sábado, 14 de setembro de 2013

Alexandre Herculano: "A Abóbada"

A ABÓBADA 
(NARRATIVA DE 1401)

I

O CEGO 

O dia 6 de Janeiro do ano da Redenção 1401 tinha amanhecido puro e sem  nuvens. Os campos, cobertos aqui de relva, acolá de searas, que cresciam a  olhos vistos com o calor benéfico do Sol, verdejavam ao longe, ricos de futuro  para o pegureiro e para o lavrador. Era um destes formosíssimos dias de  Inverno mais gratos que os do Estio, porque são de esperança, e a esperança  vale mais do que a realidade; destes dias, que Deus só concedeu aos países do  Ocidente, em que os raios do Sol, que começa a subir na eclíptica, estirando- se vívidos e trêmulos por cima da terra enegrecida pela umidade, e errando  por entre os troncos pardos dos arvoredos despidos pelas geadas, se  assemelham a um bando de crianças, no primeiro viço da vida, a folgar e a  rolar-se por cima da campa, sobre a qual há muito sussurrou o último ai da  saudade, e que invadiram os musgos e abrolhos do esquecimento. Era um  destes dias antipáticos aos poetas ossiânico-regelo-nevoentos, que querem  fazer-nos aceitar como coisa muito poética

Esses gelos do Norte, esses brilhantes
Caramelos dos topes das montanhas;
sem se lembrarem de que  
Do sol do Meio-Dia aos raios vívidos,
Parvos! – se lhes derretem: a brancura
Perdem coa nitidez, e se convertem
De lúcidos cristais em água chilre;

destes dias, enfim, em que a Natureza sorri como a furto, rasgando o denso  véu da estação das tempestades.

No adro do Mosteiro de Santa Maria da Vitória, vulgarmente chamado da  Batalha, fervia o povo, entrando para a nova igreja, que de muito pouco   tempo servia para as solenidades religiosas. Os frades dominicanos, a quem el-rei D. João I tinha doado esse magnífico mosteiro, cantavam a missa do dia  debaixo daquelas altas abóbadas, onde repercutiam os sons do órgão e os ecos  das vozes do celebrante, que entoava os quíries.

Mas não era para ouvir a missa conventual que o povo se escoava pelo  profundo portal do templo para dentro do recinto sonoro daquela  maravilhosa fábrica; era para assistir ao auto da adoração dos reis, que com  grande pompa se havia de celebrar nessa tarde dentro da igreja e diante do  rico presépio que os frades tinham alevantado junto do arco da Capela do  Fundador, então apenas começada. A concorrência era grande, porque os  habitantes da Canoeira, de Aljubarrota, de Porto de Mós e dos mais lugares  vizinhos, desejosos de ver tão curioso espetáculo, tinham deixado desertas as   povoações para vir povoar por algumas horas o ermo do mosteiro. Aprazível  coisa era o ver, descendo dos outeiros para o vale por sendas torcidas, aquelas  multidões, vestidas de cores alegres e semelhantes, no seu complexo, a  serpentes imensas, que, transpondo as assomadas, se rolassem pelas encostas  abaixo, refletindo ao longe as cores variegadas da pele luzidia e lúbrica.  Atravessando a pequena planície onde avultava o mosteiro, passava o rio  Lena, cuja corrente tinham tornado caudal as chuvas da primeira metade da  estação invernosa.

No campo contíguo ao edifício, aqui e acolá, alevantavam-se casarias  irregulares, algumas fechadas com as suas portas, outras apenas cobertas de  madeira e abertas para todos os lados, à maneira de simples telheiros. As casas  fechadas e reparadas contra as injúrias do tempo eram as moradas dos mestres  e artífices que trabalhavam no edifício: debaixo dos telheiros viam-se nuns  pedras só desbastadas, noutros algumas onde se começavam a divisar lavores,  noutros, enfim, pedaços de cantaria, em que os mais hábeis escultores e  entalhadores já tinham estampado os primores dos seus delicados cinzéis. Mas  o que punha espanto era a inumerável porção de pedras, lavradas, polidas e  prontas para serem colocadas nos seus lugares, que jaziam espalhadas pelo  terreiro que, ao redor do edifício, se alargava por todos os lados: mainéis  rendados, peças dos fustes, capitéis góticos, laçarias de bandeiras, cordões de  arcadas, aí estavam tombados sobre grossas zorras ou ainda no chão,  endurecido pelo contínuo perpassar de trabalhadores, oficiais e mais obreiros   desta maravilhosa fábrica. Quem de longe olhasse para aquele extenso campo,  alastrado de tantos primores de escultura, julgara ver o assento de uma cidade  antiquíssima, arrasada pela mão dos homens ou dos séculos, de que só restava  em pé um monumento, o mosteiro. E todavia, esses que pareciam restos de  uma antiga Balbek não eram senão algumas pedras que faltavam para o  acabamento de um convento de frades dominicanos, o Convento de Santa  Maria da Vitória, vulgarmente chamado a Batalha!

Um quadrante de pedra, assentado num canto do adro, apontava meio-dia. A  igreja tinha sorvido dentro do seu seio desmesurado os habitantes das  próximas povoações, e de todo o ruído e algazarra que poucas horas antes  soava por aqueles contornos, apenas traspassavam pelas frestas e portas do  templo os sons do órgão, soltando a espaços as suas melodias, que  sussurravam e morriam ao longe, suaves como pensamento do Céu.

Não estava, porém, inteiramente ermo o terreiro da frontaria do edifício.  Assentado sobre um troço de fuste, com os pés ao sol e o resto do corpo  resguardado dos seus ardentes raios pela sombra de um telheiro, a qual se  começava a prolongar para o lado do oriente, via-se um velho, venerável de  aspeto, que parecia embrenhado em profundas meditações. Pendia-lhe sobre  o peito uma comprida barba branca: tinha na cabeça uma touca foteada, um  gibão escuro vestido, e sobre ele uma capa curta ao modo antigo. A luz dos  olhos tinha-lha de todo apagado a velhice; mas as suas feições revelavam que  dentro daqueles membros trêmulos e enrugados morava um ânimo rico de  alto imaginar. As faces do velho eram fundas, as maçãs do rosto elevadas, a  cara espaçosa e curva e o perfil do rosto quase perpendicular. Tinha a testa  enrugada, como quem vivera vida de contínuo pensar, e, correndo com a mão  os lavores da pedra sobre que estava assentado, ora carregando o sobrolho,  ora deslizando as rugas da cara, repreendia ou aprovava com eloquência muda  os primores ou as imperfeições do artífice que copiara à ponta de cinzel  aquela página do imenso livro de pedra a que os espíritos vulgares chamam  simplesmente o Mosteiro da Batalha.

Enquanto o velho pensava sozinho e palpava o canto, subtilmente lavrado,  sobre que repousava os membros entorpecidos, à portaria do mosteiro, que  perto dali ficava, outras figuras e outra cena se viam. Dois frades estavam em  pé no limiar da porta e altercavam em voz alta: de vez em quando, pondo-se  nos bicos dos pés e estendendo os pescoços, parecia quererem descobrir no  horizonte, que as cumeadas dos montes fechavam, algum objeto; depois de  assim olharem um pedaço, encolhiam os pescoços e, voltando-se um para o  outro, travavam de novo renhida disputa, que levava seus visos de não acabar.

– Oh homem! – dizia um dos dois frades, a quem a tez macilenta e as barbas e  cabelos grisalhos davam certo ar de autoridade sobre o outro, que mostrava  nas faces coradas e cheias e na cor negra da barba povoada e revolta mais  vigor de mocidade. – Já disse a vossa reverência que el-rei me escreveu, do seu  próprio punho, que viria assistir ao auto da adoração dos reis e, de caminho,   veria a Casa do Capítulo, a que ontem mestre Ouguet mandou tirar os simples  que sustentavam a abóbada.

– E nego eu isso? – replicou o outro frade. – O que digo é que me parece  impossível que el-rei venha, de feito, conforme a vossa paternidade prometeu  na sua carta. Há muito que lá vai o meio-dia: daqui a pouco tocará a vésperas,  e às duas por três é noite. Não vedes, padre-mestre, a que horas virá a acabar  o auto? E este povo, este devoto povo que aí está, que aí vem, há de ir com o  escuro por esses descampados e serras, com mulheres, com raparigas...

– Tá, tá – interrompeu o prior. – Temos luar agora, e vão de consum. O caso  não é esse, padre-procurador, o caso é se está tudo aviado para agasalharmos  el-rei e os da sua companha.

– Oh lá, quanto a isso, nada falta. Desde ontem que tenho tido tanto descanso  como hoste ou cavalgada de castelhanos diante das lanças do Condestável; o  pior é que, segundo me parece, e dizei o que quiserdes, opus et oleum  perdidi (*).

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 [(*) «Perdi o azeite e o trabalho», expressão proverbial.] 
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– Não falta quem tarda: el-rei não quebrará a palavra ao seu antigo confessor.  O que quero é que todos os noviços e coristas que têm de fazer suas   representações no auto estejam a ponto e vestidos, para ele começar logo que  a sua senhoria chegue.

– Nada receeis, que tudo está preparado; do que duvido é de que comecemos,  se por el-rei houvermos de esperar.

O frade mais velho fez, a estas palavras, um gesto de impaciência e, sem dar  resposta ao seu pirrônico interlocutor, estendeu outra vez o gasnate para a  banda da estrada, fazendo com a extremidade do hábito uma espécie de  sobrecéu para resguardar os olhos dos raios do Sol, que, já muito inclinado  para o ocidente, batia de chapa no portal onde os dois reverendos estavam  altercando.

Porém, meio descoroçoado, o dominicano logo abaixou os olhos: nem o  mínimo vulto se enxergava no horizonte; e neste abaixar de olhos viu o cego,  que estava ainda assentado sobre o fuste da coluna.

Para escapar, talvez, às reflexões do seu confrade, o reverendo bradou ao  velho:

– Oh lá, mestre Afonso Domingues, bem aproveitais o soalheiro! Não vos  quero eu mal por isso; que um bom sol de Inverno vale, na idade grave, mais  que todos os remédios de longa vida que nos seus alforges trazem por aí os  físicos.

Dizendo e fazendo, o reverendo desceu os degraus do portal e encaminhou-se  para o cego.

– Quem é que me fala? – perguntou este, alçando a cabeça.

– Frei Lourenço Lampreia, vosso amigo e servidor, honrado mestre Afonso.  Tão esquecida anda já minha voz nas vossas orelhas, que me não conheceis  pela toada?

– Perdoai-me, muito devoto padre-prior – atalhou o velho, tenteando com os  pés o chão para erguer-se, no momento em que Frei Lourenço Lampreia  chegava junto dele, seguido do seu confrade Frei Joane, procurador do  mosteiro. – Perdoai-me! Foi-se o ver, vai-se o ouvir. Em distância, já não  acerto a distinguir as falas.

– Estai quieto; estai queito, mestre Afonso – disse Frei Lourenço, segurando o  cego pelo braço. – O indigno prior do Mosteiro da Vitória não consentirá que  o muito sabedor arquiteto e imaginador Afonso Domingues, o criador da  oitava maravilha do Mundo, o que traçou este edifício, doado pelo virtuoso de  grandes virtudes rei D. João à nossa Ordem, se alevante para estar em pé  diante do pobre frade...

– Mas esse religioso – interrompeu o cego – é o mais abalizado teólogo de  Portugal, o amigo do muito excelente doutor João das Regras e do grande  Nun’Álvares, e privado e confessor de el-rei; Afonso Domingues é apenas  uma sombra de homem, um troço de capitel partido e abandonado no pó das   encruzilhadas, um velho tonto, de quem já ninguém faz caso. se a vossa  caridade e humildosa condição vos movem a doer-vos de mim e a lembrar- vos de que fui vivo, não achareis nisso muitos da vossa igualha.

– De merencório humor estais hoje – disse o prior, sorrindo. – Não só eu vos   amo e venero: el-rei me fala sempre de vós nas suas cartas. Não sois cavaleiro  da sua casa? E a avultada tença que vos concedeu em paga da obra que  traçastes e dirigistes, enquanto Deus vos concedeu vista, não prova que não  foi ingrato?

– Cavaleiro!? – bradou o velho. – Com sangue comprei essa honra! Comigo  trago a escritura. – Aqui, mestre Afonso, puxando com a mão trêmula as  atacas do gibão, abriu-o e mostrou duas largas cicatrizes no peito. – Em  Aljubarrota foi escrito o documento à ponta de lança por mão castelhana: a  essa mão devo meu foro, que não ao Mestre de Avis. Já lá vão quinze anos!  Então ainda estes olhos viam claro, e ainda para este braço a acha de armas  era brinco. El-rei não foi ingrato, dizeis vós, venerável prior, porque me  concedeu uma tença!? Que a guarde no seu tesouro; porque ainda às portas dos mosteiros e dos castelos dos nobres se reparte pão por cegos e por  aleijados.

Proferindo estas palavras, o velho não pôde continuar: a voz tinha-lhe ficado  presa na garganta, e dos olhos embaciados caíam-lhe pelas faces encovadas  duas lágrimas como punhos. A Frei Lourenço também se arrasaram os olhos  de água. Frei Joane, esse olhou fito para o cego durante algum tempo, com o  olhar vago de quem não o compreendia. Depois, a ideia da tardança de el-rei e  da tardança do auto, que, entrando pelas horas de cear e dormir, iria fazer uma  brecha horrorosa na disciplina monástica, veio despertá-lo como espinho  pungente. Começou a bufar e a bater o pé, semelhante ao corredor brioso do  Livro de Job e da Eneida. Entretanto, o arquiteto havia-se posto em pé: um  pensamento profundamente doloroso parecia reverberar-lhe pela cara nobre e  turbada, e houve um momento de silêncio. Por fim, segurando com força a  manga do hábito de Frei Lourenço, disse-lhe:

– Sois letrado, reverendo padre: deveis ter visto algum traslado da Divina  Comédia do florentino Dante.

– Li já, e mais de uma vez – respondeu o prior. – É obra-prima, daquelas a  que os Gregos chamavam epos, id est, enarratio et actio, segundo Aristóteles;  e se não houvesse nessa escritura algumas ousadias contra o papa...

– Pois sabei, reverendo padre – prosseguiu o arquiteto, atalhando o ímpeto  erudito do prior –, que este mosteiro que se ergue diante de nós era a minha  Divina Comédia, o cântico da minha alma: concebi-o eu; viveu comigo largos  anos, em sonhos e em vigília: cada coluna, cada mainel, cada fresta, cada arco,  era uma página de canção imensa; mas canção que cumpria se escrevesse em  mármore, porque só o mármore era digno dela. Os milhares de favores que  tracei no meu desenho eram milhares de versos; e porque ceguei arrancaram-me das mãos o livro, e nas páginas em branco mandaram escrever um  estrangeiro! Loucos! Se os olhos corporais estavam mortos, não o estavam os  do espírito. O estranho a quem deram meu cargo não me entendia, e ainda  hoje estes dedos descobriram nessa pedra que o meu alento não a bafejara.  Que direito tinha o Mestre de Avis para sulcar com um golpe do seu  montante a face de um arcanjo que eu criara? Que direito tinha para me  espremer o coração debaixo dos seus sapatos de ferro? Dava lho o ouro que  tem despendido? O ouro!... Não! O Mestre de Avis sabe que o ouro é vil; só é  nobre e puro o gênio do homem. Enganaram no: vassalos houve em Portugal  que enganaram seu rei! Este edifício era meu; porque o gerei; porque o  alimentei com a substância da minha alma; porque necessitava de me  converter todo nestas pedras, pouco a pouco, e de deixar, morrendo, o meu  nome a sussurrar perpetuamente por essas colunas e por baixo dessas arcarias.  E roubaram me o filho da minha imaginação, dando me uma tença!... Com  uma tença paga se a glória e a imortalidade? Agradeço vos, senhor rei, a  mercê!... Sois em verdade generoso... mas o nome de mestre Ouguet enredar  se á no meu ou, talvez, sumirá este no brilho da sua fama mentida...

O cego tremia de todos os membros: a veemência com que falara exaurira lhe  as forças: os joelhos vergaram lhe, e assentou se outra vez em cima do fuste.  Os dois frades estavam em pé diante dele.

– Estais muito perturbado pela paixão, mestre Afonso – disse Frei Lourenço,  depois de larga pausa –, por isso menoscabais mestre Ouguet, que era, talvez,   o único homem que aí havia capaz de vos substituir. Quanto a vós, pensaram  os do conselho de el rei que deviam propor lhe vos desse repouso e honrado  sustentamento para os cansados dias. Ninguém teve em mente ofender o mais  sabedor e experto arquiteto de Portugal, cuja memória será eterna e nunca  ofuscada.

– Obrigado – atalhou o velho – aos conselheiros de el rei pelos bons desejos  que no meu prol têm. São políticos, almas de lodo, que não compreendem  senão proveitos materiais. Dão me o repouso do corpo e assassinam me o da  alma! Acerca de mestre Ouguet, não serei eu quem negue suas boas manhas e  ciência de edificar: mas que ponha ele por obra suas traças, e deixem me a  mim dar vulto às minhas. E demais: para entender o pensamento do Mosteiro  de Santa Maria da Vitória, cumpre ser português; cumpre ter vivido com a  revolução que pôs no trono o Mestre de Avis; ter tumultuado com o povo em  frente dos paços da adúltera (D. Leonor Teles, mulher de el rei D. Fernando); ter  pelejado nos muros de Lisboa; ter vencido em Aljubarrota. Não é este edifício  obra de reis, ainda que por um rei me fosse encomendado seu desenho e  edificação, mas nacional, mas popular, mas da gente portuguesa, que disse:  não seremos servos do estrangeiro e que provou seu dito. Mestre Ouguet,  escolar na sociedade dos irmãos obreiros(*), trabalhou nas sés de Inglaterra, de  França e de Alemanha, e aí subiu ao grau de mestre; mas a sua alma não é  aquecida à luz do amor da pátria; nem, que o fosse, é para ele pátria esta terra  portuguesa. 

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[(*) Arquitetos sarracenos que se espalharam pela Grécia, Itália, Sicília e outros países, durante certo  tempo: um avultado número de artífices cristãos, principalmente gregos, juntaram-se com eles e formaram  todos uma corporação, que tinha as suas leis e estatutos secretos, e cujos membros se reconheciam por sinais. Essa foi a origem da Maçonaria.]
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Por engenho e mãos de portugueses devia ser concebido e executado, até seu  final remate, o monumento da glória dos nossos; e eis aí que ele chamou de  longes terras oficiais estranhos, e os naturais lá foram mandados adornar de  primorosos lavores a igreja de Guimarães. Sei que não seriam nem eles nem  eu quem pusesse esse remate; mas nós deixaríamos sucessores que  conservassem puras as tradições da arte. Perder se á tudo; e, porventura, tempo virá em que, nesta obra dos séculos, não haja mãos vigorosas que  prossigam os lavores que mãos cansadas não puderam levar a cabo. Então o  livro de pedra, o meu cântico de vitória, ficará truncado. Mas Afonso  Domingues tem uma pensão de el rei...

Em uma das casas que ficavam mais próximas, daquelas de que fizemos  menção no princípio deste capítulo, ergueu se a adufa de uma janela no  momento em que o cego proferia as últimas palavras, e uma velha, em cuja  cabeça alvejava uma toalha muito branca, gritou da janela:

– Mestre Afonso, quereis recolher-vos? Está pronta a ceia, e começa a cair a  orvalhada, que a tarde vai nevoenta.

– Vamos lá, vamos lá, Ana Margarida; vinde guiar-me.

E Ana Margarida, ama de mestre Afonso Domingues, saiu da porta com a  roca ainda na cinta, e o fuso espetado entre o linho e o ourelo que o apertava.  Chegando ao pé do velho, tocou-lhe com o braço, em que ele se firmou,  tornando a erguer-se.

– Boas tardes, padre-prior – disse a ama, fazendo sua mesura, seguida de um  lamber de dedos e de dois puxões nas barbas da estriga quase fiada.

– Vá na graça do Senhor, filha – respondeu Frei Lourenço, e acrescentou,  dirigindo-se ao cego:

– Meu irmão, Deus aceita só ao homem, em desconto da grande dívida, a dor  calada e sofrida. Resignai-vos na sua divina vontade.

– Na dele estou eu resignado há muito: na dos homens é que nunca me  resignarei.

E Ana Margarida, que tinha a ceia ainda no lume, foi puxando o cego para a  porta de casa.

– Ai, Afonso Domingues, Afonso Domingues! Vai-se-te após a vista o siso.  Aborrecida coisa é a velhice. Não vos parece, Frei Joane?

Isto dizia o prior, voltando-se para o outro frade, que supunha estaria atrás  dele; mas Frei Joane tinha desaparecido dali manso e manso. Alongando os  olhos ao redor de si, Frei Lourenço viu-o em pé sobre uma pedra a alguma  distância.

O prior ia a perguntar-lhe o que fazia ali, quando o reverendo procurador  saltou a correr, bradando:

– Ganhastes, padre-prior; ganhastes!... Eis el-rei que chega.

E, com efeito, Frei Lourenço, volvendo os olhos para o cimo de um outeiro,  viu uma lustrosa companhia de cavaleiros, que, com grande açodamento,  descia para o vale do mosteiro.


II

MESTRE OUGUET 

Uma das inumeráveis questões que, no nosso entender, eternamente ficarão  por decidir, é a que versa sobre qual dos dois ditados Voz do povo é voz de  Deus ou Voz do povo é voz do Diabo seja o que exprima a verdade. É  indubitável que o povo tem uma espécie de presciência inata, de instinto  divinatório. Quantas vezes, sem que se saiba como ou porquê, corre voz entre  o povo que tal navio saído do porto, tão rico de mercadorias como de  esperanças, se perdeu em tal dia e a tal hora em praias estranhas. Passa o  tempo, e a voz popular realiza-se com exação espantosa. Assim de batalhas;  assim de mil fatos. Quem dá estas notícias? Quem as trouxe? Como se  derramaram? Mistério é esse que ainda ninguém soube explicar. Foi um anjo?  Foi um demônio? Foi algum feiticeiro? Mistério. Não há, nem haverá, talvez,  nunca, filósofo que o explique; salvo se tal fenômeno é uma das maravilhas do  magnetismo animal. Esse meio ininteligível de dar solução a tudo o que se não  entende é acaso a única via de resolver a dúvida. Se o é, os sábios explicarão o  que nesse momento ocorria na Igreja de Santa Maria da Vitória.

Foi o caso: quando a cavalgada de que fizemos menção no fim do antecedente  capítulo vinha descendo a encosta sobranceira à planície do mosteiro, entre o  povo que estava dentro da igreja, impaciente já pela demora do auto,   começou-se a espalhar um sussurro, que cada vez crescia mais. O motivo dele,  não era fácil sabê-lo: nenhuma novidade ocorrera; ninguém tinha entrado ou  saído. De repente, toda aquela multidão se agitou, remoinhou pela igreja e  começou a borbulhar pelo portal fora, como por bico de funil o líquido  deitado de alto. Tinham sabido que el-rei chegava, e todos queriam vê-lo  descavalgar, porque D. João I, plebeu por herança materna, nobre por ser  filho de D. Pedro, rei eleito por uma revolução e confirmado por cinquenta  vitórias, era o mais popular, o mais amado e o mais acatado de todos os reis  da Europa. Vinha montado num a possante mula, e, assim mesmo, em outras  os fidalgos e cavaleiros da sua casa. Trazia vestida sobre o brial uma jórnea de  veludo carmesim, monteira preta, e nebri em punho, em maneira de caçada.  Chegando à porta do mosteiro, onde o esperava já Frei Lourenço com parte  da comunidade, apeou-se de um salto e, com rosto risonho e a mão no  barrete, agradeceu sua cortesia e aquelas mostras de amor aos populares, que  gritavam, apinhados à roda dele: «Viva D. João I de Portugal; morram os  Castelhanos!», grito absurdo, mas semelhante aos vivas de todos os tempos;  porque o povo, bem como o tigre, mistura sempre com o rugido de amor o  bramido que revela a sua índole sanguinária.

Por baixo daquelas soberbas arcadas desapareceu brevemente el-rei da vista da  multidão, que tornou a sumir-se no templo para ver o auto, que não podia  tardar.

– Muito receoso estava de que a vossa real senhoria nos não honrasse nosso  auto; porque o Sol não tarda a sumir-se no poente – dizia Frei Lourenço a el-rei, a cujo lado ia para o guiar ao seu aposento.

– Bofé, muito devoto padre-prior, que, por pouco, estive a ponto de ter que levar aos vossos pés mais uma mentira, com os outros pecados, que me não  falecem, se amanhã me quisesse confessar ao meu antigo confessor – disse-lhe  el-rei, sorrindo-se.

– E certo estou de que, entre todos os pecados de que teríeis de vos acusar,  este não fora o menos grave, e de que eu a muito custo absolveria vossa mercê  – retrucou o prior, que tinha aprendido ainda mais depressa as manhas  cortesãs no paço, do que a teologia no noviciado da sua Ordem.

– Mas, para onde me guiais, reverendíssimo prior? – disse el-rei, parando antes  de subir uma escada, para a qual Frei Lourenço o encaminhava.

– Ao vosso aposento, real senhor; porque tomeis alguma refeição e repouseis  um pouco do trabalho do caminho.

– Não foi grande o feito, para tomar repouso – acudiu el-rei –, que de  Santarém aqui é uma corrida de cavalo; muito mais para quem, em vez de cota  de malha, arnês e braçais, traz vestidos de seda. Despi-los-ei bem depressa, já  que el-rei de Castela quer jogar mais lançadas, e não vieram a conclusão de  tréguas o Mestre de Sant’Iago com o Condestável. Mas vamos, meu  doutíssimo padre; mostrai-me a Casa do Capítulo, a que mestre Ouguet  acabou de pôr seu fecho e remate. Onde está ele? Quero agradecer-lhe a boa  diligência.

– Beijo-vos as mãos pela mercê – disse mestre Ouguet, que, sabendo da  chegada de el-rei, e certo de que ele desejaria ver aquela grande obra, tinha  corrido ao mosteiro, e estava entre os da comitiva. – Se quereis ver a Casa do  Capítulo, vamos para a banda da crasta.

Dizendo isto, sem cerimônia tomou a dianteira e encaminhou-se ao longo de  um dos cobertos do claustro.

David Ouguet era um irlandês, homem mediano em quase tudo; em idade, em  estatura, em capacidade e em gordura, salvo na barriga, cujos tegumentos  tinham sofrido grande distensão em consequência da dura vida que a tirania  do filho de Erin lhe fazia padecer havia bem vinte anos. Desde muito moço  que começara a produzir grande impressão no seu espírito a invetiva do  apóstolo contra os escravos do próprio ventre, e, para evitar essa condenável  fraqueza, resolvera trazê-lo sempre sopeado. Não lhe dava tréguas; se em  Inglaterra o fizera muitos anos vergar sob o peso de dez atmosferas de  cerveja, em Portugal submetia-o ao mais fadigoso mister de canjirão  permanente. Mortificava-o assim, para que não lhe acudissem soberbas e  veleidades de senhorio e dominação. De resto, David Ouguet era bom  homem, excelente homem: não fazia aos seus semelhantes senão o mal  absolutamente indispensável ao próprio interesse; nunca matara ninguém, e  pagava com pontualidade exemplar ao alfaiate e ao merceeiro. Prudente,  positivo, e prático do mundo, não o havia mais: seria capaz de se empoleirar  sobre o cadáver do seu pai para tocar a meta de qualquer desígnio ambicioso.  Com três lições de frases ocas, dava pano para se engenharem dele dois  grandes homens de estado. Tendo vindo a Portugal como um dos cavaleiros do duque de Lencastre, procurou obter e alcançou a proteção da rainha D.  Filipa, que, havendo Afonso Domingues cegado, o fez nomear mestre das  obras do Mosteiro da Batalha, mostrando ele por documentos autênticos ter  na sua mocidade subido ao grau de mestre na sociedade secreta dos obreiros  edificadores.

Esta é, em breve resumo, a história de David Ouguet, tirada de uma velha  crônica, que, em tempos antigos, esteve em Alcobaça encadernada num  volume juntamente com os traslados autênticos das Cortes de Lamego, do  Juramento de Afonso Henriques sobre a aparição de Cristo, da Carta de feudo  a Claraval, das Histórias de Laimundo e Beroso, e de mais alguns papéis de  igual veracidade e importância que, por pirraça às nossas glórias,  provavelmente os Castelhanos nos levaram durante a dominação dos Filipes.

O lanço da crasta, em frente ao coberto por onde ia el-rei, estava ainda por  acabar. Apenas D. João I entrou naquele magnífico recinto, olhou para lá e,  voltando-se para mestre Ouguet, disse:

– Parece-me que não vão tão aprimorados os lavores daquelas arcarias como  os destas. Que me dizeis, mestre Ouguet?

– Seguiu-se à risca nesta parte – disse o arquiteto – o desenho geral do  edifício, feito por mestre Afonso Domingues; porque seria grave erro destruir  a harmonia desta peça: mas se a vossa mercê mo permite, antes de entrardes  no Capítulo tenho alguma coisa que vos dizer acerca do que ides presenciar.

– Falai desassombradamente – respondeu el-rei –, que eu vos escuto.

– Tomei a ousadia – prosseguiu mestre Ouguet – de seguir outro desenho no  fechar da imensa abóbada que cobre o Capítulo. O que achei na planta geral  contrastava as regras da arte que aprendi com os melhores mestres de  pedraria. Era, até, impossível que se fizesse uma abóbada tão achatada, como  na primitiva traça se delineou: eu, pelo menos, assim o julgo.

– E consultastes o arquiteto Afonso Domingues, antes de fazer essa mudança  no que ele havia traçado? – interrompeu el-rei.

– Por escusado o tive – replicou David Ouguet. – Cego, e por isso inabilitado  para levar a cabo a edificação, porfiaria que o seu desenho se pode executar,  visto que hoje ninguém o obriga a prová-lo por obras. Sobra-lhe orgulho:  orgulho de imaginador engenhoso. Mas que vale isso sem a ciência, como  dizia o venerável mestre Vilhelmo de Wykeham? Menos engenho e mais  estudo, eis do que havemos mister.

Dizendo isto, o arquiteto metera ambas as mãos no cinto, estendera a perna  direita excessivamente empertigada e, com a cara ereta, volvera os olhos  solene e lentamente para os circunstantes.

– Mestre Ouguet – acudiu el-rei, com aspeto severo –, lembrai-vos de que  Afonso Domingues é o maior arquiteto português. Não entendo das vossas  distinções de ciência e de engenho: sei só que o desenho de Santa Maria da  Vitória causa assombro aos vossos próprios naturais, que se gabam de ter no  seu país os mais afamados edifícios do Mundo: e esse mestre Afonso, de  quem vós falais com pouco respeito, foi o primeiro arquiteto da obra que ao  vosso cargo está hoje.

– Vossa mercê me perdoe – disse o mestre Ouguet, adocicando o tom  orgulhoso com que falara. – Longe de mim menoscabar mestre Domingues:  ninguém o venera mais do que eu; mas queria dar a razão do que fiz, seguindo  as regras do muito excelente mestre Vilhelmo de Wykeham, a quem devo o  pouco que sei, e cuja obra da Catedral de Winchestria tamanho ruído tem  feito no Mundo.

Com este diálogo chegou aquela comitiva ao portal que dava para a Casa do  Capítulo. Frei Lourenço Lampreia, como dono da casa, correu o ferrolho com  certo ar de autoridade, e encostado ao umbral cortejou a el-rei no momento  de entrar e aos mais fidalgos e cavaleiros que o acompanhavam. Mestre  Ouguet, como pessoa também principalíssima naquele lugar, colocou-se junto   do umbral carairo, repetindo com aspeto sobranceiro-risonho as mesuras do  muito devoto padre-prior.

Quando el-rei entrou dentro daquela espantosa casa, apenas através da grande  janela que a ilumina entrava uma luz frouxa, porque o Sol estava no fim da sua  carreira, e o teto profundo mal se divisava sem se afirmar muito a vista.  Mestre Ouguet ficara à porta, mas Frei Lourenço tinha entrado.

– Reverendo prior – disse el-rei, voltando-se para Frei Lourenço –, vim tarde  para gozar desta maravilhosa vista: vamos ao auto da adoração, e amanhã  voltaremos aqui a horas de sol.

E seguiu para a banda da sacristia, cuja porta lhe foi abrir o prior.

Mestre Ouguet entrou na Casa do Capítulo, quando já os últimos cavaleiros  do séquito real iam saindo pelo lado oposto, caminho da igreja. Com as mãos  metidas no cinto de couro preto que trazia, e o passo mesurado, o arquiteto  caminhou até o meio daquela desconforme quadra. O som dos passos dos  cavaleiros tinha-se desvanecido, e mestre Ouguet dizia consigo, olhando para  a porta por onde eles tinham passado:

– Pobres ignorantes! Que seria o vosso Portugal sem estrangeiros, senão um  país sáfaro e inculto? Sois vós, homens brigosos, capazes dos primores das  artes ou, sequer, de entendê-los?... Lá vão, lá vão os frades celebrar um auto!  Não serei eu que assista a ele: eu que vi os mistérios de Covêntria e de  Widkirk! Miseráveis selvagens, antes de tentardes representar mistérios, fora  melhor que mandásseis vir alguns irmãos da Sociedade dos Escrivães de  Paróquia de Londres(*), que vos ensinassem os verdadeiros mornos, ademanes  e trejeitos usados em semelhantes autos.

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[(*) Pelas crónicas de Stow vê-se que, no princípio do século XV, os mistérios eram representados em  Londres pelos escrivães da paróquia, incorporados na sociedade por Henrique III, em 1409.]
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Mestre Ouguet estava embebido neste mudo solilóquio em louvor da nação  que lhe dava de comer, e, o que deveria pesar-lhe ainda mais na consciência,  da nação que lhe dava de beber, quando, erguendo casualmente os olhos para  a maciça abóbada que sobre ele se arqueava, fez um gesto de indizível horror  e, como doido, correu a bom correr pela crasta solitária, apertando a cabeça  entre as mãos, e gritando a espaços:

– Oh, mal-aventurado de mim!


III

O AUTO

Junto a uma das colunas da Igreja de Santa Maria da Vitória estava alevantado  um estrado, sobre o qual se via uma grande e maciça cadeira de espaldas, feita  de castanho e lavrada de curiosos bestiães e lavores. Era este o lugar onde el-rei devia assistir ao auto da adoração dos reis. No mesmo estrado havia vários  assentos rasos, para neles se assentarem os fidalgos e cavaleiros que o  acompanhavam. em frente do estrado e colocado ao pé do arco da Capela do Fundador, corria para um e outro lado da parede um devoto presépio, meio erguido do chão e representando serranias agrestes, ao sopé das quais estava armada uma espécie de choça, onde, sobre a tradicional manjedoura, se via reclinado o Menino Jesus e, de joelhos junto dele, a Virgem e S. José, acompanhados de vários anjos, em ato de adoração. Diante da cabana e no mesmo nível, corria um largo e grosseiro cadafalso de muitas tábuas, para o qual, por um dos lados, davam serventia duas grossas e compridas pranchas de pinho, por onde deviam subir as personagens do auto.

Tanto que el-rei saiu da porta do cruzeiro que dá para a sacristia, encaminhou-se pela igreja abaixo e veio assentar-se na cadeira de espaldas, conduzido por Frei Lourenço, que, com todos os modos de homem cortesão, ofereceu os assentos rasos aos demais cavaleiros e fidalgos.


Pela mesma porta da sacristia saíram logo as primeiras figuras do auto, as quais, descendo ao longo da nave, subiram ao cadafalso pelas pranchas de que fizemos menção.

Estas primeiras figuras eram seis, formando uma espécie de prólogo ao auto. Três que vinham adiante representavam a Fé, a Esperança e a Caridade; após elas, vinham a Idolatria, o Diabo e a Soberba; todas com as suas insígnias muito expressivas e a ponto; mas o que enlevava os olhos da grande multidão dos espectadores era o Diabo, vestido de peles de cabra, com um rabo que lhe arrastava pelo tablado e o seu forcado na mão, muito vistoso e bem-posto.

Feitas as vénias a el-rei, a Idolatria começou seu arrazoado contra a Fé, queixando-se de que ela a pretendia esbulhar da antiga posse em que estava de receber cultos de todo o gênero humano, ao que a Fé acudia com dizer que, ab initio, estava apontado o dia em que o império dos ídolos devia acabar, e que ela Fé não era culpada de ter chegado tão asinha esse dia. Então o Diabo vinha, lamentando-se de que a Esperança começasse de entrar nos corações dos homens; que ele Diabo tinha jus antiquíssimo de desesperar toda a gente; que se dava ao demo por ver as perrarias que a Esperança lhe fazia; e, com isto, careteava, com tais momos e trejeitos, que o povo ria a rebentar, o mais devotamente que era possível. Ainda que o Diabo fizesse de truão da festa, nem por isso a sua contendora, a Esperança, dava descargo de si com menos compostura do que a tão honrada virtude cumpria, dizendo que ela obedecia ao Senhor de todas as coisas, e que este, vendo e considerando os grandes desvairos que pelo mundo iam, e como os homens se arremessavam desacordadamente no Inferno, a mandara para lhes apontar o direito caminho do Céu; e por aqui seguia com razões muito devotas e discretas, que moveriam a devotíssimas lágrimas os ouvintes, se a devoto riso os não movesse o Diabo com os seus trejeitos e esgares, como, com bastante agudeza, reflete o autor da antiga crônica de que fielmente vamos transcrevendo esta verídica história. A Soberba, que estava impando, ouvidas as razões da Esperança, travou dela muito rijo e, com voz torvada e rosto aceso, começou de bradar que esta dona era sandia, porque entendera enganar  os homens com vaidades de incertos futuros e sustentá-los com fumo; que pretendia, contra toda a ordem de boa razão, que a gente vil houvesse igual quinhão no Céu com os senhores e cavaleiros, o que era descomunal ousadia e fora da geral opinião e direito, indo por aqui discursando com remoques muito orgulhosos, como a Soberba que era. Não sofreu, porém, o ânimo da Caridade tão descomposto razoar da sua figadal inimiga, e lho atalhou com tomar a mão naquele ponto e notar que os filhos de Adão eram todos uns aos olhos do Todo-Poderoso; que a Soberba inventara as vãs distinções entre os homens, e que à vida eternal mais amorosamente eram os pequenos e humildosos chamados, do que os potentes, o que provou claramente à sua contrária com bastos textos das santas escrituras, de que a Soberba ficou muito corrida, por não ter contra tão grande autoridade resposta cabal. E acabado o dizer da Caridade, um anjo subiu ao cadafalso, para dar sua sentença, que foi mandar recolher ao abismo a Idolatria, o Diabo e a Soberba, e anunciar às três virtudes que as ia elevar ao Céu, onde reinariam em glória perdurável. Então o Diabo, fazendo horribilíssimos biocos, pegou pela mão às suas companheiras e fugiu pela igreja fora, com grandes apupos e doestos dos espectadores. Guiando as três virtudes, o anjo (por uma daquelas liberdades cênicas que ainda hoje se admitem, quando, nas vistas de marinha, o ator que vem embarcado desce dois ou três degraus das ondas de papelão para a terra de soalho), em vez de subir ao Céu, como anunciara, desceu pelas pranchas que davam para o pavimento da igreja, e, caminhando ao longo da nave, se recolheu à sacristia, acompanhado da Fé, Esperança e Caridade, tão vitoriadas pelos espectadores, como apupados tinham sido o Diabo e as suas infernais companheiras.

Ainda bem não eram recolhidas estas figuras, quando, pela mesma porta do cruzeiro, saíram os três reis magos, ricamente vestidos ao antigo, com roupas talares de fina tela, mantos reais, e coroas na cabeça. Adiante vinha Baltasar, homem já velho, mas bem-disposto da sua pessoa, com aspeto grave e autorizado e com umas barbas, posto que brancas, bem povoadas; logo após ele, vinha o rei Belchior, e a este seguia-se Gaspar. Traziam todos suas bocetas, em que eram guardados os preciosos dons que ao recém-nascido vinham de longes terras ofertar. Subindo ao cadafalso, disseram como uma estrela os guiara até Jerusalém e como desta cidade, depois de muito trabalhado e duvidoso caminho, tinham acertado em vir a Belém e, com grande folgança, encontravam aí o presepe, para fazer seu ofertório, o que, em verdade, era coisa muito piedosa de ouvir. O rei Baltasar, como mais velho e sisudo, foi o primeiro que ajoelhou junto do presepe e, com voz muito entoada e depondo ante o Menino seus presentes, disse:

Santo filho de David,
Divinal
Salvador da triste raça
Humanal,
Que descestes lá do assento
Celestial,
Vós da glória imperador
Eternal,
Aceitai este ofertório
Não real,
Pobre si. É quanto posso:
Não hei al.
O que fora compridoiro
De auto tal
Bem o sei. Andei más vias,
pelo meu mal;
Que dez dias prantei tendas
De arraial
Nas soidões fundas d'Arabia:
muito fatal.
Meus camelos há tisnado
Sol mortal;
E um, de vento do deserto,
Vendaval.
O presente que aí vedes
Pouco val;
É somente algum incenso
Oriental;
Que o tesouro que eu trazia,
muito cabal
Soterrou-mo a tempestade
No areal.

E com isto, o venerável rei Baltasar, depois de fazer sua oração em voz baixa, ergueu-se, e o rei Belchior, ajoelhando e depondo a urna que trazia nas mãos  ante o presepe, disse:

Vindo sou lá do Cataio
A adorar-vos, alto infante,
Redentor:
Não me pôs na alma desmaio
Ser de terra tão distante
Rei, senhor!
É bem torva a minha face:
Minhas mãos tingidas são
De negrura;
Mas na terra onde o Sol nasce
Mais se cobre o coração
De tristura;
Porque o torpe Mafamede
Sua crença muito sandia
Mandou lá,
E não há quem dela arrede
Essa gente, que aperfia
Em ser má.
Real tronco de Jessé,
muito fermoso, se eu pudera,
Vos levara,
E, convosco, à vossa fé
Os incréus eu convertera,
E os salvara.
Ora quero ver se peito
São José, que é vosso padre...

Um sussurro, que começara no momento em que o rei preto ajoelhou e que  mal deixara ouvir a precedente loa (obra muito prima de certo leigo, afamado  jogral daquele tempo), cresceu neste momento a tal ponto, que o corista que  fazia o papel de Belchior não pôde continuar, com grande dissabor do poeta,  que via murchar a coroa de louros que neste auto esperava obter. O povo   agitava-se, e do meio dele saíam gritos descompostos, que aumentavam o  tumulto. El-rei tinha-se erguido, e juntamente os demais cavaleiros e fidalgos:  todos indagavam a origem do motim; mas não havia acertar com ela. Enfim,  um homem, rompendo por entre a multidão, sem touca na cabeça, cabelos  desgrenhados, boca torcida e coberta de escuma, olhos esgazeados, saltou  para dentro da teia, que fazia um claro em roda do tablado. Apenas se viu  dentro daquele recinto, ficou imóvel, com os braços estendidos para o teto, as  palmas das mãos voltadas para cima, e a cabeça encolhida entre os ombros,  como quem, cheio de horror, via sobre si desabar aquelas altíssimas e maciças  arcarias.

– Mestre Ouguet! – exclamou el-rei espantado.

– Mestre Ouguet! – gritou Frei Lourenço, com todos os sinais de assombro.

– Mestre Ouguet! – repetiram os cavaleiros e fidalgos, para também dizerem
alguma coisa.

– Quem fala aqui no meu nome? – rosnou David Ouguet, com voz  comprimida e sepulcral. – Malvados! Querem assassinar-me?! Querem arrojar  sobre mim esse montão de pedras, como se eu fora um cão judeu, que  merecesse ser apedrejado?! Oh meu Deus, salvai a minha alma! – E depois de  breve silêncio, em que pareceu tomar fôlego: – Não vos chegueis aí! – bradou  ele. – Não vedes essas fendas, profundas como o caminho do Inferno? São  escuras: mas, através delas, lá enxergo eu o luar! Vós não, porque vossos olhos   estão cegos... porque o vosso bom nome não se escoa por lá!... Cegos?... Não  vós!... mas ele! Ele é que se ri e folga na sua orgulhosa soberba! Vede como  escancara aquela boca hedionda; como revolve, debaixo das pálpebras  cobertas de vermelhidão, aqueles olhos embaciados!... Maldito velho, foge  diante de mim!... Maldito, maldito!... Curvada já no centro... senti-a escaliçar e  ranger... Estavas tu assentado em cima dela? Feiticeiro!... Anda, que eu bem  ouço as tuas gargalhadas!... Não há um raio que te confunda?... Não!

Dizendo isto, mestre Ouguet cobriu a cara com as mãos e ficou outra vez  imóvel.

El-rei, os cavaleiros, os padres mais dignos que estavam de roda do estrado  real, os reis magos, os populares, todos olhavam pasmados para o arquiteto,  que assim interrompera a solenidade do auto. Silêncio profundo sucedera ao  ruído que a aparição daquele homem desvairado excitara. Milhares de olhos  estavam fitos nesse vulto, que semelhava uma larva de condenado saída das  profundezas para turbar a festa religiosa. Por mais de um cérebro passou este  pensamento; em mais de uma cabeça os cabelos se eriçaram de horror; mas,  dos que conheciam mestre Ouguet, nenhum duvidou de que fosse ele em  corpo e alma. Que proveito tiraria o demônio de tomar a figura do arquiteto  para fazer uma das suas irreverentes diabruras? Só uma suposição havia que  não era inteiramente desarrazoada: David Ouguet podia estar possesso, em  consequência de algum grave pecado; pecado que, talvez, tivesse omitido na  última confissão, que fizera na véspera de Natal. Isto era possível e, até,   natural; que não vivia ele a mais justificada vida. Supor que endoidecera  parecia grande despropósito; porque nenhum motivo havia para tal lhe  acontecer, quando merecera os gabos de el-rei e de todos, por ter levado a  cabo a grandiosa obra que lhe estava encomendada. Estes e outros raciocínios,  hoje ridículos, mas, segundo as ideias daquela época, bem fundados e  correntes, fazia o reverendo padre-procurador Frei Joane, que tinha vindo  assistir ao auto e estava em pé atrás do estrado, perto de Frei Lourenço  Lampreia. Revolvendo tais pensamentos, no meio daquele silêncio ansioso em  que todos estavam, não pôde ter-se que, pé ante pé, se não chegasse ao prior e  lhos comunicasse em voz baixa, ao ouvido.

– Não vou fora disso – respondeu o prior, que, enquanto o outro frade lhe  falara, estivera dando à cabeça, em sinal de aprovação. – O olhar espantado, o  escumar, o estorcer os membros e o falar não sei de que feiticeiro, tudo me  induz a crer que o demônio se chantou naquele miserável corpo, como vós  aventais. Se assim é, pouco juízo mostrou desta vez o diabo em vir com os  seus esgares e tropelias atalhar o muito devoto auto da adoração. Examinemos  se assim é, e eu vo-lo darei bem castigado.

Dizendo isto, Frei Lourenço chegou-se a el-rei e disse-lhe o que quer que  fosse. Ele escutou-o atentamente e, tanto que o prior acabou, assentou-se  outra vez na sua cadeira de espaldas e fez sinal com a mão aos fidalgos e  cavaleiros para que também se assentassem.
Frei Lourenço, acompanhado de mais alguns frades, subiu pela igreja acima e  entrou na sacristia. Todos ficaram esperando, silenciosos e imóveis como  mestre Ouguet, o desfecho desta cena, que se encaixava no meio das cenas do  auto.

Tinham passado obra de três credos, quando, saindo outra vez da porta da  sacristia, Frei Lourenço voltou pela igreja abaixo, revestido com as vestes  sacerdotais, chegou à teia, abriu-a e encaminhou-se para mestre Ouguet.  Depois, olhando de roda e fazendo um aceno de autoridade, disse:

– Ajoelhai, cristãos, e orai ao Padre Eterno por este nosso irmão, tomado de  espírito imundo.

A estas palavras, rei, cavaleiros, frades, povo, tudo se pôs de joelhos. E ouvia-se ao longo das naves o sussurro das orações.

Só mestre Ouguet ficou sem se bulir, com o rosto metido entre as mãos.

O prior lançou a estola à roda do pescoço do possesso e queria atar os três nós do ritual; mas o paciente deu um estremeção e, tirando as mãos da cara, fez um gesto de horror e gritou:

– Frade abominável, também tu és conluiado com o cego?

– Não há dúvida! – disse por entre os dentes o prior. – Mestre Ouguet está endemoninhado.

Tirando então da manga um pergaminho, em que estavam escritas várias coisas de doutrina, pô-lo sobre a cabeça do mestre, fazendo sobre ele três vezes o sinal-da-cruz.

David Ouguet soltou então uma destas risadas nervosas que horrorizam e que tão frequentes são, quando o padecimento moral sobrepuja as forças da natureza.

– Cão tinhoso – bradou Frei Lourenço –, espírito das trevas, enganador, maldito, luxurioso, insipiente, ébrio, serpe, víbora, vil e refece demónio; enfim, castelhano(*). Em nome do Criador e senhor de todas as coisas, te mando que repitas o credo ou saias deste miserável corpo. 

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[(*) O inquisidor Sprenger, no livro intitulado Malleus Malleficarum, recomenda aos exorcistas que, antes de tudo, descomponham e injuriem quanto puderem os possessos, advertindo que não são propriamente estes que recebem as afrontas, mas sim o Diabo que têm no corpo. A conveniência de tais doestos é que para o Demónio, pai da Soberba, não pode haver maior pirraça do que ser descomposto na sua cara, sem que ele se possa desagravar. Veja-se o livro citado, edição de Lião de 1604 – Tomo 2.0, pág. 83. Assim, o prior devia guardar para o fim daquele rol de injúrias a que, no ardor do fanatismo político da época, se reputava a máxima afronta.]
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Mestre Ouguet ficou imóvel e calado.

– Não cedes?! – prosseguiu o prior. – Recorrerei ao sétimo, ao mais terrível  exorcismo. Veremos se poderás ao teu salvo escarnecer das criaturas feitas à  imagem e semelhança de Deus.

Depois de várias cerimônias e orações, Frei Lourenço chegou-se ao pobre irlandês e começou a repetir o conjuro, fazendo-lhe uma cruz sobre a testa, a cada uma das seguintes palavras, que proferia lentamente:

– Hel – Heloym – Heloa – Sabaoth – Helyon – Esereheye – Adonay – Iehova  – Ya – Thetagrammaton – Saday – Messias – Hagios – Ischiros – Otheos –  Athanatos – Sother – Emanuel – Agla...

– Jesus! – bradou a uma voz toda a gente que estava na igreja.

– Diabo! – gritou mestre Ouguet; e caiu no chão como morto.

E houve um momento de angústia e terror, em que todos os corações deixaram de bater, e em que todos os olhos, braços e pernas ficaram fixos, como se fossem de bronze.

Um ruído, semelhante ao de cem bombardas que se houvessem disparado dentro do mosteiro e que soara da banda da sacristia, tinha arrancado aquele grito de mil bocas e convertido em estátuas essa multidão de povo.

Há situações tão violentas que, se durassem, a morte se lhes seguiria em breve; mas a providente Natureza parece restaurar com dobrada energia o vigor físico e espiritual do homem depois destes abalos espantosos. Então, melhor que nunca, ele sente em si que, posto que despenhado, não perdeu a sublimidade da sua origem divina. A reação segue a ação; e quanto mais tímido o indivíduo se mostrou, mais viva é a consciência da própria força, que, depois disso, renasce com o destemor e ousadia.

Foi o que sucedeu a D. João I, aos cavaleiros do seu séquito e ao povo que estava na Igreja de Santa Maria, passado aquele instante de sobrenatural pavor. A terribilidade da cerimónia que Frei Lourenço executava, o ruído inesperado que rompera o exorcismo, o grito blasfemo do arquiteto, no momento de cair por terra, o lugar, a hora, eram coisas que, reunidas, fariam pedir confissão a uma grande manada de enciclopedistas e que, por isso, não é de admirar fizessem impressão vivíssima em homens de um século, não só crente, mas também supersticioso. Todavia, o ânimo indomável do Mestre de Avis brevemente fez cobrar alento a todos os que aí estavam.

– É, em verdade, descomunal maravilha o que temos visto e ouvido – disse ele com voz firme, voltando-se para os que o rodeavam –; mas cumpre indagar donde procede o ruído que veio interromper o muito devoto padre-prior no exercício do seu ministério tremendo. Soou esse medonho estampido da banda do claustro; vamos examinar o que seja: se diabólico, estamos na casa de Deus, e a Cruz é nosso amparo; se natural, que haverá no mundo capaz de pôr espanto em cavaleiros portugueses?

Dizendo isto, el-rei desceu do estrado e encaminhou-se para a sacristia. Os cavaleiros da comitiva, os frades, os três reis magos (que ainda estavam em pé sobre o tablado) e grande parte do povo tomaram o mesmo caminho.

El-rei ia adiante, e o prior era o que mais de perto o seguia. Cruzaram o arco gótico que dava comunicação para a sacristia: aí tudo estava em silêncio; uma lâmpada que pendia do teto dava luz frouxa e mortiça, e, a esta luz incerta e baça, encaminharam-se para a porta do Capítulo. Ao chegar a ela, todos recuaram de espanto, e um segundo grito soou e veio morrer sussurrando pelas naves da igreja quase deserta:

– Jesus!

As portas tinham estoirado nos seus grossíssimos gonzos, e muito cimento solto e pedras quebradas tinham rolado pelo portal fora, entulhando-lhe quase um terço da altura. Olhando para o interior daquela imensa quadra, não se viam senão enormes fragmentos de cantos lavrados, de laçarias, de cornijas, de voltas e de relevos: a Lua, que passava tranquila nos céus, refletia o seu clarão pálido sobre este montão de ruínas, semelhantes aos monumentos irregulares de um cemitério cristão; e, por cima daquele temeroso silêncio, passava o frio leste da noite e vinha bater nas faces turbadas dos que, apinhados na sacristia, contemplavam este lastimoso espetáculo.

Dos olhos de el-rei e de Frei Lourenço caíram algumas lágrimas, que eles debalde tentavam reprimir.

A abóbada do Capítulo, acabada havia vinte e quatro horas, tinha desabado em terra!


IV

UM REI CAVALEIRO 

Em uma quadra das que serviam de aposentos reais no Mosteiro da Batalha, à roda de um bufete de carvalho de lavor antigo, cujos pés, torneados em linha espiral, eram travados por uma espécie de escabelo, que pelos topos se embebia neles, estavam assentadas várias personagens daquelas com quem o leitor já tratou nos antecedentes capítulos. Eram estas D. João I, Frei Lourenço Lampreia e o procurador Frei Joane. El-rei estava à cabeceira da mesa, e no topo carairo o prior, tendo à sua esquerda Frei Joane. Além destes, outros indivíduos aí estavam, que as pessoas lidas nas crônicas deste reino também conhecerão: tais eram os doutores João das Regras e Martim de Océm, do conselho de el-rei, cavaleiros muito graves e autorizados, e, afora eles, mais alguns fidalgos que D. João I particularmente estimavam. Atrás da cadeira de el-rei, um pajem esperava, em pé, as ordens do seu real senhor. O quadrante do terrado contíguo apontava meio-dia.

Em cima do bufete estava estendido um grande rolo de pergaminho, no qual todos os olhos dos circunstantes se fitavam: era a traça ou desenho do mosteiro que delineara mestre Afonso Domingues, onde, além dos prospetos gerais do edifício, iluminados primorosamente, se viam todos os cortes e alçados de cada uma das partes dessa complicada e maravilhosa fábrica. El-rei tinha a mão estendida e os dedos sobre o risco da casa capitular, ao passo que falava com o prior:

– Parece impossível isso; porque natural desejo é de todos os homens alcançarem repouso e pão na velhice, e não vejo razão para mestre Afonso se doer da mercê que lhe fiz.

– Pois a conversação que vos relatei, tive-a com ele ainda ontem, pouco antes da vossa mercê aqui chegar.

– E como vai David Ouguet? – perguntou el-rei.

– Com grande melhoria – respondeu o prior. – Dormiu bom espaço e acordou no seu juízo. Contou-me que, entrando ontem após nós na Casa do Capítulo e afirmando a vista na abóbada, conhecera que tinha gemido e estava a ponto de desabar; que sentira apertar-se-lhe o coração e que, com a sua aflição, correra pela crasta fora, como doido; que no céu se lhe afigurava um relampaguear incessante e medonho; que via... nem ele sabe o que via, o pobre homem. Depois disso, diz que perdera o tino, e de nada mais se recorda.

– Nem dos exorcismos? – perguntou em meia voz Martim de Océm, com um sorriso malicioso.

– Nem dos exorcismos – retrucou Frei Lourenço no mesmo tom, mas subindo-lhe ao rosto a vermelhidão da cólera. – A propósito, doutor. Dizem-me que Anequim(*) é morto, e que el-rei proveu o cargo num dos do seu conselho. Seria verdadeira esta mercê singular?

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 [(*)Anequim era o bobo do paço no tempo de D. Fernando, a quem sobreviveu.]
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E o frade media o letrado de alto a baixo, com os olhos irritados. Este preparava-se para vibrar ao prior uma nova injúria indireta, naquele jogo de alusões que era as delícias do tempo, quando el-rei acenou ao pajem, dizendo-lhe:

– Álvaro Vaz de Almada, ide depressa à morada de Afonso Domingues, dizei-lhe que eu quero falar-lhe e guiai-o para aqui. Fazei isso com tento: lembrai-vos de que ele é um antigo cavaleiro, que militou com o vosso muito esforçado pai.

O pajem saiu a cumprir o mandado de el-rei.

– Dizeis vós – prosseguiu este, dirigindo-se a João das Regras e a Martim de Océm – que talvez Afonso Domingues se enganasse em supor que era possível fazer uma abóbada tão pouco erguida, como é a que ele traçou para o Capítulo. Não creio eu que tão entendido arquiteto assim se enganasse: mais inclinado estou a persuadir-me de que o lastimoso sucesso de ontem à noite procedesse da grave falta cometida por mestre Ouguet nesta edificação.

– E que falta foi essa, se a vossa mercê apraz dizer-mo? – replicou João das Regras.

– A de não seguir de todo o ponto o desenho de mestre Afonso – disse el-rei.

– E se a execução da sua traça fosse impossível? – acudiu o doutor.

– Impossível?! – atalhou el-rei. – E não contava ele com levá-la a efeito, se Deus o não tolhesse dos olhos?

– E é disso que mais se dói mestre Afonso – interrompeu o prior. – A sua grande canseira é que ninguém saberá continuar a edificação do mosteiro ou, como ele diz, prosseguir a escritura do seu livro de pedra, porque ninguém é capaz de entender o pensamento que o dirigiu na conceção dele.

– Roncarias e feros são esses próprios de quem foi homem de armas de Nun’Álvares – disse o chanceler João das Regras. – Todos os da sua bandeira são como ele. Porque sabem jogar boas lançadas, têm-se em conta de príncipes dos discretos; e o cego não se esqueceu ainda de que comeu da caldeira do Condestável.

João das Regras, émulo de Nun’Álvares, não perdeu esta oportunidade de lhe pôr pecha; mas D. João I, que conhecia serem esses dois homens as pedras angulares do seu trono, escutava-os sempre com respeito, salvo quando falavam um do outro; posto que o Condestável, homem mais de obras que de palavras, raras vezes menoscabava os méritos do chanceler, contentando-se com lançar na balança em que João das Regras mostrava o grande peso da sua pena o montante com que ele Nun’Álvares tinha, em cem combates, salvado a pátria do domínio estranho e a cabeça do chanceler das mãos do carrasco, de que não o livrariam nem os graus de doutor de Bolonha, nem os textos das leis romanas.

– Deixai lá o Condestável, que não vem ao intento – disse el-rei –; o que me importa é ouvir mestre Afonso sobre este caso. Quisera antes perder um recontro com castelhanos do que pensar que o Capítulo de Santa Maria da Vitória ficará em ruínas. Mestre Ouguet com a sua arte deixou-lhe vir ao chão a abóbada: se Afonso Domingues for capaz de a tornar a erguer e deixá-la firme, concluirei daí que vale mais o cego que o limpo de vista: e digo-vos que o restituirei ao antigo cargo, ainda que esteja, além de cego, coxo e mouco.

Neste momento entrava o velho arquiteto, agarrado ao braço de Álvaro Vaz de Almada, que o veio guiando para o topo da desmesurada banca de carvalho, à roda da qual se travara o diálogo que acima transcrevemos.

– Dom donzel, onde é que está el-rei? – dizia Afonso Domingues ao pajem, caminhando com passos incertos ao longo do vasto aposento.

D. João I, que ouvira a pergunta, respondeu em vez do pajem:

– Agora nenhum rei está aqui, mas sim o Mestre de Avis, o vosso antigo capitão, nobre cavaleiro de Aljubarrota.

– Beijo-vos as mãos, senhor rei, por vos lembrardes ainda de um velho homem de armas que para nada presta hoje. Vede o que de mim mandais; porque, da vossa ordem, aqui me trouxe este bom donzel.

– Queria ver-vos e falar-vos; que do coração vos estimo, honrado e sabedor arquiteto do Mosteiro de Santa Maria.

– Arquiteto do Mosteiro de Santa Maria, já o não sou: vossa mercê me tirou esse encargo; sabedor, nunca o fui, pelo menos muitos assim o creem, e alguns o dizem. Dos títulos que me dais só me cabe hoje o de honrado; que esse, mercê de Deus, é meu, e fora infâmia roubá-lo a quem já não pode pegar em montante para defendê-lo.

– Sei, meu bom cavaleiro, que estais muito torvado comigo por dar a outrem o cargo de mestre das obras do mosteiro: nisso cria eu fazer-vos assinalada mercê. Mas, venhamos ao ponto: sabeis que a abóbada do Capítulo desabou ontem à noite?

– Sabia-o, senhor, antes do caso suceder.

– Como é isso possível?

– Porque todos os dias perguntava a alguns desses poucos obreiros portugueses que aí restam como ia a feitura da casa capitular. No desenho dela pusera eu todo o cabedal do meu fraco engenho, e este aposento era a obra-prima da minha imaginação. Por eles soube que a traça primitiva fora alterada  e que a juntura das pedras era feita por modo diverso do que eu tinha apontado. Profetizei-lhes então o que havia de acontecer. E – acrescentou o velho, com um sorriso amargo – muito fez já o meu sucessor em por tal arte lhe pôr o remate que não desabasse antes das vinte e quatro horas.

– E tínheis vós por certo que, se a vossa traça se houvera seguido, essa desmesurada abóbada não viria a terra?

– Se estes olhos não tivessem feito com que eu fosse posto de banda como uma carta de testamento antiga, que se atira, por inútil, para o fundo de uma arca, a pedra de fecho dessa abóbada não teria de vir esmigalhar-se no pavimento antes de sobre ela pesarem muito séculos; mas os do vosso conselho julgaram que um cego para nada podia prestar.

– Pois, se ousais levar a cabo vosso desenho, eu ordeno que o façais, e desde já vos nomeio de novo mestre das obras do mosteiro, e David Ouguet vos obedecerá.

– Senhor rei – disse o cego, erguendo a cara, que até ali tivera curvada –, vós tendes um cetro e uma espada; tendes cavaleiros e besteiros; tendes ouro e poder: Portugal é vosso, e tudo quanto ele contém, salvo a liberdade dos vossos vassalos: nesta nada mandais. Não!... vos digo eu: não serei quem torne a erguer essa derrocada abóbada! Os vossos conselheiros julgaram-me incapaz disso: agora eles que a alevantem.

As faces de D. João I tingiram-se do rubor do despeito.

– Lembrai-vos, cavaleiro – disse-lhe –, de que falais com D. João I.

– Cuja coroa – acudiu o cego – lhe foi posta na cabeça por lanças, entre as quais reluzia o ferro da que eu brandia. D. João I é assaz nobre e generoso, para não se esquecer de que nessas lanças estava escrito: os vassalos portugueses são livres.

– Mas – disse el-rei – os vassalos que desobedecem aos mandados daquele em cuja casa têm acostamento, podem ser privados da sua moradia...

– Se dizeis isso pela que me destes, tirai-ma; que não vo-la pedi eu. Não morrerei de fome; que um velho soldado de Aljubarrota achará sempre quem lhe esmole uma mealha; e quando haja de morrer à míngua de todo humano socorro, bem pouco importa isso a quem vê arrancarem-lhe, nas bordas da sepultura, aquilo porque trabalhou toda a vida: um nome honrado e glorioso.

Dizendo isto, o velho levou a manga do gibão aos olhos baços e embebeu  nela uma lágrima mal sustida. El-rei sentiu a piedade coar-lhe no coração  comprimido de despeito e dilatar-lho suavemente. Umas das dores de alma  que, em vez de a lacerar, a consolam, é sem dúvida a compaixão.

– Vamos, bom cavaleiro – disse el-rei pondo-se em pé –, não haja entre nós  doestos. O arquiteto do Mosteiro de Santa Maria vale bem o seu fundador!  Houve um dia em que nós ambos fomos pelejadores: eu tornei célebre o meu  nome, a consciência mo diz, entre os príncipes do Mundo, porque segui  avante por campos de batalha; ela vos dirá, também, que a vossa fama será  perpétua, havendo trocado a espada pela pena com que traçastes o desenho  do grande monumento da independência e da glória desta terra. Rei dos  homens do aceso imaginar, não desprezeis o rei dos melhores cavaleiros, os  cavaleiros portugueses! Também vós fostes um deles; e negar-vos-ei a  prosseguir na edificação desta memória, desta tradição de mármore, que há de  recordar aos vindouros a história dos nossos feitos? Mestre Afonso  Domingues, escutai os ossos de tantos valentes que vos acusam de trairdes a  boa e antiga amizade. Vem de todos os vales e montanhas de Portugal o soído  desse queixume de mortos; porque, nas contendas da liberdade, por toda a  parte se verteu sangue e foram semeados cadáveres de cavaleiros! Eis, pois: se  não perdoais a D. João I uma suposta afronta, perdoai-a ao Mestre de Avis, ao  vosso antigo capitão, que, em nome da gente portuguesa, vos cita para o  tribunal da posteridade, se refusais consagrar outra vez à pátria vosso  maravilhoso engenho, e que vos abraça, como antigo irmão nos combates, porque, certo, crê que não querereis perder na vossa velhice o nome de bom e honrado português.

El-rei parecia grandemente comovido, e, talvez involuntariamente, lançou um braço ao redor do pescoço do cego, que soluçava e tremia sem soltar uma só palavra.

Houve uma longa pausa. Todos se tinham posto em pé quando el-rei se erguera e esperavam ansiosos o que diria o velho. Finalmente este rompeu o silêncio.

– Vencestes, senhor rei, vencestes!... A abóbada da casa capitular não ficará por terra. Oh meu Mosteiro da Batalha, sonho querido de quinze anos de vida entregues a pensamentos, a mais formosa das tuas imagens será realizada, será duradoura, como a pedra em que vou estampá-la! Senhor rei, as nossas almas entendem-se: as únicas palavras harmoniosas e inteiramente suaves que tenho ouvido há muitos anos, são as que vos saíram da boca: só D. João I compreende Afonso Domingues; porque só ele compreende a valia destas duas palavras formosíssimas, palavras de anjos: pátria e glória. A passada injúria, aos vossos conselheiros a atribuí sempre, que não a vós, posto que de vós, que éreis rei, me queixasse; varrê-la-ei da memória, como o entalhador varre as lascas e a pedra moída pelo cinzel de cima do vulto que entalhou em gárgula de cimalha rendada. Que me restituam os meus oficiais e obreiros portugueses; que português sou eu, portuguesa a minha obra! De hoje a quatro meses podeis voltar aqui, senhor rei, e ou eu morrerei ou a casa capitular da Batalha estará firme, como é firme a minha crença na imortalidade e na glória.

El-rei apertou então entre os braços o bom do cego, que procurava ajoelhar aos seus pés. Era a atração de duas almas sublimes, que voavam uma para a outra. Por fim, D. João I fez um sinal ao pajem, que se aproximou:

– Álvaro Vaz, acompanhai este nobre cavaleiro a sua pousada. E vós, mestre muito sabedor, ide repousar: dentro de quinze dias vossos antigos oficiais terão voltado de Guimarães para cumprirem o que mandardes. muito devoto padre-prior – continuou el-rei, voltando-se para Frei Lourenço –, entendei que de ora avante Afonso Domingues, cavaleiro da minha casa, torna a ser mestre das obras do Mosteiro de Santa Maria da Vitória, enquanto assim lhe aprouver.

O prior fez uma profunda reverência.

A alegria tinha tolhido a voz do arquiteto: diante de toda a corte el-rei o havia desafrontado, e já, sem desdouro, podia aceitar o encargo de que o tinham despojado. Com passos incertos, e seguro ao braço do pajem, saiu do aposento, feita vénia a el-rei.

Este deu imediatamente ordem para a partida. Quando todos iam saindo, o prior chegou-se ao velho chanceler e disse-lhe em tom submisso:

– Doutor Johannes a Regulis, espero que narreis fielmente à rainha o que sucedeu e a certifiqueis de quanto me custa ver tirada a régua magistral a mestre Ouguet...

– Foi – disse o político discípulo de Bártolo – mais uma façanha de D. João I: começou por brigar com um louco, e acabou abraçando-o, por lhe ver derramar uma lágrima. Bem trabalho por fazer do Mestre de Avis um rei; mas sai-me sempre cavaleiro andante. Não lhe sucedera isto, se, em vez de passar a mocidade em pelejas, a houvera passado a estudar em Bolonha. Tenho-lhe dito mil vezes que é preciso lisonjear os ingleses porque carecemos deles: a tudo me responde com dizer que, com Deus e o próprio montante, tem em nada Castela; todavia a gente inglesa ufanava-se de ser David Ouguet o mestre desta edificação. E que importava que ela fosse mais ou menos primorosa, a troco de contentarmos os que conosco estão liados? Quanto a vós, reverendo prior, ficai descansado; tudo fia a rainha da vossa prudência, que é muita, posto que não vistes Bolonha. Vamos, reverendíssimo.

A Corte já tinha saído: os dois velhos seguiram-na ao longo daquelas arcadas, conversando um com o outro em voz baixa.


V

O VOTO FATAL

Rica de galas, a Primavera tinha vestido os campos da Estremadura do viço das suas flores: a madressilva, a rosa agreste, o rosmaninho e toda a casta de boninas teciam um tapete odorífero e imenso, por charnecas, cômoros e sapais e pelo chão das matas e florestas, que agitavam as caras sonolentas com a brisa de manhã puríssima, mostrando aos olhos um baloiçar de verdura compassado com o das searas rasteiras, que, mais longe, pelas veigas e outeiros, ondeavam suavemente. Eram 7 de Maio da era de 1439 ou, como os letrados diziam, do ano da Redenção 1401. Quatro meses certos se contavam nesse dia, depois daquele em que, numa das quadras do aposento real no Mosteiro da Batalha, se passara a cena que no antecedente capítulo narramos e que extraímos do famoso manuscrito mencionado no capítulo II, com aquela pontualidade e verdade com que o grande cronista Frei Bernardo de Brito citava só documentos inegáveis e autores certíssimos, e com aquela imparcialidade e exação com que o filósofo de Ferney referia e avaliava os factos em que podia interessar a religião cristã.

Assistiu o leitor à promessa que mestre Afonso Domingues fez a D. João I de que dentro de quatro meses lhe daria posto o remate na abóbada da casa capitular de Santa Maria da Vitória, e lembrado estará de como el-rei lhe prometera, também, mandar ir de Guimarães todos os oficiais portugueses que, despedidos da Batalha por mestre Ouguet, como menos habilidosos que os estrangeiros, tinham sido mandados para a obra, posto que grandiosa, menos importante, de Santa Maria da Oliveira, hoje desaportuguesada e caiada e dourada e mutilada pelo mais bárbaro abuso da riqueza e da ignorância clerical. A palavra do Mestre de Avis não voltara atrás, não por ser palavra de rei, mas por ser palavra de cavaleiro daqueles tempos, em que tão nobres afetos e instintos havia nos corações dos nossos avós que de bom grado lhes devemos perdoar a rudeza. Tendo partido de Alcobaça para Guimarães, onde nesse ano se juntavam cortes, apenas aí chegara tinha mandado partir para Santa Maria da Vitória os oficiais e obreiros mais entendidos, que vieram apresentar-se a mestre Afonso.

Este, resolvido, também, a cumprir o prometido, metera mãos à obra. O Capítulo foi desentulhado: aproveitaram-se as pedras da primeira edificação que era possível aproveitar, lavraram-se outras de novo, armaram-se os simples e, muito antes do dia aprazado, o fecho ou remate da abóbada repousava no seu lugar.

Durante estes quatro meses os sucessos políticos tinham trazido D. João I a Santarém, onde se fizera prestes com bom número de lanças, besteiras e peões para ir juntar-se com o Condestável, e entrarem ambos por Castela, cuja guerra tinha recomeçado, por se haverem acabado as tréguas. Para esta entrada se aparelhara el-rei com uma lustrosa companhia dos seus cavaleiros e, caminhando pela margem direita do Tejo, acampara junto a Tancos, onde se havia de construir uma ponte de barcas, para passar o exército e seguir avante até o Crato, que era o lugar aprazado com o Condestável, para juntos irem dar sobre Alcântara.

Em Vale de Tancos estava assentado o arraial da hoste de el-rei: os petintais que tinham vindo de Lisboa trabalhavam na ponte de barcas que se devia lançar sobre o Tejo; os besteiros alimpavam suas bestas e folgavam em lutas e jogos; os cavaleiros corriam pontas, atiravam ao tavolado, monteavam ou matavam o tempo em banquetes e beberronias. Tinham chegado àquele sítio a 5 de Maio, e no dia seguinte el-rei partira aferradamente para a Batalha, porque não se esquecera de que os quatro meses que pedira Afonso Domingues para alevantar a abóbada eram passados, e fora avisado por Frei Lourenço de que a obra estava acabada, mas que o arquiteto não quisera tirar os simples senão na presença de el-rei.

Antes de partir de Lisboa, D. João I mandara sair dos cárceres em que jaziam bom número de criminosos e de cativos castelhanos, que, com grande pasmo dos povos, e rodeados por uma grossa manga de besteiros, tomaram o caminho da Batalha, sem que ninguém aventasse o motivo disto. Todavia, ele era óbvio: el-rei pensou que, assim como a abóbada do Capítulo desabara, da primeira vez, passadas vinte e quatro horas depois de desamparada, assim podia agora derrocar-se em cima dos obreiros, no momento de lhe tirarem os prumos e traveses sobre que fora edificada. Solícito pela vida dos seus vassalos, parente do povo pela sua mãe, e crendo por isso que a morte de um popular também tinha seu trance de agonia e que lágrimas de órfãos pobres eram tão amargas ou, porventura, mais que as de infantes e senhores, não quis que se arriscassem senão vidas condenadas, ou pela guerra ou pelos tribunais, e que, naquela, se tinham remido pela covardia e, nestes, pela piedade ou, antes, pelo esquecimento dos juízes. E se da primeira vez lhe não acorrera esta ideia, fora porque, também, na memória de obreiros portugueses não havia lembrança de ter desabado uma abóbada apenas construída.

Seguido só por dois pajens, D. João I atravessou a vila de Ourém pelas horas mortas do quarto de modorra, e antes do meio-dia apeou-se à portaria do mosteiro.

Os oficiais que trabalhavam em vários lavores, pelos telheiros e casas ao redor do edifício, viram passar aquele cavaleiro e os dois pajens, mas não o conheceram: D. João I vinha coberto de todas as peças e, ao galgar o ginete pelo outeiro abaixo, tinha descido a viseira.

– Benedicite! – dizia el-rei, batendo devagarinho à porta da cela de Frei Lourenço.

– Pax vobis, domine! – respondeu o prior, que logo reconheceu el-rei e veio abrir a porta.

– Não vos incomodeis, reverendíssimo – disse D. João, entrando na cela e sentando-se num tamborete –, deixai-me resfolegar um pouco e dai-me uma vez de vinho.

– Não vos esperava tão de salto – disse Frei Lourenço; e, abrindo um armário, tirou dele uma borracha e um canjirão de madeira, que encheu de vinho e, pegando com a esquerda num a escudela de barro de Estremoz(*) , cheia de uma espécie de bolo feito de mel, ovos e flor de farinha, apresentou a el-rei aquela colação.

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[(*) A louça de Estremoz é antiquíssima no nosso país. No tempo de Francisco I de França, mandavam-se buscar os púcaros desta loiça a Portugal, para beber a água, que então, bem como hoje, torna-se neles excessivamente fria.]
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– Excelente almoço – dizia el-rei, descalçando o guante ferrado e cravando a espaços os dedos dentro da escudela, donde tirava bocados do bolo, que ajudava com alentados beijos dados no canjirão. Depois que cessou de comer, limpando a mão ao forro do tonelete, pôs-se em pé, enquanto Frei Lourenço guardava os despojos daquela batalha.

– Bofé – disse D. João I, rindo – que não ando ao meu talante, senão com o arnês às costas! Cada vez que o visto, parece-me que torno à mocidade e que sou o Mestre de Avis ou, antes, o simples cavaleiro que, confiado só em Deus, corria solto pelo mundo, monteando edomas (Semanas) inteiras, e tendo sobre a consciência só os pecados de homem e não os escrúpulos de rei.

– E então – atalhou o prior – o vosso confessor Frei Lourenço era um pobre frade, cujos únicos cuidados se encerravam em saber as horas do coro e em ler as sagradas escrituras, porém que hoje tem de velar muitas noites, pensando no modo de não deixar afrouxar a disciplina e boa governança de tão alteroso mosteiro. Mas, segundo vosso recado, que ontem recebi, vindes para assistir ao tirar dos simples da muito famosa abóbada, o que mestre Domingues aporfia em só fazer perante vós?

– A isso vim, porém de espaço; que não será nestes cinco dias que esteja pronta a ponte de barcas que mandei lançar no Tejo, para passar minha hoste. Durante eles, com os vossos muito religiosos frades me aparelharei para a guerra, entesourando orações e recebendo absolvição dos meus erros.

– Os príncipes pios – acudiu o prior, com gesto de compunção – são sempre ajudados de Deus, principalmente contra hereges e cismáticos, como os perros dos Castelhanos, que a Virgem Maria da Vitória confunda nos infernos.

– Ámen! – respondeu devotamente el-rei.

– Avisarei, pois, mestre Afonso da vossa vinda, para que ponha tudo em ordenança de se tirarem os simples. Pediu-me que o mandasse chamar apenas fôsseis chegado.

Frei Lourenço saiu e, daí a pouco, voltou acompanhado do arquiteto, que um rapaz guiava pela mão.

– Guarde-vos Deus, mestre Afonso Domingues! – disse el-rei, vendo entrar o cego. – Aqui me tendes para ver acabada a feitura da mirífica abóbada do Capítulo de Santa Maria, cujos simples não quisestes tirar senão na minha presença.

– Beijo-vo-las, senhor rei, pela mercê: dois votos fiz, se levasse a cabo esta feitura; era esse um deles...

– E o outro? – atalhou el-rei.

– O outro, dir-vo-lo-ei em breve; mas, por ora, permiti que para mim o guarde.

– São negócios de consciência – acudiu o prior. – El-rei não quer, por certo, fazer-vos quebrar vosso segredo.

D. João I fez um sinal de assentimento ao parecer do seu antigo padre espiritual.

El-rei, o prior e o arquiteto ainda se demoraram um pedaço, falando acerca da obra e do que cumpria fazer no prosseguimento dela; mas o cego dissera o que quer que fora, em voz baixa, ao rapaz que o acompanhava, o qual saíra imediatamente, e que só voltou quando os três acabavam a conversação.

– Fernão de Évora – disse o cego, sentindo-o outra vez ao pé de si –, fizeste o que te ordenei, e deste ao teu tio Martim Vasques o meu recado?

– Senhor, sim! Envia-vos ele a dizer que tudo está prestes.

– Então vamos a ver se desta feita temos mais perdurável abóbada.

Isto dizia el-rei, saindo da cela de Frei Lourenço e seguindo ao longo do claustro. Já a este tempo se tinha espalhado no mosteiro a nova da sua chegada, e os frades começavam de juntar-se para o cortejarem. Do mosteiro rompera a notícia, espalhando-se pela povoação, aonde concorrera muita gente dos arredores, principalmente de Aljubarrota, por ser dia de mercado: de modo que, quando el-rei desceu à crasta, já ali se achavam apinhados homens e mulheres que queriam vê-lo e, ainda mais, saber se desta vez a abóbada vinha ao chão, para terem que contar aos vizinhos e vizinhas da sua
terra.

As portas da Casa do Capítulo estavam abertas: via-se dentro dela tal máquina de prumos, traveses, andaimes, cabrestantes, escadas, que bem se pudera comparar a composição daqueles simples à fábrica do mais delicado relógio. À porta que dava para a crasta estava um homem em pé, que desbarretou apenas viu el-rei, a cuja direita vinha o arquiteto, seguido por Frei Lourenço e por outros frades.

O pequeno Fernão de Évora disse algumas palavras a Afonso Domingues, o qual lhe respondeu em voz baixa. Então o rapaz acenou ao homem desbarretado, que se chegou timidamente ao cego. Era um mancebo, que mostrava ter de idade, ao mais, vinte e cinco anos; de rosto comprido, tez queimada, nariz aquilino, olhos pequenos e vivos. Chegando-se ao cego, este o tomou pela mão e, voltando-se para el-rei, disse:

– Aqui tendes, senhor, a Martim Vasques, o melhor oficial de pedraria que eu conheço; o homem que, com mais alguns anos de experiência, será capaz de continuar dignamente a série dos arquitetos portugueses.

– E debaixo do meu especial amparo estará Martim Vasques – respondeu el-rei –, que por honrado me tenho com haver nos meus senhorios homens que vos imitem.

Ainda bem não eram acabadas estas palavras, sentiu-se um sussurro entre o povo, que girava livremente pela crasta e que se enfileirou aos lados: chegava a gente que devia tirar os simples.

Entre duas alas de besteiros, vinha um bom número de homens, magros, pálidos, rotos e descalços; o porte de alguns era altivo, e nos seus farrapos se divisava a razão disso: eram besteiros castelhanos que em diversos recontros e pelejas tinham caído nas mãos dos portugueses. As guerras entre Portugal e Castela assemelhavam-se às guerras civis de hoje: para vencidos não havia nem caridade, nem justiça, nem humanidade: ser metido em ferros era então uma ventura para o pobre prisioneiro; porque os mais deles morriam assassinados pelo povo desenfreado, em vingança dos maus tratos que em Castela padeciam os cativos portugueses. Com os castelhanos vinham de envolta vários criminosos condenados à morte pelas suas malfeitorias.

– Misericórdia! – bradou toda aquela multidão, ao passar por el-rei: e caíram de bruços sobre as lajes do pavimento.

– Convosco a tenho, mesquinha gente – disse el-rei comovido. – Se tirardes os simples, que vedes acolá, e a abóbada não desabar sobre vós, soltos e livres sereis. Erguei-vos, e confiai na ciência do grande arquiteto que fez essa mirífica obra. Mandar-vos comprar vossa soltura a custo de tão leve risco, quase que é o mesmo que perdoar-vos.

Os presos ergueram-se; mas a tristeza lhes ficou embebida no coração e espalhada nas faces; o terror fazia-lhes crer que já sentiam ranger e estalar as vigas dos simples e que, às primeiras pancadas, as pedras desconformes da abóbada, desatando-se da imensa volta, os esmagariam, como o pé do quinteiro esmaga a lagarta enrascada na planta viçosa do horto.

Neste momento quatro forçosos obreiros chegaram à porta do Capítulo, trazendo sobre uma paviola uma grande pedra quadrada. Martim Vasques, que já lá estava, gritou ao cego arquiteto:

– muito sabedor mestre Afonso, que quereis se faça do canto que para aqui mandastes trazer?

– Assentai-o bem debaixo do fecho da abóbada, no meio desse claro, que deixam os prumos centrais dos simples.

Os obreiros fizeram o que o arquiteto mandara; este então voltou-se para el-rei e disse:

– Senhor rei, é chegado o momento de vos declarar meu segundo voto. Pelo corpo e sangue do Redentor jurei que, assentado sobre a dura pedra, debaixo do fecho da abóbada, estaria sem comer nem beber durante três dias, desde o instante em que se tirassem os simples. De cumprir meu voto ninguém poderá mover-me. Se essa abóbada desabar, sepultar-me-á nas suas ruínas: nem eu quisera encetar, depois de velho, uma vida desonrada e vergonhosa. Esta é a minha firme resolução.

Dizendo isto, o cego travou com força do braço de Fernão de Évora, e encaminhou-se para a porta do Capítulo.

– Esperai, esperai! – bradou el-rei. – Estais louco, dom cavaleiro? Quem, se vós morrerdes, continuará esta fábrica, tão formosa filha do vosso engenho?

– Mestre Ouguet – disse o cego, parando. – Não sou tão vil que negue seu saber e habilidade. Se a abóbada desabar segunda vez, ninguém no mundo é capaz de a fechar com uma só volta, e para a firmar sobre uma coluna erguida ao centro, mestre Ouguet o fará. Quanto ao resto do edifício, fazei senhor rei que se prossiga meu desenho: é o que ora vos peço tão-somente.

E o velho e o seu guia sumiram-se por entre as bastas vigas que sustinham as traves dos simples: el-rei, Frei Lourenço e os mais frades ficaram atônitos e calados.

– Que tão honrado mestre corra parelhas no risco com esses perros castelhanos, coisa é que não pode sofrer-se; mas o voto é voto, senão...

Estas palavras partiam da boca de uma gorda velha, cuja tez avermelhada dava indícios de compleição sanguínea e irritável, e que de mãos metidas nas algibeiras, na frente de uma das alas do povo, presenciava o caso.

– Tendes razão, tia Brites de Almeida; e por ser voto me calo eu – acudiu el-rei, voltando-se para a velha. Mas juro a Cristo, que estou espantado de só agora vos ver! Porque me não viestes falar?

– Perdoe-me vossa mercê – replicou a velha. – Eu vim trazer pão à feira, e aí soube da chegada da vossa real senhoria. Corri... se eu correria para vos falar! Mas estes bocas-abertas não me deixaram passar. Abrenúncio! Depois estive a olhar... Parecíeis-me carregado de rosto. Que é isso? Temos novas voltas com os excomungados Castelhanos? Se assim é, tosquiai-mos outra vez por Aljubarrota, que a pá não se quebrou nos sete que mandei de presente ao diabo, e ainda lá está para o que der e vier.

Soltando estas palavras, a velha tirou as mãos das algibeiras e, cerrando os punhos, ergueu os braços ao ar, com os meneios de quem já brandia a tremebunda e patriótica pá de forno que hoje é glória e brasão da gótica vila de Aljubarrota.

– Podeis dormir descansada, tia Brites – respondeu el-rei, sorrindo-se. – Bem sabeis que sou português e cavaleiro, e a gente da nossa terra é cortês; el-rei de Castela veio visitar-nos várias vezes: agora ando eu na demanda de lhe pagar com usura suas visitações.

Enquanto este diálogo se passava entre o herói de Aljubarrota e a sua poderosa aliada, Martim Vasques tinha posto tudo a ponto; e, dando as suas ordens da porta, as primeiras pancadas de martelo, batendo nos simples, ressoaram pelo âmbito da casa capitular. Fez-se um grande silêncio, e todos os olhos se cravaram em Martim Vasques.

Passada uma hora, aquele montão de vigas, barrotes, tábuas, cambotas, cabrestantes, réguas e travessas tinha passado pela crasta fora em colos de homens, e os presos tinham sido postos em liberdade, com grande raiva da tia Brites, ao ver ir soltos os besteiros castelhanos. Apenas no centro da ampla quadra se via uma pedra, sobre a qual, mudo e com a cabeça pendida para o peito, estava assentado um velho.

A este velho rogava el-rei, rogavam frades, rogava o povo, sem todavia se atreverem a entrar, que saísse dali; mas ele não lhes respondia nada. Desenganados, enfim, foram-se, pouco a pouco, retirando da crasta, onde, ao pôr do Sol, começou a bater o luar de uma formosa noite de Maio.

Três dias se passaram assim. Mestre Afonso, assentado sobre a pedra fria, nem sequer cedera às rogativas de Ana Margarida, que, obrigada pela boa amizade que tinha ao seu amo, se atrevera a cruzar os perigosos umbrais do Capítulo, para ver se o movia a tomar alguma refeição. Tudo recusou o cego: a sua resolução era inabalável. Também a abóbada estava firme, como se fora de bronze. No terceiro dia à tarde, el-rei, que tinha passado o tempo em aparelhar-se para a guerra com atos de piedade, desceu à crasta, acompanhado de Frei Lourenço e de outros frades, e, chegando à porta do Capítulo, viu Martim Vasques e Ana Margarida junto à pedra fria de Afonso Domingues, e este, pálido e com as pálpebras cerradas, encostado nos braços deles.

O mancebo e a velha choravam e soluçavam, sem dizerem palavra.

– Que temos de novo? – perguntou el-rei, chegando à porta e vendo aqueles dois estafermos. – Completam-se ora os três dias de voto: ainda mestre Afonso teimará em estar aqui mais tempo?

– Não senhor – respondeu Martim Vasques, com palavras mal articuladas –, não estará aqui mais tempo; porque o seu corpo é herança da terra; a sua alma repousa com Deus.

– Morto!? – bradaram a uma voz el-rei e Frei Lourenço, e correram para o cadáver do arquiteto, olhando, todavia, primeiro para a abóbada com um gesto de receio.

– Nada temais, senhores – disse Martim Vasques. – As últimas palavras do mestre foram estas: «A abóbada não caiu... a abóbada não cairá!»

O arquiteto, gasto da velhice, não pôde resistir ao jejum absoluto a que se condenara. No momento em que, ajudado por Martim Vasques e Ana Margarida, se quis erguer, pendeu moribundo nos braços deles, e aquele gênio de luz mergulhou-se nas trevas do passado.

El-rei derramou algumas lágrimas sobre os restos do bom cavaleiro, e Frei Lourenço rezou em voz baixa uma oração fervente pela alma generosa que, até ao último arranco, escrevera sobre o mármore o hino dos valentes de Aljubarrota.

Na pedra sobre a qual mestre Afonso expirara ordenou el-rei se tirasse, parecido quanto fosse possível retratando-se um cadáver, o vulto do honrado arquiteto, e que esta imagem fosse colocada num dos ângulos da casa capitular, onde, durante mais de quatro séculos, como as esfinges monumentais do Egito, tem dado origem às mais desvairadas hipóteses e conjeturas. À pobre Ana Margarida, que ficava sem arrimo, doou D. João I, também, as casas em que o mestre morava, fazendo-lhe, além disso, assinaladas mercês.

Mestre Ouguet, pelo que o cego dissera a el-rei acerca da sua capacidade para o substituir, e porque, enfim, era estrangeiro, foi logo restituído ao cargo que ocupara, e quando, nos serões do mosteiro, alguém falava nos méritos de Afonso Domingues e na sua desastrada morte, cortava o irlandês a conversação, dizendo com riso amarelo:

– Olhem que foi forte perda!

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Nota:
Alexandre Herculano: "Lendas e Narrativas" (1851)   

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