—Aqui estou. Nem sei como acertei.
—Estás
apaixonado?
—Crês,
Sarah, que paixão desponte como um sorriso?
—Quem te
disse o meu nome?
—Li-o nos
programas.
—Ah! sim.
Gostaste do meu canto?
—Não te
ouvi.
—Como te
agradei?
—Pertencendo
a outro. A mulher sem dono custará a topar com um amante. Rolará uma eternidade
como a pedra que não cria limo... Tenha um amante e dezenas surgirão...
—Como ele é
experiente!
—Vejo todos
os dias. Se quiseres arrebatar, deixa-te monopolizar por Gustavo. Ouve:
agradei-me de ti porque, pelo braço dele, no teu longo manteau de sedas e rendas, pareceste-me uma conquista difícil. Vejo
dezenas de mulheres no Café-Concerto. Tyroleanas, que encantam com o canariar
de suas vozes; francesas, que arrebatam com o savoir-dire as malicias mais leves; espanholas, que excitam com o sensualismo
de seus sapateados; americanas, que lembram bugios nos saltos do cake-walk... Todas são-me indiferentes,
por todas passo na certeza de cruzar com cocottes
para todo o mundo... De começo estive tentado a empreender uma ménage-à-trois com uma acrobata. Porque
assim? A ginasta era um corpo proibido e vivia aferrolhado à concupiscência de
seu próprio pai. Tive horror a essa monstruosidade e o desejo passou.
Finalmente encontrei-me contigo...
—Ladrãozinho!
Como ele sabe contar!
—Junto de
Gustavo acendeste-me a centelha de um capricho: trair o teu amante. Tinha eu
entrado no Teatro naquela hora mesmo. O grupo de amigos atraiu-me e a atração
de todos eras tu. Olhei-te e fiz-te um cumprimento com a cabeça. Não me teres
sido apresentada, significou que o teu galã zelava de mais. Ah! A cultura
humana tem o maior testemunho de seu progresso na sabedoria dos olhares que as
pessoas cultas podem trocar. Viste como te compreendi e logo te apertei os
dedos, no caminho para o buffet?
Atinaste como consegui retirar, por um momento, Gustavo de junto de ti e como
tratamos, quais velhos conhecidos este encontro? Na sombra dos pés da mesa, os
nossos corpos se trocavam desejos nos encontros, animavam-se também com os
prometimentos mais claros, e as nossas carnes se queimavam por detrás dos
tecidos de nossas vestias. Tudo isto, porem, ainda não é paixão. É um grito do
instinto animal. Só nos não apaixonaremos se não quisermos...
—Como sabes
a vida!
—Precisas
prender Gustavo. A época é das melhores. O dinheiro passa-lhe pelas mãos como
as águas pelos rios para o mar. Segura-o bem, porque, alem do mais, é um amante
que, por força de ter mulher e filhos e morar longe, te dará muito tempo aos
amores furtados.
—Não os
quererei. Sempre fui parcimoniosa. Juro-te como o meu corpo não se tem dado a
muitos. Fui concubina de um general, durante anos, e só o traí uma só vez: com
o pai de meu filho. Gosto de um amor só, de ter um dono e de ser cobiçada. Nem
sei como te recebi agora... Em todo o caso, o Gustavo não me agrada...
Prefiro-te a ele, serás o meu amante...
—Errarás se
assim preferires, Sarah. Não tenho posses para te manter, ao passo que o
Gustavo...
—Que tem
isso? Tenho eu o meu ofício. O empresário paga-me bem, ganho para o luxo e para
a mesa. Dou-me a quem eu quero...
—Neste caso
ficarás com ele...
—Porque
então?
—Conheceste-o
primeiro.
—Não importa
isso. A ele conheci na manhã, a ti à noite, ambos no mesmo dia. Vi-o a bordo.
Trouxe-me ele para a terra. Encaminhou-me do hotel, e... má recomendação tem
dado com os multifários obséquios, com os gastos e as gentilezas, somente com
essas coisas... Ora, uma mulher como eu, ou quer o homem, ou não o quer... De
minha parte dispenso as galanterias...
—Tudo isto
concorre para lhe fazeres teu amante, para dispores de sua bolsa...
—E fico contigo
para o meu verdadeiro amante, para o meu especial amor...
—Lá com isto
combino eu.
—Assim, vá
que seja e comecemos...
—Que tenho
eu para tanto me olhares?...
—Fixo a tua
imagem. Tens um olhar de fogo. Os teus olhos incandescentes são dois vulcões.
Como te chamas?
—Guanabarino,
um nome difícil.
—Como?
—Gua-na-ba-ri-no!
—Gua-na...
—... barino.
—Ah! sei.
Guanabarino. É a primeira vez que ouço esse nome. És brasileiro?
—De corpo e
alma. E tu?
—Filha do
sul da Hungria. Vim criança para a tua terra. Fui noiva, aprendi a cantar com um
meu amante e vivo disto...
—Tens
percorrido meio-mundo, hein?
—Não:
conheço a tua pátria e a minha, em pálida reminiscência...
—Dize outra
vez esse termo...
—Reminiscência.
—Que lindo!
Parece-me, Sarah, que estás a dar uma serie de beijos...
—Como ele é
ardente!
—De verdade?
—A tua alma
está fugindo-te pelos olhos...
—Junto de um
espírito como o teu, como ela não querer a transfusão carnal? Já notaste o frio
que regela as mãos do homem emocionado junto da mulher que o escalda?...
—Ih!... Que gelo!
—Sabes
explicar?
—Não. É difícil?
—Ao
contrario. Bem fácil. O sangue todo afluiu-me ao coração. As extremidades
resfriaram-se. Tudo isto já é começo de paixão... Falaste nos meus olhos! E os
teus? São capazes de comprar o mundo com um só relance.
—Costumas
ser gentil com todas as mulheres de teu conhecimento?
—Que graça!
Se costumasse, haviam de estar bem gastas as minhas gentilezas.
—Tens gozado
tanto?
—Inda
perguntas?! Não sabes que o amor se fez para os temperamentos tropicais, para
os homens das terras do Sol, como eu o sou? Tenho um desejo para cada mulher e,
posso parodiar um dito desrespeitado a toda hora: sinto que todo o teu sexo não
seja uma só mulher para esta ser a minha amante...
—Caloroso!
Deita-te aqui, Guanabarino!
—Não.
—Desmentes o
que asseguras.
—Já tiveste
o teu quinhão.
—Como assim?
—Já te
possuiu o Gustavo...
—Juro-te que
não. Tem sido o meu apresentante, e, a verdade seja revelada, ainda não
desejou...
—De fato?
—Juro-te eu.
—Ao depois
dele... nunca!
—Mas,
porque? Metes-me medo...
—Por nada! O
Gustavo é um homem para se temer...
—E porque me
influis para ser a sua amante?
—Porque o
encontrei no fastígio da tua posse, porque vejo que do seu concubinato bem podes
usufruir grandes proventos. E, já agora te direi: pouco mais fará ele do que
hoje... Entretanto, como homem de recursos, talvez ainda não te desse a menor
prova do que seja...
—Fez-me hoje
a oblata de um colar de libras...
—Um colar?
—Sim.
—De libras
esterlinas?
—Conheces?
—Acho que
não. Agora reparo que tens dois fachos lindíssimos...
—Foram
presente.
—Fico
esmorecido. Nem sei como hei de portar-me para contigo sem outros meios que não
esta aparência palavrosa e este atrevimento que me trouxe aqui...
—Não amo os
homens pelas riquezas. Tenho os meus rendimentos de chanteuse. Ás vezes sucede amar os que podem. Neste caso, sou a
primeira a não rejeitar o que me dão. Um deputado deu-me este anel...
—Adorável!
—Um
advogado, ao depois de uma perseguição de meses, para eu o receber, ofertou-me
estas pulseiras... No entanto, o pai de meu filho aquinhoou-me apenas com o seu
amor... Assim vou passando, umas em cheio, outras...
—Muito em
cheio, Sarah!
—Tu falas?
Um mineiro, hoje desesperançado de conseguir a minha retribuição, deu-me estes
correntões para atilhos...
—Que lindas formas!
—Mostro-te
apenas os atilhos e não as pernas...
—E eu vejo
tudo! É admirável como o fraise das
meias se destaca no gesso das tuas peles...
—Pois bem,
Guanabarino! Permite que eu te diga; amantes que me cobrissem de ouro tenho
tido às carradas... mas, um só que me dissesse coisas tão lindas, nunca tive...
A palavra inescutada é também uma jóia preciosa. E para retribuir tantas distinções
inéditas só um beijo de muita paixão, só um beijo...
—Basta,
Sarah! Basta! Prometeste um e deste mais de mil...
—Longe
disto, tu não me recompensaste com um só... Reparei bem...
—Desculpa.
Mas, quando sou beijado, não beijo. Esta caricia deve ser sempre espontânea e impagável.
E eu não cometo a grosseira sensualidade de pagar uma caricia...
—Ao depois
de ti, nem mais sei como receba Gustavo, amanhã...
—Com todo o
fervor...
—Não te enciumas?
—Não.
Estimarei que possas flutuar aos olhos do mundo na aeronave de ouro que ele te
der.
—Queres ver
o colar de hoje?
—Verei.
—Ele me
prometeu para amanhã um relógio e um correntão.
—Aproveita,
Sarah! Gustavo desperdiça dinheiros de herança...
—Vês tu o
belo colar?
—É lindo!...
Ele to deu?
—Sim.
—Esta jóia?
—Que
significa o teu espanto?
—É que este
colar é...
—Falso?
—Não! Uma jóia
de família, uma jóia da mulher de Gustavo...
—Agora é
minha!
—Estás no
teu direito. Deixa-o amar-te e colhe os seus esbanjamentos...
—E só a ti
amarei, Guanabarino!...
Pela madrugada, a libertina abria a porta para
o sucessor de GUSTAVO evadir-se, e recebia, instantes depois, reticenciando o
silencio sonolento do casarão do hotel, a figura caprina de um mal conhecido
visinho de quarto...
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Nota:
Almachio Diniz: "Mundanismos" (1911)
Almachio Diniz: "Mundanismos" (1911)
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Advertência:
Alguns termos inseridos neste conto podem apresentar sentidos obscuros, podendo ser o resultado de erros no processo de digitalização da obra ou mesmo termos específicos atreladas ao contexto histórico no qual viveu o autor. Assim, caso possa contribuir para o esclarecimento de algumas dessas dificuldades ortográficas, por gentileza entre em contato conosco, no e-mail: iba@ibamendes.com
Alguns termos inseridos neste conto podem apresentar sentidos obscuros, podendo ser o resultado de erros no processo de digitalização da obra ou mesmo termos específicos atreladas ao contexto histórico no qual viveu o autor. Assim, caso possa contribuir para o esclarecimento de algumas dessas dificuldades ortográficas, por gentileza entre em contato conosco, no e-mail: iba@ibamendes.com
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