AO DESPIR UM
PIERROT
A noite,
lunarmente clara, envolvia em prata o recinto virginal, em que, sem aceder ao
sono, CHRISTINA se divertia, mostrando ao astro lúbrico os tons róseos de sua
carnação perfeita como se talhada em mármore rosado e úmido.
Aquele
silencio luarento povoava as sombras de tétricas visões; mas sofrendo o conflito
das ideias de uma traição de NARCISO e da lealdade perquiridora de STELA, a
desacordada mulher caprichou de não dormir enquanto a espiona não tornasse do
baile à fantasia.
—Reconheceu-te,
Stela?
—Como me
reconhecer?... Quem te disse estar ele no baile?
—Não o
viste?
—Compreendo-te,
agora; empolgou-te a idéia de que Narciso estaria no baile, e, escrava dessa suposição,
criaste todo um sistema de desconfianças, que começaram de traduzir-se, muito
naturalmente, naquela tua frase.
—Viste-o?
—Vi-o.
Porque arregalas deste modo os olhos? Não esperavas esta noticia?
—Esperava.
Mas, como todo o mundo que espera a nova de um desastre com uma pontinha de
esperança em contrario, supus sempre que não pusesses os olhos sobre ele.
Embora traída, eu quereria não ser sabedora do mal...
—Arrependo-me
de ter sido exata. E prudente, Christina, que te não obstines em agravar o
acaecido. Não remediarás o mal, não é assim? Pois, coração à larga. Narciso
foi. Eu o vi. Medi-lhe as ações. Acompanhei-o por toda a parte. E, nem sequer,
ele maldou de que uma pierrot o acompanhasse.
Se tu lhe falas, terás de dizer-lhe quem foi espionar-lhe os passos de homem
livre...
—É o que te
parece: livre?...
—Pois não é
livre Narciso?
—Digo-te que
não!
—O teu noivo
não tem a liberdade comum a todos os homens do mesmo estado?
—Repito-te
que não.
—Pois, minha
amiga, para o meu sentir, todos os noivos, longe das vistas da mulher amada,
ficam sendo o que são: homens solteiros...
—Narciso difere
dos outros...
—Ufa!...
Christina!... Vou tirando o pierrot
que me acalora as carnes...
—O noivado é
um começo de intimidades, que se distendem, mais ou menos, conforme as razões
de ser do amor vigiado. Naquele avarandado semi-escuro, onde passamos todas as
noites, por isso mesmo que estamos assegurados na nossa posição, com a possível
presença imediata de todos os de casa, as nossas intimidades seguem uma derrota
que me dá o direito de exigir de Narciso maiores fidelidades do que tu
pensas...
—Olha,
Christina, como o cetim vermelho desbotou e nodoou rubramente o colete...
Oh!... envermelheceu-me o colo também... Que fazenda ordinária, esta!
—Isto
larga... Dois meses, depois, de noivado, Stela, as confidencias das almas
passaram às do corpo... Ah!... O primeiro beijo ainda foi mais cedo... Tinha eu
três dias de pedida... Na hora do adeus, deserta a rua, os seus lábios roçaram
sobre os meus olhos, e os seus bigodes produziram-me um frisson nas carnes, com
o qual eu me teria entregue ao mais terroroso dos homens. E Narciso, pelos estremecimentos
de meus dedos que ele segurava entre os seus, sorriu—um sorriso mais lindo do
que um raio de sol!—e, sem o querermos, talvez, por certo instintivamente, os
nossos lábios se encontraram...
—Vê,
Christina, como ficaram as minhas calças...
—Desbotou
nelas o cetim?
—Alguma
coisa. A cor amarela é mais fixa do que a vermelha... Mas, estão para ser
exprimidas... Que sudorífico!
—Despe-te
logo. Pareces, com os teus costumes, que os teus olhos são de um homem que
acompanhasse o desnudamento dos segredos de teu corpo... Avia-te, afim de que
me contes o que viste...
—Dir-te-ei
centos de coisas novas...
—Apeteço o
conhecimento do que sabes. É uma infelicidade ter-se um pai, como o meu, que se
indignaria contra mim, tolamente, se soubesse que eu fora a um baile público
espionar os desvarios de meu noivo... Ah!... Como eu seria venturosa, se
pudesse ir, como tu, a toda a parte que cobiço...
—Nem tu
calculas palidamente o que por lá se vive...
—Apressa-te,
Stela!
—Acaba,
primeiramente, o que contavas... Não quero perder a boa hora de confidencias
que inauguraste...
—Pouco mais
tenho para te dizer... Depois do primeiro beijo, os contatos... Em seguida, as
mutuas confianças, mais um arregaçamento hoje, mais uma ternura amanhã... Um
dia, porém, por mais que eu lhe resistisse, desejou ver-me o começo das
pernas... Intimidades, Stela, intimidades, próprias, comuns e infalíveis entre
todos os noivos... Eram elas que me garantiam, até hoje, a constância de
Narciso, e, quando vejo, como agora, que o que lhe faço já se torna pouco para
o prender na fidelidade acordada, adianto-lhe um pouco mais, sem contudo deixar
que ele perceba o manejo de fazer crescerem as concessões, na medida em que
venha o seu enfartamento pelas anteriores... Conta, agora, o que tu viste...
—Deitemo-nos,
primeiro... A fadiga luxuriosa me alquebra os membros e o corpo quer
distender-se nervosamente num leito macio...
—E onde
ficou Alberto?
—O meu
primo?
—Sim.
—Deixou-me
ao entrar aqui. Pela nossa compostura fomos dois pierrots da maior sensação! Nem calculas como é deliciosa a
companhia do meu primo nestes momentos... Ao depois, relembrou-me, com um
calculado jeito, pelo caminho, tudo quanto mais impressionou os meus sentidos.
Soube corresponder à minha excitação, não cometendo maiores pecados do que me
beijar nas passagens mais sombrias das ruas...
—Invejo-te,
Stela!
—Bem
poderias ter ido...
—Qual nada!
—Entrei e
sair sem que teu pai desse tento, pois não foi?
—Isto é
fácil para ti...
—Procurou-te
o teu pai durante a minha ausência?...
—Não!
—Aí está!
Tinhas ido comigo e seriamos duas a comentar o que víssemos... Lá estava
Narciso... Foi um dos juízes no julgamento do baile. Custei a topar com ele. Só
em meio da festa deparei com ele numa das banquinhas do buffet. Mais de vinte homens e mulheres...
—Mulheres, também?
—E então? Tu
pensas que haverá quem resista à solidão naquele caos de sensações estranhas? O
Lourival, marido da Conchinha, mais o Ramalho, casado com a Lucinda, lá
estavam, cada qual com a sua mascarada...
—Narciso também?
—Não te
espantes senão se eu te disser que ele era o único que não tinha uma mulher
fantasiada ao seu flanco...
—Como isto
me incomoda! Quando o vi, aqui, promover o arrufo, pensei logo na traição.
Aquele semblante enfarruscado não era sincero...
—Ao seu lado
estava uma écuyère italiana: deves
gabar-te do gosto de teu noivo. Não se acompanha de mulher feia. É serio...
—Era bonita
a que o seguia?
—Linda,
Christina: mignon, alva, loura, e, com um arrebatador decote, exibindo um colo
mais branco do que um pedaço de neve, do meio da qual, como uma abelha sobre
uma pétala de gardênia, um negro sinal era tido como mascote...
— Já agora
me penso feliz por não ter ido lá.
—Que teria
se tu tivesses ido?
—Não me
conteria.
—Ora,
Christina! Serias a primeira a deixar tudo para veres como o teu noivo sabe
gozar uma mulher. Não dirias nem uma palavra, mas lhe acompanharias a pessoa
como a sua sombra. Quando não te agradasse fecharias os olhos. Vi-o, por
exemplo, encher a boca de champagne...
—Nada mais
natural.
—É o teu erro.
Quem não sabe é como quem não vê. Pensas, então, que ele tomou a bebida de
dentro da taça?
—Sim.
—Pois não! A
divette foi quem lhe passou o champagne colando os seus nos lábios
dele... Garanto-te que não sabias deste modo de acariciar...
—Confesso-te
que não.
—Aí está.
Verias a droiture com que o teu noivo
se curvou, encostou nas suas as faces da encantadora mulher, colou-lhe os lábios
e sugou-lhe a entontecedora bebida...
—Como deve
ser bom esse carinho!
—Ao depois,
beijaram-se...
—Aos olhos
do publico?
—Sim.
—Ah!... Se
eu estivesse lá...
—Não farias
senão nada. Eu, pelo menos, nessas ocasiões de grande excesso, ali mesmo me
voltava, e, se não fossem as nossas mascaras, creio que, incondescendente,
devoraria Alberto de beijos... Não conheço, Christina, nada que excite mais do
que aquelas danças. Um conto de Calibã é menos excitante, e um par dançando é
bem um conto luxurioso escrito com a alma e a carne mais quentes, para ter o
ponto final de um beijo. Os corpos estreitavam-se brutalmente, as pernas se entrançavam,
as mãos, servindo de opressores, estreitavam os troncos e cada par, assim
enlaçado, cabeça descaída sobre cabeça, parecia um corpo só com a monstruosidade
de quatro pernas... Esquisito, sem igual... Homens e mulheres não se
distinguiam na fúria dos sentidos...
—E Narciso
dançou?
—Não. Nem
todos dançam. Á parte, pelo jardim e nas mesas do buffet, os que não estavam fantasiados, se divertiam à grande, mas
um pouco retraídos das vistas do grosso publico, porque só no salão eles
escandalizariam...
—Todavia,
vingar-me-ei...
—Poupa-o,
Stela... O pecado é divino... Vinga-te em mim...
As duas
mulheres, num longo beijo, abraçaram-se e confundiram-se, cada qual na ideia
mais fixa de ter ao seu lado um outro ente...
A lua,
devassamente, iluminou-lhes, até quando quis, os seus belos corpos de uma
semi-nudez pagã...
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Nota:
Almachio Diniz: "Mundanismos" (1911)
Almachio Diniz: "Mundanismos" (1911)
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Advertência:
Alguns termos inseridos neste conto podem apresentar sentidos obscuros, podendo ser o resultado de erros no processo de digitalização da obra ou mesmo termos específicos atreladas ao contexto histórico no qual viveu o autor. Assim, caso possa contribuir para o esclarecimento de algumas dessas dificuldades ortográficas, por gentileza entre em contato conosco, no e-mail: iba@ibamendes.com
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