terça-feira, 17 de setembro de 2013

Almachio Diniz: "De como o Avarento Morreu..."

DE COMO O AVARENTO MORREU...
Quarto humilde, úmido e infecto, mal iluminado, e sem moveis:—uma enxerga, e sobre esta, em inquieta agonia, MANUEL CARLOS proferia blasfêmias.
Ao seu lado, a NEGRA, que era uma amante retinta, carnuda e fortalecida com as sabugens da avareza, acompanhava com os olhos cautelosos a agitação do moribundo angustiado.
Doutro cômodo da mansarda, partia um movimento suspeito, mal percebido, a principio, pelo enfermo, que entrava numa ultima reação da vida contra a morte.
Nesta hora, da doença, por entre as chocantes palavras de MANUEL CARLOS, ouvia-se, também, o rim-rim-rim dos seus dentes que rangiam como uma lima ativa sobre um pedaço de ferro...
—E creio que me vou mesmo! Nem sei como se morre assim, quando muito dinheiro ainda eu poderia acumular dentro do meu cofre. A vida é um pedaço de ouro comprado com um milhão de moedas... A morte é uma ladra que nos furta, para esbanjar entre muitos, o ouro que tanto custa a reunir... Sou rico! Digo-o com um cordial prazer. Também trabalhei como uma alma possessa. Não houve domingo nem dia santo, que me dessem descanso, à chuva e ao sol, alta madrugada e avançada noite... Rim... rim... rim... rim...
—Como ele range os dentes?!...
—Todo o dia, a mesma coisa... Rompendo a madrugada, ia para as cavalariças despertar aqueles miseráveis todos que dormiam, como massas de feno, nos recantos das manjedouras. Ás vezes, chovia como um dilúvio. E eu, com o corpo quente da cama, cortava o pátio, metido no meu capote de lã, e, menos feliz do que os meus assalariados que ainda dormiam, tiritava, muitas vezes, de frio. A atividade, porem, dava-me calor e forças. Ora, muito pequeno comecei a vida nas terras da Beira, de onde sair, num dia de inverno, ha mais de trinta anos. Nesse dia, a avozinha e a mãe-Geralda levaram-me até à casa do moço que me trouxe para aqui. Ah! Deus lhe dê o reino dos céus, já que na terra eu nada lhe pude dar... Rim... rim... rim... rim... Bela pessoa, generoso ao desperdício... Que barulho é esse que ouço de instante a instante?
—São os trabalhadores no terreiro.
—Saíram hoje os veículos?
—Saíram todos.
—Mas, esse ruído parece-me muito dentro de casa.
—Talvez os cães...
—Não me veio ver hoje o Tupi. Tem sido esse canzarrão o meu maior amigo. Todas as manhãs salta sobre o meu leito e acaricia-me as mãos. Por onde andará ele que hoje se esqueceu de mim?
—Prendi-o, inda ha pouco. Espera-se o medico, e...
—Nem pense nisso: o pobre animal se ladra não morde. Vigia-me a casa e desconhece os estranhos.
—Ladra e assusta.
—Avisa-me de que desconhecidos penetraram neste lar. Fazem-me falta as suas lambarices. Tenho-o desde pequenino, ao desmamar-se. Ha oito anos. E sempre tive o pensamento de fazer-lhe o enterro. Se ele ouvia, de longe mesmo, o tropel do animal que eu montava, ia correndo buscar-me em meio de caminho. Nunca encontrei uma criatura que se lhe comparasse em fidelidade e presteza. Tudo uma cambada! Nem sei... Rim... rim... rim... rim... Nem sei como se têm feito por aí afora os meus serviços... E hoje é o ultimo do mês. Se não se procurar, a terrível corja não paga. Nem tenho uma pessoa a quem confie esse serviço. Neste mundo só se encontram gatunos e ladrões. Um honesto, como eu, é uma realidade rara! Em tudo fui roubado, até na saúde. Dos poucos, das moedas de cobre, os simples trocos e diferenças nas compras, tu te assenhoreavas, porque me dizias que eram economias. Na minha mesa, nunca puseste um doce, uma fruta melhor. Era todo o santo dia a mesma coisa... Como me arrependo de ter deixado nas tuas mãos as economias que deviam ter voltado ao meu capital, porque dele se despediam para sempre... Rim... rim... rim... rim... Como se acaba mesquinhamente uma existência operosa!... Ouço novos ruídos... Só me parece que os de agora são dentro de casa...
—Pois quem seria?
—Sei lá... Ouço coisas que só me parecem na sala da frente. Vai ver se é alguém...
—Nem precisa. A porteira está fechada, e abrindo-se ela a campainha dá sinal. Ao depois, o velho Thomé trata na estribaria dos animais em que montas...
—Vai tudo muito bem, mas não me posso conformar é com esta vida de cama. Seis dias de doença, e estou derreado como uma velha mangueira... Inda assim, considero-me bastante feliz. Não devo nada a ninguém. E, a mim, todos me devem. Depois de amanhã, vence-se uma letra de um devedor: ha de querer pagar-me os juros de quinze por cento por novo semestre... Mas ele estará enganado. Se quiser reformar, os juros crescerão. Agora só darei dinheiros a dezoito ao mês... Serviu? Façamos o negocio. Não serviu, passe muito bem... Rim... rim... rim... rim... Acabou-se o tempo em que eu era tolo. Esta casa deu-me uma espera de seis anos. Emprestei o dinheiro e o dono fez a hipoteca por três anos. Ao depois de vencido o seu compromisso, levou engabelando-me por mais três anos... Era uma conversa fiada hoje, uma promessa amanhã, e, nada, nem juros novos, nem capital velho... Se eu não metesse advogado... Rim... rim... rim... rim... Eu sempre segui o conselho de que «poupa e os santos te ajudarão»... Não ganhei nunca quatro vinténs de que não guardasse três... Não te estou dizendo? Esse barulho é dentro de casa...
—Desta vez não ouvi nada.
—Então, estás surda. Pareceu-me que se abria uma porta e que gente andava. Rim... rim... rim... rim...
—Não sei que espécie de gente...
—Realmente posso enganar-me.
— Já te convences? A esta hora, nem os trabalhadores estão aqui... Ah! Esqueci-me de dizer-te: os cavouqueiros não foram hoje à pedreira...
—Miseráveis! Preguiçosos! Nem me vendo neste estado, esses malvados deixam de consumir-me. Um dia de descanso numa pedreira, é um prejuizão... Rim... rim... rim... rim...
—Fiz ver tudo isto a eles.
—E porque não trabalharam?
—Porque morreu a moça do mestre, e este não veio...
—Não digo?!... Foi alguma imperatriz, certamente, que morreu. Pois lá na minha terra, é que se sabe trabalhar... Lá trabalhariam até à hora do enterro. Aqui encontram a razão para muitos dias de ócio. Se eu estivesse bom, a esta hora teria tocado todos eles para a rua. Rim... rim... rim... rim... Não gosto de vadios. Fui homem que, numa vida inteira, não teve uma hora de vadiação. Sempre comi de chapéu na cabeça e esporas nas botinas. Por isso guardei meia-dúzia de contos. Digo assim meia-dúzia, mas, ao certo, nem sei quantas meias-dúzias guardei... Trabalha-se e guarda-se... Ouviste agora?
—Sim.
—E então?
—Não sabes o que foi?
—Não sei...
—O Tupi que esbarrou numa cadeira. Tranquei-o na sala de dentro, e aos outros mandei pôr as correntes...
—Vai soltar o Tupi. É inofensivo, tanta quanto é leal e cuidadoso. Nunca mereceu um castigo. Vai soltá-lo!
—Deixa-o preso. O doutor assusta-se sempre que chega e o animal avança sobre ele...
—É uma prova de lealdade.
—Que incomoda aos estranhos. Porque não bebes o leite? Queres?
—Leite?!... Ontem te preveni que leite é luxo e que não posso com essas despesas... Ainda o compraste hoje?
—O doutor mandou...
—Rim... rim... rim... rim...
—Ao depois, em caso de doença não há desperdício...
—Ora, deixa-me! Estamos a gastar de mais a mais. É o leite, é a botica, é o doutor... E melhoras? Por um óculo. Sinto-me cada vez pior. Nem das pernas sou senhor... Há três dias ainda eu me podia sentar. Hoje... nem recostar-me! Tenho quilos de chumbo nas pernas... Sei que vou morrer, se a coisa continua assim... Rim... rim... rim... rim... Fui sempre um homem conservado e indisposto para divertimentos. Não sei como a minha saúde estragou-se... Vai soltar o cachorro! Os seus movimentos inquietam-me. Já atirou outra coisa ao chão...
—Deixa o cachorro preso.
—Pode arrebentar mais alguma coisa, e serão novas despesas para mim... Que aflição sinto agora!
—Bebe o leite!
—Dá-me.
— Já se devem trinta medidas...
—Como?
—Trinta medidas do leite: seis dias a cinco medidas, três de manhã, e duas à tarde...
—Que desperdício! Não digo! Se levar aqui um mês, o leite, o medico e a botica, mais os relaxamentos dos trabalhadores me terão reduzido à miséria... Sabes que mais? Não quero mais leite... Suprima-se desde hoje...
—E com que te alimentas?
—Com água... É intolerável! Trabalhar uma vida inteira para perder tudo em oito dias de cama! Não é possível. Não sou rico, não! Toca a poupar...
—Sem o leite não poderás passar...
—Passo, sim! Quem foi que disse que não poderei?
—O medico.
—Pois passo, sim. Sem dinheiro é que nada é possível. Parece-me que se combinaram todos em roubar-me antes da morte... Tenham paciência um pouquinho! Deixem-me fechar os olhos primeiro... Rim... rim... rim... rim... Está muito direito!... Trinta medidas de leite em seis dias! Nem sei se tomei porção igual em todo o resto da vida! É ter ganho uma fortuna em mais de trinta anos para acabá-la bebendo leite, pagando medico e sustentando boticas... Não quero mais leite! Rim... rim... rim... rim... Aborrece-me a vida, porque tudo nela é má fé e plano de roubo... Ah!... Lá se arrebentou tudo!... Ainda mais esta em cima: o cão preso, por um capricho, para quebrar os moveis e as louças... Mas, esse ruído que agora ouvi muito bem...
—Foi a mesma coisa...
—... não foi lá dentro...
—Foi, sim!
—Pareceu-me na sala da frente...
—Não cuidarás de outra coisa?
—E que seria o que caiu?
—Uma bacia de folhas...
—Não!... não!... não!...
—Que queres fazer?
—Levanta-me aqui...
—Aquieta-te, homem!... O medico aconselha-te descanso e tu és pior do que um menino...
—Aquele barulho... Levanta-me aqui...
—Para que? não me dirás?
—Quero recostar-me... Devagarinho, mulher... Pegas no meu corpo como se pegasses num pedaço de pau...
—Assim?
—Devagarzinho, sempre... Tira aqui o travesseiro...
—Queres muita coisa também...
—Não me fazes favor... Não preciso de ninguém contra a vontade... Tenho dinheiro para ser bem servido, e gosto que me tenham obediência...
—Estás muito impaciente...
—Tira o travesseiro...
—Pronto. Queres mais alguma coisa?
—As minhas chaves... As minhas chaves... Ah!... Não estão aqui... Bem sei agora!... O meu cofre... o meu dinheiro... Estou rouba...
 E caiu apoplexiado com o conhecimento do roubo, para morrer, minutos depois, quando as chaves de seu cofre, voltavam ao seu esconderijo, como verdadeiras inutilidades...

---
Nota:
Almachio Diniz: "Mundanismos" (1911)
---
Advertência:
Alguns termos inseridos neste conto podem apresentar sentidos obscuros, podendo ser o resultado de erros no processo de digitalização da obra ou mesmo  termos específicos  atreladas ao contexto histórico no qual viveu o autor. Assim, caso possa contribuir para o esclarecimento de algumas dessas dificuldades ortográficas, por gentileza entre em contato conosco, no e-mail: iba@ibamendes.com

Nenhum comentário:

Postar um comentário