A CONSULESA
De maillot, apenas, arrebicando as faces
diante de um espelho, NINA, a bailadeira, tinha um milhão de pensamentos banais
no cérebro ardente.
Os traços da
sépia e os rebordos do nanquim, já lhe acentuavam a grande vivacidade do olhar,
e o pó de arroz atenuava e embelecia as cores róseas do rosto criadas pelo carmim
vencedor.
Uma vez por
outra, deixava de conformar-se, para atender aos apelos da porta, de onde, sem
deixar ninguém penetrar, voltava enfastiada com as iterações de estranhos.
Esperava
OTÁVIO: era o aimant du coeur,
porque o CÔNSUL, o velho francês, pelas suas funções representativas, evitava
aqueles encontros mais notórios...
—Nina?
—Quem bate?
Otávio?
—El, sim!
—Entra, meu
rico amor!
—Fiz-me
esperar, hein?
—Nem tanto,
mas eu tenho a regalia de poder cheirar-te as vestimentas para saber se tiveste
o contato do corpo de outra mulher, de vistoriar-lhe o casaco, para descobrir
aí os fios perdidos dos cabelos da que me logrou...
—Descansa o
teu coração. Vivo inteiramente para ti. E enquanto estou longe do teu olhar, sou
como o barro que espera, ardorosamente, a toda a hora, a plasmagem do artista.
Por ele, passam e voltam, vão e tornam, todos os profanos: mas ele não é menos monopolizador
de sua plasticidade do que uma flor do gnomo que só abra a horas certas...
—Não sabes?
O Cônsul pediu-me a noite...
—E deste-lha?
—Nem sei...
—Já me toma
os dias inteiros... Entra agora pelas noites... Que horas serão as minhas?
—Todas até.
Aturo-o porque tu consentes.
—Exatamente.
Mas ele vem a prejudicar-me se continuas a não se satisfazer com o que lhe dás.
Ás vezes, lá para as tantas do dia, penso em ti. O brasido abre em chamas ao
menor sopro. O incêndio alastra. Quero remediar-me e sofrer a caricia dos teus
beijos anti-incendiários. Vem logo a certeza de que o Cônsul te frequenta o dia
inteiro. Esmoreço. Abomino-me e espero confiante o prazer da noite. Tenho sido
certo e insubstituído. De agora por diante, nem mesmo nas noites poderei
confiar. Ao amante nunca lhe dês demais. Se te pede uma hora, dá-lhe meia, se
te pede um dia, dá-lhe horas, se te pede uma noite, dá-lhe um dia, e reduze
sempre as suas pretensões. Ao contrario, todo o tempo será absorvido. E, quanto
ao mais, espera-te hoje a ventura. Vais dormir com o Cônsul... Estou
libertado...
—Oh! não!
Que sucede Otávio?
—Nada. Não
estorvo os teus anelos. Leva contigo o Cônsul. Dá-lhe o meu lugar, mas
dize-lhe, ao menos, que não me ocultaste a entrada dele no leito que deixo vazio...
—Espera um
pouco que te falarei melhor. É só acabar de toucar-me...
—Careces de
mim?
—Não me
aborrece, Otávio!
—Pensei
sempre que valesse mais do que todos os outros teus amantes. Vejo, entretanto,
agora, que um existe mais poderoso ainda do que todos nós reunidos...
—Vale a pena
a descoberta.
—Desmente-me,
pois. Não tens um amante que preferes ao Cônsul, um amante diante do qual te
esqueces mesmo de mim?
—Dizes-me
coisas extraordinárias...
—Contesta a existência
desse outro amante onipoderoso, que motiva teres-me deixado no exílio deste
divã, na semi-obscuridão de teu camarim...
—Não és amável.
—De mais em
mais se confirma o que te digo: nem tens animo, por causa dele mesmo, para
contestares o que te afirmo de um modo tão categórico... Digo-te centos de
coisas e nada te abstrai desse amante único...
—Agora, sim!
Dei um ultimo retoque nos meus preparativos de cena... Que te pareço de maillot?
—Não trato
disto. Refiro-me ao teu poderoso amante.
—O Cônsul?
—Não sabia
que este seja poderoso. Mas não é a ele. Ao outro, diante do qual te esqueces
de mim, do Cônsul e de alguns menos e mais cotados do que nós outros...
—Amante?
—De certo.
Negas que não te absorve ele mais do que qualquer de nós?
—Nego.
—Contestas
que exista esse amante?
—Juro-te
mesmo.
—Vê lá que
não me enganas...
—Quem será,
Otávio?
—O teu
espelho...
—Aceito a
graça. Em troca, porem, vais dizer-me o que julgas de meus trajos em maillot?...
—Julgo mal,
porque te acho parecida com uma lebre a quem cortaram cerce todos os pelos...
Assim muito delambida, muito escorrida, muito masculina...
—Tens espírito.
—E fui
franco do modo que tu me pediste. Veste as rendas, sobrepõe as sedas, ou tira o
maillot. Se vamos ao mundo, todos os
atavios, todos os soutaches, aplicações
e manteaux serão poucos; se ficamos
aqui, o menor fragmento de tecido mais fino, será demais... Ou o extremo
enroupamento, ou a extrema nudez...
—Figuremos
duas hipóteses. Se me visses enroupada, com um luxuoso vestido, de muitas
rendas, muitas fitas, muito decote, muita jóia, e lindo chapéu de plumas, que
farias de mim?
—É essa a
primeira hipótese?
—Sim!
—Pois bem:
levar-te-ia, logo, à tua casa para que, antecipando a hora de tua saída, o Cônsul,
nem de longe, pelo meu braço, te visse hoje...
—És digno de
um ato destes.
—Bravura do
amor. Agora, a segunda hipótese?
—Sim: se me
visses nua, tão nua que nem uma écharpe
me velasse as pomas, que farias de mim?
—Ah!... Aí
está uma pergunta de difícil resposta, uma hipótese de operosa solução...
—Porque?
—Porque uma
nueza dessas exigiria um leito e sem este tu serias apenas uma gravura...
—Venceste-me.
Despacharei o Cônsul.
—Não sou eu
quem determina. Passarias uma noite igual às de Bhodis na companhia de
Chrysis... Porque escancelas tanto os teus deformados olhos? Não calculas,
assim, a desproporção do teu semblante, lindo como um camafeu...
—Procurei
ouvir o que se faz em cena, afim de verificar quanto falta para a minha vez...
—Queres,
saio a ver...
—Não.
Chamarei o contra-regra. Nem precisa: canta a Solidônia...
—A
pernóstica!
—Deixa-a,
coitada! Ainda tenho todo um intervalo e dois números da outra parte. Agora...
dá-me um beijo, paixãozinha!
—Guarda-te
para receberes os do Cônsul, senhora Consulesa...
—Otávio,
para que sentes ciúmes desse devasso? que te importa que eu lhe tenha prometido
uma noite, quando não lha darei por preço nenhum?
—Ciúmes?!...
Não os sinto dos outros homens, porque nenhum deles logrará de ti as venturas e
as concessões que eu tenho gozado... Nem mesmo do Cônsul... Se um prazer novo
junto de ti ele experimentar, deve dizer sempre que antes dele provei-o eu.
Tenho ciúmes, Nina, do que tu vestes, do que te pinta, do que te adorna, do que
mordes, do que fitas... Se eu pudesse, haveria de ser o tecido com que se fazem
os teus vestidos. Invejo deles a sorte de cingirem-te o corpo e serem
confidentes dos teus nervos e das tuas pulsações. Tenho ciúmes das flores que
exornam os teus cabelos, porque somente elas passam o delíquio de uma vida
inteira, enlanguescidas do teu amor. Tenho ciúmes do fruto que mordes, diante
da grande fortuna de ser apertado entre os teus dentes luxuriosos. Inquieto-me
com a sorte do perfume que te inebria, porque somente ele atravessa as tuas formas
e vai arrebatar-te na essência do teu ser. Tenho inveja da palavra que
proferes, porque somente ela vive fecundada da umidade quente dos teus lábios.
Por tudo isto, eu quereria ser o sono que te fecha as pálpebras, porque
participaria das felicidades todas dos teus sonhos; a água que te banha as formas,
porque desvendaria os imensos segredos e mistérios de tua beleza única, e o
riso que te doura o semblante, porque teria o domínio do mundo inteiro. Recordas-te,
Nina, do instante mágico em que pela primeira vez nos pertencemos mutuamente?
São deveras muito irmãs as almas que tocam à meta de uma ventura no mesmo
instante... e as nossas duas...
—De lembrar
isto, criei uma lenda. Sou eu a mulher que conseguiu o poder de duas
virgindades, uma sacrificada no inicio da puberdade, com a inclemência de
Nausithêa diante do deus Priapo, e a outra, concedida ao amante, no fervor do
gozo, entre os teus braços, naquela noite, Otávio, naquela primeira noite...
—Desgraçadamente,
já eu, então, poderia ter sentido por toda a parte de teu corpo, o hálito
bafiento do outro amante.
—O outro
amante?!... Tenho-o, e é como se ele não existisse. Tenho-o porque tu consentes
que eu o tenha. E mais nada. Contra o seu amor, protestam os meus seios, bem
diversos na tua presença do que são na dele. Diante de ti, as minhas pomas
parecem florescer como os jasmineiros em deliciosas noites de luar, como as
laranjeiras em uberosos tempos de outono. Diante dele... nem perdem na secura e
esterilidade os pinheiros agrestes que vegetam nas fendas dos rochedos... És a águia
que se avizinha do sol e beija os astros nos lábios. Ele é o verme que rasteja
sobre o rochedo onde borda todos os seus desejos...
—Mas, para
ele houve um dia venturoso: a mulher não se cede a um homem sem a experiência
de um prazer. E tu tiveste esse prazer...
—Acertaste.
Não sabes, porem, que os olhos da mulher voluvelmente procuram por toda a parte
o homem e que só ao depois de muitos descobre o procurado? Quando topei contigo,
já o tinha no convívio de suas esquisitices.
—Tu és
formosa, Nina, como a flor de mirto! Os gregos te diriam divinamente pressagiada
porque nasceste nas vésperas das Afrodisias! Quero enlanguescer ao som de tua
voz contando-me os teus mais baixos amores...
—Bem sei que
os homens todos são uns animais. Uns, porem, são menos do que outros. Daí esses
amores que tu queres ouvir. Sabes, Otávio, que os cães, nesse mister, são os
equivalentes de certos homens? E que eles são os seres que mais baixos amores
fruem? O Cônsul ama como um cão... Os seus lábios, como os de Pan, seriam
capazes de devorar as virgindades, se as virgens recebessem os seus beijos...
—Quero crer.
—É um
libertino.
—Nada mais?
—É um estrangeiro...
—Que
importa?
—É um
devasso...
—E somente
isto?
—Ama como um
cão, Otávio.
—E que é que
faz?
—Seria
preciso descrever-te todas as astucias que emprega para me arrastar à concessão
do prazer que só vige nos seus lábios? Não te bastará a expressão do pouco que
te digo?
—Repugnante!...
—Ah!
deixa-o, deixa-o! O meu amante és tu!... Toda esta noite serei tua como nas
demais...
Os rasgados olhos da ervoeira, luzentes nas
sombras dos seus cabelos de ouro como espigas de trigo maduro, pareceram a
fonte de todas as volúpias da terra, como os cornos de Almatéia foram de todas
as riquezas do mundo...
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Nota:
Almachio Diniz: "Mundanismos" (1911)
Almachio Diniz: "Mundanismos" (1911)
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Advertência:
Alguns termos inseridos neste conto podem apresentar sentidos obscuros, podendo ser o resultado de erros no processo de digitalização da obra ou mesmo termos específicos atreladas ao contexto histórico no qual viveu o autor. Assim, caso possa contribuir para o esclarecimento de algumas dessas dificuldades ortográficas, por gentileza entre em contato conosco, no e-mail: iba@ibamendes.com
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