AMORES NO
CLAUSTRO
Um ar tépido,
cheio de luzes meridionais, rico de aromas novos, instigador do sensualismo
mais humano e menos animal, era o excelente conforto da cela de FREI PATRÍCIO.
Um leito
acolchoado recebia em cheio a réstia do sol poente, e, de dedos enclavinhados,
um em frente do outro, o habitante do claustro e o seu afetuoso irmão de ordem,
FREI TOMÁZIO, palravam gostosamente de coisas alegres...
—Assim foi que me decidi, sem espanto dos
meus, e por uma resolução improvisada...
—Pois eu,
não! Luctei contra uma grosseira serie de vontades, e não venci: fui derrotado.
—Não posso
crer facilmente.
—É a verdade,
irmão Tomázio... Fiz como um cadáver que entra no sepulcro. Para aqui trouxe o
meu corpo, e, lá fora, borboleteando, sem parar, a minha alma... viveu sempre
muito longe das carnes que ela animava. Enquanto moço, nas minhas preces só o
nome de uma mulher viçava triunfante...
—Também a
mulher...
—Sim.
Preconceitos, preconceitos! A baronia estulta de uma família asfixiou sem dó a
ventura de duas almas... E eu de falar-te, inda hoje, tremo de cólera. Pudesse
eu e a vontade amorosa de Marina, por entre hinos e bendições, tê-la-ia levado,
não à cova, sublevando-se contra os pais, sim ao himeneu, triunfando o seu
amor. Desde que nos vimos, sem cuidados naquilo que outros apreçavam—a feeria
dos títulos nobiliárquicos—vivemos apenas pelas sugestões do sentimento que nos
venceu...
—Os teus lábios
tremem, irmão Patrício, as tuas pupilas se inflamam e olham por sobre nós para
tempos bem distanciados...
—Realmente!
Fuzilam-me eternamente os desejos da vingança que exerci contra mim mesmo,
enclausurando-me. Quando aqui cheguei, Marina vivia ainda, mas respirando
balões de oxigênio. Artifícios da ciência! E três dias depois, desta mesma
janela, vi passar, ali embaixo, naquela tortuosa e acidentada vereda, vi passar
o coche branco, portador do esquife em que desapareceu para sempre a matéria
que tanto amei... A vista anuviou-se-me e, balouçadas pela brisa, as rendas do
esquife me disseram um adeus aflitivo, como as despedidas de uns lenços muito
brancos, molhados de lagrimas... Sucumbi diante da falsa visão e esmaeci...
debruçado sobre aquele leito, onde chorei incansavelmente irado—Deus me perdoe!—como
o mais pecador dos homens...
—Tanto pode
o amor!
—A mola do
mundo, Frei Tomázio, é a mulher. Não há um burel aqui dentro que não seja
trazido por uma delas. E em tudo, como dizem corriqueira e profanamente os
franceses, chercher la femme... Por
ventura não professaste como os outros?
—Sem tirar
nem pôr na causa.
—Sempre
assim.
—Mas, tu
procuraste o claustro como um eleito do amor que te distinguiu entre os outros
homens e te elegeu o seu preferido.
—Ah! por
certo.
—Quem me
dera!
—E que te
faltou, Frei Tomázio?
—Justamente
o amor.
—Intrigas-me
deveras.
—Vou
contar-te, pois, a minha historia. Lembras-te de que professei mocinho?
—Se me
lembro!...
—Pois bem! O
meu acontecimento foi de alguns anos antes... Eu era menino, e se me dissessem
que o helianto foi obra da pretensão e do desabuso de Hefaestos querendo, como
um Deus, criar sóis e mais sóis, todo o credito eu daria, porque não tinha
discernimento para me salvar das tentações humanas...
—Que são as
verdadeiras tentações da serpente no Paraíso...
—Fazendo
estudos, eu ia, quotidianamente, para os cursos, como o carreiro que passe todo
o dia pela mesma estrada em busca de acendalhas e ramos para sustentar a
lareira aquecida e feliz... Tinha eu ambições de saber... Embriagavam-me os
livros, e neles mesmos comecei de ler as primeiras cousas de amor...
—E não lias
o Cântico dos Cânticos!
—Ah! não!
Fui sabendo que, como Eva fora criada para acompanhar o primeiro homem, a
mulher vivia para funcionar no amor. Os arrebatamentos vieram pouco a pouco. E
dei para olhar as raparigas com olhos de escaldo...
—Que
maganão!
—E não peco
porque te falo a mais pura verdade. No rebanho de nossas amizades havia uma
ovelhinha, que, por ser linda e mansa, recebia o cortejo dos mocinhos de minha
idade. Se as suas companheiras não tinham as calenturas de um amor, ela
abrasava na abundancia das pretensões exaltadas: todos à porfia lhe disputavam
a preferência... Tolamente eu era conduzido entre os fascinados pelo olhar da
moçoila cortejada.
—Estou vendo
que eras o preferido...
—Não sei,
porque não tive capacidade para aquilatar, bem como porque—e daqui se originou
a minha principal historia—troquei logo essa expectativa de amor bem aventurado
por uma efetividade de amor bem triste... Mas sei que os olhares dos meus
velhinhos caíam sobre nós dois como punhados de olorosos jasmins, quando eles
nos viam, quais dois noivos conscientes, em falações na varanda arborizada de
nossa casa, amorosamente iluminados pela lua...
—Bem feliz
que ias para a vida entrando, irmão Tomázio?
—Devo
crer-te, muito mais ainda quanto entre os que mais choraram a minha desdita foi
ela a que mais lagrimas chorou... Ora, se a intuição de amar crescia e eu me
tentava a ser amado, olhos outros, mais fulgentes e chispantes, me sensualizaram
todo e a carne arvorou-se em maior do que o sentimento...
—O pecado!
—Verdadeiramente,
o pecado! Nas idas e vindas dos meus cursos, às vezes ainda peando cigarras e
apedrejando, com rudes instintos, os inofensivos gaturamos, fui prendendo-me às
ardências das esbraseadas pupilas de uma mulher fácil... A principio, quando o
seu olhar incidia sobre mim, eu cerrava os olhos, abaixava a fronte, e, sem o
querer, pensava nas ternuras da outra. Nada mais. Os dias repetiam-se e as cenas
mudavam-se, crescendo as investidas e diminuindo a resistência. Ao depois, os
meus olhares chocavam-se com os da agressora, eu sentia uma purpuridão nas
faces, mas incólume prosseguia o meu caminho... Mais tempo, e duas, três,
quatro vezes, voltava-me para trocar sorrisos... Em casa, a presença da outra,
começou de aborrecer-me. Á noite, por sobre as paginas abertas dos meus livros,
dançavam cabrioladamente as imagens das duas mulheres. E eu me decidia
fragorosamente pela menos conhecida. Um dia, notei que os lábios da estranha se
moviam. Nada percebi, no entanto. Que ela falava, eu estava certo. Nas
passagens seguintes, com os olhares e os sorrisos, ouvi um termo esquisito.
Duas silabas apenas, e, se não te ofendo nem abuso de tua condescendência,
irmão Patrício, dir-to-ei já...
—Faço mesmo
questão de sabê-lo...
— Já que
queres ouvir-me, continuarei...
—Continua...
—A
deslumbrante mulher dizia-me apenas: «Tico»...
—Olá!...
Olha que eu velho assim nunca ouvi esse vocábulo...
—Nada sei
explicar-te, Frei Patrício, senão que corri os dicionários dos meus estudos, e
que todos eles me negaram o conhecimento do termo convencional. Valeram-me as
amizades colegiais, e um condiscípulo investigador, depois de algumas pesquisas
fora da convivência dos colegas, soprou-me segredadamente: «Tico é um
convite... E quando ouvires, responde taco...» Corei diante da revelação e
maldei de tudo. O meu primeiro impulso foi abandonar o meu caminho habitual
para me furtar às seduções de Almira...
—Que belo
nome, e lendário!
—Tive,
porem, de ceder à contingência dos fatos. Não era possível andar por outras
ruas sem alongar o meu viático, diante do que desisti da ideia e afrontei a
tentação. Com o tempo fui cedendo. E, um belo dia, como se diz lá fora,
escorreguei... «Tico!», disse-me ela, e eu lhe opus murmuradamente quase:
«Taco!» Em resposta, ouvi: «Amanhã!» Que noite, Frei Patrício! Se ha caldeiras
para queimar almas, nós as experimentamos quando fazemos a espera de alguma
coisa. Não dormi, confesso. E, para encurtar as razões, só acordei, efetivamente,
quando, advertido por ela de que lá iria chegar o seu homem, me vi escondido
por detrás e entre panos e panos de sacos vazios. Desse esconderijo ouvi as
suspeitas do esposo aparecido, suspeitas que cresceram e motivaram uma busca
nos panos que me ocultavam. Que criatura perversa! Foi às bastonadas, meu
Reverendo, que o bisonho animal me arrancou de debaixo das pilhas de sacos, às
bastonadas, Frei Patrício...
—Ah!...
ah!... ah!... ah!
—Não rias,
Irmão!
—Não te
zangues, Frei Tomázio. Não me posso conter... A tua historia é alegre... Ah!...
ah!... ah!... ah!...
—Nem sei
como de maus tratos não me acabaram naquela hora furiosa... E quanto tempo me
esbarrei inutilizado sobre o leito... nem me lembro mais!
—Pudera!... Ah! ah! ah! ah!...
—Aliás, não
foi tudo, pois que, tempos depois, restabelecido já, e voltando aos cruzeiros
dos meus estudos, a demônia me repetia: «Taco?»... e eu a repelia instintivamente...
«Nem tico, nem taco... nem lá dentro do teu saco...»
—É boa, é boa!...
Ah!... ah!... ah!... ah!...
—Em
seguida...
—Sim...
—...
senti-me humilhado, porque, por toda a parte, a mofa dos conhecidos me estigmatizava
com o escândalo, e sofri, abrasadoramente. Ninita, escandalizada com a minha
queda, definiu-se por outro, que a recebeu como esposa perante Deus! Por tudo
isto, tive nojo de mim mesmo... O mundo era um tédio... Então pensei no
vicio...
—Misericórdia!
—Mas, não
era?... Para abafar uma miséria moral, só outra maior... ou o passo que dei...
A brônzea
sineta da confraria, não se retendo na missão avisadora, chamava a Ordem para a
humilde refeição da noite.
E quando FREI
PATRÍCIO chegou ao salão, na companhia de FREI TOMÁZIO, já se liam, enfaticamente,
as consoantes orações da hora.
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Nota:
Almachio Diniz: "Mundanismos" (1911)
Almachio Diniz: "Mundanismos" (1911)
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Advertência:
Alguns termos inseridos neste conto podem apresentar sentidos obscuros, podendo ser o resultado de erros no processo de digitalização da obra ou mesmo termos específicos atreladas ao contexto histórico no qual viveu o autor. Assim, caso possa contribuir para o esclarecimento de algumas dessas dificuldades ortográficas, por gentileza entre em contato conosco, no e-mail: iba@ibamendes.com
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