O CASTELO DE FARIA
(LENDA DE 1373)
A breve distância da vila de
Barcelos, nas faldas do Franqueira, alveja ao longe um convento de Franciscanos. Aprazível é o
sítio, sombreado de velhas árvores.
Sentem-se ali o murmurar das águas e a bafagem suave do vento, harmonia da natureza, que quebra o silêncio
daquela solidão, a qual, para nos servirmos
de uma expressão de Fr. Bernardo de Brito, com a saudade dos seus horizontes parece encaminhar e chamar o
espírito à contemplação das coisas
celestes.
O monte que se alevanta ao pé do
humilde convento é formoso, mas áspero e severo, como quase todos os montes do Minho.
Da sua coroa descobre-se ao longe o mar,
semelhante a mancha azul entornada na face da terra. O espectador colocado no cimo daquela eminência
volta-se para um e outro lado, e as
povoações e os rios, os prados e as fragas, os soutos e os pinhais apresentam-lhe o panorama variadíssimo que se
descobre de qualquer ponto elevado da
província de Entre-Douro-e-Minho.
Este monte, ora ermo, silencioso
e esquecido, já se viu regado de sangue: já sobre ele se ouviram gritos de combatentes,
ânsias de moribundos, estridor de habitações
incendiadas, sibilar de setas e estrondo de máquinas de guerra. Claros sinais de que ali viveram homens: porque
é com estas balizas que eles costumam
deixar assinalados os sítios que escolheram para habitar na terra.
O castelo de Faria, com as suas
torres e ameias, com a sua barbacã e fosso, com os seus postigos e alçapões ferrados,
campeou aí como dominador dos vales
vizinhos. Castelo real da Idade Média, a sua origem some-se nas trevas dos tempos que já lá vão há muito: mas a febre
lenta que costuma devorar os gigantes de
mármore e de granito, o tempo, coou-lhe pelos membros, e o antigo alcácer das eras dos reis de Leão
desmoronou-se e caiu. Ainda no século
dezessete parte da sua ossada estava dispersa por aquelas encostas: no século seguinte já nenhuns vestígios dele
restavam, segundo o testemunho de um
historiador nosso. Um eremitério, fundado pelo célebre Egas Moniz, era o único eco do passado que aí restava. Na ermida
servia de altar uma pedra trazida de Ceuta pelo primeiro Duque de Bragança, D.
Afonso. Era esta lájea a mesa em que
costumava comer Salat-ibn-Salat, último senhor de Ceuta. D. Afonso, que seguira seu pai D. João I na
conquista daquela cidade, trouxe esta pedra
entre os despojos que lhe pertenceram, levando-a consigo para a vila de Barcelos, cujo conde era. De mesa de banquetes
mouriscos converteu-se essa pedra em ara
do cristianismo. Se ainda existe, quem sabe qual será o seu futuro destino?
Serviram os fragmentos do castelo
de Faria para se construir o convento edificado
ao sopé do monte. Assim se converteram em dormitórios as salas de armas, as ameias das torres em bordas de
sepulturas, os umbrais das balhesteiras
e postigos em janelas claustrais. O ruído dos combates calou no alto do monte, e nas faldas dele
alevantaram-se a harmonia dos salmos e o sussurro das orações.
Este antigo castelo tinha
recordações de glória. Os nossos maiores, porém, curavam mais de praticar façanhas do que de
conservar os monumentos delas. Deixaram,
por isso, sem remorsos, sumir nas paredes de um claustro pedras que foram testemunhas de um dos mais heroicos
feitos de corações portugueses.
Reinava entre nós D. Fernando.
Este príncipe, que tanto degenerava dos seus antepassados em valor e prudência, fora
obrigado a fazer paz com os castelhanos, depois de uma guerra infeliz,
intentada sem justificados motivos, e em
que se esgotaram inteiramente os tesouros do Estado. A condição principal, com que se pôs termo a esta luta
desastrosa, foi que D. Fernando casasse
com a filha d’el-rei de Castela: mas, brevemente, a guerra se acendeu de novo; porque D. Fernando, namorado de D.
Leonor Teles, sem lhe importar o
contrato de que dependia o repouso dos seus vassalos, a recebeu por mulher, com afronta da princesa
castelhana. Resolveu-se o pai a tomar vingança
da injúria, ao que o aconselhavam ainda outros motivos. Entrou em Portugal com um exército e, recusando D.
Fernando aceitar-lhe batalha, veio sobre
Lisboa e cercou-a. Não sendo o nosso propósito narrar os sucessos deste sítio, volveremos o fio do discurso para
o que sucedeu no Minho.
O Adiantado de Galiza, Pedro
Rodriguez Sarmento, entrou pela província de Entre-Douro-e-Minho com um grosso corpo de
gente de pé e de cavalo, enquanto a
maior parte do pequeno exército português trabalhava inutilmente ou por defender ou por descercar Lisboa.
Prendendo, matando e saqueando, veio o
Adiantado até as imediações de Barcelos, sem achar quem lhe atalhasse o passo; aqui, porém, saiu-lhe ao encontro D.
Henrique Manuel, conde de Ceia e tio
d’el-rei D. Fernando, com a gente que pôde juntar. Foi terrível o conflito; mas, por fim, foram desbaratados os
portugueses, caindo alguns nas mãos dos
adversários.
Entre os prisioneiros contava-se
o alcaide-mor do castelo de Faria, Nuno Gonçalves.
Saíra este com alguns soldados para socorrer o conde de Ceia, vindo, assim, a ser companheiro na comum
desgraça. Cativo, o valoroso alcaide
pensava em como salvaria o castelo d’el-rei seu senhor das mãos dos inimigos. Governava-o na sua ausência, um seu
filho, e era de crer que, vendo o pai em
ferros, de bom grado desse a fortaleza para o libertar, muito mais quando os meios de defensão escasseavam. Estas
considerações sugeriram um ardil a Nuno
Gonçalves. Pediu ao Adiantado que o mandasse conduzir ao pé dos muros do castelo, porque ele, com as suas
exortações, faria com que o filho o
entregasse, sem derramamento de sangue.
Um troço de besteiros e de homens
d'armas subiu a encosta do monte da Franqueira,
levando no meio de si o bom alcaide Nuno Gonçalves. O Adiantado de Galiza seguia atrás com o grosso
da hoste, e a costaneira ou ala direita, capitaneada por João Rodrigues de
Viedma, estendia-se, rodeando os muros
pelo outro lado. O exército vitorioso ia tomar posse do castelo de Faria, que lhe prometera dar nas mãos o seu
cativo alcaide.
De roda da barbacã alvejavam as
casinhas da pequena povoação de Faria: mas silenciosas e ermas. Os seus habitantes,
apenas enxergaram ao longe as bandeiras
castelhanas, que esvoaçavam soltas ao vento, e viram o refulgir cintilante das armas inimigas, abandonando os
seus lares, foram acolher-se no terreiro
que se estendia entre os muros negros do castelo e a cerca exterior ou barbacã.
Nas torres, os atalaias vigiavam
atentamente a campanha, e os almocadens corriam
com a rolda(*) pelas quadrelas do muro e subiam aos cubelos colocados nos ângulos das muralhas.
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[(*) Roldas e sobrerroldas eram
os soldados e oficiais encarregados de rondarem os postos e atalaias.] ------
O terreiro onde se tinham
acolhido os habitantes da povoação estava coberto de choupanas colmadas, nas quais se abrigava a
turba dos velhos, das mulheres e das
crianças, que ali se julgavam seguros da violência de inimigos desapiedados.
Quando o troço dos homens d'armas
que levavam preso Nuno Gonçalves vinha
já a pouca distância da barbacã, os besteiros que coroavam as ameias encurvaram as bestas, e os homens dos engenhos
prepararam-se para arrojar sobre os
contrários as suas quadrelas e virotões, enquanto o clamor e o choro se alevantavam no terreiro, onde o povo inerme
estava apinhado.
Um arauto saiu do meio da gente
da vanguarda inimiga e caminhou para a barbacã,
todas as bestas se inclinaram para o chão, e o ranger das máquinas converteu-se num silêncio profundo.
— "Moço alcaide, moço
alcaide! — bradou o arauto — teu pai, cativo do muito nobre Pedro Rodriguez Sarmento,
Adiantado de Galiza pelo muito excelente
e temido D. Henrique de Castela, deseja falar contigo, de fora do teu castelo."
Gonçalo Nunes, o filho do velho
alcaide, atravessou então o terreiro e, chegando
à barbacã, disse ao arauto — "A Virgem proteja meu pai: dizei-lhe que eu o espero."
O arauto voltou ao grosso de
soldados que rodeavam Nuno Gonçalves, e depois
de breve demora, o tropel aproximou-se da barbacã. Chegados ao pé dela, o velho guerreiro saiu dentre os seus
guardadores, e falou com o filho:
"Sabes tu, Gonçalo Nunes, de
quem é esse castelo, que, segundo o regimento de guerra, entreguei à tua guarda quando vim
em socorro e ajuda do esforçado conde de
Ceia?"
— "É — respondeu Gonçalo
Nunes — do nosso rei e senhor D. Fernando
de Portugal, a quem por ele fizeste preito e menagem." — "Sabes tu, Gonçalo Nunes, que o dever de um alcaide é
de nunca entregar, por nenhum caso, o
seu castelo a inimigos, embora fique enterrado debaixo das ruínas dele?"
— "Sei, oh meu pai! —
prosseguiu Gonçalo Nunes em voz baixa, para não ser ouvido dos castelhanos, que começavam a
murmurar. — Mas não vês que a tua morte
é certa, se os inimigos percebem que me aconselhaste a resistência?"
Nuno Gonçalves, como se não
tivera ouvido as reflexões do filho, clamou então: — "Pois se o sabes, cumpre o teu
dever, alcaide do castelo de Faria! Maldito
por mim, sepultado sejas tu no inferno, como Judas o traidor, na hora em que os que me cercam entrarem nesse
castelo, sem tropeçarem no teu cadáver."
— "Morra! — gritou o
almocadem castelhano — morra o que nos atraiçoou."
— E Nuno Gonçalves caiu no chão atravessado de muitas espadas e lanças.
— "Defende-te,
alcaide!" — foram as últimas palavras que ele murmurou.
Gonçalo Nunes corria como louco
ao redor da barbacã, clamando vingança. Uma
nuvem de frechas partiu do alto dos muros; grande porção dos assassinos
de Nuno Gonçalves misturaram o próprio sangue com o sangue do homem leal ao seu juramento.
Os castelhanos acometeram o
castelo; no primeiro dia de combate o terreiro da barbacã ficou alastrado de cadáveres
tisnados e de colmos e ramos reduzidos a
cinzas. Um soldado de Pedro Rodriguez Sarmento tinha sacudido com a ponta da sua longa chuça um colmeiro
incendiado para dentro da cerca; o vento
suão soprava nesse dia com violência, e em breve os habitantes da povoação, que tinham buscado o amparo do
castelo, pereceram juntamente com as
suas frágeis moradas.
Mas Gonçalo Nunes lembrava-se da
maldição do seu pai: lembrava-se de que o
vira moribundo no meio dos seus matadores, e ouvia a todos os momentos o último grito do bom Nuno Gonçalves —
"Defende-te, alcaide!"
O orgulhoso Sarmento viu a sua
soberba abatida diante dos torvos muros do castelo de Faria. O moço alcaide defendia-se
como um leão, e o exército castelhano
foi constrangido a levantar o cerco.
Gonçalo Nunes, acabada a guerra,
era altamente louvado pelo seu brioso procedimento
e pelas façanhas que obrara na defensão da fortaleza cuja guarda lhe fora encomendada pelo seu pai no
último trance da vida. Mas a lembrança
do horrível sucesso estava sempre presente no espírito do moço alcaide. Pedindo a el-rei o desonerasse do
cargo que tão bem desempenhara, foi depor ao pé dos altares a cervilheira e o
saio de cavaleiro, para se cobrir com as vestes pacíficas do sacerdócio.
Ministro do santuário, era com lágrimas e
preces que ele podia pagar ao seu pai o ter coberto de perpétua glória o nome dos alcaides de Faria.
Mas esta glória, não há hoje ai
uma única pedra que a ateste. As relações dos historiadores foram mais duradouras que o
mármore.
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Nota:
Alexandre Herculano: "Lendas e Narrativas" (1851)
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Nota:
Alexandre Herculano: "Lendas e Narrativas" (1851)
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