terça-feira, 17 de setembro de 2013

Almachio Diniz: "Depois do Cometa"

DEPOIS DO COMETA
De olhos pisados e presos num halo de violeta cinta, ALEXANDRINA ergueu-se da steeple-chaise, e beijou a mão da velha senhora D. CAROLINA, que acompanhava MIMI, naquela matutina visita de núpcias.
Ao depois, como duas flores de uma só haste separadas para sempre que se reencontrassem, a recém-casada recebeu alacremente nos braços a figura da amiga e beijaram-se fartamente.
De outro lado, ARTHUR, o novel esposo, enfardado no seu dolman de brins brancos, cumprimentara, cerimoniosamente, a DONA CAROLINA e com um sorriso prazenteiro aplaudiu as brejeirices de MIMI.
Esta e ALEXANDRINA, ao depois de afáveis cumprimentos gerais, confidenciavam numa janela, por detrás de arrendadas cortinas, onde se foram acastelar para a permuta de segredos...
—A que horas despertaste?
—Nem sei mesmo...
—Não é possível.
—Palavra!
—Então ferraste no sono, e...
—Ao contrario: não dormimos.
—É esquisito.
—Como te enganas! Não calculas o que seja a estafa de um dia de noivado.
—O dia mais belo da mulher...
—Parece-te?
—Esta é boa, Alexandrina! Sou eu quem deve perguntar-te: não te sentiste extraordinariamente feliz?
—Ah! sim... Casei-me por meu gosto...
—Olha que já me pareces outra com tanta sisudez e secura...
—Não é, Mimi. Arthur e Dona Carolina nos olham insistentemente. É preciso que não me tenham na conta de alguma leviana: já hoje em dia, minha amiga, tenho segredos que te não posso falar...
—Proibiram-te de dizer-mos..
—Não! Nem sei explicar-te, mas ha tanta alteração na vida de uma mulher que se casa, dentro das primeiras vinte e quatro horas de sua vida conjugal, que nem sei como me reconheceste hoje... Já viste, no craveiro, o botãozinho verde; o casulo de folhas, como, na manhã seguinte, está um perfumoso cravo, uma flor distinta? Se te dessem as duas cousas, pela vez primeira, tu contestarias o fato como inverídico...
—Mas eu te vejo a mesma boniteza...
—Sim! É questão de alma. Supõe que adormeceste no começo de uma viagem e que quando despertaste estavas numa terra de estranhos. O teu corpo seria o mesmo, a tua lindeza não seria transformada, mas o teu coração palpitaria diversamente na sociedade desconhecida a que aportaste. As tuas amigas ficariam noutra parte. Se quisesses vê-las, seria preciso que regressasses ou que elas viajassem para onde foras. Assim no casamento: viajei para muito longe de ti. Para nos irmanarmos como dantes, ou voltarei à minha imaculabilidade de ontem, o que seria impossível, ou tu ascenderás ao matrimonio para o que faço votos.
—Tens razão!
—Não te parece?
—Falas e procedes tão judiciosamente que não me atrevo a duvidar das alterações por que passaste... Eu, porem, serei capaz de repudiar o casamento para não me esquecer tão depressa das intimidades com as minhas amigas...
—Não me esqueci. És injusta! Não te darei novas confidencias: as velhas, entretanto, ficarão acariciadas como um sonho de felicidades na vida de uma mulher inditosa.
—Pois pensei que me dirias tudo...
—Tudo... quê?
—Ora!
—Denuncias que pensas em algumas coisas que não são verídicas, ou, pelo menos, não o foram para mim.
—Foste diferente das outras!
—Ofendes-me.
—Não te ofendo, não. Desconheço-te.
—Que quererias tu que eu te falasse?
—Não sei. Se soubesse, desnecessário seria que me referisses.
—Objetiva o que queres saber... e depressa, porque Arthur me acompanha com um olhar seriamente investigador e tua mãe franze o sobrolho para mim... Um ha de supor-me indiscreta para te comunicar tolices... e a outra... corrupta para te ensinar... loucuras...
—Não! Deixa...
—És má! Tens talento e não queres compreender a minha situação, especialmente no dia de hoje.
—Já te compreendi: e estou pelo que tu quiseres...
—Amuas sem razão.
—Com que direito a planta exige viço da flor que já foi colhida? Compreendo, perfeitamente, agora, que entre nós duas existe a alma do sr. Arthur...
—Não exageres...
—Podes ouvir de mim o maior segredo, bem como ouvirás dele também. Os meus serão contados, sílaba por sílaba, aos ouvidos do sr. teu esposo, porque não deve haver um conhecimento novo que não pertença a ambos: os dele... morrerão contigo, porque não deves trair à tua fé conjugal...
—És incondescendente!
—Sim, sou incondescendente na verdade das cousas.
—Em parte, minha amiga.
—Não. Em tudo.
—Veremos.
—Pois experimenta!
—E se eu te provar?
—Pago-te com um beijo...
—Oh! Pois então a mulher que se casou pode beijar outra pessoa que não seja o seu esposo?
—Deste modo, Mimi, não chegaremos a um acordo. Ha beijos como ha conversas... O que te conversei até ontem, não conversarei jamais com o meu esposo. O que te converso agora, não conversarei jamais com a tua mamã. Beijos!... Os que te dou são da ordem dos que sempre te dei...
—Bem te compreendo. A mulher casada tem duas existências.
—Não sei se só mente duas, mas, a solteira, antes do matrimonio, nem sei quantas tem...
—Contudo, conto-te eu um incidente de minha intimidade feminina. Dizes ou não ao teu marido?
—Conforme.
—Não é caso de dubiedades. Dizes ou não?
—Se for só do teu interesse, não.
—Faço-te justiça, minha boa Alexandrina: a tua gentileza obriga-te ao falseamento agora, somente agora, do teu dever. Contarás tudo o que te disserem, ou serás uma perjura na fé conjugal. Eu mesma duvidaria de tuas intenções, se ocultasses do teu marido o menor acontecimento que te revelassem. E, por fim, em tudo quanto te falarem hás de descobrir sempre esse interesse que não é exclusivo da pessoa que te falou, para contares tudo ao teu companheiro. Deixemos essas cousas de parte, e afetemos a nossa convivência hipócrita, como tu queres...
—Dou-te razão, minha amiga. O mundo é esse mesmo e não serei eu quem o modificará.
—Estavas bela, Alexandrina, nas tuas vestias de noiva!
—Achaste?
—Encantadoramente bela!
—E tu me viste?
—Sim. Passaste bem junto de mim quando saltavas da carruagem à porta da igreja. Tinhas um rubor nas faces de matar de inveja.
—Era a ultima nota do meu pudor de virgem!
—A tua costureira fez o teu vestido a capricho e o teu cabeleireiro assentou-te a grinalda como uma coroa de rainha. Agradou-me a tua elegância. E, porque não te censurar? só não gostei de trazeres os olhos humildemente baixos... Faltava-te o sol do teu olhar esplendido.
—Lisonjeira!
—Eu traria os olhos bem iluminados, fascinando as multidões que se dominavam com a curiosidade de ver-me...
—Tens razão. Naquela hora, eu temia os olhos de tanta gente... sem saber que... mais tarde...
—Dize... dize...
—Dir-te-ei... mais tarde... eu teria sobre o meu corpo olhares mais algozes...
—Deveras?
—Sim, minha amiga! Não calculas o olhar de Arthur quando ele... Oh! Digo-te de mais! Perdoa se te ofendo...
—Desculpo-te. Senhora de mim, sei dispensar-te das leviandades que, ainda ha pouco, condenavas. Onde puseste o teu véu?
—Guardei-o já para oferenda a uma Santa.
—Quem t'o tirou?
—A mamã... Arthur conversava no salão com o papá e dois amigos retardatários... Sentia-me alquebrada. Também já era alta hora da madrugada. Duas ou três, não sei.
—E o teu vestido? Era primoroso...
—Está no armoire-à-glace...
—Muito amarrotado?
—Não. Quando o despi... chorei! Como é que uma mulher só se veste tão bem uma vez na vida?!...
—Choraste, Alexandrina?
—Sim.
—É de mau agouro. Dizem que morrerá primeiro aquele que chora...
—Não sabia.
—Nem que morrerá antes do outro o que se deitou por primeiro?
—Também não! E por isso também serei eu quem morrerá antes...
—Ah! já estavas deitada quando ele apareceu na alcova?
—Sim. Ele se abeirou de mim e, segurando-me uma das mãos, tratou do sucesso das festas de nosso casamento. Recapitulamos toda a seroada, desde as asperezas do juiz casamenteiro, até às melifluidades de voz do sacerdote, quando fez a pratica sobre a felicidade conjugal. Recompusemos a sociedade que aqui esteve. As danças, o serviço de buffet, a cerimônia do chá... Tudo se conservou. Ele dizia uma coisa, eu lembrava outra. Sorríamos-nos, comentávamos, com seriedade, as incorreções dos outros...
—E o tempo se passava...
—É exato, Mimi. O tempo se escoava enganadoramente. Não sabes, porem, como foi oportuna a nossa conversação. Quando estremecemos, ouviu-se o tiro das cinco horas...
—E então?
—Arthur lembrou-se do cometa... Já o viste?
—Ainda não!
—Pois é belo! Arthur mostrou-mo... Que lindo esteve ele na madrugada do meu casamento?!... Se todos vissem o cometa como eu vi...
Interrompidas por DONA CAROLINA, MIMI e ALEXANDRINA, dando-se as mãos, nervosamente, passaram ao recinto da sala e entraram na conversação comum...

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Nota:
Almachio Diniz: "Mundanismos" (1911)
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Advertência:
Alguns termos inseridos neste conto podem apresentar sentidos obscuros, podendo ser o resultado de erros no processo de digitalização da obra ou mesmo  termos específicos  atreladas ao contexto histórico no qual viveu o autor. Assim, caso possa contribuir para o esclarecimento de algumas dessas dificuldades ortográficas, por gentileza entre em contato conosco, no e-mail: iba@ibamendes.com

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