DEPOIS DO
COMETA
De olhos
pisados e presos num halo de violeta cinta, ALEXANDRINA ergueu-se da steeple-chaise, e beijou a mão da velha
senhora D. CAROLINA, que acompanhava MIMI, naquela matutina visita de núpcias.
Ao depois,
como duas flores de uma só haste separadas para sempre que se reencontrassem, a
recém-casada recebeu alacremente nos braços a figura da amiga e beijaram-se
fartamente.
De outro
lado, ARTHUR, o novel esposo, enfardado no seu dolman de brins brancos,
cumprimentara, cerimoniosamente, a DONA CAROLINA e com um sorriso prazenteiro aplaudiu
as brejeirices de MIMI.
Esta e
ALEXANDRINA, ao depois de afáveis cumprimentos gerais, confidenciavam numa
janela, por detrás de arrendadas cortinas, onde se foram acastelar para a
permuta de segredos...
—A que horas
despertaste?
—Nem sei
mesmo...
—Não é possível.
—Palavra!
—Então
ferraste no sono, e...
—Ao
contrario: não dormimos.
—É esquisito.
—Como te enganas!
Não calculas o que seja a estafa de um dia de noivado.
—O dia mais
belo da mulher...
—Parece-te?
—Esta é boa,
Alexandrina! Sou eu quem deve perguntar-te: não te sentiste extraordinariamente
feliz?
—Ah! sim...
Casei-me por meu gosto...
—Olha que já
me pareces outra com tanta sisudez e secura...
—Não é,
Mimi. Arthur e Dona Carolina nos olham insistentemente. É preciso que não me
tenham na conta de alguma leviana: já hoje em dia, minha amiga, tenho segredos
que te não posso falar...
—Proibiram-te
de dizer-mos..
—Não! Nem
sei explicar-te, mas ha tanta alteração na vida de uma mulher que se casa,
dentro das primeiras vinte e quatro horas de sua vida conjugal, que nem sei
como me reconheceste hoje... Já viste, no craveiro, o botãozinho verde; o casulo
de folhas, como, na manhã seguinte, está um perfumoso cravo, uma flor distinta?
Se te dessem as duas cousas, pela vez primeira, tu contestarias o fato como inverídico...
—Mas eu te
vejo a mesma boniteza...
—Sim! É
questão de alma. Supõe que adormeceste no começo de uma viagem e que quando
despertaste estavas numa terra de estranhos. O teu corpo seria o mesmo, a tua
lindeza não seria transformada, mas o teu coração palpitaria diversamente na
sociedade desconhecida a que aportaste. As tuas amigas ficariam noutra parte.
Se quisesses vê-las, seria preciso que regressasses ou que elas viajassem para
onde foras. Assim no casamento: viajei para muito longe de ti. Para nos
irmanarmos como dantes, ou voltarei à minha imaculabilidade de ontem, o que
seria impossível, ou tu ascenderás ao matrimonio para o que faço votos.
—Tens razão!
—Não te
parece?
—Falas e
procedes tão judiciosamente que não me atrevo a duvidar das alterações por que
passaste... Eu, porem, serei capaz de repudiar o casamento para não me esquecer
tão depressa das intimidades com as minhas amigas...
—Não me
esqueci. És injusta! Não te darei novas confidencias: as velhas, entretanto,
ficarão acariciadas como um sonho de felicidades na vida de uma mulher
inditosa.
—Pois pensei
que me dirias tudo...
—Tudo... quê?
—Ora!
—Denuncias
que pensas em algumas coisas que não são verídicas, ou, pelo menos, não o foram
para mim.
—Foste diferente
das outras!
—Ofendes-me.
—Não te ofendo,
não. Desconheço-te.
—Que
quererias tu que eu te falasse?
—Não sei. Se
soubesse, desnecessário seria que me referisses.
—Objetiva o
que queres saber... e depressa, porque Arthur me acompanha com um olhar
seriamente investigador e tua mãe franze o sobrolho para mim... Um ha de supor-me
indiscreta para te comunicar tolices... e a outra... corrupta para te
ensinar... loucuras...
—Não!
Deixa...
—És má! Tens
talento e não queres compreender a minha situação, especialmente no dia de
hoje.
—Já te
compreendi: e estou pelo que tu quiseres...
—Amuas sem
razão.
—Com que
direito a planta exige viço da flor que já foi colhida? Compreendo,
perfeitamente, agora, que entre nós duas existe a alma do sr. Arthur...
—Não exageres...
—Podes ouvir
de mim o maior segredo, bem como ouvirás dele também. Os meus serão contados,
sílaba por sílaba, aos ouvidos do sr. teu esposo, porque não deve haver um
conhecimento novo que não pertença a ambos: os dele... morrerão contigo, porque
não deves trair à tua fé conjugal...
—És
incondescendente!
—Sim, sou
incondescendente na verdade das cousas.
—Em parte,
minha amiga.
—Não. Em tudo.
—Veremos.
—Pois
experimenta!
—E se eu te
provar?
—Pago-te com
um beijo...
—Oh! Pois
então a mulher que se casou pode beijar outra pessoa que não seja o seu esposo?
—Deste modo,
Mimi, não chegaremos a um acordo. Ha beijos como ha conversas... O que te conversei
até ontem, não conversarei jamais com o meu esposo. O que te converso agora,
não conversarei jamais com a tua mamã. Beijos!... Os que te dou são da ordem
dos que sempre te dei...
—Bem te
compreendo. A mulher casada tem duas existências.
—Não sei se só
mente duas, mas, a solteira, antes do matrimonio, nem sei quantas tem...
—Contudo,
conto-te eu um incidente de minha intimidade feminina. Dizes ou não ao teu
marido?
—Conforme.
—Não é caso
de dubiedades. Dizes ou não?
—Se for só
do teu interesse, não.
—Faço-te
justiça, minha boa Alexandrina: a tua gentileza obriga-te ao falseamento agora,
somente agora, do teu dever. Contarás tudo o que te disserem, ou serás uma
perjura na fé conjugal. Eu mesma duvidaria de tuas intenções, se ocultasses do
teu marido o menor acontecimento que te revelassem. E, por fim, em tudo quanto
te falarem hás de descobrir sempre esse interesse que não é exclusivo da pessoa
que te falou, para contares tudo ao teu companheiro. Deixemos essas cousas de
parte, e afetemos a nossa convivência hipócrita, como tu queres...
—Dou-te
razão, minha amiga. O mundo é esse mesmo e não serei eu quem o modificará.
—Estavas
bela, Alexandrina, nas tuas vestias de noiva!
—Achaste?
—Encantadoramente
bela!
—E tu me
viste?
—Sim.
Passaste bem junto de mim quando saltavas da carruagem à porta da igreja.
Tinhas um rubor nas faces de matar de inveja.
—Era a
ultima nota do meu pudor de virgem!
—A tua
costureira fez o teu vestido a capricho e o teu cabeleireiro assentou-te a
grinalda como uma coroa de rainha. Agradou-me a tua elegância. E, porque não te
censurar? só não gostei de trazeres os olhos humildemente baixos... Faltava-te
o sol do teu olhar esplendido.
—Lisonjeira!
—Eu traria
os olhos bem iluminados, fascinando as multidões que se dominavam com a curiosidade
de ver-me...
—Tens razão.
Naquela hora, eu temia os olhos de tanta gente... sem saber que... mais
tarde...
—Dize...
dize...
—Dir-te-ei...
mais tarde... eu teria sobre o meu corpo olhares mais algozes...
—Deveras?
—Sim, minha
amiga! Não calculas o olhar de Arthur quando ele... Oh! Digo-te de mais! Perdoa
se te ofendo...
—Desculpo-te.
Senhora de mim, sei dispensar-te das leviandades que, ainda ha pouco, condenavas.
Onde puseste o teu véu?
—Guardei-o
já para oferenda a uma Santa.
—Quem t'o
tirou?
—A mamã...
Arthur conversava no salão com o papá e dois amigos retardatários... Sentia-me
alquebrada. Também já era alta hora da madrugada. Duas ou três, não sei.
—E o teu
vestido? Era primoroso...
—Está no armoire-à-glace...
—Muito
amarrotado?
—Não. Quando
o despi... chorei! Como é que uma mulher só se veste tão bem uma vez na
vida?!...
—Choraste,
Alexandrina?
—Sim.
—É de mau agouro.
Dizem que morrerá primeiro aquele que chora...
—Não sabia.
—Nem que
morrerá antes do outro o que se deitou por primeiro?
—Também não!
E por isso também serei eu quem morrerá antes...
—Ah! já
estavas deitada quando ele apareceu na alcova?
—Sim. Ele se
abeirou de mim e, segurando-me uma das mãos, tratou do sucesso das festas de
nosso casamento. Recapitulamos toda a seroada, desde as asperezas do juiz casamenteiro,
até às melifluidades de voz do sacerdote, quando fez a pratica sobre a
felicidade conjugal. Recompusemos a sociedade que aqui esteve. As danças, o
serviço de buffet, a cerimônia do
chá... Tudo se conservou. Ele dizia uma coisa, eu lembrava outra. Sorríamos-nos,
comentávamos, com seriedade, as incorreções dos outros...
—E o tempo
se passava...
—É exato,
Mimi. O tempo se escoava enganadoramente. Não sabes, porem, como foi oportuna a
nossa conversação. Quando estremecemos, ouviu-se o tiro das cinco horas...
—E então?
—Arthur
lembrou-se do cometa... Já o viste?
—Ainda não!
—Pois é
belo! Arthur mostrou-mo... Que lindo esteve ele na madrugada do meu casamento?!...
Se todos vissem o cometa como eu vi...
Interrompidas
por DONA CAROLINA, MIMI e ALEXANDRINA, dando-se as mãos, nervosamente, passaram
ao recinto da sala e entraram na conversação comum...
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Nota:
Almachio Diniz: "Mundanismos" (1911)
Almachio Diniz: "Mundanismos" (1911)
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Advertência:
Alguns termos inseridos neste conto podem apresentar sentidos obscuros, podendo ser o resultado de erros no processo de digitalização da obra ou mesmo termos específicos atreladas ao contexto histórico no qual viveu o autor. Assim, caso possa contribuir para o esclarecimento de algumas dessas dificuldades ortográficas, por gentileza entre em contato conosco, no e-mail: iba@ibamendes.com
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