ARRAS POR FORO DE ESPANHA
(NARRATIVA DE 1371- 1372)
I
A ARRAIA-MIÚDA
O sino das ave-marias ou da
oração, tinha dado na torre da Sé a última badalada, e pelas frestas e portas dessa
multidão de casas que, apinhadas à roda
do castelo e como enfeixadas e comprimidas pela apertada cinta das muralhas primitivas de Lisboa, pareciam mal
caberem nelas, viam-se fulgurar, aqui e
acolá, as luzes interiores, enquanto as ruas, tortuosas e imundas, jaziam como baralhadas e confusas sob o manto das trevas.
Era chegada a hora dos terrores; porque
durante a noite, naqueles boas tempos, a estreita senda de bosque deserto não era mais triste, temerosa e
arriscada do que a própria Rua Nova, a
mais opulenta e formosa da capital. O que, porém, havia aí desacostumado e estranho eram o completo
silêncio e a escuridão profunda em que
jazia sepultado o Paço de a par S. Martinho, onde então residia el-rei D. Fernando, ao mesmo tempo que pelos becos e
encruzilhadas soava um tropear de
passadas, um sussurro de vozes vagas, que indicavam terem sido agitadas as ondas populares pelo vento de Deus
e que ainda esse mar revolto não tinha
inteiramente caído na calmaria e sonolência que vem após a procela.
E assim era, com efeito, como o
leitor poderá averiguar pelos seus próprios olhos e ouvidos, se, manso, manso e disfarçado
quiser entrar conosco na muito afamada e
antiga taberna do velho Folco Taca, que nos fica bem perto, logo ao sair da Sé, na rua que sobe para os
Paços da Alcáçova, sete ou oito portas
acima dos Paços do Concelho.
A taberna de micer Folco Taca,
genovês que viera a Portugal ainda impúbere, como pajem de armas de famoso
almirante Lançarote Peçanha, e que havia anos abandonara o serviço marítimo para se dar
à mecânica, era a mais célebre entre
todas as de Lisboa, não só pelo luxo do seu adereço, e pela bondade dos líquidos encerrados nas cubas monumentais que
a pejavam, mas também porque, num
aposento mais retirado e interior, uma vasta banca de pinho e muitos assentos rasos os escabelos ofereciam
todo o cômodo aos tavolageiros de
profissão para perderem ou ganharam aí, em noites de jogo infrene, os belos alfonsins e maravedis de ouro ou as
estimadas dobras de D. Pedro I, o qual,
ao contrário dos seus antecessores e sucessores, julgara ser mais rico e poderoso fazendo cunhar moeda de bom toque e
peso do que roubando-lhe o valor
intrínseco e aumentando-lhe o nominal, segundo o costume de todos os reis no começo do seu reinar.
Micer Folco soubera estender
grossas névoas sobre os olhos do corregedor da Corte e de todos os saiões, algozes e mais
família da nobre raça dos aguazis sobre
a ilegalidade de semelhante estabelecimento industrial. O elixir que ele empregara para produzir essa maravilhosa
cegueira não sabemos nós qual fosse; mas
é certo que não se perdeu com a alquimia, porque se vê que ele existe em mãos abençoadas, produzindo, ainda
hoje, repetidos milagres, em tudo
análogos a este.
Era, pois, na taberna-tavolagem
da Porta do Ferro, conhecida vulgarmente por tal nome em consequência da vizinhança
dessa porta da antiga cerca, onde os
ruídos vagos e incertos que sussurravam pelas ruas da cidade soavam mais alta e distintamente, como em sorvedouro
marinho as ondas, remoinhando e precipitando-se,
estrepitam no centro da voragem com mais soturno e retumbante fragor. A vasta quadra da taberna
estava apinhada de gente, que trasbordava
até o breve terreirinho da Sé, falando todos a um tempo, acesos, ao que parecia, em violentas disputas, que às
vezes eram interrompidas pelo mais alto
brado das pragas e blasfêmias, indício evidente de que o sucesso que motivava aquela assuada ou tumulto era negócio
que excitava vivamente a cólera popular.
Já no fim do século décimo quarto
era o povo, assim como hoje, colérico. Então
cóleras da puerícia; hoje aborrecimentos da velhice.
Se na rua o burburinho era
tempestuoso e confuso, dentro da casa de micer
Folco a bulha podia chamar-se infernal. Para um dos lados, no meio de
uma espessa mó de populares, ouviam-se
palavras ameaçadoras, sem que fosse possível
perceber contra qual ou quais indivíduos se acumulava tanta sanha. ara outra parte, dentre o vozear de uma
cerrada pinha de mulheres, cuja vida de
perdição se revelava nos seus coromens de pano de arrás, nos cintos escuros, nas camisas e véus desadornados e
lisos, rompiam risadas discordes e esganiçadas,
nas quais se manifestavam, profundamente impressos, o descaro e a insolência daquelas desgraçadas. Em cima
dos vufetes viam-se pichéis e taças
vazias, e debaixo de alguns deles corpos estirados, que simulariam cadáveres, se os assobios e roncos, que, às
vezes, sobressaíam através do ruído daquele
respeitável congresso, não provassem que esses honrados cidadãos, suavemente embalados pelos vapores do vinho e
do entusiasmo, tinham adormecido na paz
de uma boa consciência. Enfim, a composta e bem reputada taberna do antigo companheiro de
glória de micer Lançarote estava visivelmente
prostituída e nivelada com as mais imundas e vis baiucas de Lisboa. O gigante popular tinha aí assentado a
sua cúria feroz, e pela primeira vez o vício e a corrupção tinham transposto aqueles
umbrais sem a sua máscara de modéstia e
gravidade. Sobre os farrapos do povo não têm cabida os adornos do ouropel. É a única diferença
moral que há entre ele e as classes superiores
que se creem melhores, porque no ginásio da civilização aprendem desde a infância as destrezas e os mornos de
compostura hipócrita.
O astro que parecia iluminar com
a sua luz, aquecer com o seu calor aquele turbilhão de planetas, o centro moral à roda
do qual viravam todos aqueles espíritos,
era um homem que dava mostras de ter bem quarenta anos, alto, magro, trigueiro, olhos encovados e
cintilantes, cabelo negro e revolto, barba grisalha e espessa. Encostado a um dos muitos
bufetes que adornavam o amplo aposento e
rodeado de uma grossa pinha de populares de ambos os sexos que o escutavam em respeitoso silêncio,
a sua voz forte e sonora sobressaía no
ruído e só se confundia com alguma jura blasfema que se disparava do meio das outras pinhas de povo ou
com as modulações das risadas que
vibravam naquele ambiente denso e abafado, de certo modo semelhante a clarão afogueado que sulcasse
rapidamente as trevas úmidas e profundas
da cripta subterrânea de alguma igreja de sexto século.
De repente, dois cavaleiros, cuja
graduação se conhecia pelos barretes de veludo
preto adornados de pluma ao lado, pelas calças de seda golpeadas e pelos cintos de pele de gamo lavrados de
prata, entraram na taberna e, rompendo
por entre o povo, que lhe alargava a passagem, chegaram ao pé do homem alto e trigueiro. Traziam os capeirotes
puxados para a cara, de modo que nenhum
dos circunstantes pôde conhecer quem eram. Bastantes desejos passaram por muitos daqueles cérebros
vinolentos de o indagar; mas a mesma reflexão
atou simultaneamente todas as mãos. Ao longo da coxa esquerda dos embuçados via-se reluzir a espada, e no lado
direito e apertado no cinto, que a ponta
erguida do capeirote deixava aparecer, escortinava-se o punhal. O passaporte para virem assim aforrados era
digno de consideração, e ainda que entre
a turba se achassem alguns homens de armas, principalmente besteiros, quase todos estavam desarmados. Tinha seus
riscos, portanto, o pôr-lhe o visto
popular.
Os dois desconhecidos falaram em
segredo por alguns minutos ao homem alto
e magro, que, de vez em quando, meneava a cabeça, fazendo um gesto de assentimento; depois romperam por entre a
turba, que os examinava com uma espécie
de receio misturado de respeito, e foram sentar-se em dois dos escabelos enfileirados ao correr da parede.
Encostando os cotovelos num bufete, com as cabeças apertadas entre os punhos,
ficaram imóveis e como alheios ao
sussurro que começava a levantar-se de novo à roda deles.
Este durou breves instantes; um
psiu do homem alto e magro fez voltar todos os olhos para aquela banda. Subindo a um
escabelo, ele deu sinal com a mão de que
pretendia falar.
— Ouvi, ouvi! — bradaram alguns que
pareciam os maiores daquela multidão desordenada.
Todos os pescoços se alongaram a
um tempo, e viram-se muitas mãos calosas erguerem-se encurvadas e formarem em volta das
orelhas dos seus donos uma espécie de
anel acústico. O orador começou:
— Arraia-miúda!(*), tendes vós já
elegido, entre vós outros, cidadãos bem falantes
e avisados para propor vossos embargos e razoados contra este maldito e descomunal casamento de el-rei com a
mulher de João Lourenço da Cunha?
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[(*) Fernão Lopes dá a entender (Crônicas
de D. João I, parte 1ª, cap. 44) que a palavra “arraia-miúda” se começara a utilizar para denominar a
população, no principio da revolta, a favor do mestre de Avis, para os distinguir dos nobre, na sua maior
parte a favor de D. Leonor e dos Castelhanos. Mas este título chocarreiro já o tinha tomado para si o povo
“miúdo” com muita seriedade e orgulho. Num documento de 1305 (Chancel de D. Dinis, liv. 3º das
Doações, f. 42 v.) diz-se que “outorgavam certas coisas os cavaleiros, juízes do concelho de Bragança e
toda a arraia-miúda”]
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— Todos à uma entendemos que
deveis ser vós, mestre Fernão Vasques —
respondeu um velho, cuja calva polida reverberava os raios de uma das lâmpadas pendentes do teto, e que parecia ser
homem de conta entre os populares. —
Quem há aí entre a arraia-miúda mais discreto e aposto para tais autos que vós? Quem com mais urgentes razões
proporia nosso agravo e a desonra e
vilta de el-rei do que vós o fizestes hoje na mostra que demos ao paço esta tarde?
— Alcácer, alcácer!, pelo nosso
capitão Fernão Vasques — bradou uníssona
a chusma.
— Fico-vos obrigado, mestre
Bartolomeu Chambão! — replicou Fernão Vasques,
sossegando o tumulto. — Pelo razoado de hoje terei em paga a forca, se a adúltera chega a ser rainha: pelo
de amanhã terei as mãos decepadas em vida,
se el-rei com as suas palavras mansas e enganosas souber apaziguar o povo. E tende vós por averiguado, mestre
Bartolomeu, que o carrasco sabe apertar
melhor o nó da corda na garganta que eu o ponto em peitilho de saio ou em costura de redondel ou pelote, e que o
cutelo do algoz entra mais rijo no
gasnete de um cristão que a vossa enxó numa aduela de pipa!
— Nanja enquanto na minha aljava
houver armazém, e a garrucha da besta me
não estourar — exclamou um besteiro do conto, cambaleando e erguendo-se debaixo de um bufete, para onde o
tinham derribado certas perturbações de
entusiasmo político.
— Amen, dico vobis! — gritou um beguino, cujas faces vermelhas e voz
de estertor brigavam com o hábito de
grosseiro burel e com as desconformes camândulas
que lhe pendiam da cinta.
— Olé, Frei Roy Zambrana, fala
linguagem cristenga, se queres vir nesse bodo por nossa esteira — bradou um petintal de
Alfama que, segundo parecia, capitaneava
um grande troço de pescadores, barqueiros e baleotes daquele bairro, então quase exclusivamente
povoado de semelhante gente.
— Digo por linguagem — acudiu o
beguino — que ninguém como mestre Fernão
Vasques é homem de cordura e sages para amanhã falar a el-rei aguçadamente sobre o feito do casamento de
Leonor Teles, do mesmo modo que ninguém
leva vantagem ao petintal Airas Gil em ousadia para fugir às galés de Castela e para doestar os bons servos
da igreja.
Era alusão pessoal. Uma risada
ruidosa e longa correspondeu à mordente desforra
de Frei Roy, que abaixou os olhos com certo modo hipocritamente contrito, semelhante ao gato que, depois de
dar a unhada, vem roçar-se mansamente
pela mão que ensanguentou.
Frei Roy era também, como Airas
Gil, um ídolo popular, e a má vontade que parecia haver entre o beguino e o petintal
nascera da emulação; de uma dúvida cruel
sobre a altura relativa do trono de encruzilhada, do trono de lama e farrapos em que cada um deles se sentava.
Se, pois, aquela multidão não
estivesse persuadida da superioridade intelectual do alfaiate Fernão Vasques, a opinião desses
dois oráculos não lhe teria deixado a
menor dúvida sobre isso. Todavia, nas palavras de ambos havia um pensamento escondido; pensamento de raízes que
nascera num dia, e num dia lançara
profundas raízes nos corações de ambos. O marinheiro e o eremita tinham pensado ao mesmo tempo que, lisonjeando
esse homem mimoso do vulgo, tirariam
juntamente dois resultados: o de ganharem mais crédito entre este e o de aplanarem a estrada da forca ao
novo rei das turbas, erguido, havia poucas
horas, sobre os broquéis populares.
Mas que auto era esse de que o
povo falava? Sabê-lo-emos remontando um pouco mais alto.
O amor cego de el-rei D. Fernando
pela mulher de João Lourenço da Cunha, Da
Leonor Teles, havia muito que era o pasto saboroso da maledicência do povo, dos cálculos dos políticos e dos enredos
dos fidalgos. Ligada por parentesco com
muitos dos principais cavaleiros de Portugal, Da Leonor, ambiciosa dissimulada e corrompida, tinha
empregado todas as artes do seu engenho
pronto e agudo em formar entre a nobreza uma parcialidade que lhe fosse favorável. Quanto a el-rei, a paixão
violenta em que este ardia lhe assegurava
a ela o completo domínio no seu coração. Mas as miras daquela mulher, cuja alma era um abismo de cobiça, de
desenfreamento, de altivez e de ousadia,
batiam mais alto do que na triste vanglória de ver aos seus pés um rei bom, generoso e gentil. Através do amor de
D. Fernando ela só enxergava o refulgir
da coroa, e o homem sumia-se nesse esplendor. O nome de rainha misturava-se nos seus sonhos; era o
significado de todas as suas palavras de ternura, o resumo de todas as suas carícias, a
ideia primordial de todas as suas ideias.
Leonor Teles não amava el-rei, como o provou o tempo; mas D. Fernando cria no amor dela; e este príncipe,
que seria um dos melhores monarcas
portugueses, e que a muitos respeitos o foi, deixou na história, quase sempre superficial, um nome desonrado,
por ter escrito esse nome na horrível crônica
da nossa Lucrécia Bórgia. Uma dificuldade, quase insuperável para outra que não fosse D. Leonor, se
interpunha entre ela e os seus ambiciosos
desígnios. Era casada! Um processo de divórcio por parentesco, julgado por juízes afetos a D. Leonor ou que
sabiam até alcançava a sua vingança, a
livrou desse tropeço. O seu marido, João Lourenço da Cunha, aterrado, fugiu para Castela, e D. Fernando,
casado, segundo se dizia, a ocultas com
ela, muito antes da época em que começa esta narrativa, viu enfim satisfeito o seu amor insensato.
Aqueles dentre os nobres que
ainda conservavam puras as tradições severas dos antigos tempos indignavam-se pelo opróbrio
da coroa e pelas consequências que
devia ter o repúdio da infanta de Castela, cujo casamento com el-rei, ajustado e jurado, este desfizera
com a leveza que se nota como defeito
principal no caráter de D. Fernando. Entre os que altamente desaprovavam tais amores, o infante D. Dinis,
o mais moço dos filhos de D. Inês de
Castro, e o velho Diogo Lopes Pacheco eram, segundo parece, os cabeças da parcialidade contrária a D. Leonor:
aquele pela altivez do seu ânimo; este
por gratidão a D. Henrique de Castela, em quem achara amparo e abrigo no tempo dos seus infortúnios, e que o
salvara da triste sorte de Álvaro Gonçalves
Coutinho e de Pêro Coelho, seus companheiros no patriótico crime da morte de D. Inês.
O casamento de el-rei, ou
verdadeiro ou falso, era ainda um rumor vago, uma suspeita. Os nobres, porém, que o desaprovavam
souberam transmitir ao povo os próprios
temores, e a agitação dos ânimos crescia à medida que os amores de el-rei se tornavam mais públicos. D.
Fernando tinha já revelado aos seus
conselheiros a resolução que tomara, e estes, posto que a princípio lhe falassem com a liberdade que então se usava nos
paços dos reis, vendo as suas diligências
baldadas, contentaram-se de condenar com o silêncio essa mal- aventurada
resolução. O povo, porém, não se contentou com isso.
Conforme as ideias daquele tempo,
além das considerações políticas, semelhante
consórcio era monstruoso aos olhos do vulgo, por um motivo de religião, o qual ainda de maior peso seria
hoje, como o será em todos os tempos em
que a moral social for mais respeitada do que o era naquela época.
Tal consórcio constituía um
verdadeiro adultério, e os filhos que dele procedessem mal poderiam ser considerados como
infantes de Portugal e, por consequência,
como fiadores da sucessão da Coroa.
A irritação dos ânimos, assoprada
pela nobreza, tinha chegado ao seu auge, e a cólera popular rebentara violenta na tarde que
precedeu a noite em que começa esta
história.
Três mil homens se tinham
dirigido tumultuariamente às portas do paço, dando apenas tempo a que as cerrassem. A
vozearia e o estrépido que fazia aquela
multidão desordenada assustou el-rei, que por um seu privado mandou perguntar o que "lhes prazia e para que
estavam assim reunidos". Então o alfaiate
Fernão Vasques, "capitão e procurador por eles", como lhe chama Fernão Lopes, afeiou em termos violentos as
intenções de el-rei liberalizando a D.
Leonor os títulos de má mulher e feiticeira e asseverando que o povo nunca havia de consentir no seu casamento
adúltero. A arenga rude e veemente do
alfaiate orador, acompanhada e vitoriada de gritas insolentes e ameaçadoras do tropel que o seguia, moveu
el-rei a responder com agradecimento às
injúrias, e a afirmar que nem D. Leonor era sua mulher, nem o seria nunca, prometendo ir na manhã seguinte
aclarar com eles este negócio no
Mosteiro de S. Domingos, para onde os emprazava. Com tais promessas, pouco a pouco se aquietou o motim, e ao cair
da noite o terreiro de a par S. Martinho
estava em completo silêncio. Como se, na solidão, el-rei quisesse consultar consigo o que havia de dizer ao seu
bom e fiel povo de Lisboa, as vidraças
coradas das esguias janelas dos paços reais, que vertiam quase todas as noites o ruído e o esplendor dos saraus,
cerradas nesta hora e caladas como sepulcro,
contrastavam com o reluzir dos fachos, com o estrépido das ruas, com o rir das mulheres perdidas e dos homens
embriagados, com o perpassar contínuo
dos magotes e pinhas de gente que se encontravam, uniam, separavam, retrocediam, vacilavam, ficavam
imóveis, aglomeravam-se para se desfazer,
desfaziam-se para se aglomerar de novo, sem vontade e sem constrangimento, sem motivo e sem objeto,
vulto inerte, movido ao acaso, como as
vagas do mar, tempestuoso e irrefletido como elas. Feroz na sua cólera razoada, ferocíssimo no seu rir
insensato, o vulgo passava, rei de um dia.
Esse ruído, essa vertigem que o agitava era o seu baile, a sua festa de triunfo; e as estrelas de serena noite de
Agosto, semelhantes a lâmpadas pendentes
de abóbada profunda, iluminavam o sarau popular, as salas do seu folguedo, a praça e a encruzilhada. Era
conjuntamente truanesco e terrível.
Na taberna de micer Folco (onde
deixamos as personagens principais desta história, para inserir, talvez fora de lugar,
o prólogo ou introdução a ela) as aclamações
frenéticas dos populares tinham tornado indubitável que o "propoedor" para o juntamento do dia
seguinte devia ser o muito avisado e sages
mestre Fernão Vasques. Frei Roy era de todos os circunstantes o que mais parecia ter a peito esta escolha, e o
petintal Airas Gil ajudava-o poderosamente
com o ruído dos amplos pulmões dos galeotes de Alfama, contraídos como em voga arrancada, vitoriando
o seu capitão. O alfaiate não pôde
resistir, nem, porventura, tinha vontade disso, a tanta popularidade e, em pé sobre o escabelo, com a cabeça levemente
inclinada para o peito, numa postura
entre de resignação e de bem-aventurança, tremulava-lhe nos lábios semi-abertos um sorriso que revelava uma parte
dos mistérios do seu coração. Enfim,
quando a grita começou a serenar, Fernão Vasques ergueu a cabeça e com aspeto grave deu sinal de que ainda
pretendia falar.
Fez-se de novo silêncio.
— Seja, pois, como quereis —
disse o alfaiate —, mas vede o grão risco a que me ponho por vós outros. Falarei a el-rei
com liberdade portuguesa; proporei vosso
agravo e a desonra e feio pecado da sua real senhoria: mas é necessário que vós todos quantos aí sois
estejais de alcateia e ao romper da alva
no alpendre de São Domingos. Dizem que a adúltera é mulher de grande coração e ousados pensamentos; em Lisboa estão
muitos cavaleiros seus parentes e
parciais. Besteiros deste concelho, que não vos esqueçam em casa vossas bestas e aljavas! Peoada de Lisboa,
levai vossas ascumas! Os tons e engenhosos
do castelo — acrescentou o alfaiate em voz mais baixa e hesitante — não vos apoquentarão, ainda que el-rei o
quisesse, porque o alcaide-mor João
Lourenço Bubal não é dos afeiçoados a Dona Leonor Teles. Santa Maria e Sant'Iago sejam convosco! Alcácer, alcácer
pela arraia-miúda! A repousar, amigos!
— Alcácer, alcácer — respondeu a
turbamulta.
— Morra a comborça! — gritou
Airas Gil com voz de trovão.
— Morra a comborça! — repetiram
os galeotes e as virtuosas matronas dos
coromens de arrás e cintos pretos que assistiam aquele conclave.
— Olha, Airas, que São Martinho
fica perto, e contam que D. Leonor tem ouvido
subtil — disse Frei Roy ao petintal com um sorriso diabólico.
Dor de levadigas te consuma,
echacorvos! — replicou o petintal. Quando eu quero que me ouçam é que falo alto. Alcácer
pela sua senhoria o bom rei D. Fernando!
Deus o livre de Castela e de feitiços!
O petintal emendava a mão como
podia. E entre morras e alcáceres; entre risadas e pragas; entre ameaças vãs e insultos
inúteis, aquela vaga de povo contida na
taberna de micer Folco espraiou-se pelas ruas, derivou pelas quelhas, vielas e becos, e embebeu-se pelas
casinhas e choupanas que nessa época
jaziam, não raro, deitadas junto às raízes dos palácios na velha e opulenta Lisboa.
Com os braços cruzados, o
alfaiate contemplava aquela multidão, que diminuía rapidamente, e cujo sussurro,
alongando-se, era comparável ao gemido
do tufão que passa de noite pelas sarças da campina. Ainda ele tinha os olhos fitos no portal por onde saíra o
vulto indelineável chamado povo, e já
ninguém aí estava, salvo os dois cavaleiros, que se tinham conservado imóveis na mesma postura que tinham tomado, e
Frei Roy, que se estirara sobre um dos
bufetes e já roncava e assobiava, como em sono profundo.
Os dois cavaleiros ergueram-se e
descobriram os rostos: a um ainda a barba de homem não pungia nas faces; o outro, na
alvura das melenas brancas, que trazia
caídas sobre os ombros à moda de Castela, e no rosto sulcado de rugas certificava ser já bem larga a história da sua
peregrinação na Terra.
O mancebo olhou para Fernão Vasques,
que parecia absorto, e depois para o velho,
com um gesto de impaciência. Este olhou também para ele e sorriu-se. Depois o ancião chamou o alfaiate em voz
baixa, mas percetível.
Este, como se caísse em terra da
altura dos seus pensamentos, estremeceu e, saltando do escabelo, onde ainda se conservava
em pé, encaminhou-se rapidamente para os
dois cavaleiros.
— Senhor infante, que a vossa
mercê em perdoe e o senhor Diogo Lopes Pacheco!
À fé que, no meio deste arruído, quase me esquecera de que éreis aqui. Estais desenganados pelos vossos olhos
de que posso responder pelo povo, e de
que amanhã não faltarão em São Domingos?
— Na verdade — respondeu o
mancebo — que tu governas mais nele que o
meu irmão, com ser rei! Veremos se amanhã te obedecem, como te obedeceram hoje.
— És um notável capitão —
acrescentou Diogo Lopes, rindo e batendo no ombro do alfaiate.
— Se fosses capaz de reger assim
em hoste uma bandeira de homens de armas,
merecerias a alcaidaria de um castelo.
— Que só entregaria, no alto e no
baixo, irado e pagado, de noite ou de dia,
àquele que de mim tivesse preito e menagem.
— Bem dito! — interrompeu o velho
Pacheco, no mesmo tom em que começara. —
Se te negarem, não será por não trazeres já bem estudadas as palavras do preito. Tem a certeza de que hás
de ir longe, Fernão Vasques; muito
longe! Assim eu a tivera de que não me será preciso coser à ponta do punhal a boca de quem ousar dizer que o
infante Dom Dinis e Diogo Lopes Pacheco
cruzaram esta noite a porta da taberna do genovês Folco Taca.
Quando estas últimas palavras,
proferidas lentamente, saíram dos lábios do que as proferia, os roncos e assobios do
beguino que dormia foram mais rápidos e
trêmulos.
— Quem é aquele echacorvos? —
prosseguiu Diogo Lopes, apontando para
Frei Roy, com gesto de desconfiança.
— É um dos nossos — respondeu o
alfaiate —, um dos que mais têm encarniçado
a arraia-miúda contra a feiticeira adúltera. Na assuada desta tarde foi dos que mais gritaram em frente dos Paços
de El-Rei. Por este respondo eu. Não
ireis, senhor Diogo Lopes de lhe coser a boca à ponta do vosso punhal.
— Responde por ti, honrado
capitão de arraia-miúda — replicou o velho cortesão. — Quem me responde por ele é o seu
dormir profundo: quem me responderia por
ele, se, acordando, nos visse aqui, seria este ferro que trago na cinta. Agora o que importa. Enquanto amanhã
el-rei se demorar em São Domingos, um
troço da arraia-miúda e besteiros há de acometer o paço, e, ou do terreiro ou rompendo pelos aposentos
interiores, é necessário que uma pedra
perdida, um tiro em algum corredor escuro nos assegure que el-rei não pode deixar de atender às súplicas dos seus
leais vassalos e dos cidadãos de Lisboa.
— Morta! — exclamou o infante,
com um gesto de horror. — Não, não, Diogo
Lopes; não ensanguenteis os paços do meu irmão, como...
— Como ensanguentei os Paços de
Santa Clara — atalhou Pacheco —, dizei-o
francamente; porque nem remorsos me ficaram cá dentro. Senhor infante, vós esquecestes-vos disso, porque eu
posso e valho com el-rei de Castela!
Senhor infante, a ambição tem que saltar muitas vezes por cima dos vestígios de sangue! Vós passaste avante e não
vistes os do sangue da vossa mãe! Porque
hesitareis, ao galgar os do sangue de Leonor Teles? Senhor, infante, quem sobre por sendas íngremes e por
despenhadeiros tem a certeza de
precipitar-se no fogo, se covardemente recua.
D. Dinis tinha-se tornado pálido
como cera. Não respondeu nada: mas dos olhos
rebentaram-lhe duas lágrimas.
Fernão Vasques escutou a preleção
política do velho matador de D. Inês de Castro
com religiosa atenção. E resolveu lá consigo não se deixar cair no fojo.
— Far-se-á como apontais — disse
ele, falando com Diogo Lopes —, mas, se
os homens de armas e besteiros de João Lourenço Bubal descerem do castelo...
— Não te disse, ainda há pouco,
que João Lourenço ficaria quieto no meio da revolta? Podes estar sossegado, que não te
certifiquei disso para animares o povo.
E a realidade. Agora trata de dispor as coisas para que não seja um dia inútil o dia de amanhã.
Pegando então na mão do infante,
o feroz Pacheco saiu da taberna e tomou com
ele o caminho da alcáçova. Fernão Vasques ficou um pouco cismado: depois saiu, dirigindo-se para a Porta do
Ferro e repetindo em voz baixa:
— Não me precipitarei no fojo!
Passados alguns instantes de
silêncio, Frei Roy levantou devagarinho a cabeça, sentou-se no bufete e pôs-se a escutar: depois
saltou para o chão, apagou a lâmpada que
ardia no meio da casa, abandonada por Folco Taca, logo que o povo tumultuariamente a inundara, chegou à
porta, escutou de novo alguns momentos,
manso e manso encaminhou-se para a torre da Sé da banda do norte e, como um fantasma, desapareceu cosido
com a negra e alta parede da catedral.
II
O BEGUINO
Quem hoje passa pela cadeia da
cidade de Lisboa, edifício imundo, miserável, insalubre, que por si só bastara a servir de
castigo a grandes crimes, ainda vê na
extremidade dele umas ruínas, uns entulhos amontoados, que separa da rua uma parede de pouca altura, onde se abre uma
janela gótica. Esta parede e esta janela
são tudo o que resta dos antigos Paços de a par S. Martinho, igreja que também já desapareceu, sem deixar, sequer, por
memória um pano de muro, uma fresta de
outro tempo. O Limoeiro é um dos monumentos de Lisboa sobre que revoam mais tradições de remotas
eras. Nenhuns paços dos nossos reis da
primeira e da segunda dinastia foram mais vezes habitados por eles. Conhecidos sucessivamente pelos nomes de
"Paços de El-Rei", "Paços dos Infantes", "Paços da Moeda",
"Paços do Limoeiro", a sua história vai sumir-se nas trevas dos tempos. São da era mourisca?
Fundaram-nos os primeiros reis portugueses?
Ignoramo-lo. E que muito, se a origem de Santa Maria Maior, da venerando catedral de Lisboa, é um mistério!
Se, transfigurada pelos terramotos,
pelos incêndios e pelos cônegos, nem no seu arquivo queimado, nem nas suas rugas caiadas e douradas pode
achar a certidão do seu nascimento e dos
anos da sua vida! Como as da igreja, as ruínas da monarquia dormem em silêncio à roda de nós, e, envolto
nos seus eternos farrapos, o povo vive
eterno em cima ou ao lado delas, e nem sequer indaga porque jazem aí!
Na memorável noite em que se
passaram os sucessos narrados no capítulo antecedente, essa janela dos Paços de El-Rei
era a única aberta em todo o vasto
edifício, mas calada e escura, como todas as outras. Só, de vez em quando, quem para lá olhasse atento do meio do
terreiro enxergaria o que quer que
fosse, alvacento, que ora se chegava à janela, ora se retraía. Mas o silêncio que reinava naqueles sítios não era
interrompido pelo menor ruído. De
repente, um vulto chegou debaixo da janela e bateu devagarinho as palmas: a figura alvacenta chegou à janela,
debruçou-se, disse algumas palavras em
voz baixa, retirou-se, tornou a voltar e pendurou uma escada de corda que segurou por dentro. O vulto que chegara subiu
rapidamente, e ambos desapareceram
através dos corredores e aposentos do paço.
Em um destes últimos, iluminado
por tochas seguras por longos braços de ferro
chumbados nas paredes, passeava um homem de meia idade e gentil presença. Os seus passos eram rápidos e
incertos, e o seu aspeto carregado. De
vez em quando, parava e escutava a uma porta, cujo reposteiro se meneava levemente; depois continuava a passear,
parando, às vezes, com os braços cruzados
e como entregue a pensamentos dolorosos.
Por fim, o reposteiro ondeou de
alto a baixo e franziu-se no meio; mão alva de mulher o segurava. Esta entrou, e após ela
um homem alto e robusto, vestido de
burel e cingido de cinto de esparto, de onde pendiam umas grossas camândulas. A dama atravessou vagarosamente a
sala e foi sentar-se num estrado de
altura de palmo, que corria ao longo de uma das paredes do aposento. O homem que passeava sentou-se
também, no único escabelo que ali havia.
Frei Roy, que o leitor já terá conhecido, ficou ao pé da porta por onde entrara, com a cabeça baixa e em postura
abeatada.
— Aproxima-te, beguino! — disse
com voz tremula el-rei; porque era el-rei D. Fernando o homem que se sentara.
— Frei Roy deu uns poucos passos
para diante.
— Que há de novo? — perguntou
el-rei.
— O povo cada vez está mais
alvorotado e jura falar rijamente amanhã a vossa senhoria. Mas essa não é a pior nova que
eu trago!
— Fala, fala, beguino! — acudiu
el-rei, estendendo a mão convulsa para o echacorvos.
— É que amanhã, enquanto vossa
senhoria estiver em São Domingos, o áco
será acometido. Pretendem matar...
— Mentes, beguino! — gritou a
dama, erguendo-se do estrado de um salto,
semelhante a tigre descoberto pelos caçadores nos matagais da Ásia. — Mentes! Podem não me querer rainha: mas
assassinar-me! Isso é impossível. Amo
muito o povo de Lisboa; tenho-lhe feito as mercês que posso, não me há de odiar assim de morte. Os fidalgos podem
persuadi-lo a opor-se ao nosso casamento;
mas nunca a pôr mãos violentas na pobre Leonor Teles.
— Provera a Deus que eu mentisse
hoje. Seria a primeira vez na minha vida
— replicou o echacorvos, com ar contrito. — Mas ouvi com os meus ouvidos a ordem para o feito e a promessa da
execução, haverá três credos, na taberna
de Folco Taca.
— Miseráveis! — bradou,
erguendo-se também, el-rei, a quem o risco da sua amante restituíra por um momento a
energia. — Miseráveis! Querem sobre a
cerviz o jugo de ferro do meu pai? Tê-lo-ão. Quem ousa ordenar tal coisa?
— Diogo Lopes Pacheco, do vosso
conselho, o disse ao alfaiate Fernão Vasques,
o coudel dos revoltosos, e o vosso irmão D. Diais estava, também, com eles — respondeu Frei Roy.
O beguino era o espia mais
sincero e imperturbável de todo o mundo.
— Velho assassino! — exclamou D.
Fernando —, cobriste de luto eterno o
coração do pai: queres cobrir o do filho. E tu, Dinis, que eu amei tanto, também entre os meus inimigos! Leonor, que
faremos para te salvar?! Aconselha-me
tu, que quase que enlouqueci!
O pobre e irresoluto monarca
cobriu o rosto com as mãos, arquejando violentamente.
D. Leonor, cujos olhos centelhantes, cujos lábios esbranquiçados revelavam mais ódio que terror,
lançou-lhe um olhar de desprezo e, em
tom de mofa, respondeu:
— Sim, senhor rei, na falta dos
vossos leais conselheiros, posso eu, triste mulher, dar-vos um bom conselho. Acordai
vossos pajens, que vão pregar um poste à
porta destes paços, e mandai-me amarrar a ele, para que o vosso bom povo de Lisboa possa despedaçar-me
tranquilamente amanhã, sem profanar os
vossos aposentos reais. Será mais uma grande mercê que lhe fareis em recompensa do seu amor à vossa pessoa, da sua
obediência aos vossos mandados.
— Leonor, Leonor, não me fales
assim, que me matas! — gritou D. Fernando
deitando-se aos pés de D. Leonor e abraçando-a pelos joelhos com um choro convulso. — Que te fiz eu para me
tratares tão cruelmente?
— Dom Fernando, lembra-te bem do
que te vou dizer! O povo ou se rege com
a espada do cavaleiro, ou ele vem colocar a ascuma do peão sobre o trono real. Quem não sabe brandir o ferro
cede; deixa-o reinar.
— Tens razão, Leonor! — disse D.
Fernando, enxugando as lágrimas e alçando
a cara nobre e formosa, onde se pintava a indignação. — Serei filho de Dom Pedro, o Cruel; serei sucessor do meu
pai. Eu mesmo vou ao alcáçar examinar os
engenhos mais valentes que cubram o terreiro de São Martinho de pedras, de virotões e de cadáveres: os
montantes e as bestas dos homens de armas
e besteiros do meu alcaide-mor de Lisboa farão o resto. João Lourenço Bubal será fiel ao seu rei. Se necessário for,
com as minhas próprias mãos ajudarei a
pôr fogo à cidade, para que nem um revoltoso escape. Adeus, Leonor: conta que serás vingada.
D. Fernando voltou-se rápido para
a porte do aposento. Frei Roy estava imóvel
diante dele.
— João Lourenço Bubal — disse o
espia, sem mudar de tom nem de gesto — é dos revoltosos. Ouvi-o da boca do
próprio Diogo Lopes, que o certificou a
Fernão Vasques. Os trons do alcácer estão desaparelhados, e a maior parte dos homens de armas e besteiros do alcaide-mor
eram na taberna de Folco Taca os mais
furiosos contra a que eles chamam...
— Cala-te, beguino — gritou
el-rei, empurrando-o com força e procurando
tapar-lhe a boca.
O echacorvos parou onde o impulso
recebido o deixou parar e ficou outra fez imóvel diante de D. Fernando, a quem este
último golpe lançava de novo na sua
habitual perplexidade.
— ... a adúltera — prosseguiu
Frei Roy acabando a frase, porque ainda a devia, e era escrupuloso e pontual no
desempenho do seu ministério.
— Beguino! — atalhou D. Leonor,
com voz trêmula de raiva —, melhor fora
que nunca essa palavra te houvesse passado pela boca; porque, talvez, um dia ela seja fatal para os que a tiverem
proferido.
— Mas que faremos?! — murmurou
el-rei com gesto de indizível agonia.
— Havia ainda há pouco três
expedientes — respondeu D. Leonor, recobrando
aparente serenidade —, combater, ceder, fugir. O primeiro é já impossível; o segundo! ... Porque não o
aceitas, Fernando? Prestes estou para tudo.
Não me verás mais, ainda que, longe de ti, por certo estalarei de dor. Cede à força: os teus vassalos o querem;
qué-lo o teu povo. Esquece-te para sempre
de mim!
— Esquecer-me de ti? Não te ver
mais? Nunca! Obedecer à força? Quem há
aí que ouse dizer ao rei de Portugal: "Rei de Portugal, obedece à
força"? Os peões de Lisboa?! Porque
sou manso na paz, não creem que a minha espada no campo da batalha corte arneses, como a do
melhor cavaleiro? Bons escudeiros e
homens de armas da minha hoste, por onde andais derramados? Dormis por vossas honras e solares? O povo vos
acordará, como me acordou a mim;
bramirá, como os lobos da serra, ao redor das vossas moradas; saltar-vos-á no
meio dos vossos banquetes, por entre o ruído dos vossos folgares. No ardor dos vossos amores, dir-vos-á:
"Desamai!" Ele ousa já dizê-lo ao seu rei e senhor... Oh, desgraçado de mim,
desgraçado de mim!
— Não queres, pois, deixar-me
entregue à minha estrela? — disse D. Leonor,
com voz entre de choro e de ternura, abraçando pelo pescoço o pobre monarca e chegando a sua cara suave e
pálida às faces afogueadas de D. Fernando,
que, numa espécie de delírio, olhava espantado para ela.
— Não, não! Viver contigo ou
morrer contigo. Cairei do trono ou tu subirás
a ele.
Um sorriso quase imperceptível se
espraiou pelo rosto de Leonor Teles, que, recuando e tomando uma postura resoluta e ao
mesmo tempo de resignação, prosseguiu
com voz lenta, mas firme:
— Então resta o fugir.
— Fugir! — exclamou el-rei. E só
esta palavra era mais expressiva que narração
bem extensa dos atrozes martírios que o mal-aventurado curtia no coração irresoluto, mas generoso, com a ideia
de um feito, vil e covarde em qualquer
escudeiro, vilíssimo num rei de Portugal, num neto de Afonso IV.
El-rei olhou para ela um momento.
Era sereno o seu rosto angélico, semelhante
ao de uma dessas virgens que se encontram nas iluminuras de antigos códices, o segredo de cujos toques,
perdido no fim do século décimo quinto,
a arte moderna a muito custo pôde fazer ressurgir. O mais esperto fisionomista dificultosamente adivinharia a
negrura de alma que se escondia debaixo
das puras e cândidas feições de D. Leonor, se não uniam entre os sobrolhos, contraindo-se e deslizando-se
rapidamente como as vesículas peçonhentas
das fauces de uma víbora.
— Seja, pois, assim! Fujamos —
murmurou D. Fernando com o tom e gesto
com que o supliciado daria do alto do patíbulo o perdão ao algoz.
D. Leonor tirou do largo cinto
com que apertava a airosa cintura uma bolsa de ouropel e atirou com ela aos pés do beguino,
que, de mãos cruzadas sobre o peito e os
olhos semi-abertos cravados na abóbada do aposento, parecia extático e engolfado nos pensamentos sublimes
do céu.
— Vinte dobras de Dom Pedro pelo
teu soldo, beguino: vinte pelo teu silêncio.
O resto da recompensa tê-lo-ás um dia, se a adúltera atravessar triunfadora o portal por onde vai sair
fugitiva.
O rir afável de que estas
palavras foram acompanhadas disseram correr um calafrio pela medula espinal do echacorvos,
cujas pernas vacilaram. Mas o contato
das quarenta dobras que uniu imediatamente ao peito debaixo do escapulário lhe restituiu o vigor natural.
El-rei havia-se sentado, quase
desfalecido, no escabelo único do aposento, e o seu aspeto demudado infundia ao mesmo tempo
terror e compaixão. Quando o beguino
levantou a bolsa, D. Fernando fitou nele os olhos e estendeu a mão para o reposteiro, sem dizer palavra.
Frei Roy curvou a cabeça, cruzou
de novo as mãos sobre o peito e, recuando até à porta, desapareceu no corredor escuro
por onde entrara.
Apenas os passos lentos e pesados
do echacorvos deixaram de soar, D. Leonor
encaminhou-se para uma janela que dava para um vasto terrado e afastou a cortina que servia durante o dia de
mitigar a excessível luz do sol. A noite
ia no meio do seu curso, como o indicava o mortiço das tochas, que mal iluminavam o aposento, e a Lua, já no
minguante, começava a subir na abóbada
do firmamento, mergulhando no seu clarão sereno o brilho esplêndido das estrelas. A janela estava
aberta, e o escabelo de el-rei ficava próximo
e carairo: o luar batia de chapa no rosto belo e triste de D. Fernando, que, embebido no seu amargurado pensar,
parecia alheio ao que se passava à roda
dele e esquecido de que lhe restavam poucas horas para poder levar a cabo a resolução que tomara. Leonor Teles,
encostada ao mainel da janela, pôs-se a
olhar atentamente. A cidade dormia, e apenas o ladro de algum cão cortava aquela espécie de zumbido que é como o
respirar noturno de uma grande povoação
que repousa. Lá em baixo, uma faixa tremula, semelhante a uma ponta de luz, cortava obliquamente o Tejo,
de onde mais largo se curvava pela
margem esquerda. Os mastros de milhares de navios, emparelhados com a cidade, desde Sacavém até o promontório onde
campeava, fora dos arrabaldes, o
Mosteiro de S. Francisco, formavam uma espécie de floresta lançada entre a cidade e a sua imensa baía.
Desde o terrado para o qual dava a janela
até o rio, o bairro dos judeus, pendurado pela encosta íngreme e fechado com traveses e cadeias nos topos das
ruas, desenhava uma espécie de triângulo,
cuja base assentava sobre o lanço oriental da muralha mourisca, e cujo vértice, voltado para ocidente, se
coroava com a sinagoga, abrigada à sombra
do vulto disforme da catedral. Pouco distante do terrado, entre o palácio e a judiaria, a claridade da Lua batia
de chapa num terreiro irregular, rodeado
de mesquinhas e meio arruinadas casas, que pela maior parte pareciam desabitadas. No meio dele, o que quer
que era se erguia semelhante ao arco de
um portal romano. Parecia ser uma ruína, um fragmento de edifício da antiga Olisipo, que esquecera ali aos terremotos,
às guerras e aos incêndios, e ao qual
finalmente chegara a sua hora de desabafar, porque uma alta escada de mão estava encostada à verga que assentava
sobre os dois pilares laterais e os
unia, como se ali a tivessem porto para, em amanhecendo, os obreiros poderem subir acima e derribarem-no em terra.
Era para esse vulto que D. Leonor
se pusera a olhar atentamente.
Depois voltou o rosto para
el-rei, que, com a cabeça baixa, os braços estendidos e as mãos encurvadas sobre os
joelhos, parecia vergar sobre o peso da
sua amargura: contemplou-o com um gesto de compaixão por alguns momentos e, estendendo para ele os braços,
exclamou:
— Fernando!
Havia no tom com que foi
proferida esta única palavra um mundo de amor e voluptuosidade; mas, no meio da brandura da
voz de Leonor Teles, havia também uma
corda áspera; alguma coisa do rugir do tigre.
El-rei deu um estremeção, como se
pelos membros lhe houvera coado uma faísca
elétrica; ergueu-se, e atirou-se a chorar aos braços de Leonor Teles.
— Amanhã — disse ele com voz
afogada — o rei mais desonrado da cristande serei eu: o cavaleiro mais vil das
Espanhas será Dom Fernando de Portugal.
Que me resta? Só o teu amor; mais nada. Porque não me pedem antes a coroa real, que para mim tem sido
coroa de espinhos? Dera-a de boa vontade.
Oh, Leonor, Leonor!, serias a mulher mais perversa, se um dia me atraiçoasses.
Um beijo da adúltera cortou as
lástimas de el-rei. A formosura desta mulher tinha um toque divino à claridade da lua. D.
Fernando, embriagado de amor, esqueceu-se
de que poucas horas lhe restavam para fugir do seu povo enganado e ludibriado por ele.
— Fernando! — prosseguiu D.
Leonor —, jura-me ainda uma vez que serás
sempre meu, como eu serei sempre tua.
Dizendo isto, afastou-o
brandamente de si.
— Juro-to uma e mil vezes pela fé
de leal cavaleiro que até hoje fui. Juro-to pelo céu que nos cobre. Juro-to pelos ossos do
meu nobre e valente avô, que ali dorme
junto do altar-mor da Sé, debaixo das bandeiras infiéis que conquistou no Salado. Juro-to por mais que
tudo isso: juro-to pelo meu amor!
— Bem está, rei de Portugal! —
atalhou D. Leonor. — Agora só uma coisa
me resta para te pedir. Não é favor; é justiça.
— Não me peças Lisboa, que essa
sabe Deus se tornará a ser minha, rica, povoada
e feliz como eu a tornei, ou se repousarei ainda a cabeça nestes paços dos meus antepassados, passando por cima das
ruínas dela! Não me peças Lisboa, que
talvez amanhã deixe de um chamar seu rei: do resto de Portugal pede-me o que quiseres.
— Quero que me dês as minhas
arras: quero o preço do meu corpo, conforme
foro de Espanha.
— Vila Viçosa é alegre como um
horto de flores, e Vila Viçosa dar-te-ei eu. O Castela de Óbidos é forte e roqueiro,
são numerosos e prestes para defesa os
seus engenhos, e o Castelo de Óbidos será teu. Sintra pendura-se pela montanha entre lençóis de águas vivas, e
respira o cheiro das ervas e flores que
crescem à sombra das penedias: podes ter pela tua a Sintra. Alenquer é rica no meio das suas vinhas e
pomares, e Alenquer te chamará senhora.
— Guarda as tuas vilas, Dom
Fernando, que eu não te peço em dote; quero,
apenas, uma promessa de coisa de bem pouca valia.
— De muita ou de pouca, não me
importa! Dar-te-ei o que me pedires.
D. Leonor estendeu a mão para a
espécie de portada romana que se erguia solitária
no meio do terreiro deserto.
— É ali que tu me darás o preço
do meu copo, se um dia a cerviz da orgulhosa
Lisboa se curvar debaixo do teu jogo real.
El-rei lançou um rápido volver de
olhos para onde Leonor Teles tinha o braço estendido, mas recuou horrorizado. O vulto que
negrejava no meio do terreiro era o
patíbulo popular e peão: era a forca, tétrica, temerosa, maldita!
— Leonor, Leonor! — disse el-rei
com som de voz cavo e débil —, porque
vens misturar pensamentos de sangue com pensamentos de amor? Porque interpões um instrumento de morte e de
afronta entre mim e ti? Porque preferes
o fruto do cadafalso às vilas e castelos de que te faço senhora? Porque trocas a estola do clérigo que
há de unir-nos pelo baraço áspero do
algoz?
— Rei de Portugal! — respondeu a
mulher de João Lourenço da Cunha, com um
brado de furor —, ainda me perguntas porque o faço? Tu nunca serás digno do cetro do teu pai! Queres saber
porque junto pensamentos de sangue a
pensamentos de amor? É porque esses de quem eu o peço pediram também o meu sangue. Queres saber porque
interponho entre mim e ti um instrumento
de morte e de afronta? É porque o teu bom povo de Lisboa quis também interpor entre nós a morte e saciar-me
de afrontas. Queres que te diga porque
prefiro o fruto do cadafalso às vilas e castelos que me ofereces? É porque para os ânimos generosos não há vender
vinganças por ouro. Vingança, rei de
Portugal, te pede em dote a tua noiva! Jura-me que um dia os teus vassalos que me perseguem serão também
perseguidos, e que essa vil plebe que
cobre de injúrias e pragas o meu nome, porque te amo, o amaldiçoem porque levo os seus caudilhos ao
patíbulo. Este é o preço do meu corpo.
Sem esse preço, a neta de Dom Ordonho de Leão nunca será mulher de Dom Fernando de Portugal.
E com um braço estendido para o
lugar sem nome do suplício e com o outro curvado, como quem afastava de si el-rei, esta
mulher vingativa era sublime de atrocidade.
— Tens razão, Leonor — disse por
fim D. Fernando, depois de largo silêncio,
em que se afetos inconstantes do seu caráter volúvel mudaram gradualmente. — Tens razão. A futura rainha de
Portugal terá o seu desagravo: as
línguas que te ofenderam calar-se-ão para sempre; os corações que te desejaram a morte deixarão de bater. No
meu trono, até aqui de mansidão e
bondade, assentar-se-á a crueza. Com Judas, o traidor, seja eu sepultado no Inferno, se faltar ao juramento
que te faço de lavar em sangue a tua e a
minha injúria.
A estas palavras, o aspeto severo
de D. Leonor Teles mudou-se num sorrir de inexplicável doçura.
— Ah, como te hei de amar sempre!
— murmurou ela. E estas palavras caíam
dos seus lábios meigos e suaves como o arrulhar de pomba amorosa. Um beijo ardente, que sussurrou levado nas
asas da brisa fresca da noite, selou esse
pacto de ódio e de extermínio.
III
UM BULHÃO E UMA AGULHA DE
ALFAIATE
O Sol, que havia mais de meia
hora subira do Oriente, cingido da sua auréola da vermelhidão, no meio da atmosfera turva e
acinzentada de um dia dos fins de
Agosto, dava de chapa no rossio ou praça onde avultava o Mosteiro de S. Domingos, rodeado de hortas oriente, e pelo de
Valverde, ao norte. Já muitos besteiros
e peões armados de ascumas se derramavam ao longo da parede dos paços de Lançarote Peçanha carairos ao
mosteiro, descendo uns por entre as vinhas
de Almafala(*1), outros do arrabalde da Pedreira ou bairro do Almirante(*2), outros da banda da alcáçova,
outros, enfim, desembocando das ruas
estreitas e irregulares que iam dar à opulente e célebre Rua Nova (*3).
[(*1) Hoje o Monte da Garça]
[(*2) Hoje o bairro dentro da Rua
Larga de S. Roque, Chiado, Rua do Ouro, Rossio e Calçada do Duque]
[(*3) Hoje Rua dos Capelistas]
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Era a manhã imediata à noite em
que ocorreram os sucessos narrados antecedentemente.
O povo preparava-se para uma luta moral com o seu rei; mas não se descuidara de vir prestes para uma
luta física, se D. Fernando quisesse
apelas para esse último argumento. Era a primeira vez neste reinado que a arraia-miúda dava mostras da sua força e
reivindicava o direito de dizer armada
"não quero!" O elemento democrático erguia-se para influir ativamente na monarquia; enxertava-se nela,
como princípio político, a par da aristocracia,
que com a manopla de ferro arrojava a plebe contra o trono, sem pensar que brevemente este, conhecendo assim
a força popular, se valeria dela para
esmagar aqueles que ora sopravam os ânimos para a revolta e davam nova existência ao vulgo.
A hora aprazada para a vinda de
el-rei ainda não havia batido: mas o povo orgulhoso da importância que subitamente se
lhe dera, embevecido na ideia de que
obrigaria el-rei a quebrar os laços adulterinos que o uniam a Leonor Teles, não media o tempo pelo curso do Sol, mas sim
pelo fervor da sua impaciência. Duas
vezes se espalhava a voz de que D. Fernando chegara, e duas vezes o povo correra para o alpendre do
mosteiro. As portas da igreja estavam,
porém, fechadas, bem como a portaria e as estreitas e agudas frestas do mosteiro gótico que, formado apenas de um
pavimento térreo e humilde, contrastava
com a magnificência do templo, em cujas portadas profundas, sobre os colunelos pontiagudos que sustinham
os fechos e chaves da abóbada, os
animais monstruosos e híbridos, os centauros, os sátiros e os demônios, avultados na pedra dos capitéis por entre as
folhagens de carvalho e de lódão, pareciam,
com as visagens truanescas que nas faces mortas lhes imprimira o escultor, escarnecerem da cólera popular, que,
lenta como os estos do oceano, começava
a crescer e a trasbordar. Apenas, lá dentro, se ouviam de vez em quando as harmonias saudosas do órgão e do
cantochão monótono dos frades, que
ofereciam a Deus as preces matutinas. Era então que o povo escutava: e retraía-se arrastado pelas blasfêmias
e pragas que saíam de mil bocas e que
eram repelidas do santuário pelo sussurro dos cânticos que reboavam dentro da igreja, e que transudavam
por todos os poros do gigante de pedra
um murmúrio de paz, de resignação e de confiança em Deus.
O povo, porém, era como os homens
robustos do Gênesis: era ímpio, porque era
robusto.
O dia crescia, e crescia com ele
a desconfiança. As notícias corriam encontradas:
ora se dizia que el-rei cedia aos desejos dos seus vassalos e dos peões, e que viria anunciar ao povo a sua
separação de Leonor Teles; ora, pelo contrário,
se asseverava que ele era firme em sustentar a resolução contrária. Havia, até, quem asseverasse que na alcáçova e
no terreiro de S. Martinho se começavam
a juntar homens de armas e besteiros. A cólera popular crescia, porque a atiçava já o temor.
No meio de uma pilha de galeotes,
carniceiros, pescadores, moleiros, lagareiros
e alfagemes, dois homens altercavam violentamente. Eram Airas Gil e Frei Roy: objeto da disputa Fernão Vasques;
arguente o petintal; defendeste o
beguino.
— Que não virá vos digo eu —
gritava Airas Gil. — Disse-mo Garciordonez,
o mercador de panos que mora ao cabo da Rua Nova, aos açougues, em frente das taracenas d’el-rei.
— Mentiu pela gorja, como um
perro judeu — replicou Frei Roy. — Não era
Fernão Vasques homem que faltasse a este auto, tendo-o a arraia-miúda elegido pelo seu propoedor.
— Medo ou dobras do paço podem
tapar a boca aos mais ousados e fazê-los
dormir até desoras — retrucou o
petintal.
— Que fazem falar as dobras do
paço, seu eu — disse o beguino com riso sardônico,
lembrando-se do que nessa noite passara —: medo sabeis vós que faz fugir; inveja sabemos nós todos que faz
imaginar...
— Descaro e gargantoíce que faz
mendigar — interrompeu Airas Gil, vermelho
de cólera, cerrando os punhos e descaindo para o echacorvos como galé que vai aferrar outra em combate naval.
— E comunicado vos — murmurou
Frei Roy, fazendo-se prestes para resistir
ao abalroar do petintal.
E o vulgacho que estava de roda
ria e batia as palmas.
Nisto os gritos de alcácer!,
alcácer!" reboaram para outro lado da praça: o povo correu para lá. Os dois campeadores
voltaram-se: era o alfaiate.
Sem dizer palavra, o beguino
olhou com gesto de profundo desprezo para Airas Gil e, tomando uma postura entre heroica
e de inspirado, estendeu o braço e o
índex para o lugar onde passava Fernão Vasques. Depois, partiu com a turbamulta que o rodeava, enquanto o
petintal o seguia de longe lento e cabisbaixo.
O alfaiate, cercado de outros
cabeças do tumulto da véspera, encaminhou-se para alpendrada de S. Domingos. Trazia vestida
uma saia(*) de valencina reforçada,
calças de bifa, sapatos de pele de gamo, chapeirão de inglês com fita de momperle e cinta de couro, tudo escuro, ao
modo popular.
[(*) Muitos dos trajes civis do
século décimo quarto eram comuns a ambos os sexos, ou pelo menos tinham ambos comuns, como se pode
verificar na lei de D. Afonso IV acerca dos trajes.]
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Com passos firmes subiu os
degraus do alpendre. Dali, em pé, com os braços cruzados, correu com os olhos a praça, onde
entre o povo apinhado se fizera repentino
silêncio. Depois tirando o chapeirão, cortejou a turbamulta para um e outro lado; os seus gestos e ademanes eram
já os de um tribuno.
— Alcácer, alcácer pela
arraia-miúda! Alcácer por el-rei Dom Fernando de Portugal, se desfizer nosso torto e a sua
vilta, senão!...
Esta exclamação de um alentado
alfageme que estava pegado com a balaustrada
do alpendre foi repetida em grita confusa por milhares de bocas.
De repente, do lado da Rua de
Gileanes, sentiu-se um tropear de carruagens, que parecia correrem à rédea solta. Todos os
olhos se voltaram para aquela banda:
muitos rostos empalideceram.
Uma voz de terror girou pelo meio
das turbas. "São homens de armas de el- rei!" Aquele oceano de
cabeças humanas redemoinhou, a estas palavras, e começou a dividir-se como o mar Vermelho
diante de Moisés. Num momento viu-se uma
larga faixa esbranquiçada cortar aquela superfície móvel e escura: era ampla estrada que se abria por
entre ela, desde a Rua de Gileanes até
S. Domingos. As paredes dessa estrada adelgaçavam-se rapidamente. Para as bandas da Mouraria e da Pedreira, os becos
e encruzilhadas apinhavam-se de gente, e
os reflexos dos ferros das ascumas populares, que erguidas cintilavam ao sol, começaram a descer e a
sumir-se, como as luzinhas das bruxas em
sítio brejoso aos primeiros assomos do alvorecer. Fernão Vasques olhou em redor de si: estava só. Descorou, mas
ficou imóvel.
Entretanto, o tropear
aproximava-se cada vez com mais alto ruído. Os besteiros do concelho postados ao longo dos
Paços do Almirante eram, talvez, os
únicos em quem o terror não fizera profunda impressão: alguns já tinham estendido sobre o braço da besta os
virotes ervados e, revolvendo a polé,
faziam encurvar o arco para o tiro. Os besteiros de garrucha tinham já o dente desta embebido na corda, prontos a
desfechar ao primeiro refulgir dos montantes
nus dos cavaleiros e escudeiros reais. Do resto do povo, os ousados eram os que recuavam; porque o maior
número voltava as costas e internava-se
pelas azinhagas dos hortos de Valverde e das vinhas de Almafala ou trepava pelas ruas escuras e malgradadas do
bairro do Almirante.
Mas, no meio deste susto geral,
aparecera um herói. Era Frei Roy. Ou fosse imprudente confiança no cargo oculto que lhe
dera D. Leonor, ou fosse robustez de
ânimo, ou fosse, finalmente, a persuasão de que o hábito de beguino lhe serviria de broquel, longe de
recuar ou titubear, correu para a quina
da rua de onde rompia o ruído e, mirando pela aresta do ângulo um breve espaço, voltou-se para o povo e,
curvando-se com as mãos nas ilhargas, desatou
em estrondosas gargalhadas.
Tudo ficou pasmado; mas, vendo e
ouvindo o rir descompassado do echacorvos,
o povo começou a refluir para a praça. Aquelas risadas produziam mais ânimo e entusiasmo que os "quarenta
séculos vos contemplam" de Napoleão
na batalha das Pirâmides. Os amotinados recobraram num instante toda a anterior energia.
Esta cera tinha sido rapidíssima:
todavia, ainda grande parte dos populares hesitava entre o ficar e o fugir, quando se
reconheceu claramente a causa daquele
temor que apertara por algum tempo todos os corações. Era a Corte que chegava.
Montados em mulas possantes, os
oficiais da casa real, os ricos-homens, conselheiros
e juízes do Desembargo vinham assistir ao auto solene em que da boca de el-rei a nação devia ouvir ou uma
resolução conforme com os desejos tanto
da arraia-miúda como dos senhores e cavaleiros, ou a confirmação de um casamento mal agourado por
muitos nobres e por todos os burgueses,
e condenado, de não duvidoso modo, por estes últimos. No meio das variadas cores dos trajos cortesões
negrejavam as garnachas dos letrados e
clérigos do paço, e entre o reduzir dos esplêndidos arreios das mulas alentadas e fogosas dos vassalos
seculares, dos alcaides-mores e senhores
viam-se rojar os gualdrapas dos mestres em leis e degredos, dos sabedores e letrados que constituíam o supremo
tribunal da monarquia, a cúria ou
desembargo de el-rei.
A numerosa cavalgada atravessou o
terreiro por entre o povo apinhado. Em todos
os rostos transluzia o receio acerca de qual seria o desfecho deste drama terrível e imenso, em que entravam representantes
de todas as classes sociais.
Entre os membros daquela lustrosa
companhia distingui-a pelo seu porte altivo
o conde de Barcelos, D. João Afonso Telo, tio de D. Leonor, a quem nos diplomas dessa época se dá por excelência
o nome de "fiel conselheiro". Quando
os amores de el-rei com a sua sobrinha começaram, ele fizera, sincera ou simuladamente, grandes diligências para
desviar o monarca de levar avante os
seus intentos. D. Fernando persistia, todavia, neles, e então o conde, juntamente com a infanta D. Beatriz e com D.
Maria Teles, irmã de D. Leonor,
suscitara a ideia de a divorciar de João Lourenço da Cunha. O povo sabia isto e, posto que houvesse estendido a
sua má vontade a todos os parentes de
Leonor Teles, odiava principalmente o conde, como protetor daqueles adúlteros amores. Foi, portanto, nele
que se cravaram os olhos dos populares,
que, tendo-se em poucas horas elevado até à altura do trono, ousavam, também, dar testemunho público do
seu ódio contra o mais distinto membro
da fidalguia.
— Velha raposa, em que te pese,
não será a adúltera rainha da boa terra de Portugal! — gritava um carniceiro, voltando-se
para uma velha que estava ao pé dele,
mas olhando de través para o conde, que perpassava.
— Leal conselheiro de barriguices,
por quanto vendeste a honra do compadre Lourenço? — perguntava um alfageme,
fingindo falar com um vizinho, mas
lançando também os olhos para D. João Afonso Telo.
— Que tendes vós com o lobo que
empece ao lobo? — acudiu um lagareiro
calvo e curvado debaixo do peso dos anos. — Deixai-os morder uns aos outros, que é sinal de Deys se amercear de
nós.
— O que eles mereciam —
interrompeu uma regateira — era serem atagantados
(açoitados) com boas tiras de couro cru.
— E ela, tia Dordia? —
acrescentou um ferreiro. — Conheceis vós a comborça? Às vezes a quisera eu: uma do
alcaide no chumaço; outra do coitado nas
costas dela! (*)
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[(*) Segundo vários cadernos
legais do nosso direito consuetudinário e municipal, em certos casos aplicava-se às mulheres casadas a pena
que reza o discurso do ferreiro. O alcaide vinha a casa da criminosa, punha no chão um
travesseiro, pegava numa vara e começava a bater em cima dele, dando o compasso que o marido
da culpada deveria coordenar enquanto batia nas costas desta, pena que, com menos aparato,
se aplicava também aos homens por muitos e diferentes delitos.]
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— É costume, ergo direita a pena
— notou um procurador, que gravemente
contemplava aquele espetáculo e que até ali guardara silêncio.
Estas injúrias, que, como o fogo
de um pelotão, se disparavam ao longo das extensas e fundas fileiras dos populares, iam
ferir os ouvidos do conde de Barcelos,
que, fingindo não lhes dar atenção, empalidecia e corava sucessivamente e mordia os beiços de cólera.
De vez em quando, o vociferar
afrontoso da gentalha era afogado no ruído de risadas descompostas, mais insolentes cem
vezes que as injúrias; porque no rir do
vulgo há o que quer que seja tão cruel e insultuoso, que faz dar em terra o maior coração e o ânimo mais robusto.
Entre os parciais de D. Leonor
que vinham naquela comitiva viam-se, porém, muitos fidalgos e letrados que ou eram
pessoalmente seus inimigos ou, pelo menos,
desaprovavam alta e francamente a sua união com el-rei. Diogo Lopes Pacheco era o principal entre eles, e o povo,
ao vê-lo passar, saudou-o com um
murmúrio que foi como a recompensa do velho pelas desventuras da sua vida, desventuras que devera a um caso
análogo, a morte de D. Inês de Castro.
Quando os fidalgos, cavaleiros e
letrados da casa e conselho de el-rei se apearam junto aos degraus do alpendre do
mosteiro, o alfaiate, que viera misturar-se
com o povo logo que desembocaram na praça, subiu após eles e esperou que se sentassem no extenso banco de
castanho que corria ao longo da
alpendrada. Depois voltou-se para a multidão apinhada em redor:
— Se el-rei ainda não é presente
— disse em voz inteligível e firme — aí tendes
para ouvir vossos agravamentos os senhores do seu conselho: porventura que eles poderão dar-vos resposta
em nome da sua senhoria, e ele virá
depois confirmar o seu dito.
— Senhor Fernão Vasques, sois o
nossos propoedor: a vós toca falar — replicou
um do povo.
— Assim o queremos! Assim o
queremos! — bradou a turbamulta.
O alfaiate voltou-se então para
os cortesãos, conselheiros e letrados do Desembargo de el-rei e disse:
— Senhores, a mim deram carrego
estas gentes que aqui estão juntas de dizer
algumas coisas a el-rei nosso senhor que entendem pela sua honra e serviço; e porque é direito escrito que, sendo
as partes principais presentes, o ofício
de procurador deve cessar no que elas bem souberem dizer, vós outros que sois principais partes neste feito, e a
que isto mais tange que a nós, devíeis dizer
isto, e eu não: porém, não embargando que assim seja, eu direi aquilo de que me deram carrego, pois vós outros em elo
não quereis pôr mão, mostrando que vos
doeis pouco da honra e do serviço de el-rei...
— Cala-te, vilão! — bradou,
erguendo-se, o conde de Barcelos, com voz afogada da cólera, que já não podia conter —,
se não queres que seja eu quem te faça
resfolgar sangue, em vez de injúrias, por essa boca sandia.
O velho Pacheco pôs-se também em
pé, exclamando:
— Conde de Barcelos, lembrai-vos
de que os burgueses têm por costume antigo
o direito de dizerem aos reis seus agravamentos, de se queixarem e de os repreenderem. Nós somos menos que os reis.
Fernão Vasques tinha-se
entretanto voltado para o povo apinhado ao redor do alpendre, com o rosto enfiado, mas era de
indignação, e tinha feito um sinal com a
cabeça. No mesmo instante o povo abrira uma larga clareira, e quando os fidalgos e conselheiros, atentos
para o conde e para Diogo Lopes, voltaram
os olhos para o rossio, ao tropear da multidão, um semicírculo de mais de quinhentos besteiros e peões armados
fazia uma grossa parede em frente dos
populares.
Fernão Vasques encaminhou-se
então para D. João Afonso Telo e, com a mão
trêmula de raiva, segurando-o por um braço, disse-lhe:
— Senhor conde, vós sois que
doestais os honrados burgueses desta leal cidade na minha pessoas; porque eu nada fiz,
senão repetir em voz alta o que cada um
e todos me ordenaram repetisse. O que propus não é meu. Eis seus autores! Pelo que a mim toca, senhor conde,
não receio vossas ameaças. Quando o
nobre despe o gibão de ferro para vestir o de tela, não sei eu se este é mais forte que o do peão e se, também, a sua
boca não pode golfar sangue, como a de
um pobre vilão.
D. João forcejava por desasir-se
do alfaiate, procurando levar a mão à cinta, onde tinha o punhal; mas Fernão Vasques era
mais forçoso, e o conde já tinha entrado
na idade em que costuma minguar a robustez do homem. Não pôde chegar com a mão ao cinto.
— Conde de Barcelos — prosseguiu
o alfaiate, com um sorriso —, não recorrais
a esse argumento; porque eu também estou habituado a lidar com ferros azerados, ainda que mais delgados e
curtos que o vosso bulhão.
Estas últimas palavras, ditas em
tom de escárnio, mal foram ouvidas: a grita na praça era já espantosa; ares, produziam aquele
rouco e grande brado da fúria abismando-se
por cavernas imensas.
Os fidalgos e letrados tinham
rodeado os dois contendores: os parciais de D. Leonor, o conde; os outros, cujo número era
muito maior, o alfaiate. E tanto estes
como aqueles trabalhavam em apaziguá-los, posto que todos os ânimos estivessem quase tão irritados como os dos
dois contendores.
Finalmente, o conde cedeu. O
aspeto da multidão, que se agitava furiosa, contribuiu, porventura, mais para isso que
todas as razões e rogativas dos fidalgos
e cavaleiros, atônitos com o espetáculos da ousadia popular: desta ousadia que, menoscabando as ameaças do
primeiro entre os nobres, era mais incrível
que a da véspera, a qual apenas se atrevera ao trono.
Que fazia, porém, o nosso beguino
no meio destes prelúdios de uma eminente assuada? É o que o leitor verá no seguinte
capítulo.
IV
MIL DOBRAS, PÉ-TERRA E TREZENTAS
BARBUDAS
Mal Fernão Vasques travara do
braço do conde de Barcelos, e a grita popular começara a atroar a praça, Frei Roy,
escoando-se ao longo da parede do mosteiro,
dobrara a quina que voltava para a Corredoura(*) e, seguindo seu caminho por vielas torcidas e desertas,
chegara à Porta do Ferro, de onde, atravessando
o contíguo e mal-assombrado terreirinho que os raios do sol apenas iluminavam poucas horas do dia,
embargados, ao nascer, pelos agigantados
campanários da catedral e, ao declinar, pelos panos e torres da muralha mourisca, chegara esbaforido a S.
Martinho.
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[(*) A Corredoura era uma rua
que, passando ao sopé do Castelo e por detrás de S. Domingos, dava passagem do centro da cidade para a zona de
Valverde, hoje Salitre]
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A porta do paço estava fechada, mas a da
igreja estava aberta. Entrou. Ao lado direito
uma escada de caracol descia da tribuna real para a capela-mor, e a tribuna comunicava com o palácio por um
passadiço que atravessava a rua. O beguino
olhou ao redor de si e escutou um momento: ninguém estava na igreja. Subindo rapidamente a escada, Frei Roy
atravessou o passadiço e encaminhou-se,
sem hesitar no meio dos corredores e escadas interiores, para uma passagem escura. No fim dela havia uma
porta fechada. O monge vagabundo parou e
escutou de novo. Dentro altercavam três pessoas: Frei Roy bateu devagarinho três vezes, e pôs-se
outra vez a escutar.
Ouviram-se uns passos lentos que
se aproximavam da porta, e uma voz esganiçada
e colérica perguntou:
— Quem está aí?
— Eu — respondeu o beguino.
— Quem é eu? — replicou a voz.
— Honrado Dom Judas, é Frei Roy Zambrana,
indigno servo de Deus, que pretende
falar a el-rei ou à muito excelente senhora Dona Leonor, para negócio de vulto.
— Abre, Dom Judas, abre! — disse
outra voz, que pelo metal parecia feminina
e que soou do lado oposto do aposento.
A porta rodou nos gonzos, e o
echacorvos entrou.
Era o lugar onde Frei Roy se
achava uma quadra pequena, iluminada escassamente
por uma fresta esguia e engradada de grossos varões de ferro, a qual dava para uma espécie de saguão, ainda
mais acanhado que o aposento. A abóbada
deste era de pedra; de pedra as paredes e o pavimento: ao redor viam-se por único adereço muitas arcas
chapeadas de ferro. O monge entrara na
casa das arcas da Coroa — do "recábedo do regno". As duas personagens
que ali estavam, afora a que abrira a
porta, eram D. Fernando e D. Leonor. El-rei,
de pé, curvado sobre uma das arcas, com a cara firmada sobre o braço esquerdo, folheava um desconforme volume de
folhas de pergaminho, cujas guardas eram
duas alentadas tábuas de castanho, forradas exteriormente de couro cru de boi, ainda com pêlo. D. Leonor,
também em pé por detrás de el-rei, olhava atentamente para as páginas do livro.
O que abrira a porta era o tesoureiro-mor,
D. Judas, grande afeiçoado de D. Leonor e valido de el-rei. O judeu apenas voltara a ponderosa chave, sem
volver sequer os olhos para o recém-chegado,
tornara imediatamente para o pé da arca a que el-rei estava encostado e prosseguira a veemente conversação
cujos últimos ecos Frei Roy ouvira ao
aproximar-se...
— Mil dobras pé-terra e trezentas
barbudas são todo o dinheiro que o vosso
fiel tesoureiro vos pode apurar neste momento, respigando, como a pobre Rute, no campo do vosso tesouro, ceifado
e bem ceifado (aqui o judeu suspirou)
por aqueles que, talvez, menos leais vos sejam. Jurar-vos-ei sobre a toura, se o quereis, que não fica no meu poder
uma pojeia.
El-rei não o escutava. Apenas
Frei Roy entrara, D. Leonor havia-se encaminhado
para o echacorvos e, lançando-lhe um olhar escrutador, perguntava com visível ansiedade:
— Beguino, a que voltaste aqui?
— A cumprir com a minha
obrigação, apesar de vós me terdes dado ontem
por quite e livre. Vim a dizer-vos que, a estas horas, talvez tenha já corrido sangue no rossio de Lisboa, e que é
espantoso o tumulto dos populares contra
os do conselho e contra os senhores e fidalgos da casa e valia de el-rei.
Fora à palavra "sangue"
que D. Fernando havia cessado de atender à voz esganiçada do tesoureiro-mor, que continuava
em tom de lamentação:
— Bem sabeis, senhor, que tenho
empobrecido no vosso serviço e que hoje
sou um dos mais mesquinhos e miseráveis entre os filhos de Israel. Aonde irei eu buscar dois mil maravedis velhos
de Além-Douro, que são, em moeda vossa,
trezentos e noventa mil soldos?
— Sangue, dizes tu, beguino? —
exclamou el-rei. — Oh, que é muito! A quem
se atreveram assim esses populares malditos?
— Eu próprio vi o nobre conde de
Barcelos travar-se com Fernão Vasques;
muito grande número de besteiros e peões armados de ascumas rodeavam já o alpendre de São Domingos, e os
clamores de "morram os traidores"
atroavam a praça.
— Que me deem o meu arnês
brunido, a minha capelina de camal e o meu estoque francês — gritou D. Fernando,
escumando de cólera. — Eu irei a São Domingos
e salvarei os ricos-homens de Portugal ou acabarei ao pé deles. Pajens!, onde está o meu donzel de armas?
— O teu donzel de armas, rei Dom
Fernando — interrompeu com voz pausada e
firme D. Leonor —, segue com os outros pajens caminho de Santarém, montado no teu cavalo de batalha.
Aqui, só tens a mula do teu corpo para
seguires jornada.
— Mas o conde de Barcelos! O meu
leal conselheiro, deixá-lo-ei despedaçar
pelos peões desta cidade abominável? Lembra-te de que é teu tio; que foi o teu protetor, quando o braço de Dom
Fernando ainda se não erguera para te
coroar rainha.
— Rei de Portugal, és tu que
deves lembrar-te dele, quando o dia da vingança
chegar. Então cumprirá que os traidores e vis te vejam montado no teu ginete de guerra. Hoje não podes senão
deixar entregue à sua sorte o nobre Dom
João Afonso e os senhores que são com ele; mas não te esqueça que, se o seu sangue correr, todo o sangue que
derramares para o vingar será pouco,
como serão poucas todas as lágrimas que eu verterei sem consolação sobre os seus veneráveis restos. Combateres?
Ajudado por quem, numa cidade revolta?
Os homens de armas do teu castelo quebraram seu preito e tumultuam na praça: muitos dos teus
ricos-homens estão conjurados contra ti: teu próprio irmão o está. Partir!, partir! Há
quantas horas sabes tu que a última esperança
está no partir breve? Porque, depois de tantas hesitações, ainda hesitar uma vez? Asseguremos ao menos a
vingança, se não pudermos salvar aqueles
que, leais ao seu senhor, se foram expor à fúria da vilanagem para esconder nossa fuga... fuga; que é o seu nome!
O furor e o despeito revelavam-se
nas faces e nos lábios esbranquiçados da adúltera, e a aflição e o temor comprimidos
atraiçoavam-se numa lágrima que lhe
rolou insensivelmente dos olhos. Era uma das raríssimas que derramara na sua vida.
El-rei tinha escutado imóvel.
Desacostumado de ter vontade própria, desde que (como dizia o povo) esta mulher o
enfeitiçara, ainda mais uma vez cedeu da
sua resolução, se não de homem cordato, ao menos de valoroso, e respondeu em voz sumida:
— Partamos. E seja feita a
vontade de Deus!
— Amen! — murmurou o echacorvos.
— Beguino — interrompeu D.
Leonor, voltando-se para Frei Roy —, corre
já no rossio de São Domingos e diz em voz bem alta aos populares amotinados que me viste partir com el-rei
caminho de Santarém. Talvez assim o
conde seja salvo, porque a fúria desses vis sandeus se voltará contra mim. Dizei-lo, que dirás a verdade: quando lá
houveres chegado o meu palafrém terá
transposto as Portas da Cruz. Guardai-vos, mesquinhos, que ele a torne a passar com a sua dona. Echacorvos!, esse dia
será aquele em que a "adúltera" pague todas as suas dívidas.
Frei Roy sentiu pela medula
dorsal o mesmo calafrio que sentira na noite antecedente; porque o olhar que Leonor Teles
cravou nele era diabólico, e a palavra
"adúltera", proferida por ela, soava como um dobrar de campa e vinha como envolta num hálito de sepulcro: o
beguino arrependeu-se, desta vez muito
seriamente, de ter sido tão miúdo e exato na "parte oficial", que apresentara na véspera. Calou-se, todavia, e
saiu com o seu ademão do costume, cabeça
baixa e mãos cruzadas no peito.
Os três ficaram outra vez sós.
— Dom Judas, meu bom Dom Judas —
disse el-rei com gesto de aflição —, não
entendo estas embrulhadas letras mouriscas da tua aritmética. Estou certo de que não deves ao tesouro real uma
única mealha e de que nas arcas do haver
não existe senão o que tu dizes: mas, decerto, não queres que um rei de Portugal caminhe pelo seu reino como
romeiro mendigo. Ao menos os dois mil
maravedis de ouro...
— Ai — suspirou o tesoureiro-mor
—, juro a vossa real senhoria que me é impossível
achar agora outra quantia maior que a de mil dobras pé-terra e trezentas barbudas.
— Fernando — atalhou Leonor Teles
—, ordena aos moços do monte que aí
ficaram que enfreiem as mulas: devemos partir já. É tão meu afeiçoado Dom Judas que, com duas palavras, eu obterei o
que tu não pudeste obter com tantas
rogativas.
Ela sorriu alternativamente com
um sorriso angélico para el-rei e para o tesoureiro-mor. D. Fernando obedeceu e,
levantando o reposteiro que encobria uma
porta em frente àquela por onde entrara o beguino, desapareceu. O tesoureiro ia a falar; mas
ficou com a boca semi-aberta, o rosto
pálido e como petrificado, vendo-se a sós com D. Leonor. Era que já a conhecia havia largos tempos.
— Dom Judas — disse esta em tom
mavioso —, tu hás de fazer serviço a el-rei
para esta jornada. Darás os dois mil maravedis velhos.
— Não posso! — respondeu D. Judas
com voz tremula e afogada.
— Judeu! — replicou D. Leonor,
apontando para um cofre pequeno que estava
no canto mais escuro do aposento, coberto de três altos de pó —, o que está naquela arca?
O tesoureiro-mor, depois de
hesitar por momentos, balbuciou estas palavras:
— Nada... ou, a falar verdade...
quase nada. Bem sabeis que, dantes, guardava
ali algumas mealhas que me sobravam da minha quantia; mas há muito que nem essas poucas mealhas me restam.
— Vejamos, todavia — disse D.
Leonor, cujo aspeto se carregava.
— Misericórdia! — bradou D. Judas
com indizível agonia. Mas, reportando-se,
por um destes arrojos que os grandes perigos inspiram, procurou disfarçar o seu susto, continuando
com riso contrafeito:
— Misericórdia, digo; porque fora
mais fácil achar entre os amotinados do rossio
um homem leal ao seu rei, do que eu lembrar-me agora do lugar onde terei a chave de uma arca há tanto tempo
inútil e vazia.
— Perro infiel! Eu te vou
recordar quem pode dizer onde a havemos de achar.
— Estais hoje, muito excelente
senhora, merencória e irosa — replicou o tesoureiro-mor, trabalhando por dar às suas
palavras o tom da galantaria, mas, visivelmente,
cada vez mais enfiado e trêmulo. — Assim chamais perro infiel ao vosso leal servidor, por causa de uma chave
inútil que se perdeu? Todavia, dizei
quem sabe dela, que eu a irei procurar.
— Generoso e leal tesoureiro! —
interrompeu D. Leonor, imitando o tom das
palavras do judeu, como quem gracejava —, não te dês a esse trabalho, pela tua vida. Quem pode fazê-la aparecer é um
velho cão descrido que mora na comuna de
Santarém. Eu sei de um remédio que lhe restituirá à língua a presteza de uma língua de mancebo de vinte
anos. O seu nome é Issachar. Conhece-lo?
— Alta e poderosa senhora, vós
falais do meu pobre pai! — respondeu o tesoureiro-mor,
redobrando-lhe a palidez. — Mas tratemos agora do que importa. Com mil e quinhentos dobras pé-terra
e trezentas barbudas, que eu disse ao
meu senhor el-rei estarem prestes...
D. Leonor lançou para o judeu um
olhar de escárnio e prosseguiu:
— Do que importa é que eu trato.
Sabes tu, meu querido Dom Judas, que, sejam
as tuas dobras mil ou quinhentas, amanhã, a estas horas, eu Dona Leonor Teles, a rainha de Portugal. estarei em
Santarém? Ouviste já dizer que, em não
sei qual das torres do alcácer, há um excelente potro, capaz de desconjuntar num instante os membros do mais
robusto vilão? Veio-me agora à ideia de
que o velho Issachar, amarrado a ele, deve ser gracioso; porque, tendo vivido muito, constrangido a falar, há
de contar coisas incríveis, quanto mais
dizer onde está uma chave cujo paradouro ele não pode ignorar. Não achas tu, também, que é folgança e desporto
digno de qualquer rainha o ver como
estouram os ossos carunchosos de um perro de noventa anos?
Um suor fio manou da cara de D.
Judas, cujas pernas vacilantes se esquivavam a sustê-lo. Quando D. Leonor acabou de fazer
as suas atrozes perguntas o judeu tinha
caído de joelhos aos pés dela.
— Por mercê, senhora — exclamou
ele, em transe horroroso de angústia —,
mandai-me açoutar como o mais vil servo mouro: mandai-me rasgar as carnes com os mais atrozes tormentos; mas
perdoai ao meu velho pai, que não tem
culpa da pobreza do seu filho. Se eu tivera ou pudera alcançar mais que as duas mil dobras e as quinhentas
barbudas que ofereci ao meu senhor el-rei...
— Judeu atalhou D. Leonor —, tu
deves saber três coisas: a primeira é que os tratos do potro são intoleráveis; a segunda
é que eu costumo cumprir as minhas
promessas; a terceira é que, se, neste momento de aperto, eu teu pudesse aplicar o remédio, não o guardaria
para a ossada bolorenta de um lebréu
desdentado.
— Vendido cem vezes — prosseguiu
o tesoureiro-mor, lavado em lágrimas e
procurando abraçá-la pelos joelhos — eu não poderia apresentar neste momento mais que a soma já dita de duas
mil e quinhentas dobras e quinhentas
barbudas, ainda que a vossa mercê me mandasse assar vivo.
— És um louco, Dom Judas! —
interrompeu D. Leonor, afastando de si o judeu, com um gesto de brandura. — Por uma
miséria de pouco mais de quinhentos pés
— terras, consentirás que Issachar, que o teu pai, honrado velho!, pragueje, nas ânsias do potro, contra
o Deus de Abraão, de Jacob e de Moisés?
O tesoureiro-mor conservou-se por
alguns momentos calado e na postura em que
estava. Depois, passando o braço de revés pelos olhos, enxugou as lágrimas e ergueu-se. A resolução que tomara
era a de um desesperado que vai suicidar-se.
— Aqui estarão, senhora — murmurou
ele —, os dois mil maravedis quando os
quiserdes. Procurarei obtê-los; mas ficarei perdido. Agora podeis dar ordem à vossa partida.
— Adeus, meu muito honrado Dom
Judas — disse D. Leonor, sorrindo.— Não
perderás nada em ter cedido aos meus rogos.
Dito isto, saiu pela mesma porta
por onde saída el-rei.
O judeu estendeu os braços, com
os punhos cerrados, para o reposteiro, que ainda ondeava, e levou-os depois à cabeça, de
onde trouxe uma boa porção de melenas
grisalhas. Feito isto, tirou da aljubeta uma chave, abriu o cofre pequeno e pulverulento, sacou para fora um
saquitel pesado, selado e numerado, e os
dois mil maravedis rolaram sobre o grande livro, que ainda estava aberto sobre uma das arcas. Contou-os
quatro vezes, empilhou-os aos centos e,
como se as forças se lhe tivessem exaurido no espantoso combate que se passava na sua alma, atirou-se de
bruços sobre a pequena arca e, abraçado
com ela, desatou a chorar.
Meu pobre tesouro, junto com
tanto trabalho! — exclamou por fim, entre soluços. — Guardei-te neste cofre com medo de
te ver roubado, e os salteadores vim
encontrá-los aqui! Mas que se livrem de eu tornar a receber os direitos reais das mãos dos mordomos. Os meus
ricos dois mil maravedis de bom ouro,
não voltareis sozinhos quando vos tornardes a juntar com os vossos abandonados companheiros!
Esta ideia pareceu consolar de
alguma modo D. Judas. Levantou-se, tornou a contar os dois mil maravedis: desconfiou de
que havia engano, e que eram dois mil e
um: tornou-os a contar, e, quando el-rei entrou no aposento, já prestes para cavalgar, tinha o bom do judeu
obtido a certeza de que não dava uma
pojeia de mais da soma que lhe fora requerida em nome do potro da torre de Santarém.
— Oh — exclamou el-rei, lançando
os olhos para cima do desalmado fólio,
sobre cujas páginas amareladas estava empilhado o dinheiro —, temos os dois mil maravedis?!
— Saiba vossa real senhoria que,
felizmente, tinha no meu poder uma soma
pertencente a Jeroboão Abarbanel, o mercador da Porta do Mar, soma de que não me lembrava: ao vasculhar as arcas,
dei com ela; a quantia está completa, e
o honrado mercador não levará, por certo, mais de cinco por cento ao mês, enquanto os avençais da vossa
senhoria não vierem entregar no tesouro
o produto dos direitos reais vencidos. Então pagar-lhe-ei, até à última mealha, a quantia e os seus lucros, se a vossa
senhoria não ordena o contrário.
— Faz o que entenderes, Dom Judas
— respondeu el-rei, que não o ouvira,
atento a meter numa ampla bolsa de argempel, que trazia pendente do cinto, os dois mil maravedis. — Tudo fio de
ti, honrado e leal servidor.
E, recolhendo os maravedis, saiu.
O judeu ficou só.
— No Inferno ardas tu, com Datã,
Coré e Abirão, maldito nazareno!... — murmurou
ele. — Porém não antes de eu haver colhido os dois... quero dizer, os três mil e duzentos maravedis que me
tiraste com tanta consciência quanta pode
ter a alma tisnada de um cristão.
Feita esta jaculatória ao Deus de
Israel, D. Judas aferrolhou interiormente a porta do reposteiro, atravessou o aposento,
saiu pela porta em frente, que também
aferrolhou, e a bulha dos seus passos, que se alongavam, soou através dos corredores por onde passara Frei Roy, até
que, por aquela parte do palácio, tudo
caiu em completo silêncio.
V
MESTRE BARTOLOMEU CHAMBÃO
Frei Roy, saindo da casa das
arcas, atravessara os corredores vizinhos: mas, em vez de seguir o que dava para o passadiço
de S. Martinho, tomara por uma escadinha
escura aberta no topo da estreita passagem anterior a esse passadiço. Esta escadinha descia para o átrio
do paço. O beguino, habituado, pelo seu
ministério, a entrar na morada real às horas mortas e a sair nas menos frequentadas, sabia por diuturna experiência
que a porta principal devia estar aberta,
mas ainda erma, ao mesmo tempo que a igreja, por onde entrara, já começaria a povoar-se de fiéis, porque, como é
fácil de supor, as igrejas eram naquela
época mais frequentadas do que hoje. Desceu, pois, com passo firme, resolvido a encaminhar-se ao rossio e a
espalhar entre os amotinados a notícia da
partida de el-rei.
Mas embargou-lhe os passos
dificuldade imprevista. Ou fosse que os acontecimentos
da véspera obrigassem a maiores cautelas, não havendo ainda então exército permanente, nem guardas pagas
para defensão da pessoa real, cuja
melhor proteção estava na própria espada, ou fosse por qualquer outro motivo, a porta ainda se não abrira. O beguino
hesitou sobre se devia retroceder para
sair pela igreja, se esperar. As considerações que o tinham movido a seguir este caminho obrigaram-no a
ficar. Metido no estreito e escuro vão
da escada, o echacorvos assemelhava-se, envolto nas suas roupas de burel e reluzindo-lhe os olhos à meia luz
que dava o pátio interior, a um moderno
funcionário, que hoje, nesses mesmos paços e em desvão igual, talvez no mesmo sítio, mostra aos que entram o
rosto banhado na hediondez da sua alma,
esperando que a vindicta pública o convide a algum banquete de carne humana, e, no esperar atroz, rodeia com
as garras os ferros do seu covil, como o
tigre cativo. O espia era ali, por assim dizer, uma "preexistência",
uma "harmonia preestabelecida"
do algoz.
Passara obra de meia hora, e o
beguino começava a impacientar-se muito seriamente
quando sentiu pés de carruagem no pátio interior do edifício. Daí a pouco, um donzel, trazendo na mão uma
desconforme chave e as rédeas de valente
mula enfiadas no braço, chegou à porta e começou a abri-la. Era um dos donzéis de el-rei. Costumado a disfarçar a
sua frequente entrada no paço sob a capa
da mendicidade, e habituado a estender a mão à espera de alguns soldos que devotadamente lhe atiravam
senhores, cavaleiros e escudeiros, ao que
ele retribuía com alonga lenda das suas orações em aleijado latim. Frei Roy era aceito a quase todos os moradores da
casa de el-rei, que respeitavam a sua
aparente santidade. Por isso, saindo do seu desvão, encaminhou-se para a porta.
A madre Santa Maria vos guarde de
mau olhado, de feitiços e de ligamentos —
disse ele, chegando-se ao donzel e fazendo sobressair esta última palavra.
— Vós aqui, Frei Rou, por estas
horas? — replicou o donzel, voltando-se admirado.
— Que quereis! — disse o beguino.
— Quando ontem os malditos burgueses
acometeram os paços reais com a sua grita e revolta, estava eu aqui. Ai que medo tive! Escondi-me naquela desvão, e
quando se fecharam as portas achei-me
encurralado cá dentro, como um emparedado no seu nicho. A minha profissão de paz e de religião não me
consentia passar por meio de homens
possuídos do espírito de cólera e inspirados por Belzebu, nem o susto me deixava ânimo desafogado para ir roçar o
burel do meu santo hábito pelos trajos
empestados dos filhos de Belial. Também a humildade e mortificação cristã se opunham a que eu subisse a pedir
gasalhado a algum de vós outros, os
moradores da casa do nosso senhor el-rei. Assim, louvando a Deus por me conceder uma noite de padecimento, ali me
deixei ficar sobre as lajes úmidas, sobre
as duras e agudas arestas dos degraus daquela escada. Agora, que a revolta é finda, consolado com as dores que me
traspassam os ossos e confiado na
providência de Jesus Cristo, vou-me ao meu giro diário, para ver se obtenho da caridade dos devotos a pitança
usual com que possa matar a fome de
vinte e quatro horas, pela qual dou louvores ao justo juiz, que reina eternamente nos altos céus.
O beguino revirou benignamente os
olhos e fez uma visagem entre aflita e resignada,
levando ao mesmo tempo a mão ao joelho, como se ali sentisse dor agudíssima.
— Venerável Frei Roy! — atalhou o
donzel, com as lágrimas nos olhos —, se
tivésseis procurado o aposento dos donzéis, nós vos daríamos, ao menos, um almadraque para repousar e repartiríamos
convosco da nossa ceia. Mas o mal está
feito, e o pior é que para hoje não vos posso oferecer abrigo. Vós credes, santo homem que a revolta é finda, e
nunca ela esteve mais acesa. A sua
senhoria vai partir já da cidade...
— Santa Maria vale! Santo nome de
Jesus! Acorrei-nos, Virgem bendita! — interrompeu
Frei Roy. — Pois os populares teimam na sua assuada, e el-rei deixa-nos aos coitados de nós, humildes
religiosos e cidadãos pacíficos, entregues
ao furor dos peões?
— E que remédio, bom Frei Roy?! —
replicou tristemente o donzel. — Sem
cavaleiros, escudeiros e besteiros não se faz guerra, nem se desfazem assuadas, e nada disto tem el-rei. Agora vou
eu ao rossio de São Domingos avisar os
senhores do conselho, os privados e fidalgos que lá estão, que sigam caminho de Santarém, sob pena de incorrerem em
caso de traição, se ficarem em Lisboa:
por sinal que el-rei me recomendou procurasse avisar primeiro que ninguém sua mercê o infante Dom Dinis.
— No rossio de São Domingos,
dizeis vós? — disse o beguino, arregalando
os olhos. — Confesso que vos não entendo.
Durante este diálogo o donzel
tinha acabado de destrancar a porta do paço, cavalgado na mula que trazia a rédea e saído
ao terreiro seguido de Frei Roy, que
coxeava, estorcia-se e suspirava dolorosamente de vez em quando. Passo a passo e sofreando a mula, caminho da Sé, o
pajem narrou ao beguino todas as
particularidades sucedidas aquela manhã, as quais Frei Roy sabia melhor do que ele. Chegados em frente dos Paços do
Concelho, o pajem tomou pelo sopé da
alcáçova e Frei Roy pela Porta do Ferro não sem terem primeiro saído da bolsa do donzel para a manga do beguino
alguns pilares, e da boca deste para os
ouvidos daquele alguns latinórios pios devidamente escorchados.
Apenas passara o largo da Sé e
transpusera a velha e soturna Porta do Ferro, Frei Roy tinha-se achado perfeitamente são do
seu violento reumatismo. Ligeiro como
galgo, desceu por entre as antigas trecenas reais, e em menos de três credos estava no pelourinho. Aí viu coisa
que o fez parar.
Um homem vestido de valencina, e
coberta a cabeça com um grande feltro, arengava
a um troço de besteiros e peões armados de lanças ou ascumas, de almárcovas ou cutelos: tinha nas mãos um
desconforme montante e na cinta uma
espada curta. A turba ora o escutava atentamente, ora prorrompia em gritos confusos e estrondosos. Frei Roy
chegou-se. O homem do feltro amplo era o
mestre tanoeiro Bartolomeu Chambão, que, entusiasmado, prosseguia o seu veemente discurso, sem reparar no beguino:
— Já vo-lo disse: daqui ninguém
bole pé antes de el-rei nosso senhor sair para São Domingos. Nada de bulha fora de
sazão, que lá estão os esculcas. Daremos
mostra ao poço quando aí for só a adúltera. Se, como ontem, nos fecharem as portas, isso é outro caso. É
preciso que isto se desfaça. A cobra peçonhenta
deve sair da toca. Não digo que então não seja possível esmagar-se-lhe a
cabeça... Num brandir de ascuma... Mas cautela, não haja sangue!... Pelo menos de inocentes... Leais e esforçados
cidadãos desta muito leal cida... Safa,
bruto!
Esta peroração inesperada com que
mestre Bartolomeu interrompera o seu discurso,
que se ia elevar ao ápice da eloquência, procedera de lhe ter descido a grossa e espaçosa mão do echacorvos sobre o
ombro, que lhe vergara, como se
houvessem descarregado em cima dele uma aduela de cuba. A Frei Roy ocorrera uma ideia abençoada, a de comunicar a
mestre Bartolomeu a nova que D. Leonor
lhe recomendara espalhasse entre os amotinados; a nova da sua partida de Lisboa com el-rei. O mendicante
sabia que o tanoeiro era de bofes lavados,
e que, dentro de meia hora não só a ser visto no rossio pelo donzel, de quem naquele instante se afastara,
mas também a achar-se envolvido em
qualquer desordem que semelhante notícia pudesse produzir, atenta a irritação dos ânimos. Além disso, a
lembrança do arrepio dorsal que as
últimas palavras de D. Leonor lhe tinham causado fazia-lhe quase desejar que o tanoeiro, encarregado (segundo percebera
do fim da sua arenga) da comissão que,
na taberna de Folco Taca, Diogo Lopes incumbira a Fernão Vasques, pudesse ainda desempenhá-la,
atalhando a fuga de D. Leonor. Estas considerações,
que lhe tinham passado rapidamente pelo espírito, e o ver que mestre Bartolomeu não levava jeito de concluir
moveram-no a falar ao tanoeiro, que só
o sentira quando ele lhe descarregara sobre o ombro a ponderosa, mas amigável, palmada.
— Com mil e quinhentos satanases!
— exclamou mestre Bartolomeu, voltando-se
e vendo ao pé de si o beguino. — Sabia que a mão da Santa Madre Igreja era pesada; mas não pensava que o
fosse tanto! Que me quereis, Frei Roy?
— Dizer-vos que podeis mandar
sair vossos esculcas da sua atalaia; porque poderiam chegar a curtir o Inverno aí, antes
de verem el-rei chegar e passar para São
Domingos.
— Frei Roy — replicou o tanoeiro,
fazendo-se vermelho de cólera —, para
interromper-me com uma das vossas bufonarias, não valia a pena de me aleijardes este ombro!
— Tomai como quiserdes as minhas
palavras; chamai-me o que vos aprouver,
bufão ou mentiroso, mas a verdade é que não será hoje que os populares falarão com el-rei.
— Pois quê, morreu dos feitiços
da adúltera ou tornou-o invisível algum encantador
seu amigo?!
— Nem uma coisa, nem outra: mas,
com estes olhos de grande pecador (aqui
o echacorvos fez o gesto habitual de cruzar as mãos sobre o peito) eu o vi sair para a banda da Porta da Cruz...
— Frei Roy, olhai que estes
honrados cidadãos vos escutam e que o auto é muito grave para gastar truanices.
— Já disse, mestre Bartolomeu,
que falo verdade. Pelo bento cercilho do santo padre vos juro que, hoje, el-rei não
dormirá em Lisboa, segundo o jeito que
lhe vejo. Ele cavalgava uma possante mula de caminho; noutra ia uma dona coberta com um longo véu: seguiam-no
donzéis, falcoeiros e moços de monte. Ao
passar, ainda lhe ouvi estas palavras: Olhai aqueles vilãos traidores como se juntavam: certamente prender-me
quiseram, se lá fora!" Não pude perceber
mais nada. Que mais, porém, é preciso? Deixastes fugir a preia: agora catai-lhe o rasto.
— Traidor é ele, que nos há mentido,
como um pagão! — bradou o tanoeiro,
sopesando o montante. — Mas que se guarde de outra vez trazer a Lisboa a adúltera! Rainha ou barregã,
arrancar-lhe-emos os olhos. A arraia-miúda foi escarnida; mas não o será em
vão. Que dizeis vós outros, honrados burgueses?
— Escarnidos, escarnidos! —
respondeu com grande grito o tropel. — Mas,
à fé, que nunca a adúltera será rainha de Portugal. Morra a comborça!
E no meio do alarido, as pontas
das lanças e os largos ferros das almárcovas agitadas nos ares cintilavam aos raios do sol
oriental, como vasto brasido.
— A São Domingos! — gritou mestre
Bartolomeu. — Vamos, rapazes: já que não
fazemos aqui nada, ao menos que o povo não seja por mais tempo burlado!
E, pondo o montante às costas,
mestre Bartolomeu tomou por uma das ruas que davam para a banda de Frei Roy, que
procurava retê-lo, ponderando que ainda
poderia alcançar el-rei e fazê-lo retroceder. O tanoeiro, porém, não tinha valor para afrontar-se face a face com D.
Fernando, e por isso fingiu não ouvir o
beguino, que dentro de alguns minutos se achou só no meio do terreiro calado e deserto.
Entretanto, junto a S. Domingos,
se bem que a rixa começada entre os nobres partidários de D. Leonor e Fernão Vasques se
houvesse desvanecido, a agitação dos
populares, cujo número crescia continuamente, não tinha diminuído. Encostado a um dos pilares do
alpendre, o alfaiate, ora lançava os olhos
de revés para os senhores da Corte e conselho, que, esperando por el-rei,
passeavam de um para outro lado, ora os espraiava por aquele mar de vultos humanos, que ele sabia poder agitar ou
tornar imóveis com uma palavra ou com um
simples aceno. Semelhante à hora que precede a procela, em que apenas se veem correr na atmosfera
abafada os castelos encontrados de
nuvens densas e negras, e se ouve o estourar dos trovões roufenhos e prolongados, aquela hora que então passava era
espantosa e ameaçadora de estragos,
sobretudo quando, após um rugido terrível do tigre popular, se fazia na praça, apinhada de gente, um silêncio ainda
mais temeroso e tétrico.
Foi numa destas interrupções do
motim que um pajem, saindo ao galope do lado
da Corredora, veio apear-se junto do alpendre e, tirando da cinta um pergaminho aberto, o entregou ao infante D.
Dinis.
Este fitou os olhos na escritura,
descorou subitamente e passou o pergaminho a Diogo Lopes, dizendo-lhe ao mesmo tempo em
voz baixa:
— Estamos perdidos!
Diogo Lopes leu o conteúdo
daquele escrito fatal e, no mesmo tom, respondeu
ao infante:
— O caminho de salvação que nos
resta é o de Santarém. Obediência e circunspeção!
O pergaminho passou rapidamente
de mão em mão: os fidalgos, letrados e cavaleiros
fizeram um círculo no meio do alpendre: e, depois de o haverem lido, fitaram uns nos outros olhos desassossegados.
Todos receavam falar. O manhoso Pacheco
foi o primeiro que se atreveu a isso, aproveitando habilmente a hesitação dos outros fidalgos e
conselheiros.
— Vistes a ordem de el-rei. Como
um dos mais velhos entre vós, direi meu
parecer. Embora o risco seja grande, achando-nos cercados de povo armado e furioso, o nosso dever é pôr a vida
por obedecer ao nosso senhor el-rei.
— Mas — atalhou o doutor Gil
d'Ocem, que por muito letrado e prudente,
era ouvido como oráculo pelos cortesãos —, o caso é grave: o povo, se nos vir retirar, enviar-se-á a nós;
se lhe dizemos o motivo da nossa partida,
é capaz de desconcertos maiores que os já cometidos. A sua senhoria não devera ter-nos emprazado para este auto,
se a sua intenção era não dar resposta
aos populares.
Visivelmente, o doutor em leis e
degredos" estava tomado de medo, no que não levava vantagem à maior parte dos outros
membros do conselho real.
O conde de Barcelos guardava
silêncio. Não podia conceber como D. Leonor o não avisara a tempo, e por isso
preocupava-o a indignação, ignorando que a resolução da fuga fora tomada muito tarde. Na
véspera ela aconselhara a el-rei que
cedesse a tudo quanto o povo quisesse; porque, dissolvido o tumulto, fácil era chamar à Corte os senhores e cavaleiros de
mais confiança, acompanhados de gente de
guerra, com que seria sopitado qualquer motim, se os populares ousassem opor-se aceitara o conselho, que, se
não era o mais leal, era, ao menos, o
mais seguro; mas as revelações do echacorvos, que o conde ignorava, tinham mudado, como o leitor viu, a
situação do negócio.
A reflexão de Gil d'Ocem estava
em todas as cabeças e por isso os cortesãos ficaram outra vez em silêncio, como buscando
um expediente para sair daquele
dificultoso passo. A incerteza, o despeito, o receito pintavam-se nos rostos demudados de muitos.
E as vagas do oceano que ameaçava
tragá-los encapelavam-se aos pés deles: o povo, vendo os fidalgos erguidos, calados e em
círculo, apinhava-se, cada vez mais
basto, ao redor da alpendrada. Isto fazia crescer o temor, e o temor perturbara demais os ânimos para não poderem
achar um expediente acertado.
Era por isso que esperava o
astuto Pacheco.
— De um lado a cólera do povo: do
outro os mandados de el-rei — disse, apertando
com a mão a cara, o velho conselheiro de Afonso IV. — Resta-nos só um arbítrio.
— Dizei, dizei! — clamaram a um
tempo todos, à exceção do conde de Barcelos,
que fitou nele os olhos desconfiados.
— É necessário que anunciemos a
nova da partida de el-rei e que sejamos os
primeiros a afear este procedimento: é necessário que vamos adiante da indignação dos peões. Depois, dir-lhes-emos
que, burlando como eles, nada fazemos
aqui. Então afastar-nos-emos sem custo e sairemos da cidade como pudermos, na certeza de que não serei eu o
último, apesar de velho, que cruze as
portas da Alcáçova de Santarém.
— Mas quem há de falar no nosso
nome? — perguntou Gil d'Ocem.
— No vosso, mestre Gil das Leis!
— interrompeu o conde de Barcelos. — Nem
o receito das afrontas de alguns milhares de sandeus nem o da própria morte me obrigariam a cuspir maldições sobre
o nome daquele a quem uma vez jurei
preito e leal menagem.
— Vitam impendere vero nemo
tenetur replicou Gil d'Ocem —, ou, como quem
o dissesse por linguagem, ninguém é obrigado a deixar-se matar por amor da verdade ou do seu preito. Vós fazei o
que vos aprouver.
À autoridade de um texto latino,
trazido assim a ponto por tão insigne doutor, não havia resistir. Os fidalgos e conselheiros
aprovaram, unanimemente, o alvitre de
Diogo Lopes.
— Mas quem há de falar ao povo? —
insistiu o mestre em leis, que não parecia
excessivamente inclinado a incumbir-se dessa gloriosa tarefa.
— Eu, se assim o quiserdes —
replicou imediatamente Diogo Lopes.
O manhoso cortesão vira
claramente que a partida de el-rei transtornava todos os seus desenhos: todavia calculara num
momento como, sem suscitar a indignação
de Fernão Vasques, e por consequência alguma revelação perigosa, podia salvar-se e ao infante. Logo que el-rei
se esquivara à influência do povo, de
cuja ousadia o velho esperava tudo, o casamento de D. Leonor era inevitável, e ainda supondo, o que não era de
esperar, que o tumulto fosse avante, e
que Lisboa se rebelasse claramente contra D. Fernando, o resultado favorável a el-rei, senhor do resto de
Portugal, que ao povo, desprovido naquela
conjuntura dos principais meios com que poderia sustentar uma luta intestina. Assim, o alvitre que oferecera para
a salvação dos cortesãos era só para se
haver se salvar a si, conservando ao mesmo tempo a afeição dos cabeças da revolta, sem que o meio que para
isso devia empregar o fizesse decair da
graça de D. Fernando.
Para os cálculos de Diogo Lopes
faltara, porém, um elemento: era a delação do beguino, e era justamente esta falta que os
destruía todos. Assim é a política.
O "sacrifício" de Diogo
Lopes foi geralmente recebido com aprovação e agradecimento. Então ele, saindo do círculo,
aproximou-se 'de Fernão Vasques, que, de
vez em quando, volvia os olhos inquietos para a pinha dos fidalgos e cavaleiros.
— Falhou a traça — disse o velho
cortesão em voz sumida ao alfaiate. — El-rei
acaba de sair da cidade.
Fernão Vasques recuou, e pôs-se a
olhar espantado para Diogo Lopes, como quem não acreditava o que ouvia.
— O que vos digo é a verdade —
continuou Pacheco. — Mas não afrouxar!
El-rei de Castela é por nós, e bom número de fidalgos portugueses o são também. Mas: são por nós a maior parte dos
que ora aqui vedes presentes. Conservai
o bom ânimo do povo, fiai o resto de mim e... de quem vós sabeis.
Ao pronunciar estas palavras,
Diogo Lopes lançou de relance os olhos para D. Dinis.
— Mas el-rei tomará por mulher,
Dona Leonor — acudiu o alfaiate aterrado
— , voltará a Lisboa com os seus cavaleiros e homens de armas, e, então, coitados de nós!
— Não temais: o matrimônio
adúltero será condenado pelo papa. Vós já tereis ouvido contar o que sucedeu a el-rei
Dom Sancho: a Dom Fernando pode suceder
o mesmo. Também os fidalgos de Portugal têm homens de armas. Podeis estar certos de que não vos
abandonaremos. Agora resta uma coisa.
Coube-me a mim dar esta triste nova aos bons e leais burgueses, que tão ousadamente se opuseram à desonra da sua terra
e do seu rei, e eu devo ser ouvido por
eles. Mandai-lhes que façam silêncio.
Fernão Vasques obedeceu: o ruído
dos populares, que não descontinuara durante
esta cena, acalmou a um aceno do alfaiate.
Diogo Lopes fez então um largo
discurso, com o qual não cansaremos os leitores,
e cujo assunto fácil é de adivinhar. Misturando amargas repreensões contra D. Fernando com lisonjas aos populares,
procurou persuadi-los, posto que
indiretamente, de que toda a fidalguia estava cheia de indignação. Aludiu à resistência por armas que el-rei podia encontrar
entre os ricos-homens de Portugal contra
o seu casamento, e, no caso de vir este a cabo, a probabilidade de ser anulado pelas censuras da Igreja.
Enfim, sem nunca lhes dizer claramente
que insistissem na revolta e tratassem, se fosse preciso, de defender a cidade contra o poder real,
suscitou todas as ideias que podiam levar
os populares a este excesso. Faltava o ponto dificultoso: o da partida dos fidalgos. Pacheco soube com a mesma
ambiguidade dar esperança aos peões de
que se encaminhavam para as suas alcaidarias e honras, com o louvável intento de se aperceberem em socorro dos
burgueses de Lisboa, e com tal arte o
fez que os senhores e cavaleiros que se achavam em S. Domingos, sem excetuar o próprio conde de Barcelos, não
viram nas suas palavras senão uma feliz
inspiração para os salvar da cólera da arraia-miúda.
Durante aquela larga arenga, esta
guardara silêncio, interrompido a espaços por um desses burburinhos que são como os
anúncios das erupções do vulcão popular.
Pacheco, enfim, concluiu: mas o espetáculo que tinha diante de si fê-lo ficar
imóvel por alguns momentos, e estes foram terríveis. Aqueles centenares de olhos avermelhados, cintilantes
de furor, cravados nele e nos outros
fidalgos; aquelas bocas semi-abertas, prestes a prorromper em brados de morte, eram como um pesadelo diabólico,
como uma vertigem de loucura. Os
populares pareciam ainda escutá-lo, e não puderam acreditar a deslealdade de D. Fernando de Portugal.
Os fidalgos aproveitaram esse
instante de torpor moral que precedia a procela. Desceram da alpendrada e, montando nas suas
possantes mulas, encaminharam-se
vagarosamente para a banda da Corredora. No meio da cavalgada, e rodeado dos cavaleiros mais
benquistos do povo, ia o conde de Barcelos,
e Diogo Lopes com os seus pajens fechava o séquito. Se houvessem atravessado a praça, o conde teria corrido
grande risco; porque, ao dobrar o ângulo
do mosteiro, já os doestos grosseiros e violentos voavam contra ele do meio do povo apinhado, e, até, dois virotes de
besta pareceu sibilarem por cima da sua
cabeça. Mas, apertando os acicates, os cavaleiros seguiram ao longo da Corredora, enquanto Diogo Lopes,
vitoriado pelas turbas, a quem com sorrisos retribuía aquelas
mostras de afeto, obstava a que as ondas populares rodeassem o diminuto número de
cortesãos, alguns dos quais tinham
fundados motivos para recear a irritação desses animais ferozes, exaltados pela fuga de el-rei.
A cavalgada havia desaparecido,
quando um troço de besteiros e peões desembocou
do lado da Rua Nova. Eram mestre Bartolomeu e a sua gente, que vinham confirmar a nova dada por Diogo
Lopes Pacheco.
Mas as palavras que Frei Roy
dissera ter ouvido proferir a el-rei, lançadas entre os amotinados como um facho sobre montão de
lenha por onde lavra há muito fogo
oculto, levaram o tumulto a ponto medonho. As afrontas, que até aí quase só se encaminhavam contra Leonor
Teles e os seus parentes, voltaram-se
contra D. Fernando. As maldições, as pragas, os nomes de traidor e covarde juntavam-se às mais violentas
ameaças. Uns juravam que nunca mais ele
entraria em Lisboa; outros propunham que se lançasse fogo aos paços reais. Debalde Fernão Vasques trabalhava
por aquietá-los; nem já escutavam o seu
ídolo. Furiosos, espalhavam-se pelas ruas, que atroavam com gritos, brandindo as armas; e por certo que,
se neste momento D. Fernando lhes
tivesse aparecido, não teriam, talvez, respeitado a vida do filho do seu tão querido D. Pedro I, o mais popular de todos os
nossos reis, chamados da primeira
dinastia.
Este motim sem objeto, sem
resistência, e sem resultado, acalmou nesse mesmo dia. Ao anoitecer, a cidade tinha caído
no seu habitual silêncio, e, pouco a
pouco, os fidalgos e cavaleiros, atravessando as Portas da Cruz, seguiam caminho de Santarém. O sistema militar
dos antigos partos dera a vitória a
el-rei: ele vencera fugindo!
O povo adormeceu: os cabeças da
revolta estavam irremediavelmente perdidos.
VI
UMA BARREGÃ RAINHA
O Douro é bem carregado e triste!
A sua corrente rápida, como que angustiada
pelos agudos e escarpados rochedos que a comprimem, volve águas turvas e mal-assombradas. Nas suas ribas
fragosas raras vezes podeis saudar um
sol puro ao romper da alvorada, porque o rio cobre-se durante a noite com o seu manto de névoas, e, através
desse manto, a atmosfera embaciada faz
cair sobre a vossa cabeça os raios do sol semimortos, quase como um frio reflexo de lua ou como a luz sem
calor de tocha distante. É depois de
alto dia que esse ambiente, semelhante ao que rodeava os guerreiros de Ossian, vos desoprime os pulmões, onde
muitas vezes tem depositado já os germes
da morte. Então, se, trepando a um pináculo das ribas, espraiais os olhos para a banda do sertão, lá vedes uma
como serpente imensa e alvacenta, que se
enrosca por entre as montanhas, e cujo colo está por baixo dos vossos pés. É o nevoeiro que se acama e dissolve
sobre as águas que o geraram. O horizonte,
até aí turvo, limitado, indistinto, expande-se ao longe: recortam-nos os cimos franjados das montanhas, que parecem
engastadas na cortina azul do céu, e a
terra, a perder de vista, afigura-se-nos como um mar de verdura violentamente agitado; porque em desenhar as
paisagens do Douro a natureza empregou
um pincel semelhante ao de Miguel Ângelo: foi robusta, solene e profunda.
Como sobre um circo convertido em
naumaquia, o Porto ergue-se em anfiteatro
sobre o esteiro do Douro e reclina-se no seu leito de granito. Guardador de três províncias e tendo nas mãos
as chaves dos haveres delas, o seu
aspeto é severo e altivo, como o de mordomo de casa abastada. Mas não o julgueis antes de o tratar familiarmente. Não
façais cabedal de certo modo áspero e
rude que lhe haveis de notar; trazei-o à prova, e achar-lhe-eis um coração bom, generoso e leal. Rudeza e virtude
são muitas vezes companheiras; e entre
nós, degenerados netos do velho Portugal, talvez seja ele quem guarda ainda maior porção da
desbaratada herança do antigo caráter português
no que tinha bom, que era muito, e no que tinha mau, que não passava de algumas demasias de orgulho.
Nos fins do século décimo quarto,
o Porto ia ainda longe da sorte que o aguardava.
O fermento da sua futura grandeza estava no caráter dos seus filhos, na sua situação e nas mudanças
políticas e industriais que depois sobrevieram
em Portugal. Posto que nobre e lembrado como origem do nome desta linhagem portuguesa, os seus destinos
eram humildes, comparados com os da
teocrática Braga, com os da cavaleirosa Coimbra, com os de Santarém, a cortesã, com os de Évora, a romana e
monumental, com os de Lisboa, a mercadora,
guerreira e turbulenta. Quem o visse, coroado da sua catedral, semiárabe, semigótica, em vez de alcácer
ameiado; sotoposto, em vez de o ser a
uma torre de menagem, aos dois campanários lisos, quadrangulares e maciços, tão diferentes dos campanários dos
outros povos cristãos, talvez porque
entre nós os arquitetos árabes quiseram deixar as almádemas das mesquitas estampadas, como ferrete da antiga
servidão, na face do templo dos nazarenos;
quem assim visse o "burgo" episcopal do Porto, pendurado à roda da igreja e defendido, antes por anátemas
sacerdotais que por engenhos de guerra,
mal pensaria que desse burgo submisso nasceria um empório de comércio, onde, dentro de cinco séculos, mais
que em nenhuma outra povoação do Reino,
a classe, então fraca e não definida, a que chamavam burgueses, teria a consciência da sua força e
dos seus direitos e daria a Portugal
exemplos singulares de amor tenaz de independência e de liberdade.
A populosa e vasta cidade do
Porto, que hoje se estende por mais de uma légua, desde o Seminário até além de Miragaia
ou, antes, até à Foz, pela margem
direita do rio, entranhando-se amplamente para o sertão, mostrava ainda nos fins do século décimo quarto os
elementos distintos de que se compôs. Ao
oriente, o "burgo do bispo", edificado pelo pendor do monte da Sé, vinha morre nas hortas que cobriam todo o
vale onde hoje estão lançadas a Praça de
D. Pedro e as Ruas das Flores e de S. João e que o separavam dos Mosteiros de S. Domingos e de S. Francisco. Do
poente, a povoação de Miragaia,
assentada ao redor da Ermida de S. Pedro, trepava já para o lado do Olival e vinha entestar pelo norte com o couto
de Cedofeita e pelo oriente com a vila
ou burgo episcopal. A Igreja, o Município e a Monarquia, entre esses limites pelejaram por séculos as suas
batalhas de predomínio, até que triunfou
a Coroa. Então a linha que dividia as três povoações desapareceu rapidamente debaixo dos fundamentos dos
templos e dos palácios. O Porto constituiu-se
a exemplo da unidade monárquica.
Era neste burgo eclesiástico,
nesta cidade nascente, que por formoso dia de Janeiro da era de César de 1410 (1372) se viam
varridas e cobertas de espadanas e
flores as estreitas e tortuosas ruas que pela encosta do monte guiavam ao burgo primitivo fundado ou
restaurado pelos Gascões, se não mentem
memórias remotas. Na Rua do Souto, já assim chamada, talvez pela vizinhança de algum bosque de castanheiros,
como principal entrada da povoação,
andavam as danças judengas e folias mouriscas com músicas e trebelhos ou ogos, por entre o povo vestido de
festa, o que era indício evidente de que
se esperava el-rei, cuja vinda a qualquer povoação era o único motivo legal para fazer dançar e foliar judeus
e mouros, que, decerto, não folgavam
nada com estes forçados e dispendiosos sinais de contentamento público.
Com efeito, uma numerosa e
esplêndida cavalgada vinha da banda do bailado de Leça. El-rei D. Fernando juntara em
Santarém os seus ricos-homens e conselheiros
e, amestrado por Leonor Teles na arte de dissimular, recebera com todas as mostras de boa-vontade o infante
D. Dinis e Diogo Lopes Pacheco, ao qual,
para maior disfarce, não escasseara mercês. Depois, em folgares e caçadas vagueara pelo Reino com D.
Leonor, até que em Eixo fizera um como
manifesto da resolução que tomara de a receber por mulher, o que neste dia cumprira na antiga igreja
daquela célebre comenda dos Hospitaleiros.
Era, pois, para celebrar esse matrimônio adúltero, agourado pelas aldições
populares, que o bispo D. Afonso, menos escrupuloso que o povo de Lisboa acerca de adultérios, vestia de
festa o seu muito canônico burgo. (*)
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[(*) Este bispo D. Afonso era
ainda o mesmo a quem el-rei D. Pedro, dizem, quisera açoitar pela sua própria mão em consequência de ele haver
cometido adultério (ato trivialíssimo no clero daquele tempo) com a mulher de um honrado cidadão. Uma história
miudamente narrada por Fernão Lopes na crônica daquele rei.]
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A cavalgada que se vira descer ao
longo do vale já atravessava o rio da vila pela ponte do Souto e encaminhava-se para uma
antiga porta da povoação primitiva,
porta conhecida ainda hoje, como então, pelo nome de Vandoma. Ao lado direito de el-rei ia D. Leonor, a
rainha de Portugal: ele montando num
cavalo de guerra; ela num palafrém branco, levado de rédea desde a entrada da ponte pelo infante D. João, que
familiarmente falava e ria com a formosa
cavaleira. Da banda esquerda, o bispo D. Afonso, curvado e enfraquecido pela velhice, oscilava e fazia
cortesias involuntárias a cada passada
da mansíssima e veneranda mula episcopal. Junto ao velho prelado, o infante D. Dinis caminhava em silêncio, e no
aspeto melancólico do mancebo divisava-se
quão profunda tristeza lhe consumia o coração, vendo-se como atado ao carro triunfal da mulher que pouco a
pouco se convertera na sua irreconciliável
inimiga. Após estas principais personagens, via-se uma grande multidão de cavaleiros, clérigos, cortesãos,
conselheiros, juízes da Corte; companhia
esplêndida, por entre a qual brilhava o ouro, a prata e as variadas cores dos trajos de festa, que sobressaíam no
chão negro das vestiduras roçagantes dos
magistrados e clérigos. Adiante de el-rei, as danças dos mouros e judeus volteavam rápidas, ao som da viola ou
alaúde árabe, das trombetas e das
soalhas. Segundo o antigo uso, seguiam-se às danças coros de donzelas burguesas, que celebravam com os seus cantos o
amor e ventura dos noivos.
Mas esse canto tinha o quer que
era triste na toada. Triste era, também, o aspeto dos populares, que, sem um só grito de
regozijo, se apinhavam para ver passar
aquele préstito real. Mil olhos se cravavam no infante D. Dinis, cujo rosto melancólico revelava que os seus
pensamentos eram acordes com os do povo,
que por toda a parte não via neste consórcio senão um crime e uma fonte de desventuras. Os cortesãos, porém,
fingiam não perceber o que se passava à
roda deles e pareciam trasbordar de alegria. Muitos eram daqueles que mais contrários tinham sido aos amores de
el-rei, mas, que, vendo, enfim, D.
Leonor rainha, voltavam-se para o sol que nascia e calculavam já quantas terras e que soma de direitos reais lhes
poderia render da parte de um rei pródigo
a sua mudança de opinião.
Entre estes não se via o tenaz e
astuto Pacheco. Habituado ao trato da Corte por largos anos, experimentado em todos os
enredos dos paços, hábil em traduzir
sorrisos e gestos, palavras avulsas e discursos fingidos, não tardara em perceber que as mercês e agrados de el-rei e
de D. Leonor encobriam intentos de
irrevogável vingança. Conhecendo que a sedição popular fora inútil e que, ainda renovada com mais fúria, não poderia
resistir às armas de D. Fernando, havia-se
afastado da Corte e, posto que só nos fins desse ano ele passasse a servir o seu antigo protetor e amigo, D.
Henrique de Castela, buscara entretanto
esquivar-se ao ódio da nova rainha, conservando ao mesmo tempo a boa opinião entre o vulgo.
Abandonado assim do seu guia, o
infante D. Dinis sofrera resignado um sucesso
que não podia embargar; mas, digno filho de D. Pedro, conservara intacta a sua má vontade a D. Leonor.
Desamparado dos seus parciais, vendo, se
não traída, ao menos quase morta e inativa a aliança de Pacheco, e, para maior desalento, seu irmão mais velho, o
infante D. João, ligado com essa mulher,
da qual este príncipe mal pensava então lhe viria a última ruína; no meio de tantos desenganos, o infante, a
princípio tímido e irresoluto, sentira crescer
a ousadia com os perigos; sentira girar-lhe nas veias o sangue paterno. Obrigado a seguir a Corte, nunca D. Leonor
achara um sorriso nos seus lábios; nunca
o vira conter diante dela um só sinal de desprezo. Assim, a cólera de el-rei contra seu irmão havia
chegado ao maior auge, e os cálculos de fria
e paciente vingança estavam resolvidos no ânimo de Leonor Teles.
A cavalgada tinha subido a
encosta, atravessado a Porta de Vandoma, que em parte ainda subsiste, e passado em frente da
Sé, junto da qual se dilatavam os paços
episcopais. Aí as danças e folias pararam e fizeram por um momento silêncio. Então o infante D. João, tomando nos
braços a formosa rainha, apeou-se do
palafrém, e, após ela, el-rei saltou ligeiro do seu fogoso e agigantando ginete. Dentro em pouco toda a
comitiva tinha desaparecido no profundo
portal dos paços, e os donzéis conduziam os elegantes cavalos, as mulas inquietas e os mansos palafréns para as
vastas e bem providas cavalariças do
muito devoto e poderoso prelado da antiga Festabole. (o Porto, nome segundo a divisão dos bispados atribuída
ao rei Godo Vamba)
O aposento principal dos paços,
quadra vasta e grandiosa, estava de antemão ornado para receber os hóspedes reais do velho
bispo D. Afonso. Um trono com dois
assentos de espaldas indicava que a ele ia subir, também, uma rainha. D. Leonor entrou seguida das
cuvilheiras e donzelas da sua câmara; el-rei de todos os principais cavaleiros.
Viam-se entre estes o alferes-mor Airas Gomes
da Silva, ancião venerável, que fora aio do rei, quando infante, o orgulhoso mordomo-mor D. João Afonso Telo, Gil
Vasques de Resende, aio do infante D.
Dinis, o prior da Ordem do Hospital, Álvaro Gonçalves Pereira, e muitos outros fidalgos que ou seguiam a
Corte ou tinham vindo assistir às bodas
reais.
Guiada por D. Fernando, Leonor
Teles subiu com passo firme os degraus do trono. Como o navegante, que, afrontando
temporais desfeitos por mares incógnitos
e aprocelados e chegando ao porto longínquo, quase que não crê pisar a terra dos seus desejos, assim esta
mulher ambiciosa e audaz parecia duvidar
da realidade da sua elevação. A alma sorria-lhe a mil esperanças; a vida trasbordava nela. ao seu lado um rei, aos seus
pés um reino! Era mais que embriaguez;
era delírio. Ela sentia um novo afeto, um como desejo de perdão aos seus inimigos! Tremeu de si mesma e,
convocando todas as forças do coração,
salvou a sua ferocidade hipócrita, que parecia querer abandoná-la. Era severo o seu aspeto quando esses
pensamentos estranhos lhe passaram pelo
espírito; mas o sorriso tornou a espraiar-se-lhe no rosto quando o instinto de tigre pôde fazê-la triunfar desse
momento em que a generosidade costuma
acometer com violência as almas vingativas e ferozes, o momento em que se realiza a suma ventura por largo tempo
sonhada.
Do alto do trono e em pé, D.
Fernando estendeu a mão: o tropel de cortesãos e cavaleiros, de donas e donzelas formaram aos
lados da espaçosa sala fileiras esplêndidas,
imóveis e silenciosas: e el-rei volveu olhar lentos para um e outro lado e disse:
— Ricos-homens, infanções e
cavaleiros de Portugal, um dos mais nobres sacramentos que Deus neste mundo ordenou foi o
matrimônio: como para os outros homens,
para os reis se instituiu ele; porque por ele as coroas se perpetuam na linhagem real. É por isso que eu
desposei hoje a muito ilustre Dona
Leonor, filha de Dom Afonso Telo, descendente dos antigos reis e ligada com os mais nobres de entre vós pelo
divido do sangue. Assim, a rainha de
Portugal será mais um laço que vos una a mim como parentes, que de hoje avante sois meus. Leais, como tendes sido ao
vosso rei pelo preito que lhe fizestes,
muito mais o sereis por este novo título. Em que pês a traidores, Dona Leonor Teles é minha mulher! Fidalgos
portugueses, beijai a mão à vossa
rainha.
O velho alferes-mor, Airas Gomes,
aproximou-se então do trono, à voz do seu
moço pupilo; ajoelhou e beijou à mão a D. Leonor; mas o olhar que lançou para el-rei era como o de pedagogo que
de mau humor se acomoda ao capricho
infantil de um príncipe. Ao volver de olhos do ancião, D. Fernando corou e voltou o rosto.
O infante D. João, porém,
dobrando o joelho aos pés da formosa rainha, parecia trasbordar de alegria. Contemplando-o,
Leonor Teles deixou assomar aos lábios
um daqueles ambíguos e quase imperceptíveis sorrisos que, vindos dela, sempre tinham uma significação profunda.
Porventura que no infante D. João ela já
não via mais que o precursor da humilhação de D. Dinis, do seu capital inimigo.
Após o infante, os fidalgos
vieram sucessivamente curvar-se ante D. Leonor. Boa parte deles era como capitães vencidos
seguindo ao capitólio um triunfador
romano. Podia com efeito dizer-se que, mau grado desses que se rojavam aos seus pés, ela conquistara o trono.
Toda a comprida fileira de nobres
oficiais da Coroa tinha passado e ajoelhado no estrado real. Faltava um; e era este, que,
menosprezando tantas caras ilustres por
valor ou ciência, por fidalguia ou riqueza, inclinadas perante ela, a mulher orgulhosa e implacável esperava pensando
no momento em que o mancebo ainda
impúbere, sem renome, sem poderio, célebre só pelo seu berço e pelo desgraçado drama da morte de D.
Inês, viesse tributar homenagem à que
representava uma papel análogo ao daquela desventurada, salvo na sinceridade do amor e na inocência da
vida.
Mas esse para quem D. Leonor mais
de uma vez volvera rapidamente os olhos
considerava com os braços cruzados aquele espetáculo em perfeita imobilidade, de que unicamente saíra quando
Gil Vasques de Resende, que estava ao
seu lado, se afastara, caminhando para os degraus do estrado. O mancebo apertara a mão do idoso aio, trêmula
da idade, com a mão ainda mais trêmula
de cólera. Na conta de pai o tinha; venerava-o como filho, e a ideia de o ver prostituir os seus cabelos
brancos aos pés de uma adúltera o levara
a esse movimento involuntário; involuntário, porque ele naquela
postura e naquela hora não fazia
senão coligir todas as forças da alma para salvar a honra do nome dos seus avós, do nome
dos reis portugueses, esquecida por um
dos seus irmãos e, talvez, mercadejada por outro em troco de valimento infame. O velho entendeu o que
significava este convulso apertar de
mão: duas lágrimas lhe caíram pelas faces; mas obedeceu a el-rei. Só faltava D. Dinis, que continuara a ficar
imóvel. Houve um momento de silêncio
sepulcral na vasta sala, e este silêncio era para todos indefinido, mas terrível.
D. Fernando pôs-se a olhar fito
para seu irmão, enleado, ao que parecia, em pensar profundo.
Dentro de pouco, poder-se-ia crer
que todos os fidalgos que povoavam aquela vasta quadra estavam convertidos em pedra
semelhante à das colunas góticas que
sustinham as voltas pontiagudas do teto, se não fosse o respirar ansiado e rápido que lhes fazia ranger sobre os peitos e
ombros os seus ricos briais.(*)
[(*) O brial era uma espécie de camisola que
os cavaleiros vestiam sobre as armas e por cima da qual apertavam o cinto da espada.]
----------
Os lábios de el-rei tremeram, como a
superfície do mar encrespada pela leve e repentina aragem que precede imediatamente o
tufão. Depois, entreabrindo-os, com os dentes cerrados, murmurou:
— Infante Dom Dinis, beijai a mão
à vossa rainha.
Foi um só o volver de todos os
olhos para o moço infante: o sussurro das respirações cessara.
D. Dinis não respondeu;
encaminhou-se para o meio do aposento: parou em frente do trono e, olhando em
redor de si, perguntou com sorriso de amargo escárnio:
— Onde está aqui a rainha de
Portugal?
— Infante Dom Dinis! — disse
el-rei, cujo rosto o furor mal reprimido demudara. — Sofredor e bom irmão tenho sido
por largo tempo: não queirais que seja
hoje só juiz inflexível do filho querido daquele que também me gerou! Infante Dom Dinis!, beijai a mão da
muito nobre e virtuosa Dona Leonor
Teles, como fez vosso irmãos mais velho, de quem deveríeis haver vergonha.
— Nunca um neto de Dom Afonso do
Salado — replicou o infante, com aparente
tranquilidade — beijará a mão da que el-rei seu irmão e senhor que chamar rainha. Nunca Dom Dinis de Portugal
beijará a mão da mulher de João Lourenço
da Cunha. Primeiro ela descerá desse trono e virá ajoelhar aos meus pés; que de reis venho eu, não ela.
— De joelhos, dom traidor! —
gritou D. Fernando, pondo-se em pé e descendo
dois degraus do estrado. — De joelhos, vil parceiro de revés sandeus! Se a taberna de Folco Taca vos ouviu
fazer preito infame aos peões de Lisboa,
quebrar-lo-eis diante do vosso rei: quebra-lo-eis, que vo-lo digo eu!
D. Dinis viu então que todos os
seus passos estavam descobertos: achava-se, por isso, à borda de um abismo. Hesitou um
momento; mas lembrou-se de que era neto
do herói do Salado e precipitou-se na voragem.
— Vil é a mulher barregã e
adúltera, e essa é ambas as coisas. Traidor seria um rei de Portugal que assentasse o adultério
no trono, e vós o fizestes, rei desonrado
e maldito do vosso Deus e do vosso povo! Quem neste lugar é o vil e o traidor?
O infante, acabando de proferir
estas palavras, abaixou a cabeça e deixou descair os braços. Ele bem sabia que se seguia
o morrer.
Apenas el-rei se levantara, D.
Leonor, cujas faces se tinham tingido da amarelidão da morte, tinha-se erguido também.
Naquele rosto, semelhante ao de uma
estátua de sepulcro, apenas se conhecia o viver no profundar, cada vez maior, das duas rugas frontais que se lhe
vinham juntar entre os sobrolhos.
Ouvindo as derradeiras e
fulminantes palavras de D. Dinis, el-rei soltara um destes rugidos de desesperação e cólera
humanas que nem o rugido da mais brava
fera pode igualar; grito de ventríloquo, que é como o estridor de todas as fibras do coração que se despedaçam a um
tempo; gemido como o do rodado ao
primeiro giro do instrumento do suplício: rugido, grito, gemido, conglobados num só hiato, fundidos num som
único pela raiva, pelo ódio, pela
angústia — brado que só terá eco pleno no bramido que há de soltar o réprobo quando no derradeiro juízo o julgador
dos mundos lhe disser: "Para ti as
penas eternas."
O brado de D. Fernando fizera
tremer os mais esforçados cavaleiros que se achavam presentes: o movimento que o seguiu
fez gelar o sangue em todas as veias.
Como um relâmpago ele tinha
arrancado da cinta o agudo bulhão e, com os olhos desvairados, encaminhava-se para o meio
da sala, onde seu irmão o esperava
imóvel, com a mão sobre o peito, como se dissesse: "Aqui!"
Mas D. Fernando não pôde oferecer
nas aras do adultério um fratricídio; uma barreira se tinha levantado aos seus pés. Era
um velho de cara calva e de longas
melenas brancas e desbastadas pelos anos: era aquele que lhe fora mais que pai e que ele respeitava mais que a
memória deste; era o seu alferes-mor, o venerável
Airas Gomes, que, ajoelhado, lhe clamava com vozes truncadas de soluços e lágrimas:
— Senhor!, que é vosso irmão!
— É um covarde traidor, que deve
morrer! Irmão!? Mentes, velho! Ele já o não
é!
À palavra "mentes!" um
relâmpado de vermelhidão passou pelas faces cavadas do antigo cavaleiro: abaixou os olhos e
correu-os pela espada. Fora esta a primeira
vez que ela ficara na bainha depois de tão funda afronta. Mas aquele era o momento dos grandes sacrifícios. Airas
Gomes replicou, alimpando as lágrimas:
— Nunca vos menti, senhor, nem
quando éreis na puerícia, nem depois que
sois meu rei. Sabei-lo. Criminoso ou inocente, Dom Dinis é filho do meu bom senhor Dom Pedro. ao vosso pai servi com
lealdade; por vós já me andou arriscada
a vida. Hoje tendes por defensores todos os cavaleiros de Portugal, ele é que não tem, talvez, um só.
Senhor rei, ficai certo de que, para assassinar
vosso irmão, vos é mister passar por cima do cadáver do vosso segundo pai.
Atalhado assim o primeiro ímpeto,
o caráter do moço monarca revelou-se inteiro
neste momento. Comoveu-o a postura do venerando ancião, que pela primeira vez via aos seus pés, e, com a irresolução
pintada nos olhos, fitou-os em Leonor
Teles.
Por uma reflexão instantânea, a
hiena previra que o sangue derramado pelo fratricida não cairia somente sobre a cabeça
deste, mas também sobre a dela. Naquele
rosto, então semelhante ao de uma estátua, D. Fernando não pôde ler a sentença do infante, bem que lá no fundo
do coração ela estivesse escrita com
sangue.
Entretanto os cortesãos, que no
furor rompente de el-rei tinham ficado estupefatos
e quietos, vendo-o vacilar, rodearam o infante. O velho Gil Vasques de Resende, que ia interpor-se,
também, entre D. Dinis e el-rei, quando
este arrancara o punhal, parara ao ver a heroica resolução do alferes-mor; mas,
ao hesitar de D. Fernando, correra a abraçar-se com o seu pupilo, que, no meio de tantos ânimos agitados por
paixões diversas, era quem unicamente
parecia tranquilo e alheio ao terror que se pintava em todos os rostos.
Finalmente, el-rei meteu
vagarosamente o punhal no cinto e, com voz pausada, mas tremula e presa, disse:
— Que esse mal-aventurado sai de
ante mim.
O tom em que estas poucas
palavras foram proferidas fez vergar o ânimo de D. Dinis, cujo coração, antes disso, parecera
de bronze. Os olhos arrasaram-se-lhe de água. Sentira que, até então, era uma
cólera cega, repentina, insensata, que o
ameaçava: agora, porém, no modo e na expressão de D. Fernando vira claramente que era um amor de
irmão que expirava.
Com a cabeça pendida em cima do
ombro de Gil Vasques de Resende, saiu do aposento.
Era, talvez, o velho o único
amigo que lhe restava no mundo.
D. Leonor levou ambas as mãos ao
rosto, e via-se-lhe arquejar o colo formoso,
agitado por mal contido suspiro.
"Coração compadecido e
generoso!", pensou lá consigo o alferes-mor, que havia pouco a tratara de perto pela primeira
vez.
"Hora maldita e negra, em
que perdi metade da minha tão espera vingança", pensava Leonor Teles, e o choro rebentou-lhe
com violência.
— Não te aflijas, Leonor — disse
D. Fernando, apertando-a ao peito. — Que
nunca mais eu o veja, e viva, se puder, em paz!
Mas as lágrimas correram ainda
com mais abundância e amargura.
O resto daquele dia foi triste:
triste o banquete e o sarau. A atmosfera em que respirava a nova rainha tinha o
que quer que fosse pesado e mortal, que resfriava
todos os corações.
À meia-noite, por um claro luar
de céu limpo de Inverno, uma barca subia com dificuldade a corrente rápida do Douro: à
popa viam-se reluzir, nas toucas e
mantos negros de dois cavaleiros que aí iam sentados, as orlas e bordaduras de ouro e prata: um dos remeiros
cantava uma cantiga melancólica, a que
respondia o companheiro, e dizia assim:
"Mortos me são padre e madre:
Eu tamanho fiquei.
Irmãos meus mal me quiseram.
Eu mal não lhes quererei.
Vou-me
correr esse mundo;
Sabe Deus se o correrei!
A alma deixo-a cá presa;
O corpo só levarei.
De meus avós nos solares
Nasci: dois dias passei:
Meus irmãos, nada vos tenho
Senão o nome que herdei."
Os remeiros calaram-se:
arrancaram da voga com mais ânsia e, depois, continuaram:
"Se fui rico, ora sou pobre;
Choro hoje, se já folguei;
Vilas troquei por desvios;
Muito fui: nada serei.
Sem padre, madre ou irmãos
A quem me socorrerei?
A ti, meu Senhor Jesus:
Senhor Jesus, me acorrei!"
Um gemido mais angustiado, que
saiu envolto em soluços, cortou de novo a cantiga: era do mesmo que já a interrompera. O
seu companheiro bradou aos barqueiros,
com a voz tremula e cansada de um ancião:
— Calai-vos aí com as vossas
trovas malditas!
Os remeiros vogaram em silêncio;
mas pensaram lá consigo que muito danadas
deviam ser as almas de cavaleiros que assim maldiziam tão devoto trovar.
Repararam, porém, que, dos dois
desconhecidos, o que suspirava e gemera lançara
os braços ao pescoço do que falara, e que este, afagando-o, lhe dizia:
— Quando todos, senhor, vos
abandonarem não vos abandonarei eu; que o
devo ao amor com que vos criei e à esclarecida e santa memória do vosso virtuoso pai.
Então os barqueiros, bem que
rudes, desconfiaram de que podia muito bem ser que não fossem duas almas danadas aquelas,
mas sim mal-aventuradas.
VII
JURAMENTO, PAGAMENTO
Passara mais de um ano depois do
casamento de el-rei. Este casamento, que explicava o repúdio da infanta de Castela, não
bastara, em verdade, para acender a
guerra entre D. Henrique e D. Fernando, estando já de algum modo previsto nos capítulos adicionais do Tratado
de Alcoutim. Mas, como se o desgosto que
semelhante ofensa devia gerar no ânimo do rei castelhano não fosse assaz forte para servir de fermente a
futuras guerras, D. Fernando suscitara
novos motivos de sérias desavenças, que não particularizaremos aqui, por não virem ao nosso intento. Baste saber-se
que, depois de inúteis mensagens e
queixas, D. Henrique de Castela, entrando subitamente em Portugal e tomando muitas terras fortificadas,
atravessara rapidamente a Beira, passara
junto aos muros de Coimbra, onde se achava D. Leonor Teles, e, vindo oferecer batalha a el-rei D. Fernando,
que estava em Santarém e que não aceitou
o combate, se encaminhara para Lisboa, cujos habitantes desapercebidos apenas tivera tempo de se
acolherem aos antigos muros do tempo de
D. Afonso III, de cujas torres e adarves viram os Castelhanos saquearem e queimarem o bairro mais povoado e
rico da cidade, o Arrabalde, sem lhes
poderem pôr obstáculo. No meio deste apertado cerco, desamparados de el-rei, que apenas lhes
enviara alguns dos seus cavaleiros, os moradores
de Lisboa não tinham desanimado. Com vária fortuna, tinham resistido aos cometimentos dos Castelhanos e,
o que mais duro era de sofrer, à fome, à
sede e, até, ao receio de traições dos seus naturais. Finalmente, D. Fernando fizera uma paz vergonhosa, depois de
ter suscitado uma injusta guerra, e
Lisboa viu afastar dos seus muros o exército de el-rei de Castela, que a tivera sitiada durante quase dois meses.
Era nos fins de Mio de 1373, pela
volta da tarde de um formoso dia de Primavera.
O ar estava tépido e o céu limpo. Pelos campos e vales via-se verdejar a relva; a madressilva e as rosas
bravias, enredadas pelos valados, embalsamavam
a atmosfera. Mas estes eram os únicos sinais que, nos arredores de Lisboa, revelavam aquela estação
suave no seu clima suavíssimo. Tudo o
mais contrastava horrivelmente com eles. Os extensos e bastos olivedos e azinhais que nessas eras a rodeavam
jaziam aqui e ali por terra, como se por
lá tivesse passado fouce gigante meneada por braço de ferro. Pelos outeirinhos, coroados pouco havia de
vinhas frondosas, viam-se espalhadas as
videiras cobertas de folhas ressecadas antes de tempo ou enegrecidas pelo fogo, assemelhando-se a
gândara coberta de urzes que foi desbravada
por fins do Outono. As vastas hortas que se derramavam por Valverde, trilhadas pelos pés dos cavalos,
estavam incultas e abandonadas. Mas,
sobre este mal-assombrado e triste chão do painel, mais melancólica e aflitiva avultava ainda a figura principal, a
cidade.
O populoso bairro chamado o
Arrabalde, onde, dantes, era contínuo o ruído discorde de trato imenso, achava-se convertido
em montão de ruínas. Para os lados do
sul e poente, não se viam, desde os antigos muros (cujo perímetro pouco mais abrangia do que o castelo e o
bairro a que hoje damos geralmente o
nome de Alfama), senão edifícios queimados, ruas entulhadas, praças desfeitas, vestígios de sangue, peças de
armadura aboladas ou falsadas, hastilhas
e ferros partidos de virotes, de lanças e de espadas, e, aqui e acolá, cadáveres fétidos, não só de cavalos, mas
também de homens, cujas carnes, meio
devoradas pelos cães ou pelo tempo, lhes deixavam branquejar as ossadas. Sobre os entulhos apareciam como
fantasmas os servos mouros, revolvendo
as pedras derrocadas, em busca de alguma preciosidade que tivesse escapado às chamas e ao inimigo; e
junto às paredes negras da sinagoga os
mercadores judeus, olhando para o seu bairro assolado, depenavam as barbas à roda dos rabis, que recitavam em tom
de choro os versículos hebraicos dos
trenos.
Por meio deste vasto quadro de
assolação rompia uma numerosa companhia de
cavaleiros e damas, de donas e escudeiros, de donzelas e pajens brilhante cavalgada que descia da banda de Santo Antão
para S. Domingos e tomava pela
Corredoura para a Porta do Ferro. A formosura e o luxo das mulheres, as figuras atléticas e os rostos varonis dos
cavaleiros, o brunido das armas, o loução
dos trajos, o rico dos arreios, tudo, enfim, dava clara mostra de que naquela cavalgada vinha a mais nobre gente de
Portugal. Os risos das damas, os ditos
galantes e agudos dos fidalgos, o rinchar alegre dos corcéis briosos e dos delicados palafréns, as doudices dos
donzéis, que, ora correndo à rédea solta,
ora sofreando os cavalos, ao perpassar pelas mulas pacíficas dos cortesãos letrados, os faziam
vacilar e debruçar sobre os arções, o bater das asas dos nebris e gerifaltes empoleirados nos
punhos dos falcoeiros, o latir dos galgos
e alãos, que, atrelados, forcejavam por se atirarem acima daqueles centenares de habitações derrocadas, de onde
saía de vez em quando uma exalação de
carniça: esse rir, este folgar, este ruído de contentamento, este matiz de reflexos metálicos, de cores
variegadas, passando, como turbilhão, através
daquele silêncio sepulcral, parecia rasgar o véu de tristeza que cobria a vasta área da cidade destruída e revocá-la a
uma nova existência.
Mas o povo, apesar disso,
continuava a estar triste.
A cavalgada chegou ao terreiro da
Sé. Um engenho de arremessar pedras estava
assentado no meio dele, e os grossos madeiros de que era construído viam-se ainda manchados de rastos de sangue.
Uma dama que vinha na frente da comitiva
parou: um cavaleiro de boa idade e gentil-homem, que caminhava ao seu lado, parou também. A dama apontou para
o engenho, disse algumas palavras ao
cavaleiro e, depois, desatou a rir.
Era ela a muito nobre e virtuosa
rainha D Leonor: ele o muito excelente e esclarecido rei D. Fernando de Portugal.
D. Leonor tinha razão para rir.
Durante o cerco de Lisboa, uma
voz, verdadeira ou falsa, se espalhara de que vários moradores da cidade estavam preitejados
com el-rei de Castela para lhe abrirem
uma das portas. Dava força a tais suspeitas o acharem-se no campo castelhano Diogo Lopes Pacheco e D. Dinis, que
com ele se tinham juntado na sua entrada
em Portugal, e as desconfianças recaíam naturalmente sobre aqueles que, dois anos antes, tinham seguido o
partido contrário a D. Leonor, de que o
infante e o velho privado de D. Afonso IV eram cabeças. Assim a popularidade dos parciais de D. Dinis tinha
diminuído consideravelmente, porque o
povo, em vez de atribuir a sua ruína a causas remotas, às paixões insensatas de D. Leonor e à imprudência de
el-rei, só nas sugestões de Diogo Lopes
e do infante via agora a origem de todos os males presentes, e o ódio que contra os dois havia concebido se
estendera a todos os que cria serem- lhes afeiçoados.
Apenas, portanto, se divulgou a
notícia da intentada traição, o povo furioso correu às moradas daqueles que, como fica
dito, lhe eram mais suspeitos. Seguiu-se
uma festa de canibais, festa de vulgacho em qualquer tempo e lugar que ele reine. Aqueles que não puderam provar
de modo inegável a sua inocência foram
metidos aos mais cruéis tormentos, onde nenhum se confessou culpado. Um desgraçado, contra o
qual eram mais veementes as desconfianças,
foi arrastado pelas ruas e feito depois em pedaços: "outro — diz o cronista — tomaram
e prozaram na funda d'um engenho, que estava armado ante a porte da see; e quando desfechou lançou-o em
cima dessa igreja entre duas torres dos sinos que ha, e quando cahio acharomno vivo; e
tomaromno outra vez e pozeromno na funda do engenho, e deitouho contra o mar, omde elles
desejavom, e assi acabou sua vida".
Era por isso que Da Leonor olhava
para o engenho e se rira. O próprio povo tinha pagado uma parte das arras do seu
casamento.
A noite descera entretanto. A
cavalgada parou no terreiro de S. Martinho, e à luz de muitas tochas parte daquela multidão
escoou-se, pouco a pouco, por diversas
ruas, enquanto outra parte subia à sala principal ou se derramava pelos aposentos dos paços, cujo silêncio de
quase dois anos, depois da fuga de el-rei
com Da Leonor Teles, era a primeira vez interrompido pelo ruído de uma corte numerosa, mas bem diferente da
antiga. A rainha havia quase exclusivamente
chamado a ela os seus parentes ou aqueles fidalgos que lhe tinham dado provas não equívocas de sincera
afeição e substituíra à severidade
antiga do paço todo o brilho de luxo insensato e, o que mais era, a dissolução dos costumes, que quase sempre
acompanha esse luxo. Depois de uma ceia
esplêndida como o devia ser nesta corte voluntária, apenas ficara na câmara real D. Fernando e a sua mulher, o
conde de Barcelos, D. João, D. Gonçalo
Teles, irmão de D. Leonor, e um donzel da rinha, filho bastardo de outro bastardo, do prior do Hospital Álvaro
Gonçalves Pereira, donzel que ela mais
que nenhum estimava. Estas personagens achavam-se reunidas no mesmo aposento onde, dois anos antes, o
beguino Frei Roy viera revelar à então
amante de D. Fernando os intentos dos seus inimigos. Era deste aposento que ela saíra fugitiva e amaldiçoada
do povo. Mas era aí, também, que D.
Leonor vinha depois de tantos sustos, de tantas dificuldades vencidas, de tanto sangue derramado pela sua causa,
repousar triunfadora, segura já na cara
a coroa real. Tudo estava do mesmo modo, salvo as personagens, que, em parte, eram diversas e em diversa situação.
El-rei, habitualmente alegre,
sentara-se triste na cadeira de espaldas, único móvel do aposento, e encostara a cabeça sobre
o punho cerrado: D. Leonor, posto que
naturalmente loquaz (ousada e faladora), sentada no estrado em frente de D. Fernando, conservava-se, também, em
silêncio: em pé, um pouco atrás da
cadeira de el-rei, o donzel querido de D. Leonor, com os olhos fitos nela, esperava atento as determinações da sua
senhora: ao longo da sala o conde de Barcelos
e D. Gonçalo Teles passeavam lentamente, conversando em voz submissa e pausada.
Mas a taciturnidade de cada uma
das duas personagens principais tinha bem diferentes motivos.
A imagem da sua capital destruída
havia-se embebido na alma de el-rei, como
remorso cruel. Pelas sugestões do seu tio adotivo, consentira que D.
Henrique viesse livremente destruir a
opulenta Lisboa. Ele, neto de Afonso IV, rejeitara os socorros dos seus valorosos vassalos, que,
ao esvoaçar dos pendões inimigos, de
toda a parte tinham corrido, lança em punho, para combaterem debaixo da signa real: ele, cavaleiro, fora
vil instrumento de vingança covarde: ele,
rei de Portugal, fora o destruidor do seu povo: ele, português, recebera o nome de fraco de um castelhano, sem que
ousasse desmentir a afronta! Estas ideias,
que o tinham assaltado ao atravessar as ruínas dos arrabaldes, tomavam vulto e força na solidão e no silêncio. O
pobre monarca, bom, mas excessivamente
brando e irresoluto, tinha sobra razão de estar triste. A Lua, que começava a subir, dava de chapa, através
da janela oriental do aposento, no rosto
de D. Fernando, como dois anos antes, quase a essa hora, lhe iluminara, também, as faces demudadas de
aflição. Este lugar, esta luz e esta hora
eram para ele funestos!
Nesse momento, passos mais rápidos
e mais pesados que os dos dois fidalgos começaram
a soar na sala contígua: quem quer que era passeava também.
Dos olhos de D. Fernando saíam
dois tênues reflexos; eram os raios da luz que os espelhavam em duas lágrimas.
A rainha, levantando-se então,
disse ao donzel:
— Nun'Álvares Pereira, vede quem
está nessa sala.
Nun'Álvares abriu a porta e,
alongando a cabeça, voltou imediatamente e disse:
— O corregedor da Corte.
Os dois fidalgos pararam na
extremidade do aposento, calaram-se e conservaram-se
imóveis.
A rainha fez sinal com a mão a
Nun'Álvares para que esperasse: o donzel ficou à porte sem pestanejar.
D. Leonor encaminhou-se então
para el-rei, que, embebido no seu profundo pensar, não vira, nem ouvira o que
se fazia ou dizia. Curvando-se e firmando o cotovelo no braço da cadeira de el-rei,
encostou a cabeça sobre o ombro dele,
com a face unida à sua.
— Que tens tu, Fernando? —
perguntou ela, com essa inflexão de voz meiga
que só sabem lábios de esposa que muito ama, mas com que também soubera atinar esta mulher sublime de
hipocrisia.
— Nada! ... nada! — respondeu
el-rei, lançando-lhe o braço em redor do pescoço e apertando a face incendiada àquele
rosto de anjo, que dissimulava um
coração de demônio.
Os dois ténues reflexos da lua
tinham esmorecido nos olhos de D. Fernando: o hálito de Leonor Teles queimara as lágrimas
da compaixão e do remorso.
— Enganas-me ou enganas-te a ti
próprio, Fernando! — replicou a rainha. —
Tu és infeliz, e eu sei porque o és. Aborreces já a pobre Leonor Teles.
O tom com que estas palavras
foram proferidas era capaz de partir um coração
de mármore.
— Enlouqueceste, Leonor? —
exclamou el-rei. — Aborrecer-te? Sem ti, este mundo fora para mim saudade, a coroa
martírio, a vida maldição de Deus. Como
nos primeiros dias dos nossos amores, no leito da morte amar- te-ei ainda.
Glória, riqueza, poderio, tudo te sacrifiquei; não me pesa. Mil vezes que tu o queiras to sacrificarei de
novo.
— Ah, provera a Deus que o teu
amor fosse metade do que dizes: fosse metade
do meu!
— Busca, inventa, aponta-me algum
modo de provar o que te digo, e verás se
as minhas palavras são sinceras!
— Há um, rei de Portugal! —
replicou Leonor Teles, em cujos olhos cintilava
o contentamento.
Dizendo isto, ela se afastara de
el-rei. O seu aspeto tomou subitamente a expressão grave e severa de uma rainha. A um
gesto que fez, Nun'Álvares ergueu o
reposteiro, e o corregedor da Corte entrou. Trazia na mão um pergaminho aberto. Chegou ao pé de Leonor
Teles, ajoelhou e entregou-lho.
A rainha pegou nele e
apresentou-o a el-rei: o donzel trouxe uma das tochas que estavam nos ângulos do aposento e
colocou-se à esquerda da cadeira de D.
Fernando.
— A prova do que dissestes, rei
de Portugal, está em estampardes no fim desse pergaminho o vosso selo de
puridade.
D. Fernando recebeu o pergaminho
e começou a ler: a cada uma das extensas linhas, que o obrigavam a descrever com a cara
uma curva, o tremor das mãos tornava-se-lhe
mais violento e as contrações do rosto mais profundas. Antes de acabar de ler, atirou o pergaminho ao chão
e, com voz terrível, exclamou, cravando
os olhos reluzentes em Leonor Teles:
— Mulher, que me pedes tu?
— Justiça e as minhas arras.
Era a primeira vez que el-rei
ousava resistir à vontade de Leonor Teles. Ela ainda não o cria. Habituada a ser obedecida
pelo pobre monarca, estas últimas palavras
foram proferidas com a insolência de uma resolução incontrastável.
— Justiça? Contra quem a pedes?
Contra cadáveres e moribundos. As tuas arras?
Tiveste em dote as mais formosas vilas dos meus senhorios: tiveste o que mais desejavas, as arras de sangue e
ruínas. Para te contentar, deixei Lisboa
entregue ao furor de inimigos; para te contentar, fui vil e fraco; para te contentar, dos patíbulos já têm pendido
sobejos cadáveres.(*) E, ainda não satisfeita,
pretendes que, antes de dormir uma única noite na minha capital assolada, confirme uma sentença de morte!
Leonor!, tu eras digna de seres filha do
meu implacável pai!
[(*)Os tumultos contra o
casamento de D. Fernando não se limitaram a Lisboa. Pelas doações dos bens dos credores
mortos ou decepados, conhece-se que houve confrontos e depois vinganças em Santarém, Leiria, Abrantes e
outras partes.]
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D. Leonor repelira o olhar, entre
colérico e tímido de D. Fernando, que mal acreditava a própria audácia, com um olhar em
que se misturava a indignação e o
desprezo. Ela ouviu as suas palavras sem mudar de aspeto; mas, apenas el- rei
acabou, encaminhou-se para a janela onde batia o luar e estendeu a mão para o céu:
— Há dois anos, senhor rei, que
neste aposento, a estas mesmas horas, um cavaleiro jurava a uma dama, de quem pretendia
quanto mulher pode ceder a desejos de
homem, que a amaria sempre; jurava-o pelo céu, pelos ossos dos seus avós, pela sua fé de cavaleiro — e o
cavaleiro mentiu. As bocas de homens vis
vomitavam contra essa mulher e a essa mesma hora os nomes de adúltera, de barregã, de prostituta; e pediam
a sua morte. O cavaleiro sabia que tais
afrontas escrevem-se para sempre na cara de quem as recebe, se o sangue de quem as proferiu não as lava um dia. O
cavaleiro ofereceu a sua alma aos demônios,
se não as lavasse com sangue — e esse cavaleiro blasfemou e mentiu. Senhor rei, diante do céu que ele invocou,
perto dos ossos dos seus avós, pelos
quais jurou, à luz da lua, que o iluminava, dir-vos-ei: aquele cavaleiro foi perjuro, blasfemo, desleal e
covarde, e eu a sua vítima. É contra ele
que ora vos peço justiça. Rei de Portugal, justiça!
Esta última palavra restrugiu
horrivelmente pelo aposento. El rei, que, durante o discurso de D. Leonor, se erguera pouco a
pouco, fascinado pelo seu gesto diabólico
e pelo seu olhar fulminante, caiu outra vez, arquejando, sobre a cadeira. O desgraçado cobriu a cada com ambas
as mãos e, depois de um momento de
silêncio, murmurou:
— Mas como punir aqueles que,
talvez, são cadáveres? A guerra e a fúria popular os puniram!
D. Leonor triunfara.
— Nem todos! — prosseguiu a
astuta e sanguinária pantera, acometendo o último entrincheiramento em que D. Fernando,
já debalde, procurava defender-se. — Os
seus mais vis inimigos ainda respiram e, porventura, ainda sonham vingança. Corregedor da Corte, lede os
nomes escritos na vossa sentença.
O corregedor da Corte levantou o
pergaminho, afastando-o dos olhos e interpondo
a mão aberta entre estes e a tocha que Nun'Álvares segurava; tossiu duas vezes, inclinou para trás a cabeça
e, com o tom cheio e solene de um mestre
em degredos, leu:
— Item: Fernão Vasques, peou,
alfaiate, cabeça e provedor dos susoditos reveis.
Aqui abriu o peitilho da
garnacha, tirou a sua ementa particular e leu a seguinte cota:
— Vivo: muy malferido dhuua ffrechada com herva(*) no ffecto do
meirinho-moor, quando hos da çidade
llevarom os castellãos de vencida até mêa rrua nova.
[(*) Naquele século o uso de
ervas para envenenar as armas de tiro ou de arremesso era vulgaríssimo nos combates.]
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Lida esta observação, o
corregedor continuou a ler sucessivamente os nomes dos réus e as respetivas cotas.
— Item: Stevom Martins Bexigosso, mercador, peom, capitão dhuu corpo
dos ssusodictos rreveis. — Fizia a ementa: — Morto de ssua door naturall.
"Item: Bertholameu Martijs, ourives, peom, dizidor de pallavras de
desacatamento contra ssua rreal
ssenhoria e de grão ssamdiçe e desavergonhamento. — Dizia a ementa: — Morto dhuua pedrada dhuu engenho dos imiguos.
"Item: Joham Lobeira, escudeiro, homem darmas, acostado do alcayde
moor que ffoy do castello desta lyal
cidade, capitão dos beesteiros que fforam a Ssam domingos. — Dizia a cota: — Foi cativo dhos castellãos: dado em
reendiçom e a boõ rrequado na pryssom Dalcaçova.
"Item: Bertholameu Chambão, peom, tanoeiro, cabeça da beesteria do
concelho, deputado pera ffazer vilta e affronta
a ssua rreal ssenhoria ha muy excellente e muy vertuosa de gramdes vertudes, rrainha dona llyanor. —
Rezava a ementa: — Morto dhuua lançada aa porta dho fferro.
"Item: Ayras Gil, petintal, capitão dos rreveis, gualiotes,
arraizes e pesquadores Dalfama. — Dizia
a cota: — Ffogido com os castellãos.
"Item: Fr. Roy, dalcunha Zambrana, biguino, ffolliom, jograll de
sseu officio, bevedo, assoalhador de
pallavras e dictos devedados, scuita dhos rreveis. — Notava a ementa: —
Enssandeçeu na pryssom ao lleer da sentença.
Pobre Frei Roy! Vendo-se
condenado à morte, desesperado, revelara o que tinha sido na sedição — um espia de Leonor
Teles. A cota da ementa fora tudo o que
tirara das suas revelações. O corregedor, homem agudo, como o melhor mestre em leis ou em degredos, deduzira
das suas palavras que o beguino
endoudecera, Frei Roy trocara as ideias. Tinha sido espia, mas dos sediciosos.
Levantado o cerco de Lisboa, o
corregedor da Corte fora o primeiro presente que a nova rainha enviara à cidade. Àquele
perspicaz e diligente magistrado poucos
dias tinham bastado para preparar um sarau digno dela, uma sentença de morte. A prova da sua perspicácia e
diligência estava em ter já no caminho da
forca os desgraçados cuja sentença vinha trazer à confirmação real. Numa execução noturna não havia a recear tumultos
populares, e a brevidade que a rainha
lhe recomendara neste negócio lhe fazia crer que não seria desagradável a sua real senhoria a imediata execução dos
réus.
Quando acabou a leitura, el-rei
tirou da bolsa que trazia no cinto o selo de camafeu e, sem dizer palavra, entregou-o ao
corregedor. Este pegou na tocha de
Nun'Álvares, deixou cair alguns pingos de cera no fundo do pergaminho, assentou-lhe em cima um fragmento de papel que
tirara da ementa e cravou neste o selo.
As armas de el-rei ficaram aí estampadas. O corregedor fizera isto com a prontidão e asseio com que o mais
hábil algoz enforcaria o seu próximo.
Depois o honesto magistrado
entregou o selo a el-rei, cujo tremor nervoso se renovara durante a fatal cerimônia. Ao
pegar-lhe, o pobre monarca deixou-o cair
no chão. O selo foi rolando e parou aos pés de D. Leonor Teles. Ela empalideceu. Porquê? Talvez se lhe figurou uma
cabeça humana que rolava diante dela.
O corregedor fez uma profunda
vénia e perguntou em voz sumida à rainha:
— Quando, senhora?
No mesmo tom, D. Leonor
respondeu:
— Já.
O destro e ativo corregedor tinha
dado no vinte. O "já" da rainha seria mais "já" do que ela própria pensava.
O corregedor saiu.
A um aceno de D. Leonor, o donzel
meteu a tocha no anel de ferro embebido na
parede de onde a tinha tirado e encaminhou-se para junto da porta. Ali ficou de braços cruzados, olhos no chão, e
imóvel como estátua. Desde este dia, o
formoso donzel odiou do fundo da alma a sua muito nobre senhora, aquela que lhe cingira a espada. O generoso
Nun'Álvares conhecera que debaixo desse
rosto suave se escondia um instinto de besta-fera.
Os dois fidalgos continuaram a
passear de um para outro lado, conversando em voz baixa, e como alheios à cena que ali se
passava.
El-rei tomara a primeira postura
em que estava, com o cotovelo firmado no braço da cadeira, e a cabeça encostada no
punho; mas os seus olhos, revolvendo-se-lhe
nas órbitas, incertos e espantados, exprimiam a dolorosa alienação daquela alma tímida, atormentada por
mil afetos opostos.
Ouvia-se apenas o cicio dos dois
que conversavam. E, por largo espaço, aquele
murmúrio e o respirar alto e convulso de D. Fernando foram o único ruído que interrompeu o silêncio do vasto
aposento.
El-rei, com a mão esquerda
pendente sobre os joelhos, deixava-se ir ao som das ideias tenebrosas que lhe ofuscavam o
espírito e que, protraídas, o levariam
bem próximo das raias de completa loucura. A imagem de Leonor Teles aparecia-lhe como composto monstruoso de
vulto de anjo e de olhar de demônio. Um
amor infinito arrastava-o para essa imagem; o horror afastava-o dela. Via-a como um simulacro das virgens que,
na infância, imaginava, ao ouvir ler ao
bom do seu aio Airas Gomes as lendas dos mártires; mas logo pensava ouvi-la dar risada infernal, passando
por cima das ruínas da cidade deserta. O
patíbulo e os delírios amorosos; o cheiro do sangue e o hálito dos banquetes, misturavam-se-lhe no senso íntimo:
e o pobre monarca, nos seus desvarios,
perdera a consciência do lugar, da hora e da situação em que se achava naquele terrível momento.
Mas um beijo ardente, dado nessa
mão que tinha estendida, e lágrimas ainda mais ardentes, que a regavam, foram como
faísca elétrica, revocando-o à razão e à
realidade da vida.
A comoção indizível e misteriosa
que sentira fez-lhe abaixar os olhos: a rainha estava aos seus pés; era ela quem lhe cobria a
mão de beijos e lha regava de lágrimas.
D. Fernando afastou-a suavemente
de si: ela levantou o rosto celeste orvalhado
de lágrimas; era, de feito, a imagem de uma das mártires que ele via no seu imaginar de infância. D. Leonor ergueu
as mãos suplicantes, com um gesto de
profunda angústia: então, era mais formosa que elas.
— Ah! — murmurou el-rei —, porque
é o teu coração implacável, ou porque te
amei eu tanto?!
— Desgraçada de mim! — acudiu D.
Leonor entre soluços. 0 O teu amor era
como o íris do céu: era a minha paz, a minha alegria, a minha esperança; mas desvaneceu-se e passou; a vida de Leonor
Teles desvanecer-se-á e passará com ele!
— É porque sabes que esse amor
não pode perecer; que esse amor é como um
fado escrito lá em cima — interrompeu D. Fernando —, que tu me fazes tingir as mãos de sangue, para satisfazer as
tuas cruéis vinganças: é porque sabes
que esgoto sempre o cálix das ignomínias quando as tuas mãos mo apresentam, que me sacias de desonra. Terás,
acaso, algum dia piedade daquele que
fizeste teu servo, e que não pode esquivar-se a ser tua vítima?
— Aí, quanto és injusto,
Fernando, e quão mal me conheces! — exclamou Leonor Teles, limpando as lágrimas. — Foi a
tua dignidade real, e a tua justiça, o
teu nome que eu quis salvar da tua própria brandura. Aos mesquinhos que me ofenderam perdoei de todo o coração; mas
tu, que eras rei e juiz, não o podias
fazer.
Se o nome do teu virtuoso pai
ainda hoje lembra a todos com veneração e amor, é porque teu pai foi implacável contra
os criminosos, e aquilo em que pões a
desonra e a ignomínia é a coroa de glória imortal que cera o seu nome. Se as minhas palavras te constrangeram a
escolher entre a confirmação dessa fatal
sentença e a deslealdade e a blasfêmia, que não cabem em coração e lábios de cavaleiro, foi por te salvar de ti mesmo.
Se crês que nisto fui culpada, diz-me só
"Leonor, já te não amo!", e eu ficarei punida; porque nessas palavras estará escrita a minha sentença de
morte! Possas tu depois perdoar-me e proferir sobre a campa da pobre Leonor uma
expressão de piedade!
As lágrimas e os soluços parecia
não a deixarem prosseguir. Reclinou a cabeça sobre os joelhos de el-rei, apertando-lhe a
mão entre as suas com um movimento
convulso.
Formosa, querida, humilhada aos
seus pés, como resistiria o pobre monarca? Unindo a face àquela cara divina, só lhe
disse: "Oh, Leonor, Leonor!", e as suas lágrimas misturavam-se com as dela.
Durante esta luta da dor e da
hipocrisia, em que como sempre acontece, a última triunfava, o conde de Barcelos e D.
Gonçalo Teles tinham-se encostado à
janela fatal que dava para o rio e que, também, dominava grande porção do arrabalde ocidental da cidade. O
espetáculo da noite era de melancólica
magnificência.
A Lua caminhava nos céus limpos
de nuvens, e pela face da terra nem suspirava
uma aragem. A claridade do luar refrangia-se nas águas, mas esmorecia batendo na povoação, na qual não
achava, além dos antigos muros, uma
parede branqueada, uma pedra alva, onde espelhar-se, ou um sussurro de festa acorde com as suas harmonias. O incêndio
e o ferro tinham passado por lá, e
Lisboa era um caos de ruínas, um cemitério sem lápides. Apenas, no extremo do seu, dantes, mais rico e povoado
arrabalde, amarelejava, polido pelo
tempo, o gótico Mosteiro de S. Francisco, junto da sua irmã mais velha, a Igreja dos Mártires. No vale que ficava no
meio a luz de cima embebia-se inutilmente
na povoação que jazia extinta. A bela Lua de Maio, tão fagueira para esta
cidade querida, assemelhava-se à leoa que, voltando ao antro, acha o seu cachorrinho morto. A pobre fera ameiga-o
como se fosse vivo, e vendo-o quieto,
indiferente e frio, não crê, e vai e volta muitas vezes, renovando os seus inúteis afagos. Lisboa era um cadáver, e
a Lua passava e sorria-lhe ainda!
Mas, no meio daquele chão irregular,
negro, calado, viam-se, aqui e acolá, luzinhas
que se meneavam de um para outro lado, ao que parecia, sem rumo certo. Era que os frades de S. Francisco e de
S. Domingos faziam procurar por entre os
entulhos as relíquias dos mortos, para lhes darem sepultura cristã. Neste piedoso trabalho, que seguiam sem
descontinuar havia muito tempo, eram
acompanhados por alguns do povo, que, para se esforçarem, cantavam uma cantiga pia, cujas coplas, bem que
interrompidas, vinham, com triste som,
bater de vez em quando nos ouvidos dos dois cavaleiros. Rezavam as coplas:
"De amigos e inimigos,
Que aí são deitados,
Levemos os ossos
Ao chão dos finados.
Ave Maria!
Santa Maria!
Madre gloriosa,
Dessa alta ventura
Demovei os olhos
À nossa tristura.
Ave Maria!
Santa Maria!
Ao bento Jesus,
E ao padre eternal
Pedi que perdoe
A quem morreu mal.
Ave Maria!
Santa Maria!"
Esta longínqua toada perdeu-se no
som de outra bem diversa, que se levantou mais perto dos dois cavaleiros. Uma voz esganiçada
dava o seguinte pregão:
— ... Justiça que manda fazer
el-rei em Fernão Vasques, João Lobeira e Frei Roy: que morram na forca, sendo ao
primeiro as mãos decepadas em vida.
Os cavaleiros abaixaram os olhos
para o lugar de onde subira a voz: era no terreiro próximo: os três padecentes e o
algoz, cercados de alguns besteiros, aproximavam-se
do cadafalso: vários vultos negros fechavam o préstito: daquela pinha partira a voz do pregoeiro.
Este pregão, dado a horas mortas
e numa praça deserta, parecia um escárnio. Mas o corregedor da Corte era afamado
jurisconsulto, e nós temos ouvido a alguns
que na execução das leis as formas são tudo. Assim piamente o cremos.
Duas se tinham, porém, esquecido:
os desgraçados morriam, como aqueles que
o salteador assassina na estrada, pela alta noite, e sem um sacerdote que os consolasse na extrema agonia.
O algoz empurrou brutalmente um
dos padecentes para uma espécie de marco
escuro que estava ao pé do patíbulo. Daí a nada, os cavaleiros viram reluzir duas vezes um ferro: ouviram
sucessivamente dois golpes, dados como em
vão, seguindo-se a cada um deles um grito de terrível angústia.
O conde de Barcelos quis rir-se,
mas a risada gelou-se-lhe na garganta, e, como Gonçalo Teles, recuou
involuntariamente.
O grito que restrugira chegara
aos ouvidos de el-rei.
— Que bradar de homem que matam é
este? — perguntou ele.
— Justiça da sua senhoria que se
executa — respondeu o conde, que neste momento
retrocedia da janela.
— Oh, desgraçados!, tão breve! —
disse el-rei, passando a mão pela cara, de
onde manava o suor da aflição e do terror. Olhando então para Leonor Teles, acrescentou:
— Até à derradeira mealha estão
pagas vossas arras, rainha de Portugal! Que
mais pretendeis de mim?
E deixou pender a cabeça sobre o
peito.
D. Leonor não respondeu.
D. Gonçalo Teles aproximou-se
então da cadeira de D. Fernando e curvou um joelho em terra.
El-rei levantou os olhos e
perguntou-lhe:
— Que me quereis?
— Senhor — respondeu o honrado e
nobre cavaleiro —, se a vossa senhoria
consentisse neste momento em ouvir a súplica de um dos seus mais leais vassalos! ... — Falai — replicou D.
Fernando.
— João de Lobeira acaba de
receber o prêmio da sua traição — prosseguiu D. Gonçalo. — O desleal escudeiro possuía
avultados bens, que ficam pertencendo à
coroa real. Por vossa muita piedade, podeis fazer mercê deles ao seu filho Vasco de Lobeira; mas o pobre
moço ensandeceu há tempos! Tresleu com
livros de cavalarias, e tão varrido está que não fala em al, senão num que anda imaginando e a que pós o nome
Amadis. Para um mesquinho parvo e sandeu
pouco basta, e a vossa real senhoria bem sabe que a minha escassa quantia mal chega...
— Calai-vos, calai-vos; que isso
é negro e vil — bradou el-rei, redobrando- lhe o horror que tinha pintado no
rosto. — Deixai ao menos que a sua alma chegue
perante o trono de Deus!
— Apenas cinquenta maravedis! —
murmurou D. Gonçalo, erguendo-se, e
abaixando os olhos, aflito com a lembrança da sua extrema pobreza.
Seis de Junho da era de César de
1411 (1373), num dos andares da torre do castelo, o veador da chancelaria, Álvaro
Pires, passeando de um para outro lado,
ditava a um mancebo, vestido de garnacha preta, o qual tinha diante de si tinteiro, penas e folhas avulsas de
pergaminho, a seguinte nota:
Item. Pera se spreuer a ffolhas cento e vinte-oyto do llivro prymeyro
da Cançelaria Delrrey nosso senhor: —
Doaçom dos bees de rraiz e moviis de Joham Lobeira, confisquado e morto por treedor contra ho serviço de ssua real
senhoria, ao muy nobre D. Gonçalo Tellez, per ho muyto divedo que cõ elrrey ha, e polos muytos
serviços que del tee reeçebido e ao deante espera de rreçeber.
E o povo? ... Oh, este, sim!
Nitrava-se agradecido e bom no meio de tantas infâmias e crimes.
Os populares que, na manhã
imediata àquela horrível noite dos fins de Maio, passavam pelo terreiro maldito onde pendiam da
forca os três cadáveres, meneavam a
cabeça e seguindo avante, diziam:
"Boa e prestes foi a justiça
de el-rei nos traidores. Alcácer pela sua senhoria."
D. Fernando guardou até à
Primavera de 73 a
vingança contra os populares de Lisboa e
de outras terras que no ano de 71 se tinham amotinado por causa do seu casamento. Vê-se isto dos documentos
registados na sua chancelaria e citados
por Frei Manuel dos Santos. Quem atentamente tiver estudado o caráter atroz e dissimulado de Leonor Teles,
tão bem pintado por Fernão Lopes, e os
fatos que provam a sua influência sem limites no ânimo daquele príncipe, não poderá esquivar-se a veementes
suspeitas sobre os motivos que, num
romance, nós danos como reais, porque aí é lícito fazê-lo, da, aliás inexplicável, inação com que D.
Fernando não quis opor-se à vinda de el-rei de Castela sobre Lisboa, vinda que reduziu os
seus moradores aos mais espantosos
apuros e que converteu a cidade, por assim dizer, num montão de ruínas. Daqueles documentos resulta que,
depois de tirada toda a força aos habitantes
de Lisboa pela guerra de Castela, em que se viram quase sós e abandonados, el-rei viera, sobre as ruínas da
maior e melhor parte dela, satisfazer os
ódios de D. Leonor; porque, levantando o cerco em Março de 73, achamos el-rei em Lisboa (aonde não volta
desde a sua fuga no Outono de 71) durante
alguns dias de Maio, e em Santarém e outros lugares nos meses seguintes, fazendo mercês dos bens dos
cidadãos mortos, decepados ou fugidos,
do que se pode concluir que então foram executados ou banidos, não sendo de crer que a cobiça cortesã tivesse
esperado muitos dias sem prear estes
sanguinolentos despojos. O casamento de Leonor Teles e as consequências dele são o primeiro ato do drama
terrível, da Ilíada scelerum da sua vida política. Foi este primeiro ato
que nós procuramos dispor na tela do
romance histórico. Todo o drama daria, nessa forma da arte, uma terrível "crônica". Desde esta conjuntura até
ser arrastada em ferros para Castela, por aqueles mesmos que chamara a assolar o seu
país, a Lucrécia Bórgia portuguesa é, na
história dessa época, uma espécie de fantasma diabólico, que aparece onde quer que haja um feito de
traições, de sangue ou de atrocidade.
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Nota:
Alexandre Herculano: "Lendas e Narrativas" (1851)
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