DE COMO O
AVARENTO MORREU...
Quarto
humilde, úmido e infecto, mal iluminado, e sem moveis:—uma enxerga, e sobre
esta, em inquieta agonia, MANUEL CARLOS proferia blasfêmias.
Ao seu lado,
a NEGRA, que era uma amante retinta, carnuda e fortalecida com as sabugens da
avareza, acompanhava com os olhos cautelosos a agitação do moribundo
angustiado.
Doutro
cômodo da mansarda, partia um movimento suspeito, mal percebido, a principio,
pelo enfermo, que entrava numa ultima reação da vida contra a morte.
Nesta hora,
da doença, por entre as chocantes palavras de MANUEL CARLOS, ouvia-se, também,
o rim-rim-rim dos seus dentes que rangiam como uma lima ativa sobre um pedaço
de ferro...
—E creio que
me vou mesmo! Nem sei como se morre assim, quando muito dinheiro ainda eu
poderia acumular dentro do meu cofre. A vida é um pedaço de ouro comprado com
um milhão de moedas... A morte é uma ladra que nos furta, para esbanjar entre
muitos, o ouro que tanto custa a reunir... Sou rico! Digo-o com um cordial
prazer. Também trabalhei como uma alma possessa. Não houve domingo nem dia
santo, que me dessem descanso, à chuva e ao sol, alta madrugada e avançada
noite... Rim... rim... rim... rim...
—Como ele
range os dentes?!...
—Todo o dia,
a mesma coisa... Rompendo a madrugada, ia para as cavalariças despertar aqueles
miseráveis todos que dormiam, como massas de feno, nos recantos das manjedouras.
Ás vezes, chovia como um dilúvio. E eu, com o corpo quente da cama, cortava o
pátio, metido no meu capote de lã, e, menos feliz do que os meus assalariados
que ainda dormiam, tiritava, muitas vezes, de frio. A atividade, porem, dava-me
calor e forças. Ora, muito pequeno comecei a vida nas terras da Beira, de onde
sair, num dia de inverno, ha mais de trinta anos. Nesse dia, a avozinha e a mãe-Geralda
levaram-me até à casa do moço que me trouxe para aqui. Ah! Deus lhe dê o reino
dos céus, já que na terra eu nada lhe pude dar... Rim... rim... rim... rim...
Bela pessoa, generoso ao desperdício... Que barulho é esse que ouço de instante
a instante?
—São os
trabalhadores no terreiro.
—Saíram hoje
os veículos?
—Saíram
todos.
—Mas, esse ruído
parece-me muito dentro de casa.
—Talvez os
cães...
—Não me veio
ver hoje o Tupi. Tem sido esse canzarrão o meu maior amigo. Todas as manhãs
salta sobre o meu leito e acaricia-me as mãos. Por onde andará ele que hoje se
esqueceu de mim?
—Prendi-o,
inda ha pouco. Espera-se o medico, e...
—Nem pense
nisso: o pobre animal se ladra não morde. Vigia-me a casa e desconhece os
estranhos.
—Ladra e
assusta.
—Avisa-me de
que desconhecidos penetraram neste lar. Fazem-me falta as suas lambarices.
Tenho-o desde pequenino, ao desmamar-se. Ha oito anos. E sempre tive o
pensamento de fazer-lhe o enterro. Se ele ouvia, de longe mesmo, o tropel do
animal que eu montava, ia correndo buscar-me em meio de caminho. Nunca
encontrei uma criatura que se lhe comparasse em fidelidade e presteza. Tudo uma
cambada! Nem sei... Rim... rim... rim... rim... Nem sei como se têm feito por aí
afora os meus serviços... E hoje é o ultimo do mês. Se não se procurar, a terrível
corja não paga. Nem tenho uma pessoa a quem confie esse serviço. Neste mundo só
se encontram gatunos e ladrões. Um honesto, como eu, é uma realidade rara! Em
tudo fui roubado, até na saúde. Dos poucos, das moedas de cobre, os simples
trocos e diferenças nas compras, tu te assenhoreavas, porque me dizias que eram
economias. Na minha mesa, nunca puseste um doce, uma fruta melhor. Era todo o
santo dia a mesma coisa... Como me arrependo de ter deixado nas tuas mãos as
economias que deviam ter voltado ao meu capital, porque dele se despediam para
sempre... Rim... rim... rim... rim... Como se acaba mesquinhamente uma existência
operosa!... Ouço novos ruídos... Só me parece que os de agora são dentro de casa...
—Pois quem
seria?
—Sei lá...
Ouço coisas que só me parecem na sala da frente. Vai ver se é alguém...
—Nem
precisa. A porteira está fechada, e abrindo-se ela a campainha dá sinal. Ao
depois, o velho Thomé trata na estribaria dos animais em que montas...
—Vai tudo
muito bem, mas não me posso conformar é com esta vida de cama. Seis dias de
doença, e estou derreado como uma velha mangueira... Inda assim, considero-me
bastante feliz. Não devo nada a ninguém. E, a mim, todos me devem. Depois de amanhã,
vence-se uma letra de um devedor: ha de querer pagar-me os juros de quinze por
cento por novo semestre... Mas ele estará enganado. Se quiser reformar, os
juros crescerão. Agora só darei dinheiros a dezoito ao mês... Serviu? Façamos o
negocio. Não serviu, passe muito bem... Rim... rim... rim... rim... Acabou-se o
tempo em que eu era tolo. Esta casa deu-me uma espera de seis anos. Emprestei o
dinheiro e o dono fez a hipoteca por três anos. Ao depois de vencido o seu
compromisso, levou engabelando-me por mais três anos... Era uma conversa fiada
hoje, uma promessa amanhã, e, nada, nem juros novos, nem capital velho... Se eu
não metesse advogado... Rim... rim... rim... rim... Eu sempre segui o conselho
de que «poupa e os santos te ajudarão»... Não ganhei nunca quatro vinténs de
que não guardasse três... Não te estou dizendo? Esse barulho é dentro de casa...
—Desta vez
não ouvi nada.
—Então,
estás surda. Pareceu-me que se abria uma porta e que gente andava. Rim...
rim... rim... rim...
—Não sei que
espécie de gente...
—Realmente
posso enganar-me.
— Já te
convences? A esta hora, nem os trabalhadores estão aqui... Ah! Esqueci-me de
dizer-te: os cavouqueiros não foram hoje à pedreira...
—Miseráveis!
Preguiçosos! Nem me vendo neste estado, esses malvados deixam de consumir-me.
Um dia de descanso numa pedreira, é um prejuizão... Rim... rim... rim... rim...
—Fiz ver
tudo isto a eles.
—E porque
não trabalharam?
—Porque
morreu a moça do mestre, e este não veio...
—Não
digo?!... Foi alguma imperatriz, certamente, que morreu. Pois lá na minha
terra, é que se sabe trabalhar... Lá trabalhariam até à hora do enterro. Aqui
encontram a razão para muitos dias de ócio. Se eu estivesse bom, a esta hora
teria tocado todos eles para a rua. Rim... rim... rim... rim... Não gosto de
vadios. Fui homem que, numa vida inteira, não teve uma hora de vadiação. Sempre
comi de chapéu na cabeça e esporas nas botinas. Por isso guardei meia-dúzia de
contos. Digo assim meia-dúzia, mas, ao certo, nem sei quantas meias-dúzias
guardei... Trabalha-se e guarda-se... Ouviste agora?
—Sim.
—E então?
—Não sabes o
que foi?
—Não sei...
—O Tupi que
esbarrou numa cadeira. Tranquei-o na sala de dentro, e aos outros mandei pôr as
correntes...
—Vai soltar
o Tupi. É inofensivo, tanta quanto é leal e cuidadoso. Nunca mereceu um
castigo. Vai soltá-lo!
—Deixa-o
preso. O doutor assusta-se sempre que chega e o animal avança sobre ele...
—É uma prova
de lealdade.
—Que
incomoda aos estranhos. Porque não bebes o leite? Queres?
—Leite?!...
Ontem te preveni que leite é luxo e que não posso com essas despesas... Ainda o
compraste hoje?
—O doutor
mandou...
—Rim...
rim... rim... rim...
—Ao depois,
em caso de doença não há desperdício...
—Ora,
deixa-me! Estamos a gastar de mais a mais. É o leite, é a botica, é o doutor...
E melhoras? Por um óculo. Sinto-me cada vez pior. Nem das pernas sou senhor...
Há três dias ainda eu me podia sentar. Hoje... nem recostar-me! Tenho quilos de
chumbo nas pernas... Sei que vou morrer, se a coisa continua assim... Rim...
rim... rim... rim... Fui sempre um homem conservado e indisposto para
divertimentos. Não sei como a minha saúde estragou-se... Vai soltar o cachorro!
Os seus movimentos inquietam-me. Já atirou outra coisa ao chão...
—Deixa o
cachorro preso.
—Pode
arrebentar mais alguma coisa, e serão novas despesas para mim... Que aflição
sinto agora!
—Bebe o
leite!
—Dá-me.
— Já se
devem trinta medidas...
—Como?
—Trinta
medidas do leite: seis dias a cinco medidas, três de manhã, e duas à tarde...
—Que desperdício!
Não digo! Se levar aqui um mês, o leite, o medico e a botica, mais os
relaxamentos dos trabalhadores me terão reduzido à miséria... Sabes que mais?
Não quero mais leite... Suprima-se desde hoje...
—E com que
te alimentas?
—Com água...
É intolerável! Trabalhar uma vida inteira para perder tudo em oito dias de
cama! Não é possível. Não sou rico, não! Toca a poupar...
—Sem o leite
não poderás passar...
—Passo, sim!
Quem foi que disse que não poderei?
—O medico.
—Pois passo,
sim. Sem dinheiro é que nada é possível. Parece-me que se combinaram todos em
roubar-me antes da morte... Tenham paciência um pouquinho! Deixem-me fechar os
olhos primeiro... Rim... rim... rim... rim... Está muito direito!... Trinta
medidas de leite em seis dias! Nem sei se tomei porção igual em todo o resto da
vida! É ter ganho uma fortuna em mais de trinta anos para acabá-la bebendo
leite, pagando medico e sustentando boticas... Não quero mais leite! Rim...
rim... rim... rim... Aborrece-me a vida, porque tudo nela é má fé e plano de
roubo... Ah!... Lá se arrebentou tudo!... Ainda mais esta em cima: o cão preso,
por um capricho, para quebrar os moveis e as louças... Mas, esse ruído que
agora ouvi muito bem...
—Foi a mesma
coisa...
—... não foi
lá dentro...
—Foi, sim!
—Pareceu-me
na sala da frente...
—Não
cuidarás de outra coisa?
—E que seria
o que caiu?
—Uma bacia
de folhas...
—Não!...
não!... não!...
—Que queres
fazer?
—Levanta-me
aqui...
—Aquieta-te,
homem!... O medico aconselha-te descanso e tu és pior do que um menino...
—Aquele
barulho... Levanta-me aqui...
—Para que?
não me dirás?
—Quero
recostar-me... Devagarinho, mulher... Pegas no meu corpo como se pegasses num
pedaço de pau...
—Assim?
—Devagarzinho,
sempre... Tira aqui o travesseiro...
—Queres
muita coisa também...
—Não me
fazes favor... Não preciso de ninguém contra a vontade... Tenho dinheiro para
ser bem servido, e gosto que me tenham obediência...
—Estás muito
impaciente...
—Tira o
travesseiro...
—Pronto.
Queres mais alguma coisa?
—As minhas
chaves... As minhas chaves... Ah!... Não estão aqui... Bem sei agora!... O meu
cofre... o meu dinheiro... Estou rouba...
E caiu apoplexiado com o conhecimento do
roubo, para morrer, minutos depois, quando as chaves de seu cofre, voltavam ao
seu esconderijo, como verdadeiras inutilidades...
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Nota:
Almachio Diniz: "Mundanismos" (1911)
Almachio Diniz: "Mundanismos" (1911)
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Advertência:
Alguns termos inseridos neste conto podem apresentar sentidos obscuros, podendo ser o resultado de erros no processo de digitalização da obra ou mesmo termos específicos atreladas ao contexto histórico no qual viveu o autor. Assim, caso possa contribuir para o esclarecimento de algumas dessas dificuldades ortográficas, por gentileza entre em contato conosco, no e-mail: iba@ibamendes.com
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