O PÁROCO DE ALDEIA
(LENDA DE 1825)
PRÓLOGO
Como a filosofia é triste e
árida!
Às vezes, na Primavera, o vento
norte atira-se pelas encostas, tombando dos visos da serra, como se uma inteligência
vivesse nele, inteligência de maldade e destruição.
De noite e de dia, os troncos das árvores torcem-se e gemem, as ramas despedaçam-se a açoutá-los, envoltas nos
braços longos e flexíveis da ventania: o
demônio do setentrião sibila no meio delas um zumbido entre de lamento e de escárnio. Debalde o bosque
estende, saudoso, por um momento o seus
mais altos raminhos para o Sol, que se vai alevantando no Oriente: a rajada despega de novo da cumeada da montanha:
o bosque curva-se para o meio-dia; e,
galgando por cima daquelas mil caras inclinadas das plantas gigantes, das rainhas majestosas da vegetação,
os turbilhões da atmosfera agitada rolam
pela planície, coberta já de relva entressachada das primeiras florinhas. Então, relvas e florinhas murcham,
esmagadas pelas mãos da procela, que
tudo alcançam, fustigam e desbaratam. Os carvalhos frondosos e as boninas rasteiras, com a cara pendida para
a terra, como outros tantos símbolos do
desalento, não ousam erguê-la para o céu. É que, rugindo, a ventania cai da montanha em perene catadupa.
As vezes, como por brinco infernal, o
vento finge adormecer um instante e depois remoinha e apruma os topos das árvores e as corolas das flores, mas
é para logo as vergar com mais força e
apupar com o silvo insolente aquela rápida esperança, que se
desvaneceu tão breve.
E, quando o vento acalma, é para
saltar ao poente ou ao sul. A rajada já não silva na montanha: uma bafagem tépida vem da
banda do mar; mas o céu está toldado e o
ar úmido: o dia passa melancólico e pesado sobre a bobina que a nortada açoutou: ela não pôde saudar o Sol no
Oriente: está pendida e murcha como a
ventania a deixara. A noite vem encontrá-la numa espécie de torpor, que é existir, mas que não é vegetar, e ainda
menos viver.
Como a florinha do campo, a alma
por onde passou a procela da filosofia, esse
turbilhão transitório de doutrinas, de sistemas, de opiniões, de argumentos, pende desanimada e tristonha; e na
claridade baça do ceticismo, que torna
pesada e fria a atmosfera da inteligência, não pode aquecer-se aos raios esplêndidos do sol de uma crença viva.
Com Kant, o universo é uma
dúvida: com Locke, é dúvida o nosso espírito: e num destes abismos vêm precipitar-se todas as
antologias.
Como a filosofia é triste e
árida!
A árvore da ciência,
transplantada do Éden, trouxe consigo a dor, a condenação e a morte; mas a sua pior peçonha
guardou-se para o presente: foi o
ceticismo.
Feliz a inteligência vulgar e
rude, que segue os caminhos da vida com os olhos fitos na luz e na esperança postas pela
religião além da morte, sem que um momento
vacile, sem que um momento a luz se apague ou a esperança se desvaneça! Para ela não há abraçar-se com a
Cruz em ímpeto de agonia e clamar a
Jesus: «Creio, creio, ó Nazareno! Creio em ti, porque a tua moral é sublime; porque eras humilde e virtuoso;
porque, filho da raça sofredora e austera
chamado o povo, eras meu irmão e não podias, tão bom, tão singelo, tão puro, enganar teu pobre irmão. Creio,
creio, ó Nazareno!, porque até a hora do
expirar na ignomínia, até a hora da grande prova, nunca desmentiste a tua doutrina. Creio, creio, ó Nazareno!,
porque tu só nos explicaste o mistério desta
associação monstruosa da saúde e do ouro, do poderio e dos crimes a um lado; da enfermidade e da pobreza, da
servidão e da inocência a outro; porque
nos explicaste como os destinos humanos se compensavam além do sepulcro. Creio, creio, ó Nazareno!, porque só
tu soubeste revelar a consolação à
extrema miséria sem horizonte, e os terrores à completa felicidade sem termo na vida, colocando no lugar
do destino a Providência, e a imortalidade!
Creio, creio ó Nazareno!, porque a intensidade do teu viver é um impossível humano; a vitória da tua doutrina
severa, contra a filosofia e o paganismo,
um milagre; a glória do teu nome de supliciado maior que todas as glórias das mais altas e virtuosas existências
do mundo. Mas foste, na verdade,
um Deus?»
Não, o ânimo
vulgar que nunca vacilou na fé, que nunca discutiu o verbo, que nunca julgou o Cristo, possuído do insensato
orgulho da ciência, esse não sabe a
dolorosa oração do que pede a Deus o crer; ignora quanto fel encerra a
interrupção contínua de cada frase, de cada palavra daquele tormentoso orar; ignora o que é atirar-se aos pés da Cruz por
um impulso quase frenético do coração, sentir a voz gélida, pesada, cruel do
entendimento dizer-lhe tranquilamente: «Quem sabe!», e cair desanimado no
letargo da dúvida, donde muitas vezes bem tarde se alevanta o espírito,
oprimido e quebrado, porque nele pelejaram horas largas o instinto religioso e
o demônio implacável a que chamam ciência.
A sociedade é bem injusta, quanto
às faces do desgraçado, que assim luta consigo mesmo, sacode o lodo da injúria,
dizendo-lhe: «Hipócrita!», porque escondeu aos que o rodeiam, não as certezas,
que não as tem, mas as dúvidas terríveis da inteligência, e lhes revelou só as
aspirações, os desejos, as saudades do coração! — Hipócrita?! Tanto como o que,
havendo-se transviado da estrada e caído em fogo profundo, dorido, coberto de
pisaduras e feridas, e ensanguentando as mãos e o rosto nos silvados do
despenhadeiro, lidasse por sair dele e voltar ao caminho suave e plano, e
bradasse aos que visse ao longe: «Não vos afasteis para aqui!» Hipócritas são
aqueles que mentem aos que os escutam; que simulam a paz do descrer tranquilo,
quando vai lá dentro o tumultuar das incertezas. Como Satanás, eles dizem que o
Inferno é o Céu; dizem que a irreligiosidade tem o segredo do repouso e da
ventura, quando o que ela dá é inquietação e desesperança.
Feliz a alma vulgar e rude que crê
e nem sequer sabe que a dúvida existe no mundo! Está certa de que, além a
morte, há vida, conhece as suas condições; conhece-as como lhas ensinaram, como
conhece as condições dos corpos. Para ela, as noites não têm os pesadelos
monstruosos, nem os dias a meditações febris em que o cético involuntário se
debate na orla do possível, que toca por um lado nas solidões do nada, por
outro na imensidade de Deus.
Mas ainda mais feliz a
inteligência superior às do vulgo, aquela que a Providência destinou à missão
do poeta, nos anos da infância e da juventude, antes que o bafo árido da
ciência a queimasse, passando por cima dela! Nesse espírito e nessa idade, a
religião não está só nos preceitos e nos dogmas; está na natureza inteira. A
alegria de Deus, o aspirar das fragrâncias celestes, a toada suavíssima dos
hinos dos anjos descem a ela nos raios do Sol, quando nasce e quando
desaparece; tremulam no espelhar-se da Lua nas águas; misturam-se no cicio das
árvores; entretecem-se com os mil gemidos da noite; vivem nas afeições
domésticas e santificam o primeiro bater do coração pelo amor. Tudo então é
viçoso e puro; porque a alma poética lhe empresta viço e pureza. As harmonias
moldadas, na virilidade, pelas leis das línguas e das escolas são apenas um eco
frouxo desses cânticos da meninice e da primeira mocidade, que se evaporam sem
se escreverem, que são um oceano de delícias inefáveis, em que se embalam
molemente a imaginação e o sentir do homem a quem o mundo há de chamar poeta.
Nessa época da vida, ele não abstrai do real para salvar verdadeira e intacta a
sua idealidade: faz mais; derrama esta, que é a seiva íntima do seu viver, pelo
universo, e converte-o numa coisa formosa, santa, ideal, que o mundo está bem
longe de ser.
Depois vem outra época da vida,
em que a felicidade é mentida, mas ainda é felicidade, posto que já eivada de
vaga inquietação, de ambições desregradas, de esperanças mesquinhas e
contraditórias. São os anos que precedem e seguem imediatamente os vinte.
Abrem-se ante nós os caminhos do mundo, como uma conquista. Glória de artistas,
poderio, opulência, ações generosas e grandes, amor sem termo, amizade sem
perfídias, vida multiplicada indefinidamente pela infinidade de fatos; que há,
enfim, que não sonhemos nessa época de fervente loucura? A inocência morreu, a
poesia íntima e crente desbaratou-se, o sentimento religioso esmoreceu; mas
ficam os deleites dos sentidos, que nos embriagam; os aplausos das multidões
aos nossos hinos descorados, que elas ainda julgam sublimes e esplêndidos;
aplausos que nos desvairam: fica-nos uma filosofia orgulhosa e insensata, que
se crê profunda, uma ciência superficial, que se crê completa, pela qual
dormimos tranquilos sobre a negação de todas as ideias místicas e de todas as
lembranças de Deus.
Desta idade em diante é que chega
o desfazer das ilusões, até das ilusões do orgulho. A poesia suave e pura da
infância e da puberdade passou: passa também o íris das paixões férvidas, das
ambições insaciáveis, da crença na própria energia. Começa então o pardo
crepúsculo deste ceticismo, que, semelhante a herpes lentos, vai lavrando por
todas as nossas opiniões e afetos e os prostra e subjuga. Desde essa época, a
vida tem largas horas de tédio, em que o existir é uma carga pesada; porque nos
falta alicerce em que possamos firmar-nos; porque flutuamos sobre as névoas
densas do duvidar de tudo. O materialismo incrédulo já tirou das fases
espirituais dos altos engenhos argumento contra a imortalidade. Com a sua
lógica míope, persuadiu-se de que via as enfermidades e a decadência da alma
acompanharem as enfermidades e a decadência do corpo; que via o entendimento
caquético esmorecer com a decrepidez; quis que ele, na morte, ficasse perdido e
anulado entre as cinzas da sepultura, Se o materialismo soubesse que a vida das
sumas inteligências é a poesia e que essa vida segue a ordem inversa do
desenvolvimento físico; se conhecesse que a energia íntima tem o seu apogeu nos
anos débeis a infância e começa a desvanecer-se quando os órgãos se fortalecem,
ele não teria achado a explicação do fenómeno nas suas tristes doutrinas. Nos
destinos eternos dos homens iria encontrar a razão desse fato, que então veria
à sua luz verdadeira. Os olhos da alma vão-se pouco a pouco enevoando no meio
das trevas do mundo: nesta atmosfera grosseira e corrupta, ela resfolga a
custo, e, com o diminuir dos alentos, diminuem-se-lhe sucessivamente os brios.
Cada dia lhe desfolha um afeto, lhe discute uma crença, lhe mata uma esperança,
lhe traz um desengano cruel. Entre o espírito e o mundo quebraram-se, um a um,
todos os laços.
Vós credes que a mente se definha
e ela apenas dormita para despertar vigorosa ao sol da eternidade, que rompe
atrás do sepulcro.
Tomai-me esse octogenário tonto
que foi um alto engenho: cavai no deserto do seu coração gasto e frio e
arrancai-me de lá uma daquelas paixões que ardem até o último instante da
existência: vibrai uma corda das que lhe davam na idade viril um som
estridente: dizei-lhe: «Teu filho querido foi arrastado ao tribunal como
criminoso; espera-o o suplício, se não houver uma voz eloquente que o defenda.
Se ela se erguer, será salvo; e tu foste na mocidade o mais eloquente dos
homens!» Dizei-lhe isto, e vereis esse engenho que credes moribundo atirar-se,
como um tigre, ao meio dos juízes e achar toda a energia dos vinte e cinco anos
para defender aquela vida que a natureza ligou à sua pelas harmonias
misteriosas da paternidade. Se as palavras, se o órgão extenuado da linguagem
não puder exprimir o pensamento daquela alma remoçada subitamente, o gesto, o
olhar, os meneios substituirão a língua, e se, cansados e débeis, não bastaram
à violência da ideia, o espírito despedaçará o quase cadáver e, despedindo-se
da terra, provará que, se dormitava, não se extinguia e que, despertando,
partia o vaso frágil que já não o podia conter.
Tal é o destino da inteligência
neste breve desterro: dois dias conserva as recordações verdadeiras e puras da
sua origem imortal: outros dois ilumina-se com o fogo-fátuo das paixões e
esperanças: o resto deles revolve-se na luta tormentosa das ideias, dos afetos,
dos desenganos: depois vem o dormitar da velhice e a regeneração da morte.
Eu, que já vou aquém do marco
onde começa o terceiro período da vida humana, a sós, às vezes, com as minhas
recordações infantis, ponho-me a comparar o aspeto prosaico e triste que tem
atualmente para mim o universo com as formas suaves e poéticas em que ele me
aparecia envolto desses tempos dourados. É uma comparação amarga; mas a saudade
que encerra consola do seu amargor.
Hoje, a Lua no crescente alevanta-se
ao anoitecer de um dia sereno de Estio e estende o manto de lhama de prata
sobre a face levemente crespa das águas. Os seus raios, transparecendo por
entre o verde-negro das copas do arvoredo, que se balouçam sonolentas, descem trêmulos
sobre o chão pardo e mosqueiam-lhe a superfície, semelhante, depois disso, a
dorso de pantera. A viração tenuíssima da tarde passa e murmura um cicio quase imperceptível
na folhagem. Em volta. do círculo alvacento que o luar esparge no céu cintilam
raras estrelas no azul do firmamento, que parece o leito recamado de safiras em
que se reclina a rainha da noite.
Há quinze ou vinte anos, noite
tal como esta tinha para mim um seminúmero de misteriosas harmonias, que eu não
sabia explicar, mas que sabia sentir. Agora sei dizer-vos o que é a Lua, a sua
luz refrata, a noite, a viração, o vulto das águas encrespadas, as estrelas e
as solidões do espaço; mas o que já não sei é verter as lágrimas de inefável
contentamento que, outrora, se me escoavam tépidas pelas faces, contemplando as
harmonias imateriais e íntimas que vagavam pela atmosfera tranquila, como ecos
longínquos de harpa angélica, rolando de astro em lastro, até se derramarem na
Terra!
Dai-me uma nota só dos cânticos
que eu então escutava; dar-vos-ei em troca toda a minha estúpida e inútil
ciência!
Mas essa época da vida não
voltará mais porque não pode retroceder uma única onda do rio impetuoso do
tempo! Depois da taça do mel esgotada, resta a do absinto. Que se resigne e
espere aquele que vai devorando os dias da dúvida e do desalento. Chegará a
hora de renascer para a poesia e para a certeza: será a da morte. A Providência
foi ainda generosa conosco, consentindo-nos que, a espaços, afastemos dos
lábios o cálix do fel e deixando que nesses momentos rasguem o nosso longo e
tedioso crepúsculo alguns raios transitórios de luz. A memória é o instante de
repouso e a saudade o clarão enorme que nos ilumina.
Recordar-se — consolar-se.
I
A ALDEIA E O PRESBITÉRIO
Uma das coisas que, nas
recordações da juventude, ainda espiram para mim poesia e saudade é a imagem de
um velho prior de aldeia que conheci na minha meninice. Hoje, tão bondosos, tão
alegres, tão veneráveis, há-os por certo aí, e muitos: eu é que não sei
conhecê-los. A auréola que então rodeava as cãs do sacerdote ancião
desvaneceu-se pouco a pouco; desvaneceu-a a experiência do mundo, como tantas
mil crenças e imaginações de outrora! Ele morreu já, por certo; mas, vivo que
fosse, eu não sentiria ao vê-lo, ao falar-lhe, aquela espécie de alegria
tímida, de confiança receosa que nesse tempo o bom do velho me inspirava.
Parecia-me que, estando ao pé dele, estava mais perto de Deus, cujo valido, por
assim dizer, era o padre-prior. Não sabia o sacerdote essa língua que eu cria
falar-se no Céu, o latim, coisa então para mim misteriosa e santa? Não trajava,
às vezes, os trajos da corte celeste, o amicto, a casula, o pluvial, com que
estavam vestidos alguns vultos de anjos pintados em três ou quatro
antiquíssimos quadros do presbitério? Quando, nas suas práticas, depois da
missa do dia, narrava os gozos da bem-aventurança, os tormentos do Purgatório e
os tratos intoleráveis do Interno, não juraria qualquer que ele já peregrinara
largos anos além do sepulcro, ou que voz de cima lhe revelava tantas maravilhas
e tão solenes terrores? Evidentemente, o velho clérigo estava mais perto dos
degraus do trono divino que toda a outra gente e, por me servir da linguagem
política, exercia em nome do Céu uma delegação na Terra; era uma espécie de missus dominicus da Providência. E,
quando ele, apesar dos meus tenros anos, me escolhia para acólito, para estafar
a porção de latim do missal que as rubricas inexoráveis subtraíam ao seu
império, sorriam-me as esperanças, algum tanto vaidosas, de obter de Deus
deferimento às minhas pretensões infantis, como costumam sorrir ao requerente à
quem deputado de grande conta mostra familiaridade na presença de onipotente
ministro.
Hoje, o latim do padre-prior
parecer-me-ia um tanto bárbaro e, talvez, barbaríssima a sua prosódia: nas
vestes sacerdotais acharia os trajos romanos do Império, atravessando,
imutáveis como a Igreja, por entre as transformações da moda e do luxo; nos
quadros do presbitério riria da ignorância e do mau gosto do pobre pintor; e
nas descrições das venturas e dos tormentos da outra vida descobriria
unicamente uma encarnação grosseira em imagens materiais das revelações
profundas do espiritualismo cristão. É que nesse tempo tudo me chegava aos
olhos da alma iluminado, risonho, variegado, porque tudo transparecia através de
um prisma de sete cores, da inocência singela e crédula da infância, e que hoje
tudo me parece, como a folha que caiu da árvore no Outono, murcho e desbotado,
passando através da atmosfera nevoenta e triste da ciência e do orgulho. Então,
o velho pároco afigurava-se-me mais que um homem; hoje, na escala das
desigualdades humanas, provavelmente só acharia para ele um bem modesto lugar.
A aldeia em que o bom do clérigo
pastoreava o seu rebanho espiritual estava assentada na falda de um monte, e
pouco inferior a ela dilatava-se uma veiga, que, ao longe, lá bastante ao
longe, ia bater no mar. No alto da povoação ficava o presbitério. Era a igreja,
segundo hoje se me afigura (e tenho-a bem presente), daquele gosto duvidoso
entre a arquitetura cristã, que expirava, e a da restauração romana, que ainda
se não compreendia: era um desses templozinhos construídos no fim do reinado de
D. Manuel e durante o de D. João III, de que tão grande número resta ainda
pelas paróquias de Portugal e que são mais um argumento de que os nobres
conquistadores da índia, donatários das terras e padroeiros das igrejas, não
voltam do oriente com as mãos vazias. A devoção nesses tempos era objeto de
luxo: edificar uma igreja ou uma capela equivalia a ter hoje camarote em S.
Carlos ou cocheiro com estrigas de linho na cabeça e chapéu triangular.
A portada da igreja, de arco
tricêntrico firmado em pilares polistilos de meio relevo, era o mais claro
testemunho da idade provecta do presbitério. A residência paroquial,
originariamente no mesmo estilo, estava já civilizada. Uma porta retangular
substituíra a antiga. Esquadriadas estavam, também, as duas janelas do sobrado,
de diferentes dimensões e afastadas uma da outra, e nos seus postigos da
esquerda via-se o moderno conforto das vidraças. Não quero dizer com este
elogio à morada do padre-prior que a igreja tinha resistido, teimosa como velho
caturra, aos progressos da civilização. Pelo contrário. Estava mais alindada
ainda. Uma irmandade, ou não sei quem, que entendia na fábrica, havia pintado
de ocre tudo o que era pedra, de vermelhão tudo o que era azulejo. As câmaras
municipais das grandes cidades, os cônegos das colegiadas e sés ainda não
passaram do ocre e uma pobre irmandade da aldeia já tinha, há vinte anos,
vencido a meta a que apenas hoje chegam o município e a catedral.
O que, porém, escapou ao ocre e
ao vermelhão dos mesários do burgo foram dois seculares e formosos plátanos que
sombreavam o portal do presbitério. Na febre-amarela, que grassa tão furiosa
pelo senso estético dos nossos magistrados populares e das nossas dignidades
eclesiásticas, admira que tenha esquecido estender o benefício da caiadura
gemada aos troncos rugosos e carrancudos das velhas árvores que rodeiam os
edifícios ou as praças. Verdade é que todos os dias alguma desaba sob os golpes
do machado. Isto é melhor. Mas porque não haveis de remoçar as que vão
escapando com as lindezas e alegrias canônico-municipais?
Belos e Veneráveis eram os dois
plátanos. O adro, cobriam-no todo com as suas sombras fechadas, e só pela volta
da tarde, principalmente no Outono, é que algumas réstias açafroadas do Sol no
Poente se estiravam por debaixo deles e lá iam bater frouxas no limiar da
igreja, polido do contínuo perpassa r, e na porta de um vermelho-desbotado,
onde nesse tempo começavam a alvejar os remendos brancos com que as revoluções
converteram os áditos dos templos em pelourinhos eleitorais.
À entrada do adro alevantava-se
uma grande cruz de madeira pintada de preto, em cuja haste mãos devotas tinham
atado um ramo de flores, e este ramo, no meio do qual h avia um pé de
perpétuas, era a imagem das vaidades do mundo ao redor da religião do Calvário,
imutável no meio delas. As outras flores tinham-nas mirrado os ardores do
Estio: só restavam do morto ramilhete as imarcessíveis perpétuas.
Era num poial que servia de base
à cruz, onde, àquela hora do pôr do Sol, o padre-prior vinha muitas vezes
assentar-se; e ali estava tempo esquecido, ora alongando os olhos pelas
solidões do mar, que lá em baixo, no fundo do extenso vale, quebrava nas
rochas, ora traçando atentamente na terra, com a sua grande bengala e castão de
marfim, diversas figuras, se geométricas, não o sei dizer, porque hoje não
creio tanto na geometria do padre-prior como então cria nas suas terríveis
revelações do outro mundo tiradas, do Speculum Vitae. O que, porém, eu sentia
melhor do que hoje, sem então o saber explicar, era a suave e profunda poesia
que respirava esse quadro do velho sacerdote junto do símbolo religioso, àquela
luz moribunda da última hora do dia, em que uma certa saudade melancólica vem,
como percursora da noite, pousar-nos sobre o coração. Não o imaginava nesse
tempo, mas imagino agora por onde vaguearia a mente do velho clérigo, enquanto
a bengala ia de um para outro lado, cruzando linhas tortuosas e incertas. Os
últimos instantes de moribundo, os quais ele tinha adoçado com as consolações
da fé; a esmola tirada da escassa côngrua para enxugar lágrimas de viúvas e de
órfãos; os conselhos paternais dados à mocidade, salva assim por ele de largos
dias de remorsos e amargura; os ódios convertidos em perdão entre inimigos; as
dissensões
domésticas pacificadas pela
conciliação do pastor; todo o bem, enfim, que, por trinta ou quarenta anos, ele
havia semeado na aldeia, desde as últimas casinhas de colmo que alvejavam
caiadas na orla pálida dos campos até o altar do presbitério, frutificava,
talvez, ante os lhos da sua alma, nesses momentos de êxtase, em rica seara de
esperanças, cujos frutos entesourava no céu. Depois, a cruz hasteada junto dele
lhe viria lembrar o nada das diligências que empregara, dos sacrifícios que
fizera para verter algum bálsamo de ventura nas chagas dolorosas da vida; para
remir da perdição as ovelhas transviadas do pobre rebanho que lhe fora
confiado. A cruz negra, no seu eloquente silêncio, contava-lhe sacrifícios
infinitamente mais árduos que os dele, feitos, não em proveito de uma aldeia ou
de um povo, mas para remir o gênero humano. Por isso eu lhe via, às vezes,
deixar pender a cara calva sobre o peito, ou tomar-lhe o rosto uma expressão
singular, inexplicável nessa época para mim, mas que era o desalento que lhe
gerava no espírito a desanimadora comparação das suas ações com as do
Supliciado do Calvário, ao qual tomara por modelo e que jurara imitar. Muitas
vezes espantava-me de, que se conservasse assim engolfado nos seus pensamentos
até que o sino das ave-marias o vinha despertar; e, na minha alegria pueril,
vendo-o tão triste e carrancudo, pensava comigo que o padre-prior se ia
tornando com a idade, tonto e aborrido. Todavia, era que o bom do velho, nesses
momentos de meditação, volvia atrás
os olhos para os caminhos da sua
vida, onde esperava achar alguns vestígios brilhantes de obras virtuosas; mas
esses caminhos, sumidos na penumbra da Cruz, não os percebia, senão como uma
nuvenzinha escura e duvidosa através da luz imortal das virtudes e dos
benefícios de Cristo.
Ao tocar, porém, das ave-marias,
todas aquelas imaginações desconsoladas, se ele as tinha, como hoje creio,
desapareciam por um movimento habitual do espírito e do corpo; este para se
erguer, aquele para orar. Sobraçada a bengala, em pé, com as mãos postas,
segurando ao mesmo tempo entre elas o seu chapéu de três ventos, com a cabeça
um pouco inclinada para o chão, o padre-prior murmurava em voz baixa aquela tão
poética oração do despedir do dia. Os trabalhadores que, voltando das fadigas
do campo, acontecia passarem por aí nessa ocasião descobriam-se também e,
encostando-se ao ancinho ou à enxada, punham as mãos e rezavam, até que o
reverendo, acabando os latinórios, que eles iam repetindo em vulgar, lhes
dizia: «Boas noites, rapazes, vá a cobrir.» E os ganha-pães cobriam-se,
respondendo: «Guarde-o Deus, padre-prior.» E partiam: e ele assentava-se outra
vez a olhar para o Poente, onde o Sol, que se afundira no mar, deixava entre si
e a noite, que se precipitava após ele das alturas do céu, uma barra de
vermelhidão e ouro, estirando-se para um e outro lado do horizonte, como se
tentasse embargar o caminho às trevas. E ali estava pensando, até que a Tia Jerônima
alçava meia adufa de uma janela baixa, que dava claridade à cozinha, e o
chamava para a ceia, ao que prontamente obedecia; porque cumpre advertir que o
padre-prior não só respeitava à carga cerrada todas as tradições do catolicismo
romano, mas também a sabedoria tradicional do povo, que, neste capítulo da
ceia, reza que deve ser comida sem sol, sem luz e sem moscas, momento fugitivo
do expirar do dia, que não consta deixasse jamais passar por alto a boa Tia Jerônima.
Nunca me há de esquecer aquela
hora na aldeia, nem a luz crepuscular da atmosfera, nem as gelosias dos
aposentos inferiores da residência paroquial, nem a santa velha da Tia Jerônima,
que teria proporcionado mais um capítulo a Chateaubriand sobre a poesia das
usanças cristãs, se esse ilustre escritor houvesse uma vez saboreado as filhós
que ela compunha, para celebrar o Carnaval — e os seus bolos da Natividade — e
a sua olha e o seu anho assado da Páscoa. Não! — Saudades de tudo isso, durante
a minha vida inteira, em qualquer fortuna, no meio das mais graves
preocupações, nunca hei de afastar-vos impaciente, quando vierdes, como criança
travessa, baralhar-me um período de trabalhada prosa ou aleijar-me com um verso
parvo uma estrofe sofrível. Vinde, meus amores antigos, que para vós esta cara
não saberá arrogar-se; esta boca não terá esses monossílabos duros e gelados
com que se repelem importunações de indiferentes. Vinde, e demorai-vos comigo,
e palrai por uma hora, por um dia, por uma semana; que vos escutarei sempre
sorrindo. E, quando for ao sol-posto, que os ouvidos da minha alma vos ouçam
reproduzir vivas, harmoniosas, melancólicas as lentas badaladas das ave-marias,
não, como agora as ouço as vezes, no meio do ruído confuso, áspero, estridente
do povoado, mas partindo da aldeia ainda deserta dos seus moradores, rolando
pela veiga, espreguiçando-se pelo prado, rumorejando pelas quebradas da encosta
ou pelo pinhal do cabeço e indo morrer lá muito ao longe, nas toadas duvidosas
de uma cantiga de lavadeiras, ou no tinir das esquilhas de um rebanho de
ovelhas que se encaminham para o curral ao sibilar do pastor. Repeti-mas assim,
puras, campestres, vibradas num ar puro e sonoro, livres por um horizonte
imenso, e ter-me-eis despertado um afeto consolador, o qual valerá mais que
todas as ambições, que todos os contentamentos, que todas as esperanças do
mundo.
Têm-se discutido os sinos, como
se discute quanto há no universo. Desde a existência objetiva ou material deste
mundo até à legitimidade do chocalho pendurado ao pescoço da cabra, retouçando
pelas ruas de qualquer capital, que resta ainda aí para se lhe trazerem à praça
os prós e os contras? Das definições possíveis do homem uma só é verdadeira: o
homem é o animal que disputa. Os sinos têm tido amigos e inimigos: e porquê?
Pela mesma razão porque sobre tudo há duas opiniões contraditórias. E que tudo
tem duas faces diversas. O vento sul é meigo para a árvore que viceja no
recosto setentrional da montanha e açoite da que vegeta no pendor oposto o
norte é o suplício da primeira e grato para a segunda. Nisto está cifrada a
história das contradições humanas.
Os sinos, colocados em
campanários de paróquia aldeã ou de mosteiro solitário, são uma coisa poética e
santa: os sinos, pendurados nas torres garridas das garridíssimas igrejas das
cidades de hoje, são uma coisa estúpida e mesquinha. O sino é um instrumento
acorde com as vastas harmonias das serras e dos descampados. Assim como o órgão
foi feito para reboar pelas arcarias profundas de uma catedral gótica, para
vibrar na atmosfera mal iluminada pelas frestas estreitas e ogivas, do mesmo
modo o sino foi perfilhado pelo cristianismo para convocar os seus humildes
sectários ocupados nos trabalhos campestres. Quando se associou o sino do
culto?
Ignoramo-lo: ignoramo-lo porque
foi a religião serva e perseguida que o santificou; e, quando os poderosos da
Terra a aceitaram para si, então entrou nele nas cidades soberbas. Lá,
converteu-se numa coisa insignificante e impertinente. É mais um ruído
intolerável para juntar aos outros ruídos discordes que troam por essas ruas e
praças. O sino, tornado cortesão e fidalgo, é semelhante ao órgão trazido para
o aposento do baile, ou, o que vale quase o mesmo, para essas salas ao divino,
essas igrejas sem cãs, bonitas, vaidosas, douradinhas, que insensatos edificam
para as admirações de parvos.
E com estas digressões
esquecemo-nos do padre-prior. Não importa. Deixá-lo cear em paz e rezar o
breviário. Eram estas, entre outras, duas fases graves e sérias de todos os
seus dias. Depois, enquanto a velha Jerônima punha em ordem a casa, ele pegava
num livro da pequena estante que lhe ficava à cabeceira e lia ou uma lenda pia
do Flos Sanctorum de Rosário ou um trato daquelas grandes histórias de Fr.
Bernardo de Brito, até que o sono tranquilo de boa e sã consciência,
apertando-lhe com os dedos rosados as pálpebras, o entregava aos sonhos
plácidos que só a alvorada vinha interromper, quando perigo iminente de alguma
das suas ovelhas o não obrigava a erguer-se alta noite, ao som do resmungar
malsofrido e, até certo ponto, ímpio da Tia Jerônima. No horizonte limpo e
sereno destas duas vidas inocentes, destes Filémon e Báucis celibatários, que,
amparados um ao outro, iam peregrinando contentes para o sepulcro, havia um
ponto negro e triste. O rendimento da paróquia não consentia que o padre-prior
possuísse essa espécie de ilota in sacris,
de servo de gleba sacerdotal, chamado o padre-cura. As ventanias, as chuvas, as
noitadas através das serras revertiam inteiramente, como a côngrua e os
benesses, em benefício, se não do corpo, ao menos da alma do reverendo prior.
A sua côngrua era
maravilhosamente estica: o grosso dos dízimos da paróquia jogava-os à risca
todas as noites em tertúlias um digno comendador não sei de que ordem. Ai, que
a extinção dos dízimos foi a morte da religião!
II
NOITADAS PAROQUIAIS
A vida do velho prior passava, na
verdade, dura e trabalhosa! Como todas as coisas deste mundo, o egoísmo da Tia Jerônima
não era acabado e completo ou, para falarmos em estilo de filosofia fidalga,
não era absoluto. O limitado e o imperfeito são o sinal que o Criador estampou
na cara do homem e na face da Terra para nos recordar a todo o instante a nossa
origem; é a barreira que ele alevantou diante deste grande mistério de energia
e de audácia chamado a inteligência. Sabedoria, força, paixões, afetos, tudo
tem um horizonte comensurável; horizonte para as virtudes, como para a dor. O
espírito mede e abrange o que há mais vasto e profundo, os ermos, os mares, o
coração humano; porque ao cabo disso tudo está o finito. Imensa, eterna,
absoluta só há uma ideia, que está fora do universo. Esta é a ideia de Deus.
Por isso, grande é tão-somente
Deus!
Mas dizia eu que o egoísmo da Tia
Jerônima era incompleto: digo mais; era incompletíssimo. Quando o sacristão
vinha, alta noite, quebrar o dormir risonho e variamente ressonado do
padre-prior; quando à voz roufenha do ostiário aldeão, despertando o pastor
para ir levar as consolações extremas à ovelha moribunda e tirá-la já,
porventura, dos dentes e garras do cão tinhoso, se juntava o trovejar ao longe
da tempestade, o fustigar da chuva nas vidraças progressivas das meias janelas
e o ramalhar da ventania nos dois plátanos do adro, era sem dúvida que o
resmungar da Tia Jerônima, aparecendo da banda da sua pocilga, com a candeia
mortiça na mão e as roupinhas vermelhas do envés, tinha o que quer que fosse
repugnante e vil. Pensava, acaso, a boa da velha que a morte não seria tão
descortês que negasse ao espírito do pobre moribundo o tempo necessário para
poder, ao abandonar o corpo, subir, como chamazinha tênue, e galgar para o céu
sobre um raio do sol-nascente? Pode ser que sim. Não seria, porém, antes, que
ela preferisse o deixar frigir por alguns séculos nas caldeiras do Purgatório
aquela pobre alma cristã, largando a sua veste mortal sem os últimos
sacramentos, à necessidade de erguer-se por noite fria e tempestuosa, para
tomar nos ombros uma parte da cruz do ministério paroquial? Também isto pode
ser. O que se passava no abismo da sua consciência coisa era que ela não
revelava a ninguém; mas, em todo o caso, era um pensamento egoísta.
Todavia, é preciso confessar que
com ele se misturava um sentimento puro e nobre: dizia-o esse cuidado
pressuroso com que a Tia Jerônima trazia as botas de cor térrea, o bérnio de
saragoça, o capote de barregana, o chapeirão oleado e a aguardente de ginjas,
sem um copo da qual o prior não ousaria transpor o limiar da porta e investir
com as fúrias de noite procelosa: diziam-no a atenção com que mirava se ele ia
agasalhado e as mil vezes repetidas ponderações higiénicas que lhe fazia com
admirável volubilidade de língua. A afeição da santa velha mostrava-se em tudo
isso viva e sincera; e o seu resmonear, que no meio das idas e das voltas e do
perguntar e do responder, ia rareando e abatendo, como o assobio do furacão
pelo vale, perdia gradualmente a expressão de egoísmo e convertia-se pouco a
pouco na de um pensamento moral.
E o padre-prior calado! — Calado
enfiava as botas; envergava o gabinardo; cobria-se com o capote; punha o amplo
sombreiro; enchia um copinho do excelente cordial que a boa da ama lhe havia
posto diante; virava-o de um golpe; fazia uma visagem, fechando os olhos com
força e estendendo os beiços; dava um estalido com a língua no céu da boca;
exprimia o íntimo conforto que nele gerara o etéreo licor com um brrahhh prolongado; estendia a pequena
taça, cheia de novo, ao sacristão, que, mestre nos estilos da cortesia, se
curvava, formando com o corpo um ângulo obtuso de noventa e cinco graus,
desprezadas as frações, e arqueando o braço, para levar o copo à boca sequiosa,
como se curva e arqueia um peralvilho de guedelhas saint-simonianas e miolos de
água chilra, ao conduzir, em sala de baile, a deusa dos seus afetos de vinte e
quatro horas ao meio do turbilhão doido e (perdoe-se-nos a blasfêmia) um tanto
parvo das valsas e contradanças.
Depois, duas palavras mágicas
saíam da boca do reverendo pastor: «Até logo!» O seu efeito era instantâneo: o
sacristão, pegando numa lanterna, com as chaves da igreja na mão,
encaminhava-se para o adro, seguido do padre-prior; a Tia Jerônima fechava a
porta após eles; e o tentador, como se estivesse esperando por esse momento,
travava-lhe novamente do espírito, e o resmoninhar da impaciência recomeçava em
breve, acompanhado do ranger do linho na roca, e do. espirrar da candeia a
espaços, e do respiro asmático do nédio gato do presbitério, que, enroscado na
lareira, abria de vez em quando os olhos amortecidos e cerrava-os logo com
filosófica indiferença, enquanto a Tia Jerônima esperava pelo seu velho amo e
se lhe apertava o coração, sentindo o temporal que passava lá fora, e
lembrando-se de que o enfermo poderia ter guardado para hora mais decente e cômoda
a agonia do passamento.
E pela serra fora, caminho de
aldeia remoto, vai o velho prior: adiante o sacristão com a lanterna e a âmbula
da extrema-unção e ele atrás com o cibório. As poças de água refletem essa
débil claridade que as ilumina e fazem um contínuo plach, plach, debaixo dos
pés dos dois caminhantes, cujo passo apressam as cordas de chuva batida pelos
furacões do sudoeste. Os pinheiros, balouçando-se, gemem tristemente e os
enxurros, estrepitando pelos córregos, tiram com o pinhal uma toada soturna. No
céu profundamente negro não aparece uma estrela: na terra, ao longe, bem ao
longe, não se descortina uma luz. A natureza debate-se consigo mesma: tudo
dorme, entretanto, nos casais e na aldeia, salvo o velho pároco e a família
daquele que em trances mortais espera o representante de Cristo, que lhe traz
as derradeiras consolações e esperanças. Entre a filantropia humana e as
agonias extremas dos pequenos e humildes a noite e a tempestade ergueram
barreira quase insuperável: esta barreira desaparece, porém, diante da caridade
que a todos nos ensina o Evangelho e que ao pároco impõem, como dever imprescritível,
a sua missão sacerdotal e o seu caráter de pai dos pobres e afligidos.
A esta mesma hora, em que o velho
prior assim vagueava por sendas alpestres exposto às inclemências de noite
invernosa, talvez em aposento bem resguardado, no fim de ceia opípara, entre as
taças cheias de vinhos generosos, no meio de mulheres formosas e voluptuárias,
embriagado em todos os deleites dos sentidos, algum famoso espírito forte
cerzia remendos das páginas soporíferas de Holbach ou de Diderot e dissertava
profundamente sobre a mandriice, egoísmo e cobiça do clero, ou carpia a
superstição do povo, que, para ser completamente feliz, de nada mais precisa do
que abandonar as crenças do cristianismo e de amaldiçoar as esperanças de Deus,
o conforto único da sua vida de miséria, de trabalho e de amargura. E,
naturalmente, os neófitos daquela triste filosofia extasiavam-se em redor do
sábio filantropo, que, impando de iguarias delicadas, de vinhos custosos e de
grossa ciência, só lamentava a ignorância daqueles a quem muitas vezes faltava
então, falta hoje e faltará no futuro um bocado de pão negro para matar a fome;
extasiavam-se ali diante da sensualidade e bruteza de um insensato vanglorioso,
enquanto a virtude do velho clérigo, exercitada nos desvios dos montes e no silêncio
da noite, não tinha por testemunhas senão um céu úmido e cerrado e o vulto
impetuoso e bramidor da ventania, mas que, em vez das lisonjarias de parvos,
tinha para o aplaudir a voz sincera, consoladora e santa da própria
consciência.
Havia, porém, no fim de tudo, uma
diferença entre o homem do Evangelho e o da falsa ciência. Era o sistema das
compensações. O padre-prior, depois de cumprir com o seu dever, voltava ao
presbitério tranquilamente: tirava o capote alagado, despia o gabinardo felpudo
sacudia a uma distância razoável as ponderosas botas e: enfiando-se entre os
grosseiros lençóis, atava o fio do sono no ponto em que o deixara e, embalado
brandamente por sonhos aprazíveis, só acordava Sol nado e alto, ao bradar da
Tia Jerônima e ao cheiro da açorda fumegante almoço que, como tudo o que era
consagrado pelos séculos e pela tradição, ele profundamente respeitava.
E o nosso filósofo? O nosso
filósofo, recolhendo-se alta noite, ia todo o caminho provando a si mesmo que
não há Diabos no mundo, nem almas, nem, talvez, Deus; mas sentindo
arrepiarem-se-lhe os cabelos ao ver dançar a fosforescência de algum marnel,
rezando o credo em cruz ao passar por algum cemitério, benzendo-se ao ouvir
piar algum mocho. E depois de se deitar e adormecer sonhava... Em quê? Nas
combinações infinitas da matéria eterna de que deve, segundo as boas doutrinas,
ter rebentado o universo? Não! Sonhava com as pernas do Inferno e, ao acordar
pela manhã com defluxo, pedia confissão e sacramentos.
Já lá vão vinte anos! Bom tempo
era esse, ao menos para mim, que ainda não sabia da existência do animal
chamado filósofo, classificado entre os rodentia, pelo medroso e daninho. Em
vinte anos, que voltas tem dado o mundo! Aquela espécie vai-se acabando de
todo. Autores de comédias, apressai-vos!
Antes que se perca o tipo, levai
o incrédulo ostentoso à cena. Dai-nos algumas noites de rir doido e
inextinguível.
Os dias do padre-prior corriam
assim placidamente para o seu viver íntimo, posto que o duro mister de pároco
lhe entenebrecesse muitas vezes os horizontes da vida material. E que
importava, se todos na aldeia lhe queriam bem; se todos o acatavam, como a suma
bondade e, o que não era menos, como a suma inteligência da paróquia? Até o
barbeiro, o próprio barbeiro, homem grave e entendido em materiais de
eloquência sagrada, não constava houvesse jamais torcido o nariz às práticas e
aos sermões do padre-prior, que ele, com a mão sobre a consciência, punha acima
dos melhores de Fr. Timóteo, um fradalhão arrábido, coisa brava em gritarias ao
divino, que, por via de regra, se incumbia das domingas de quaresma naquela
freguesia e nas circunvizinhas, com aceitação e aplauso universal do auditório,
mas cuja fama era ofuscada pelos períodos singelos do velho sacerdote,
repassados de unção e daquela eloquência de missionário, que, apesar de rude,
lá vai fazer vibrar o coração do povo, afinado pela crença viva, como a
harmonia que se tira das cordas de dois instrumentos acordes.
Agora por isso, o que será feito
de, Fr. Timóteo?! Era naquele tempo um frade guapo e alentado! O que será feito
dele? Se ainda vive, tiraram-lhe o burel e a corda de esparto, o seu capital;
venderam-lhe o convento, o seu tonel de Diógenes; proibiram-lhe o capuz e as
sandálias, o seu direito inauferível de andar trajado como lhe aprouvesse; e
mandaram-no, desarmado de tudo isso, pedir para o mendigo a esmola que se dava
ao burel, ao esparto, ao convento, ao capuz e às sandálias. Bom passaporte para
Fr. Timóteo transitar pela vala plebeia do cemitério nos braços mórbidos e
suavíssimos da fome! Foi um progresso de civilização, que se completou, pelo
lado moral, com o aumento das lotarias, das casas de câmbio e das traduções de
novelas e dramas franceses. Bem-aventurada a tão esperta nação que assim
compreende o progresso!
Duas coisas, porém, mais que as
práticas e os sermões, serviam para engrandecer e glorificar o padre-prior, não
só diante dos homens, mas também diante de Deus. Era a primeira o incansável
zelo com que se aplicava a apaziguar as rixas, a estabelecer a concórdia
doméstica, a pregar o trabalho, a guerrear a embriaguez e, sobretudo, a
santificar pelo casamento as afeições ilícitas: era a segunda o fervor modesto
e o inocente luxo com que procurava celebrar as festas religiosas,
principalmente a de S. Pantaleão, orago da freguesia e de quem, tanto os
aldeões, como o velho presbítero, criam afincadamente possuir o metacarpo da
mão direita, o qual devia ser de outro santo ou não santo, se acreditarmos (eu
cá, pela minha parte, acredito) nos paroquianos da Sé do Porto, que se gabam de
ter debaixo de chave S. Pantaleão in
totum, sem lhe faltar dedo de pé, nem de mão, quanto mais um metacarpo
inteiro.
III
UMA ESCORREGADELA
A propósito do que o padre-prior
era de casamenteiro, ainda me lembra uma velha viúva, a Sr. Perpétua Rosa (Deus
lhe fale na alma!), que morava ao cabo do lugar, numa barraquinha à beira do
rio, muito caiada, com o seu rodapé de vermelhão, e sombreada por cinco ou seis
choupos que nasciam da borda da água. Tinha ela (a velha, não a barraquinha)
uma filha, formosa rapariga, chamada Bernardina. Era uma das leiteiras mais
desenxovalhadas de que se gabavam os arredores de Lisboa: bonita, que não havia
mais dizer: alva como toalha de freira: airosa como pinheirinho de quatro anos.
Uns poucos de rapazes da aldeia andavam doidos por ela. Nas noites dos
domingos, em que havia dança e viola na, casa da brincadeira , a Tia Jerônima,
que era capaz de espreitar este mundo e o outro, mirando da sua rótula o que se
passava à entrada da rústica sala do baile, pouco distante do presbitério,
notava que, apenas a Bernardina aparecia, os rapazes entravam após ela, com
muito mais fúria e pressa do que pela manhã tinham corrido para a igreja, ao
último toque da missa do dia. Antes disso, já a boa da velha tinha reparado no
modo como eles se encostavam aos cajados para lados opostos, em frente uns dos
outros, nos motejos do cantar ao desafio, no por dos barretes à banda, nos
olhares que mutuamente se lançavam, no pegarem em seixos e atirarem-nos a
grande distância, a modo de competência, sem dizerem palavra, como se cada um
quisesse mostrar aos seus rivais a robustez do próprio braço. Disto tudo tirava
a Tia Jerônima agoiro de muita pancadaria — «por amor daquela delambida —,
dizia a ama do prior nas suas caridosas murmurações — que anda toda arrebicada
por balharotas, enquanto a pobre mãe moureja todo o santo dia, ao sol e à neve,
naquele rio, para ganhar um bocado de pão, sem vergonha da cara. Havia de ser
comigo!»
E o mais é que a Tia Jerônima não
se enganava nas suas previsões. Chegou véspera de Reis: houve à noite
brincadeira ou baile extraordinário: passou-se aí tudo na melhor ordem: riu-se,
tocou-se viola, dançou-se, cantou-se ao desafio e cada qual se recolheu a
esperar entre os lençóis os santos Reis Magnos, designação popular dos Magos do
Oriente, cuja vinda a Belém se memora na Epifania.
Houve, porém, nessa noite um
saloio mais cortês, que esperou vestido e ao relento, no caminho da serra, a
vinda dos três santos personagens. Foi o Manuel da Ventosa, estendido com uma
tremebunda e magnífica massada, de que esteve ido, a ponto de dar ao
padre-prior uma daquelas noitadas que suscitavam a cólera da Tia Jerônima e de
que já acima fiz honrosa e específica menção.
O Manuel da Ventosa era filho
único de um moleiro ricaço, chamado Bartolomeu, velho honrado, mas avarento
como seiscentos Santanases. Teve a ventura (o rapaz entende-se) de cair em
graça à Bernardina. Amoricos daqui, amoricos dacolá; janela na cara a um,
respostas tortas a outros; segredar e rir de vizinhos, raivas de desprezados:
soma total — zás, uma sova mestra no Manuel da Ventosa, por ter tido a
negregada dita de merecer a preferência daquela que era o enlevo de todos os
corações.
Mas enganaram-se. O amor redobrou
com o sacrifício; os desprezos cresceram com a sede de vingança. O que começara
por passatempo converteu-se em paixão violenta: um fogo íntimo devorava a alma
de Bernardina e desbotava-lhe as faces dantes tão frescas e rosadas como de um
serafim da peanha da Senhora da Conceição, obra de escultor insigne. No Manuel
da Ventosa, isso não falemos: quando melhorou da doença, andava entre parvo e
abstrato: atribuía-o o licenciado dos sítios a depressão cerebral produzida por
alguma ripada nas vértebras; mas, se existia depressão de cérebro, outra era a
sua origem. Certa mulher de virtude que havia na aldeia jurava e tresjurava que
o moço moleiro tinha a espinhela caída. Histórias. Eu, apesar de ser então uma
criança, sabia bem onde batia o ponto; por isso nunca fui para aí.
Por encurtar razões: os dois
amavam-se como loucos. As pessoas desinteressadas achavam-nos um par completo;
e com bom fundamento: o Manuel da Ventosa era um galhardo mancebo, único
herdeiro de ginja abastado, e Bernardina uma rapariga honesta. As beatas da
aldeia, às quais, conforme a direito, incumbia pôr ao soalheiro a vida privada
de cada uma, no capítulo de honra nunca se tinham atrevido a ir devassar a
barraquinha de Perpétua Rosa. Podia a Sra. Perpétua Rosa gabar-se, dessa! E, de
feito, muitas vezes, metida no rio até aos joelhos, em discussões acaloradas
com as suas ilustres amigas, as outras lavadeiras pelo círculo de Lisboa,
ouvi-a emprazá-las para que formulassem precisamente, certas interpelações
infundadas, rejeitando com desprezo alguns remoques bernardos relativos a
Bernardina e apelando para a opinião do País, representada pelos seus órgãos,
as beatas do soalheiro.
Mas, se os dois se amavam com
tanto extremo e eram feitos e talhados para puxarem o mesmo carro matrimonial,
porque não iam pedir ao padre-prior o conjugo vos? Aí é que certo animal torcia
certa parte do corpo que eu e o leitor sabemos. Por não terem pedido
esclarecimentos sobre o fato é que as lavadeiras faziam declarações vagas.
Eis o caso: o Bartolomeu da
Ventosa era rico e avaro; mas bestialmente avaro: Perpétua Rosa, pobre,
pobríssima. Por mal de pecados, fora ela antigamente lavadeira do casal do
moinho, ou antes dos moinhos, porque, para a exação histórica, deve advertir-se
que o moleiro possuía dois. Uma vez que levara grande porção de roupa tinha
perdido três sacas velhas e rotas. Bartolomeu, quando tal soube, quis morrer.
«Juro por esta», dizia ele, esbravejando e beijando os dois dedos índices
cruzados sobre a boca, «juro que Perpétua Rosa me há de pagar as minhas três
sacas novas em folha, que me perdeu, a desalmada!» Mas nem novas, nem velhas;
porque a verdade era que ela não tinha com que as pagasse. Forçado foi,
portanto, ao moleiro fartar a vingança com ordenar-lhe que não lhe tornasse a
rapar os pés à porta. Desde esse fatal dia, nunca mais Bartolomeu da Ventosa
pôde encarar com a lavadeira: o seu ódio vivia envolto e aquecido na imagem das
três sacas gravadas naquele coração de avarento. Assim, para ele seria coisa
monstruosa e abominável só o imaginar a possibilidade do seu filho Manuel casar
com Bernardina, a quem a pobreza fora de sobra para impedimento dirimente,
quanto o mais ser filha de semelhante mãe. Tal era a dificuldade insuperável
que se opunha à união dos dois amantes.
E os meses iam passando e as
murmurações crescendo e saltando já das lavadeiras para as beatas. Tinham visto
mais de uma vez (dizia-se: valha a verdade) o moço moleiro rondando a desoras a
barraquinha da beira do rio. Havia também quem dissesse que, nas madrugadas de
alguns domingos, quando a Sra. Perpétua Rosa saía para a missa das almas, se
enxergava ao lusco-fusco um vulto que, cosendo-se com os choupos, se aproximava
da porta de Bernardina e... e et
etecetera. Era muito ver! Mas a coisa ia correndo e, no fim de contas, quem
ganhava com essas histórias eram as línguas dos maldizentes, que se refocilavam
na palangana da murmuração, e o Diabo, que se lambia para, por estas e por
outras, os catrafilar ao seu tempo.
Veio a Quaresma: santa quadra;
mas que, por isso mesmo, e, às vezes, boa de mais. Desobriga vai, desobriga
vem, sabe-se muita coisa. O padre-prior andava já com a pedra no sapato; porque
ele não era cego, nem mouco. O meu dito, meu feito. Certo dia (por sinal que
era uma sexta-feira), quando o sacristão veio abrir a porta da igreja, estavam
já no adro, à espera, Perpétua Rosa e Bernardina para se confessarem. Não
tardou o prior. Avisou-se a mãe: ajoelhou a filha:. persignou-se, benzeu-se,
disse mea culpa e começou a sua confissão.
Se isto fosse uma história de
polpa, cortesã e culta, viria neste ponto o casus foederis de eu tomar a
postura trágica a Ia moda, carregando as sobrancelhas e dizendo em tom soturno
e lento: «O que aí se passou entre o venerável ancião e a donzela ninguém o
soube!-!-!-! Mistério!-!-!-! Acontecimento terrível e fatal!-!-! As lágrimas
ardentes do velho caíram sobre a cabeça da infeliz ajoelhada aos seus pés, cujo
futuro (não o dos pés, mas o da infeliz) era de maldição!-!-!-!» Limitada,
porém, a minha narrativa à chá e plebeia recordação de um pobre pároco de
aldeia, refletirei, em suma, que me não é lícito revelar o segredo do
confessionário. Os sigilistas já deram que fazer ao marquês de Pombal, cuja
consciência, como todos sabem, era delicadíssima em matérias de ortodoxia
católica e em tudo. Calo-me porque não quero cair no erro que ele condenou.
Direi só que foi muito demorada a confissão de Bernardina e que, ao
alevantar-se de ante os pés do prior, ela trazia os olhos como punhos: e
digo-o, porque o viram os circunstantes, a saber, o sacristão e a Sra. Perpétua
Rosa, que devotamente ia descabeçando a penitência enquanto a filha se
desobrigava.
Ao sol-posto desse mesmo dia, o
prior espairecia a vista pela veiga coberta de verdura, assentado no cruzeiro,
segundo o seu costume. A brisa da tarde era fria e aguda, porque a Primavera
começava apenas; mas o velho pároco parecia não a sentir, embebido em
pensamentos; e, tão fundas iam estas que, em vez de traçar na terra com a
bengala as usuais figuras geométricas ou anti-geométricas, conservava-a Imóvel
e perpendicular, com as mãos cruzadas sobre o castão, firmando a barba em cima.
Conhecia-se no olhar e no mexer trêmulo dos beiços que algum grande cuidado o
inquietava. E tanto assim que nem reparou nos três sinais das ave-marias,
deixando-se ficar assentado e, até, oh profanação!, com o chapéu na cabeça.
Felizmente não passava ninguém naquele momento que pudesse notar a involuntária
irreverência do distraído pastor.
Mas um vulto assomou ao longe e
os olhos do velho brilharam, como animados por vida nova. Quem quer que era, descia
do monte e vinha para a banda do rio. O caminho passava perto do adro: o prior
ergueu-se, estendendo a mão e brandindo a bengala na direção do vulto.
«Ó Manuel! psio, Manuel! chega à
fala! Ó rapaz!»
O filho do moleiro (porque era
ele) hesitou um pouco. Alguma coisa lhe roía na consciência. Mas, vendo o prior
em pé, com ar de quem estava resolvido a ir atravessar-se-lhe diante, cortou
para ele, com o barrete azul e vermelho na mão.
«Boas-tardes, padre-prior: quer
alguma coisa?»
«Quero que você chegue aqui,
porque temos de falar.»
O tom com que estas palavras
foram proferidas e, mais que tudo, aquele você fizeram estremecer o Manuel da
Ventosa. O prior tratava todos por tu e o você na boca dele era presságio
infalível de temporal.
O rapaz parou diante do velho,
com os olhos cravados no chão, torcendo e destorcendo a orla do barrete que
tinha entre as mãos. O padre-prior mediu-o de alto a baixo e começou ex
abrupto:
«Então que histórias são estas da
Bernardina, sô velhaco da conta benta? Sabe o que fez, grandessíssimo tratante?
Aonde foi você aprender isso? (Esta pergunta era asnática.) E a doutrina que eu
lhe ensinei em pequeno? De que têm servido os exemplos de modéstia e honra que
lhe dá seu pai? De ser um vadio, um sedutor, um... Deixe estar: a cadeia não se
fez para as aranhas e el-rei nosso senhor (o bom do pároco puxava em política
para a escola histórica) ainda não mandou queimar a nau de viagem... »
«Eu padre-prior... como lhe ia
dizendo», interrompeu atarantado o saloio, coçando na cabeça e procurando atar
o fio das suas ideias inteiramente confundidas.
«Cale-se; não me responda»,
prosseguiu o velho pároco, achando, talvez, pouco fazer cinco perguntas para
ouvir uma resposta. «Diga-me: que tenções eram as suas enganando uma rapariga
honesta?»
«Eu...»
«Não me replique; já lho disse.
Lembre-se que é o seu pastor que lhe fala. Aí está porque você ainda não o veio
desobrigar-se; pensava que, por ela ser miserável e a sua mãe uma triste viúva,
não tinham ninguém neste mundo? Enganou-se. Têm-me a mim. Saiba que, a poder
que eu possa, há de ir bater com o costado na Índia ou casar com a Bernardina.»
Aqui, o pobre rapaz atirou-se de
joelhos a chorar aos pés do velho e exclamou, soluçando:
«E é isso o que eu quero!...
Juro-o por aquela árvore da bela cruz que ali está...»
«Vera cruz, salvage! vera cruz!»,
interrompeu o prior, visivelmente abrandado com o pranto, humilde e declaração
categórica do moço moleiro.
«Mas como eu ia dizendo»,
prosseguiu este, «por mor daquela diabrura das sacas, meu pai não pode tragar a
Sra. Perpétua Rosa. Se lhe falasse em tal, fazia-me os ossos tão miúdos como a
picadura da mó. Se a Bernardiria tivesse dote, ainda, talvez ele consentisse...
Mas sem isto; bem lhe sabe o gênio. Se o padre-prior pudesse adivinhar o que me
tenho ralado, havia de ter dó de mim.
Não como, não durmo, ando doido!
Não basta a maçada que gramei... Há! há! há!»
Chorava em berreiro, e o choro
não o deixava continuar. As lágrimas começaram também a bailar nos olhos do
prior, que ficou por alguns momentos, pensativo.
«Levanta-te, rapaz dos meus
pecados», disse ele por fim, puxando pelo braço do moleiro.
«Vamos; confessa a verdade; estás
arrependido do que fizeste?»
«Estou, sim, senhor! Há! há!»
Nesta parte, apesar do choro e
dos soluços, parece-me que o saloio mentia.
«Prometes, casar com Bernardina,
se o teu pai consentir?»
«Prometo, sim, senhor! Há!»
«Ora, pois, sossega e não chores.
Deixa o caso pela minha conta. Volte para casa e não me torne a rondar pela
beira do rio. Entende? Olhe que!...»
O prior estendeu a bengala para o
lado dos moinhos, que assobiavam lá no alto, e Manuel da Ventosa voltou
cabisbaixo e a passos lentos pelo caminho por onde viera. Sentia confusamente
que se aproximava a crise mais temerosa da sua vida.
Então o padre-prior assentou-se
outra vez no poial do cruzeiro e recaiu em profunda meditação. Depois de um bom
quarto de hora pôs-se em pé e encaminhou-se para o presbitério. Tinha
anoitecido. De memória de homens, nunca ceara tão tarde!
E, andando, o velho sacerdote
repetia aquelas palavras do livro de Jó, onde, entre parênteses, há mais
filosofia que num aduar inteiro de filósofos:
Nudus egressus sum de utero matris meae, et nudus revertar illuc.
O porque o dizia, bem o sabia
ele! Ceou sem dar palavra: rezou o breviário:
deitou-se, e apagou o candeeiro.
Contra o costume, Fr. Bernardo de Brito e Fr. Diogo do Rosário ficaram aquele
serão na estante. A ama sentiu-o assoar-se, tomar tabaco e escarrar até muito
tarde. Coisa rara! Sinal evidente de que tinha negócio de vulto, que lhe
embargava o dormir!
Pior foi pela manhã. Apenas luziu
o buraco, o padre-prior saltou da cama; calçou os sapatos engraxados; vestiu a
loba nova; pediu o chapéu de três ventos, a bengala de castão de prata e os
óculos fixos, que só punha em dias de missa cantada, e disse à ama que se
aviasse com o almoço, porque tinha de sair cedo.
Enquanto a Tia Jerônima, para
maior brevidade, fazia umas papas de milho, o prior abriu um contador enorme,
destes que os nossos grandes amigos ingleses nos vão agora levando em lugar de
vinho do Porto, tirou para fora uma
folha de papel almaço e bradou:
« Jerônima!, Ó Jerônima!»
A velha chegou ao corredor da
cozinha, com o abano na mão.
«Estão quase feitas», disse ela.
«Tenha paciência um instantinho.»
«Não é isso, mulher», replicou o
prior. «Ouve cá: vai ao forro (Ia escada e traz-me aquilo.»
«Isso, eu lá ponho. Mas, com a
sua licença, de onde veio maquia grossa? Ontem não houve batizado nem
enterro... »
E a Tia Jerônima estendia a mão
esquerda, coberta coma ponta do avental, para não sujar a maquia de que falava,
e, ao mesmo tempo, volvia olhos ávidos, ora para o bufete, ora para o prior.
«Qual carapuça!», replicou ele,
fazendo-se vermelho. «Tira-se; não se põe. Faça o que lhe digo e dê ao Demo o
que sabe.»
A ama empalideceu. As palavras
tira-se; não se põe eram de ruim agoiro; mas vendo já o padre-prior azedo,
calou-se e obedeceu.
«Dali a pouco», o velho pároco
começava a tirar de um pé-de-meia uma, duas, três peças de ouro; foi tirando
até setenta; restavam apenas obra de uma dúzia delas.
«Basta», rosnou o prior. «Pode
ocorrer uma doença. Então, Jerônima, vêm essas papas?!»
E, dizendo isto, embrulhava muito
bem as setenta peças na folha de papel que tinha sobre o bufete e metia-as na
algibeira da loba.
«Guarde isso, Jerônima », disse
ele à ama, que entrava com as papas. E empurrou pela mesa fora o exangue
pé-de-meia. A ama, ao ver aquela horrorosa sangria, esteve a ponto de largar a
frigideira no chão e de deixar o bom do padre sem almoço.
Quando voltou para a cozinha,
ouviu-a o prior soluçar.
«Nudus egressus sum de utero matris meae, et nudus revertar illuc.»
Murmurando esta profunda sentença
da Bíblia, o reverendo pároco saiu pela porta fora. A ama, vendo-o sair, andava
como pasmada.
Nestas idas e voltas havia
nascido o Sol. O Bartolomeu da Ventosa, afanado com a sua lida, em pé à porta
de um dos moinhos, bracejava, ralhava, praguejava como possesso. Os brutos dos
moços tinham-lhe quebrado já duas cordas ao enquerir as cargas de uma récua de
machos pimpões presa à argola do moinho.
De repente viu um castão de
bengala sair-lhe por cima do ombro. Voltou-se: era o prior.
«Olé, vossa senhoria por aqui a
estas horas?!... Psio, o Zé Dorna, olha o rabicho daquele macho!... Grande
novidade, padre-prior! grande novidade!... Raios te partam! Que tal está o
filho do Diabo?!»
Estas duas últimas jaculatórias
eram acompanhadas de dois reverendíssimos pontapés na barriga de uma das
carruagens, que já estava carregada e que parecia achar mais prudente deitar-se
enquanto as outras se aviavam.
O moleiro dava assim a modo de
umas lembranças de Napoleão ditando ao mesmo tempo a dois secretários.
«Falaste, Bartolomeu!», replicou
o prior. «Novidade e grande! Há quarenta anos que sou pároco desta freguesia e
é a primeira vez que tal me sucede. É negócio intrincado e quero ouvir o teu
conselho, porque tens caixa para as coisas. Rapazes», acrescentou, dirigindo-se
aos moços do moinho, «safa daqui, que tenho que dizer ao patrão em particular.»
«Rua!», gritou o moleiro,
correndo com força ambas as mãos pelo colete e pelos calções, donde saiu um
nevoeiro de farinha. «Entre vossenhoria.»
O prior entrou e foi assentar-se
numa tripeça que estava a um canto. Bartolomeu assentou-se sobre um saco de
trigo, em frente dele. Os dois velhos mediram-se com os olhos por momentos,
como se cada um deles tentasse ler no rosto do outro os pensamentos que lhe
vagavam tia alma. A primeira ideia que ocorreu ao moleiro foi a de alguma festa
que o pároco pretendia fazer e para que lhe vinha pedir dinheiro. Batia-lhe o
coração com violência e já imaginava trinta mentiras para evitar essa
calamidade.
«Homem», disse por fim o prior,
«tenho na minha mão uma soma avultada; mais de quinhentos mil réis (o moleiro
estendeu o pescoço): pertencem a um devoto, que os quer dar em dote a uma
rapariga pobre desta freguesia. Encarreguei-me do negócio e deitei as minhas
linhas para dar no vinte; mas temo não acertar e venho bater contigo. És
honrado, meu Bartolomeu, posto que um tanto sovina: falo-te com o coração nas
mãos, e... »
«Isso é o que dizem por aí essas
línguas perversas», interrompeu o moleiro, fazendo-se vermelho de cólera;
«essas mandrionas do soalheiro, porque não lhes meto no bandulho o meu remédio.
Os diabos me levem... »
«Tá, tá!», acudiu o prior.
«Ajustaremos contas na desobriga. Vamos agora ao que serve. Sem refolhos: a
quem te parece que dêmos este dote? Parafusa lá.»
O moleiro pôs-se a pensar,
alevantando os olhos para o teto, estendendo e revirando a mandíbula inferior e
batendo de vez em quando na testa.
«Nada... a Genoveva da Teresa
não», disse por fim... «Tal mãe, tal filha. Aquela está arrumada.»
«Nem pensar nisso é bom»,
retrucou o prior. «Libera nos Domine. Anda, vê se atinas.»
«A Clara da Fonte também não»...
«Hum!», rosnou o clérigo,
abanando a cabeça.
«A Catarina Carriça menos. Hem?»
«Tó carapuça! Aí vai já!
Fundia-me o dote em menos de um ano com tafularias tolas. Adiante.»
O leitor pode prever que o
Bartolomeu da Ventosa e o seu pároco estavam no caso de duas linhas paralelas,
que, prolongando-se indefinidamente, nunca podem encontrar-se: o pensamento do
prior dirigia-se a Bernardina, e o moleiro já tinha afastado por três vezes do
espírito essa lembrança, como ideia importuna.
«Eu», disse ele finalmente,
coçando na cabeça, «tinha cá uma ideia... mas não sei... Não digo nada...
Acabou-se.»
Desembucha lá, homem! Foi para te
ouvir que vim aqui.»
«Então sempre lho direi. A minha
sobrinha Joana é um anjo. Boa rapariga! Famosa rapariga! Meu irmão Barnabé não
pede esmola, é verdade; mas anda atrapalhadote. O Casal dos Caniços arrastou-o
este ano: deve-me já vinte moedas, e...»
O prior cortou-lhe o entusiasmo
pelos seus parentes com uma gargalhada estrondosa. O moleiro ficou de boca
aberta no meio daquele destampatório.
«Oh, oh, oh!, querias que o meu
dote servisse para pagar as tuas vinte moedas!? Não é assim?» E, voltando
imediatamente ao seu sério, prosseguiu: «Bartolomeu! Bartolomeu! Por causa da
iniquidade da sua avareza me irei e a feri: diz o profeta. A cobiça que te cega
há de baldear-te no Inferno, como tu baldeias para a ribanceira as mós que já
não prestam. Queres mentir à tua consciência enganar o teu pastor, quando ele
te vem pedir que o aconselhes? Isto não é bonito, Bartolomeu! Não é bonito!»
«Mas, padre-prior... »
«Qual mas, nem meio mas!
Deixemo-nos de histórias. Bem diz o ditado: 'Fui a casa da vizinha,
envergonhei-me; vim à minha, remediei-me'. O melhor é seguir a primeira
lembrança.»
«Então, se vossenhoria já tinha
posto o dedo... »
«Tinha, tinha!», retrucou o
prior. «Queria só ver se tu concordavas comigo: mas sacas-te com uma
esquisitice de fazer arrepiar. Não temos feito nada, meu Bartolomeu: não temos
feito nada!»
E, dizendo e fazendo, o clérigo
erguia-se, como para sair.
«Pois, diga vossenhoria», acudiu
o moleiro, ainda atrapalhado com o revertere, «e enforcado morra eu se... »
«Não praguejes, homem! Aí vai!
Quem há de apanhar o dote é a Bernardina de ao pé do rio... »
A história das sacas era espinha
que ainda lhe estava atravessada na garganta: ouvindo tal nome, o velho não
pôde conter-se:
«Quem? A cara de fuinha da filha
da Perpétua Rosa? O padre-prior está brincando. Olha as lesmas! Umas
desmazeladas e caloteiras! Isso, nas unhas da mãe, era fogo viste, linguiça.
Terçãs me matem...»
«Espera, homem, espera! Não é
isso o que se diz na aldeia. Tu tens osga às pobres mulheres e cega-te a
paixão. Desmazeladas?! Basta olhar para elas; como andam limpas na sua miséria.
Caloteiras? Coitadinhas! É porque não têm com que pagar ao Agostinho da tenda?
Pagar-lhe-ão agora. Quinhentos mil réis ainda ficam livres e Bernardina há de
com eles achar um bom casamento.»
Enquanto o prior falava, uma
ideia bem-aventurada iluminara subitamente a alma do moleiro. As três sacas
podiam não estar perdidas de todo; podiam voltar melhoradas ao moinho. Sentiu a
cólera desvanecer-se-lhe, como a nuvem negra que varre a brisa do norte.
«É verdade que a gente, às vezes,
tem cá as suas birras», disse ele, com certo ar que queria ser fino e saía
parvo. «Cega-se com as pessoas! Vossenhoria bem sabe o que faz: dê o dote a
quem quiser, que diante de mim ninguém há de tugir nem mugir contra
vossenhoria.»
«Pois bem!», prosseguiu o prior,
«esta lebre está corrida. Resta achar um noivo para Bernardina. Isso é
bico-de-obra que requer escolha e siso. Pensa no caso, Bartolomeu! Vamos a ver
se acertas melhor desta vez. Agora outra coisa. Tu és capaz: tens sabido
guardar o teu dinheiro; saberás guardar o alheio. Eu para isso não presto: sou
um mãos-rotas. Aqui te deixo setenta louras, que ao seu tempo se hão de
entregar a. quem tocarem, incumbes-te disto?»
«Vossenhoria manda», respondeu o
moleiro, cujos olhos brilharam com o fulgor devorante da avareza, ao ver rolar
as peças, que o prior tivera a cautela de desembrulhar sobre a grande arca das
maquias. O velho pároco usava de uma esperteza de Satanás para fazer uma obra
de Deus.
E, despedindo-se de Bartolomeu,
saiu. O moleiro ficou de pé e imóvel. Estava, mal comparado, como o asno de
Buridan entre as duas medidas iguais de cevada: nem se podia afastar do ouro,
nem ousava faltar à cortesia devida ao padre-prior. Afinal, por um movimento
sublime de energia moral, correu pela porta fora atrás dele, que já ia a certa
distância. Neste correr, parecia-lhe sentir estalar o que quer que era dentro
do coração.
«Se vossenhoria é servido do
nosso almoço», bradava o moleiro, «não tarda aí um credo. Pobre, mas de boa
mente.»
«Obrigado! obrigado!», respondeu
o prior, sem se voltar, brandindo para trás a bengala, como quem dizia adeus. E
pensava lá consigo: «Fora, miserável sovina!»
Apenas o bom do clérigo dobra —
rã a quina do muro de uma quinta que se dilatava desde a encosta até à baixa do
rio, truz!... Com quem havia de dar de rosto? Com o Manuel da Ventosa, de
espingarda ao ombro, rede às tostas, chumbeira e polvorinho a tiracolo. O
saloio ficou embaçado.
«Com que, sim senhor! já você por
aqui me aparece a estas horas», disse o prior com um gesto folgado, que forcejava
por ser colérico. «Hem?»
«É verdade, padre-prior!...
Entreter um bocado. A manhã estava boa.»
«Pois não! Aos pardais... bem
sei! Ora corte-me para casa e vá ajudar seu pai, o pobre velho, que lá anda
lidando... e você feito caçador das dúzias... Caçador! Pensava agora o sonso
que me enganava! Vamos marchando!»
Deu alguns passos para diante,
enquanto o Manuel da Ventosa fazia o mesmo em sentido contrário. Depois
voltou-se de repente. O saloio também parara a olhar para trás.
«Olé. Escuta cá, Manuel!» O
Manuel aproximou-se.
«Depois de amanhã é necessário
que você se bote aos pés do seu pai, que lhe conte a boa obra que fez e que lhe
peça licença para casar com Bernardina...»
«Pelo amor de Deus,
padre-prior!», interrompeu o triste do rapaz, cheio de susto. «Com os fígados
dele, põe-me os ossos num feixe.»
«Não se perdia nada», acudiu o
velho. «Mas não é ano de fortuna. Era melhor que se tivesse lembrado a horas.
Faça o que lhe digo, que não lhe há de suceder mal nenhum! Vamos.»
«Se vossenhoria entende?!»
«Entendo, sim, senhor. A Páscoa
não tarda; e passada a Quaresma você há de receber-se. Mas disto nem palavra! E
corte!»
O tom com que o pároco proferiu
estas palavras deu uma alma nova ao Manuel da Ventosa. Imaginou logo que o
padre-prior tinha aplanado o negócio. Não sabia se risse ou se chorasse.
Instintamente, agarrou a mão do clérigo e beijou-a. A sua gratidão era sincera.
O padre-prior sentia palpitar esse vivo sentimento naquelas mãos calosas, que
apertavam a sua mão enrugada, naqueles lábios ardentes, que pareciam devorá-la,
Conheceu que estava arriscado a deslizar da habitual severidade e, afastando-se
rapidamente, bradou com voz áspera, mas alguma coisa trêmula: «Deixa-me,
pateta! Deixa-me!... e Deus te ilumine, para que seja esta a última das tuas
rapaziadas.»
Fez bem em alongar-se: duas
lágrimas lhe rolaram pelas faces abaixo.
Naquele dia a Tia Jerônima chegou
a desconfiar de que o padre-prior tinha a bola desarranjada. Toda a manhã não
fez senão cantarolar, ora um pedaço do Tantum ergo, logo um versículo do Te
Deum Laudamus, e assim por diante. Até andou, por mais de meia hora, a brincar
com o gato do presbitério. E, para resumir em poucas palavras a extravagância
de que parecia possuído, basta dizer que, ao descalçar-se, arrumou os sapatos
para um canto e, depois de ter lido um capítulo da crônica de Cister, pela
primeira vez da sua vida meteu na estante essa espécie de Carlos Magno
monástico, sem o pôr de pernas ao ar. Aquele coração sentia dilatar-se na santa
paz do Senhor.
E porque não cabia o bom do padre
na pele? Porque tinha feito felizes duas criaturinhas, sacrificando-lhes as
suas economias de quarenta anos. Achava isso coisa naturalíssima; mas a
Providência dava-lhe parte da sua recompensa nessa alegria suave e íntima, que
mal pode entrar rios palácios dos grandes e poderosos do mundo; porque é o prêmio,
não do benefício insolente da opulência mas sim da abnegação caridosa da
humanidade.
O padre-prior tinha tido tempo de
estudar, individualmente o caráter dos seus fregueses, e por isso seguira
aquele caminho para chegar ao fim moral que se propusera. De feito, o velho
moleiro andou abstrato todo o dia e de noite? Não pregou olho! As escuras, via
diante os olhos as setenta peças a reluzirem, como visão ao mesmo tempo celeste
e infernal. Depois, naquelas longas horas de vigília, punha-se a calcular a
ação prodigiosa que elas teriam, incorporadas com mais de outras tantas que
tinha enterradas. Era o que bastava para dar o harmonioso epíteto da minha à
azenha do Inácio Codeço, e por lá o seu Manuel a labutar e a ganhar dinheiro,
muito dinheiro, e ele a tomar-lhe contas ao sábado: meia moeda... uma moeda...
duas moedas, e a pilhá-lo num a gaziva de seis vinténs; e despertava daquela
espécie de êxtase, ao atirar-lhe o primeiro pontapé. Era um regalo! Ria, às
vezes, ao lembrar-se de uma que ele havia de pregar no outro dia ao Agostinho
da tenda. Essa estava segura. Ia-lhe comprar o creto de Perpétua Rosa, por
metade, por um terço, talvez. «O sô Agostinho, você não vê que isso é dinheiro
perdido? Cinco mil réis! Seis mil réis! Vamos; é minha a dívida.» E tripudiava
na cama, e assentava-se, lançando mão dos calções, para ir, para correr, para
voar, antes que algum diabo (pensava ele) fosse meter no bico ao usurário do
tendeiro a mudança de fortuna de Bernardina. Chegava, naquele fervor, a enfiar
os calções; mas recaía na cama, ao ver ou, antes, ao não ver, que era escuro
como breu. Momentos havia em que as suas ideias tomavam outro curso:
representava-se-lhe seu irmão Barnabé a largar-lhe o Casal dos Caniços pelas
vinte moedas e por mais umas trinta peças, com que o engodava; e ele a fazer
estercar as terras e alqueivar e lavrar e semear e mondar e ceifar, e a ter na
eira uma serra de trigo durázio, e a achar uma excomungada de uma velha
pedinchona a furtar-lhe à sorrelfa uma abada daquele grande trigo e ele a
desancá-la com uma tranca. E saía desse pesadelo de homem acordado a ranger os
dentes e com a mão agarrada à maçaneta do catre. Daí a pouco vinha-lhe a outra
enfiada de imaginações, e daí outra, e outra, até que, por fim, a ideia de que
as setenta peças eram suas lhe ficava de tal modo encravada e enraizada na
alma, que o arrancar-lha de lá seria o mesmo que meter-lhe no bucho uma
apoplexia. Então punha-se a pensar no pensamento capital e gerador de todas
essas imagens bem-aventuradas que lhe luziam no olho, e como chamaria à mochila
as setenta do dote. Abafá-las? Negá-las ao prior? Estremeceu horrorizado;
porque Bartolomeu era homem de probidade, ao seu modo, que, sem malícia seja
dito, vinha a ser um modo, como o de tantos homens honrados que todos nós
conhecemos. Nada! Era preciso um meio natural, decente, legítimo de arranjar o
negócio. Caiu então no que o prior queria que ele caísse. Casou in mente o seu
Manuel com a Bernardina. Feito isto, as peças eram suas; suas, porque o Manuel
pelava-se com medo dele e, casado ou solteiro, havia de ficar-lhe sempre
debaixo dos cabeções. Assentado este ponto, o moleiro sentia certo refrigério
interior que o consolava. Não tardou a adormecer no sono do justo e, em
plácidos sonhos, balouçou-se todo o resto da noite entre a azenha do Inácio
Codeço e o casal do seu irmão Barnabé. Saía às vezes desta hesitação benéfica,
sonhando no gatázio que ia pregar ao Agostinho, e ria com um rir de inocência.
Era um santo velho aquele Bartolomeu da Ventosa!
O leitor deve estar já
suficientemente aborrecido de tão comprida história do moleiro, da lavadeira e
do prior; por isso não o farei assistir às explicações entre o pai e o filho.
Mais repousado o sangue com o dormir, Bartolomeu refletiu pela manhã que o
propor ao pároco o seu Manuel para noivo de Bernardina tinha as suas parecenças
com o haver-lhe proposto para ser dotada sua sobrinha Joana, ideia maldita que
lhe tinha custado uma risada nas suas barbas e um revertere com texto da
Bíblia. Por outra parte, pensava que Manuel era o seu único herdeiro e que, se
Bernardina trazia para a ceia, ele levaria para o jantar, princípio consagrado
pela filosofia saloia talvez desde o tempo dos Mouros. Enfim, o pai nestes
vaivéns e o filho com os receios que o leitor pode imaginar fizeram ao
declararem-se, uma verdadeira cena de comédia. Ao cabo, porém, de tudo
entenderam-se. Assim, o padre-prior, à custa das suas economias de quarenta
anos, teve a consolação de fazer três sermões, um a Bartolomeu, sobre a cobiça
e a avareza; outro a Manuel, sobre o trabalho, sobriedade e mais virtudes
anexas à condição de ai de família; outro, finalmente, a Bernardina, sobre a
honestidade, modéstia e sujeição das mulheres casadas. Depois, quando veio a
Páscoa, regalou-se de atar o laço matrimonial entre os dois amantes, acabando
por uma vez com as interpelações das lavadeiras, com as espreitadoras dos
curiosos e com as murmurações do beatério. Custou-lhe a brincadeira setenta
peças e o atirar à rua com o sermão sobre a avareza; porque o Bartolomeu
continuou a ser sovina até à hora da morte, na qual piamente se deve crer o
catrafilou o Diabo, não só por ser unhas de fome, mas por ter refinado a ponto
que, perdendo a vergonha, já começava a sisar nas maquias, com escândalo dos
fregueses e grande mortificação do seu filho Manuel.
Agora duas palavras sobre a festa
do orago da paróquia, o meu rico S. Pantaleão. O leitor viu o padre-prior
caminhando pela estrada dolorosa da moral evangélica: é necessário que o veja
também radiante no meio das pompas do culto.
IV
ALHOS E BUGALHOS
S. Pantaleão era, como disse, o orago da
freguesia rural cujos habitantes mais conspícuos o leitor já conhece e por via
dos quais o pus em contato com as diferentes classes de que se compunha aquele
mundozinho, ou, para melhor dizer e falar de modo que não me entendam, aquele
microcosmo. Este grecismo espremeu-mo do espírito S. Pantaleão, que, conforme o
que bem pondera a folhinha, foi médico, e os médicos finam-se por grego. O
padre-prior e o sacristão representam a Igreja espiritual e materialmente, o
Agostinho da tenda o comércio, o Barnabé a agricultura, a Sra. Perpétua Rosa a
indústria e, finalmente, o honrado Bartolomeu da Ventosa representa, nos seus sonhos,
a indústria agrícola ou a agricultura industrial, gênero de existência lembrado
por alguns economistas da Alemanha, para salvar as classes laboriosas do
horrível futuro com que as ameaça o vapor; porque se há de advertir que alguns
restos de prudência e juízo, que ainda havia cá por esta nossa Europa,
varreu-os Deus para aquele canto do mundo a que nós chamamos a terra das
teorias e das quimeras; nós, os homens do Meio-Dia, que fazemos falanstérios e
não sei quantas mais comédias políticas, capazes de fazer rir... quem direi eu?
O próprio mirradíssimo S. Pantaleão da Cidade Eterna.
Eterna, entenda-se, até que o
primeiro cometa venha embrulhar na cauda este nosso microcosmo, tão caturra e
parvo, chamado o orbe terráqueo.
Celebra-se a festa de S. Pantaleão
a vinte e sete de Julho; data preciosa e averiguada por mim em largas vigílias,
consumidas em revolver breviários, antifonários, legendários, missais,
santoriais e livros historiais, na frase daquele grande retórico Gomes Eanes.
Está a folhinha pontualíssima; podem acreditar-me! Celebrou-se, celebra-se e há
de celebrar-se a festa de S. Pantaleão, o bem-aventurado físico, todos os vinte
e sete de Julho, até a consumação dos séculos; salvo caso de ninguém se lembrar
daqui a cem ou duzentos anos de que existiu no mundo o meu rico santo; mas
espero tal não aconteça, ficando lançada a sua memória nestas páginas, às quais
indubitavelmente pertence a imortalidade.
«Mas», acudirão os leitores, «que
nos importa a nós que essa comemoração seja a vinte sete ou a vinte e oito;
seja em Julho ou em Dezembro? Vamos à festa e deixemo-nos de histórias.»
Devagar, devagar! E justamente porque isto é uma história grave, sisuda,
erudita, que eu não me havia de meter abruptamente na narração, sem deixar
averiguada, esmiuçada e apurada a data precisa e irrecusável do meu
recontamento. Sabem o que é uma data? Uma data é, depois de uma questão de
ortografia, do talho e da feitura de uma judia, a que os nossos velhos chamavam
uma aljuba, e depois de um falanstério, a que os ditos velhos chamariam uma
sandice, a coisa mais importante que conheço neste vale de lágrimas. No caso
presente, suponhamos que eu fosse um cabeça-de-vento. que atirasse com S.
Pantaleão para vinte e sete de Dezembro. Ficávamos asseados; não tem dúvida! Aí
se me ia meter a segunda oitava do Natal com o meu santo mártir; e eu a querer
revestir o padre-prior para a missa cantada e a ver-me doido na escolha da
vestimenta. Vermelho? Saltava-me a canzoada dos críticos: «Fora, ignorantão!
Vermelho na segunda oitava da Natividade!? Vai ler o Cláudio de Vert, alarve!
Vai ler o Campello, o Gavanto, o Lambertini.» Atarantado com a grita,
atirava-me ao gavetão da vestimenta branca. Pior! Vinha-me outra surriada de
sotavento: «Olha a alimária! Não querem ver? A um mártir vestimenta branca!
Hipócrita que nos anda aqui a pregar sermões a favor dos padres e dos frades e
ainda não sabe qual é a sua vestimenta direita. Aí têm os tais escrevedores de
água doce, que se riem à socapa das Arcádias e das odes pindáricas e da ciência
em notas e das cronologias dos acadêmicos. A gente que fazia essas coisas
trazia as vestimentas na ponta da língua: distinguia-as como hora horae de
servus servi. Vai ler, ó tábua rasa de Locke, vai ler o Prado, o Clericato, o
Bauldry, o...»
E eu, que não podia ir ler tanto
calhamaço em fólio, em quarto, em oitavo e em doze, estacava, punha-me a
gaguejar, perdia o fio da narrativa e não prosseguia nesta notável história do
padre-prior, a qual me abriria as portas do Instituto Histórico de Paris, se eu
fosse tão criança que me resolvesse a pagar não sei quantos francos por ano
para gozar dessa incomparável honra.
Por isto façam os leitores ideia
das deploráveis consequências de um erro de data! «Porém», replicarão eles,
«quem te obrigava a tratares essa questão cronológica, superior, talvez, às
forças do teu entendimento? Não foste andando até aqui sem te meteres nesses
debuxos? Porque não descreves a festa, deixando aos entendidos em calendário o
pô-la na época própria?» Boníssimos leitores, pensais vós que eu sou o Manuel
da Ventosa, que me deixe assim esmagar por uma saraivada de perguntas?
Enganai-vos! A resposta vai cair dos bicos desta pena como as frechas de Apolo
longe-asseteador caíam no campo dos argivos, segundo reza Homero no capítulo
primeiro da sua crônica das birras do Pelida e do Átrida: a minha tréplica vai
desfechar sobre os prelos, convincente, irresistível, irreplicável. Ei-la.
Finjamos por um momento que, em vez de consultar os respetivos atores sobre a
verdadeira casa de S. Pantaleão no tabuleiro do calendário, nem sequer pensava
nisso e começava a ex abrupto a cena da festa aldeã. Que sucedia? Como estamos
no Inverno, e eu gosto do Inverno, principalmente quando ruge uma boa nortada
(são gostos), punha-me a escrever um destes formosos dias de Dezembro ou de
Janeiro em que o firmamento parece retinto de novo no seu tão lindo azul; em
que a verdura infantil das searas à flor da terra sorri, estirando-se dos topos
arredondados dos outeiros pelo pendor de recostos levemente inclinados; em que
a relva se mira à luz vermelha da aurora no espelho do caramel, que envidraça a
superfície dos pegos e remansos dos regatos. Falar-vos-ia de uma abençoada
missa do galo, na aldeia em noite de luar, missa mil e quinhentas vezes mais
poética do que toda a poesia protestante desde Luterpo, o pai do
protestantismo, até Strauss, que hoje lhe tira as derradeiras consequências;
falar-vos-ia, enfim, de mil coisas, muito bonitas, muito viçosas, muito
brilhantes, mas que viriam tanto a propósito de S. Pantaleão como o anho pascal
daquela santa velha da Tia Jerônima viria a pêlo da Natividade, com o seu caldo
tradicional de peru, ou como o estilo do nosso drama moderno se casa com a
linguagem da sociedade, cujo transunto deve ser. E por esta razão que, em
coisas sérias, quais a presente narrativa, eu sou muito pechoso em averiguar
tudo quanto pode contribuir para a perfeição de obras em que a forma de, modo
nenhum há de vencer a substância — e a essa classe pertencem estes estudos
morais.
Resolvida e assentada a questão
de tempo e lugar, sem o que não há obra literária, segundo afirmam os
glossadores e espevitadores daquela famosa embrulhada de Horácio chamada a
Epístola aos Pisões, resta dizer alguma coisa acerca de S. Pantaleão. Por muita
importância que eu ligue à feira, aos foguetes, aos busca-pés, às jarras que eu
ligue à feira, aos foguetes, aos busca-pés, às jarras de flores, aos tocheiros
acesos, ao sacristão, à música, aos festeiros e ao padre-prior, ligo muita mais
à memória daquele cuja festa trazia num rodopio toda a aldeia e até tivera a
influência magnética de alargar os fechos da bolsa ao venerável moleiro
Bartolomeu. Tenham, portanto, paciência; que já agora hei de dizer-lhes duas
palavras acerca do meu rico santo. São reminiscências do sermão, o qual, desde
aqui fique sabido, foi feito e pregado por Fr. Timóteo, o fradalhão arrábido de
mendicante e espoliada memória. É, pouco mais ou menos, um resumo da história
do santo, como a contou Fr. Timóteo. Parece-me que o estou ouvindo.
S. Pantaleão era um médico de
Nicomédia. O bispo Hermolau converteu-o ao cristianismo. Desde então, ele
reduziu o seu receituário à invocação do nome do Senhor. Seguiram-se daqui duas
consequências graves: as suas curas foram mais baratas e mais rápidas, ao mesmo
tempo que as ofertas dos doentes escasseavam nos templos pagãos e os sacerdotes
de Esculápio começavam a morrer literalmente de fome. O resultado foi um clamor
geral contra o pobre santo: os sacerdotes acusavam-no de ímpio e de bruxo, os
médicos de charlatão. O ódio contra ele chegou ao último auge: só faltava uma
ocasião para a vingança: esta não tardou a aparecer.
«Não, que não havia de chegar!»,
rosnou o barbeiro, que, especado em frente do púlpito, meneava a cabeça
laudativamente de vez em quando, em honra da eloquência de Fr. Timóteo, que,
narrando a vida do santo, esbracejava como um possesso. «Não, que não havia de
chegar! Bastavam os médicos. Os médicos e os cirurgiões! Posto que, até certo
ponto, pertença à faculdade, hei de dizê-lo: é a classe mais invejosa do mérito
que eu conheço.»
O barbeiro pensava assim havia
muitos anos: desde que fora cruelmente arranhado por três raposas, que os
lentes do hospital lhe tinham largado às pernas num exame de sangrador. Boas ou
más, eram as suas doutrinas.
Entretanto, o arrábido continuava
a lenda de S. Pantaleão: as ideias que dela conservo são as seguintes:
Neste meio tempo veio a Nicomédia
o imperador Maximiano. S. Pantaleão restituiu, perante ele, a um paralítico o
uso dos membros, o que nem os sacerdotes pagãos nem os médicos tinham podido
fazer, mostrando assim quanto era poderoso o Deus dos Nazarenos. Mostrar aos
poderosos que se tem razão contra eles é o maior dos perigos do mundo. S.
Pantaleão experimentou-o. Lançaram-no às feras no circo: mas as feras, em vez
de o devorar, vieram lamber-lhe os pés. Cresceu a cólera do imperador. Mandou
atá-lo a uma grande roda e soltá-lo por uma ladeira abaixo: mas as prisões
quebraram-se e o supliciado ficou ileso. Então ordenou que o degolassem. O
santo, segundo parece, estava saciado de prodígios: ao golpe do algoz a cabeça
voou-lhe dos ombros, e a sua alma, subindo ao céu, viu o próprio nome escrito
no livro dos mártires. O Inferno e a tirania tinham sido mais uma vez vencidos.
Tal é, em poucas palavras, a
história do santo orago da aldeia, que constituía os domínios espirituais do
padre-prior..
A noite que precedeu a grande
solenidade da paróquia foi semelhante naquele ano, em que sucedeu o caso e
Bernardina, ao que havia sido no ano antecedente; semelhante ao que costumam
ser tais noites nos campos deste nosso bom Portugal. Um coreto coberto de
velhos razes alteava-se à porta da igreja; dele resfolegava uma selvagem e, às
vezes, atrozmente desentoada música e em baixo crepitavam as fogueiras. Como
faltariam fogueiras no mês de Julho e em festa saloia? Os fogos noturnos são o
símbolo da alegria; mas cumpre que se repintem no céu diáfano e estrelado.
Debaixo de uma atmosfera crassa e negra, o seu reflexo tem o que quer que seja
soturno e infernal. O sentimento poético está mais vivo e puro nas almas
habituadas às harmonias campestres do que em nós, os habitantes das grandes
cidades: é por isto que os camponeses acendem no Estio as fogueiras festivas,
usança que, como todos sabem, ofende o nosso profundíssimo e estupidíssimo
senso-comum. Eu, por mim, que, graças a Deus, não tenho a honra de pertencer à
classe desses que lidam, contentes de si, por se bambolearem no vértice da
animalidade pura e que se chamam homens da vida positiva, digo que, por mais
ardente que vá o Estio, amo uma fogueira no arraial em véspera de festa, e
aquele estoirar e chispar dos foguetes que roçam rápidos pelo manto escuro da
noite. Sei também que o consumir-se pólvora em esbombardear cidades e em
alastrar de cadáveres um campo de batalha é coisa muito mais filosófica e
sisuda do que desbaratá-la nas festividades supersticiosas do povo. Mas nem
todos podemos ser filósofos e eu tenho queda particular para a superstição.
E que quereis? O catolicismo é
jovial: o seu culto, como o vulgo o entende, é ruidoso e risonho e brilhante e
atrativo e sociável, e por isso debalde trabalharíeis por arrancá-lo ao povo,
que vive e morre no meio do trabalho, das preocupações, das privações. O
domingo, o dia santo, o orago da paróquia são os seus dias de contentamento e
repouso. Abençoado quem inventou os oragos! Pois as invocações da Virgem e a
advocacia dos santos?! Mil vezes bendito quem os multiplicou! Ride-vos, se vos
aprouver, dos que creem que tal Senhora obra mais maravilhas que todas as
outras Senhoras juntas; que tal
santo é remédio infalível para
esta ou para aquela enfermidade. As preces levam, pelo menos, uma vantagem às
drogas dos físicos: não custam nada e são mais ricas de esperança, e a
esperança é a maior, quase a única virtude dos medicamentos. E depois, as
devoções, as promessas, geraram as romarias, as festas e logo as feiras e todo
esse franco e alegre folgar das multidões, que voltam de lá contentes, sem
tédio e sem remorsos, o que nem sempre nos acontece nos nossos prazeres das
cidades, a que bem longe estamos de associar nenhum pensamento de Deus.
Alguns economistas destes tempos
dizem «as, feiras vão-se», como certos doutores de há uns anos diziam, aludindo
ao cristianismo, «os deuses vão-se». Ó sensaborões dos meus pecados! Nem os
deuses, nem as feiras se vão. Tudo isso fica, porque o abriga e salva a égide
encantada do amor popular: vós é que tendes seguro o passardes: e, se fizerdes
o vosso ablativo de viagem nalguma aldeia, como a do meu padre-prior, lá do
adro, onde haveis de jazer, alevantai a caveira descarnada, no dia de S.
Pantaleão ou do santo influente do lugar, qualquer que ele seja, e vereis o
foguete subir nos ares, e os Manuéis e as Bernardinas de então a feirarem-vos,
em revindicta, sobre as cinzas, que as ventanias terão espalhado, e ouvireis os
ram-ram da guitarra e o cantar ao desafio e o bradar dos leilões de cargos, e
aviventar-vos-á o olfato o cheiro do incenso, envolto em rolos de fumo, que,
espalmando-se nas faces dos gordos querubins pintados no teto, surdirão pelo
portal da velha igreja remoçada de ocre e virão embalsamar os ares: inclinai,
não as orelhas, que não as tereis, mas os ouvidos em osso, escutai o futuro
padre-prior alevantando o Gloria, e o pregador — ai! já não será um fradalhão
arrábido!... —, contando, voz em grita, as maravilhas do mártir. Então
reconhecereis a vaidade das vossas doutrinas e morder-vos-eis e danar-vos-eis,
dizendo com as vossas costelas esbrugadas, à falta de botões: «Bem nos pregava
aquele grande cronista do padre-prior! Aquilo é que era homem de juízo!
Miserere mei, Deus, quia asinificavimus! Compadece-te de nós, Senhor, porque
asneamos!»
Agora por asnear, acudamos a um
reparo, antes de ir mais longe. já ouço um destes oragos de botequim (também
aqueles templos têm seus oragos); um destes eruditos em Balzac e Marryat, em
Paul de Kock e Dickens, sacudir a melena anelada, afastar da boca o charuto
apertado entre o pai-de-todos e o fura-bolos, salivar com os dentes cerrados,
dando um som de espirro de gato, tomar a Postura solene que estudou numa
gravura em madeira do Anthony de Dumas, e dizer-me em tom pausado e soturno: «Ó
malfeliz, malfeliz!, que, em vez de empregares esses raios do fogo cerúleo e
invisível das inspirações estéticas, que, da misteriosa solidão em que se
dilata o hálito celeste da suma inteligência, desceu aos abismos íntimos da tua
essência, em depurares o sentimento religioso das suas fórmulas materializadas,
para o transportares às regiões ideais do culto íntimo, seguindo os vestígios
das notabilidades mais remarcáveis da intelectualidade atual, que flutuam nos
grandes centros de luz progressiva chamados
Paris e Londres, vertes os teus
sarcasmos, baixos, triviais e desgostantes, sobre o espiritualismo panteístico,
apoias o fetichismo e poetizas (crês poetizar, digo eu) essas festas da
populaça e esses prazeres gordureiros das massas, que sublevam o coração
daquele que adora o supremo arquiteto no silêncio interior, enquanto os seus
lábios estão imóveis, como se eles fossem de mármore explorado nas carreiras de
Paros! Escritor retrógrado e condenável, que, em lugar de combateres a barbárie
do País, pretendes atacar mais o povo ao obscurantismo, que dirão as sumidades
do jornalismo estrangeiro e os turistas e impressionistas viageiros, quando
lançarem seu golpe de olho de águias para o Portugal e virem sua materialização
supersticiosa inculcada e as suas tradições grosseiras exaltadas? Repetirão o
que o imortal marido de Lady Byron dizia de nós, a propósito de uns cachações
com que o massacraram certa noite à saída de S. Carlos:
Nação impando de ignorância e
orgulho, Que lambe e odeia a mão que brande a espada Que do Galo assanhado à
zanga o rouba ,...
Onde é sujo o palácio ao par da
choça, E o hóspede forçado em lama trepa; Onde nobres, plebeus nunca pensaram
Em ter limpa a casaca ou roupa branca, Posto que a lepra egípcia os cubra e
roa, Intacta d'água a pele, e a grenha hirsuta.
Servos torpes e vis , bem que
nascidos Nas pompas da criação. Tola és, natura, Com defuntos ruins em gastar
cera.
Eis o que eles dirão, lendo a tua
inconscienciosa defesa dos costumes e credulidades dos tempos do jesuitismo e
da Inquisição.»
Tal reparo antevejo eu que me há
de ser feito pelos pensadores da nossa terra, por estas ou por outras palavras.
Respondo: «O que escrevi, escrevi.» A primeira vez que pus os olhos naqueles
bonitos versos do Childe Harold, impei. Fui vivendo e lendo e afiz-me às
injúrias de estranhos. Livros, jornais serra-madeiras, jornais populares,
jornais atoalhados, jornais lençóis, em se tocando em Portugal, Santa Bárbara,
advogada dos trovões, nos acuda! Fervem as calúnias, os motejos, as acusações
de todo o gênero, o que indubitavelmente é grande, é nobre, é generoso! O dar é
assim! — numa nação cuja língua, pouco conhecida na Europa, torna impossíveis
as represálias. E se fosse a verdade só! Muitas verdades amargas nos poderiam
dizer, como se podem dizer a todas as nações do mundo; mas a calúnia tem mais
pilhéria e Portugal é um tema em que até os Ingleses querem ter graça! Os
Franceses ainda alguma vez, por engano, nos fazem justiça: eles nunca. Em
Inglaterra não há nenhum tolo que não faça um livro tourist, nenhum arquitolo
que não o faça sobre Portugal: estes livros e os sermões constituem o grosso da
sua literatura . Assim, ó filósofo idealista progressivo, eu sei tão bem como
tu o que nos há de custar a festa de S. Pantaleão, quando esta famosa história
for cair nas mãos dos críticos de além-mar. Mas pensas que me faltará moeda
para dar troco às misérias de revisteiros, turistas, magazineiros e fazedores
de livros em sarapatel mascavado de normando e teutônico, surripiado por metade
em cada palavra, na melodiosa pronunciação britânica? Enganas-te, ó caricatura
viva do Anthony morto! Enganas-te! Quando os Ingleses se rirem de eles terem
muito dinheiro e nós pouco, torçamos a orelha e choremos, como crianças, pelas
barbas abaixo. Quando eles compararem o Strand ou Regent Street com os
arruamentos da nossa cidade baixa, agachemo-nos. Quando perfilarem as suas
estradas com as nossas azinhagas reais, cubramos a cara. Mas quando compararem
as venturas do homem de trabalho inglês com a triste sorte do peão português,
risada. Quando opuserem as virtudes e ilustração das suas classes ínfimas à
barbaria e estupidez das nossas, duas risadas. Quando encherem as bochechas das
suas velhas liberdades (do tempo de Ricardo III, de Henrique VIII, de Isabel,
de Cromwel e de Carlos II), das suas leis de propriedade em particular e da
clareza, simplicidade e retidão de todas as suas leis em geral, e nos atirarem
à cara o absolutismo dos nossos antigos monarcas, a bruteza da nossa ordenação,
a intolerância dos inquisidores, trinta risadas. Quando, enfim, nos oferecerem,
em escambo das nossas crenças e dos nossos costumes religiosos, os seus
costumes e a sua crença, que esboroa há mais de dois séculos em quatrocentas
crençazinhas, com os seus muito arrevessadinhos, quatrocentas risadas ou,
antes, uma risada só, mas retumbante, maciça, inextinguível, como aquelas
famosas gargalhadas dos deuses de Homero. O caso é disso! Se caíssemos na troca,
ficávamos logrados. Traziam-nos de envolta, na carregação dos sermões
domingueiros, os dízimos e as bruxas, de que há muito estamos livres, pela
misericórdia divina, e que são os dois maiores flagelos da Inglaterra, depois
da lei dos cereais e dos arrendamentos das terras, que aí alugam, até por
semana, a dez milhões de esfaimados quatrocentos mil proprietários gordos e
anafados.
Ao menos são quatrocentas mil
barrigas de uma amplidão respeitável, campeando entre dez milhões de irmãos
nossos, que não foram formados de barro, como nós e Adão, mas de massa ensossa
de batatas.
V
EXCURSO PATRIÓTICO
Falemos sério: não contigo
filósofo estético-romântico-progressivo, que não vales a pena disso, mas com o
povo português, que fala português chão e inteligível. Falemos sério porque
estas matérias de crenças e de culto são coisas graves e santas. Saber resistir
à violência é forte, mas vulgar; saber resistir à calúnia e aos motejos é maior
esforço e mais raro. Envergonhemo-nos do que houver mau e corrupto nos nossos
costumes; envergonhemo-nos de, muitas vezes, não seguirmos na vida prática os
ditames do cristianismo: não nos envergonhemos, porém, do culto dos sete
séculos da monarquia.
A língua e a religião são as duas
cadeias de bronze que unem, no correr dos tempos, as gerações passadas às
presentes, e estes laços, que se prolongam através das eras, são a Pátria. A
Pátria não é a terra; não é o bosque, o rio, o vale, a montanha, a árvore, a
bonina: são-no os afetos que esses objetos nos recordam na história da vida: é
a oração ensinada a balbuciar por nossa mãe, a língua em que pela primeira vez
ela nos disse: «Meu filho!» A Pátria é o crucifixo com que o nosso pai se
abraçou moribundo e com que nós nos abraçaremos também antes de ir dormir o
grande sono, ao pé do que nos gerou, no cemitério da mesma aldeia em que ele e
nós nascemos. A Pátria é o complexo de famílias enlaçadas entre si pelas
recordações, pela crenças e até pelo sangue. Tomai, de feito, as duas delas que
vos parecerem mais estranhas, colocadas nas províncias mais opostas de um país:
examinai as relações de parentesco de uma com outra família, quais as desta com
uma terceira, e assim por diante. Dessa primeira, que tão estranha vos pareceu,
à última achareis o fio, enredado sim, talvez inextricável, mas sem solução de
continuidade. Uma nação não é só metaforicamente uma grande família: é-o também
no rigor da palavra.
A oração que consolou nossos avós
nos consola no dia da amargura: o gesto com que imploramos a Providência é mais
veemente quando nos foi transmitido por aqueles que pedem por nós a Deus. É por
esse meio que os homens apertam mais os laços invisíveis que os unem aos seus
maiores; porque o sentimento misterioso da família, e portanto da
nacionalidade, se purifica e fortalece quando se prende no Céu.
Vede na história a prova de que a
religião pode, por si só, criar uma nacionalidade mais rapidamente que todos os
outros elementos que tendem a compor as nações. Considerai as cruzadas; essa
multidão de homens nascidos em países diversos, entre os quais não há nenhuma
comunidade de interesses, antes muitas vezes ódios. sangrentos e fundos. Lá na
Ásia, em frente do islamismo, formam um só povo; são irmãos porque ajoelham
todos ante o mesmo altar, combatem todos pela mesma ideia religiosa. Olhai para
os Muçulmanos: vede o Corão, aglomerando, assimilando o beduíno e o egípcio, o
alarve do Atlas e o negro de Al-Sudan. Onde quer que um pensamento grande
precisa de toda a energia de unia unidade social para se desenvolver e
realizar, lá haveis de encontrar a religião, produzindo essa energia.
Se isto é assim, qual culto,
entre os de todas as parcialidades cristãs, será mais eficaz em gerar essa
unidade forte do amor pátrio, que dá, não tanto a vida ativa e exterior, como
uma vida íntima, escondida, tenaz, que resiste à morte e à dissolução sociais?
Serão essas mil variações do protestantismo que diariamente se vão subdividindo
e condenando umas pelas outras; essas crenças incertas, em que o filho já
despreza o culto que o pai seguiu e o neto desprezará o de ambos? Quando e
onde, não dizemos na mesma cidade e na mesma rua, mas na mesma família,
enquanto o marido dorme ao som monótono do sermão anglicano, sublime de
trivialidade e tédio, a mulher dá representações de Bedlam numa senzala de quacres
ou de metodistas, pode acaso dizer-se que aí a religião é laço que impeça a
morte do corpo da república, não nos dias de ventura e prosperidade exterior,
em que é fácil conservar pelo orgulho a unidade nacional, mas nas épocas de
calamidade e decadência? Parece-nos pouco provável. Aí as prisões morais da
família são apenas hábitos humanos e não estão harmonizadas e santificadas por
se prenderem no Céu: o primeiro sopro das paixões ou da desventura as reduzirá
a pó. A história também no-lo diz e a história não é senão a profecia do
futuro.
O protestantismo acusa o
catolicismo de se haver afastado da pureza cristã antiga e gaba-se de ter
revocado o cristianismo às suas tradições primitivas. O discutir tal matéria,
em relação às doutrinas, fora insensato: os tempos dessa argumentação
consumaram-se: tudo por este lado está dito de parte a parte. Quanto, porém, às
fórmulas exteriores do nosso culto, são essas que ainda hoje atraem os insulsos
motejos da imprensa protestante; é o culto católico, principalmente, que dá
origem àquelas raças inglesas, tão agudas como a inteligência dos habitantes do
Bethnal-Green, de Londres, ou do Winds, de Glasgow, embrutecidos pela fome,
pela embriaguez e pela imundície; tão brilhantes e leves como o fumo de carvão
de pedra que constitui a atmosfera britânica. Diariamente são acometidas as
duas nações das Espanhas nos seus hábitos religiosos por homens, que
empregariam melhor o tempo em estudar os cancros asquerosos, que devoram moral
e materialmente a classe popular no seu próprio país, e em pedir à riqueza, só
poderosa, só respeitada, só insolente, mais alguma caridade para com os muitos
milhões dos seus compatrícios, que lidam, cheios de fome e de frio, cobertos de
farrapos e vermes, para acumularem aos pés de bem poucos homens as fortunas
incalculáveis e quase fabulosas que alimentam o luxo desenfreado de Londres;
da Roma, ou, antes, da Babilônia
moderna.
Por certo que no culto católico
se têm introduzido abusos, e para isso contribui muitas vezes o próprio clero,
menos instruído, menos bem educado, moralmente, que o clero anglicano. Mas, em
que é culpado o culto da pouca instrução dos seus ministros e dessa falta de
educação moral que diversas causas, alheias à religião, têm trazido e trazem
ainda? É a Igreja que recomenda a ignorância? São os abusos consequências
lógicas das doutrinas católicas? Eis o que cumpriria se provasse, como não é
dificultoso mostrar que o protestantismo, querendo anular as pompas e os
espetáculos, as fórmulas externas e brilhantes do catolicismo, matou tudo o que
a crença do Calvário tinha de unção, de consolações, e afetos para o comum dos
seus sectários, e converteu a religião numa certa metafísica nevoenta, que foge
à compreensão das almas rudes e vulgares, quebrando todos os esteios a que,
nesta vida de tristezas e dores, elas se encostavam para confiarem no Céu e
consolarem-se na esperança; porque esses arrimos, necessários à sua fraqueza
intelectual, eram o único meio de subirem até ao trono de Deus e descerem de lá
armadas de resignação para continuarem a lutar com as tempestades da
existência. O protestantismo foi só feito para os ditosos e abastados da Terra!
Vede aquela casinha, tão humilde
e só, no meio de um descampado. Lá, sobre camilha dura e rota, delira em acesso
febril um filho, único amparo de mãe desditosa, que vela, chorando ao pé dele.
Na sua solidão e miséria, nenhuns socorros humanos pode esperar a pobre velha,
cujas mãos trêmulas em vão tentam aconchegar as roupas que o febricitante
arroja, murmurando aflito com o ardor que o devora. Uma lâmpada de ferro, que
ilumina frouxa o aposento, arde no canto oposto, diante de uma grosseira e
afumada imagem da Virgem. A triste mãe volve para lá os olhos, embaciados da
idade e das lágrimas, e sente que não se acha inteiramente abandonada. Ali está
outra mãe que também derramou choro por um filho; choro mil e mil vezes mais
amargoso que o seu.
Ela há de compreender-lhe a
aflição e valer-lhe, porque é boa e poderosa ante Deus. Ei-la, a pobre velha,
que trôpega se arrasta e ajoelha aos pés da imagem e cruza as mãos enrugadas e
ora; ora com fé viva. Na procela de terrores que a cercam começa a bruxulear
uma luz de esperança: espera porque crê na possibilidade da intercessão e dos
milagres; e anima-se, e a tempestade da sua alma asserena-se, e a dor
mitiga-se, porque, no meio das lágrimas e das rezas, ela pensa lá consigo que
aquela imagem trouxe já muitas consolações aos seus pais, a ela mesmo e a toda
a família, e que a Virgem Santíssima há de acudir-lhe ao seu filho, que, desde
pequenino, gostava de ir apanhar as flores campestres para enfeitar a S, e que
tantas vezes, à noite, antes de se deitar, ia pôr-se de joelhos ali onde ela
estava a rezar uma salve-rainha. Quantas vezes, depois destas orações ardentes,
volve Deus olhos compassivos para a morada da miséria e da amargura, e obra,
não um milagre inútil, mas o benefício que faria qualquer médico, se na
habitação solitária houvesse a possibilidade de se buscarem os socorros da
ciência humana!
Dirá o protestantismo que isto é
idolatria? Quê! Ignora, acaso, o mais grosseiro católico que acima dessa imagem
está o espírito puro que ela representa e que acima desse espírito está Deus? O
catolicismo, no seu culto das imagens, nas suas festas, nas suas visualidades,
como vós lhes chamais, cometeu o grave erro de supor que a maioria do gênero
humano não era composta de filósofos, nem capaz de um espiritualismo absoluto;
de abstrair inteiramente das coisas sensíveis para remontar ao Céu.
O catolicismo lembrou-se das
doutrinas do Cristo; acomodou-se à curta compreensão dos pequenos e humildes.
Vós tendes um evangelho mais fidalgo e altivo. O protestantismo convém por isso
ao Reino Unido, onde os quatrocentos mil senhores do solo são tudo, e são nada
quinze ou vinte milhões de servos de gleba e de mendigos.
E como deixaria ele de ser
exclusivo, aristocrático, orgulhoso? Essa crença, ou, antes, essa infinidade de
crenças, unidas só em guerrear a igreja de dezoito séculos e que, no dia em que
lhes faltasse o inimigo comum, se despedaçariam mutuamente, não podem deixar de
viver de um misticismo perfumado, de um culto ininteligível para o povo. Desde
que a reforma substituiu a autoridade e a tradição a ciência humana, o
raciocínio e a discussão saiu do templo para a escola; transformou-se de fé em
teoria. Então, o cristianismo deixou de ser uma coisa prática e positiva para
todos os homens: os espíritos grosseiros e ignorantes aceitaram-no como um
costume que acharam no mundo, sem afeto, nem má vontade, e as imaginações
desregradas fizeram cada qual uma religião ao seu modo. Deram uma Bíblia ao
ganha-pão, ao porcariço, ao bufarinheiro, e por esse fato constituíram-no
teólogo, santo padre e até concílio. Creram ter estendido ao gênero humano a
maravilha das línguas de fogo, que desciam sobre os apóstolos, e ficaram muito
contentes de si. As multidões é que ficaram tristes e desconsoladas, porque
tinham desaparecido de redor delas todos os símbolos, todas as imagens que lhes
serviam como de marcos miliários para buscarem a Deus.
Afigurai-vos, de feito, o exemplo
da mãe idosa e miserável que vê em trances mortais o filho, seu único abrigo;
buscai este exemplo, ou outro qualquer, porque entre os pequenos não são raras
nem pouco variadas as ocasiões de ásperos infortúnios. Lançai, a mãe aflita no
seio do protestantismo. Qual refúgio lhe oferecerá a religião; refúgio
imediato, sólido, esperançoso? A Bíblia? Também nós sabemos que tesouros
encerra a Bíblia; também nós sabemos quantas vezes as suas páginas divinas têm
feito dilatar em torrentes de lágrimas as negras aperturas do coração; também
nós sabemos que dessa fonte inexaurível manam a resignação e a paz: a igreja
católica sabia-o muitos séculos antes de vós existirdes. Mas quem vos assegura
que a pobre velha achará a passagem análoga à sua situação; que encontrará nas
palavras do livro sacrossanto o conforto de que carece e a esperança do socorro
imediato e sobre-humano de que não menos precisa? Quem vos assegura, enfim, que
ela saberá ler? Ou é que no país dos quacres a inspiração também faz de
mestre-escola, como exercita o mister de mestre de Teologia?
E, depois, não sabeis que a dor
moral do homem do povo tem gemidos e queixumes; é estrepitosa, delirante,
sincera? Que não se reporta, não se esconde, e vem ao gesto aos meneios, aos
olhos, à voz, como a dor física! Julgai-a semelhante ao spleen do dândi, ou ao
devorar íntimo e calado das almas a quem a educação e a ciência ensinaram a
dignidade das grandes agonias? Estes tais, exteriormente tranquilos, podem
encostar-se ao braço, fitar os olhos no livro aberto ante si e aspirar naquelas
páginas sublimes e profundas o hálito consolador que delas espira. Mas para o
homem do povo, quase primitivo, quase selvagem, cujos olhos nadam em lágrimas,
e que se estorce e brada, flagelado pela aflição, a Bíblia é, nesses instantes,
inútil; porque é impossível. Deixai-lhe a imagem do santo, o crucifixo, o voto,
o altar doméstico, a lâmpada acesa ante o vulto do mártir ou da Virgem;
deixai-lhe o ajoelhar, o gemer, o rezar, o fazer promessas. Deixai os símbolos
materiais da confiança na Providência à imbecilidade da natureza humana, aliás,
crendo aniquilar a superstição e a idolatria, não fareis senão matar a vida
moral e religiosa do povo.
Se nos dias, desgraçadamente
muito comuns, das mágoas extremas só o catolicismo tem conforto para o homem
rude, nos de contentamento só o catolicismo tem festas i que convertam para a
gratidão e para Deus o seu gozo interior, que tende a trasbordar em risos e
folgares. O simples repouso do domingo, para aquele que, condenado a lavor
indefeso durante a semana inteira, compra, à custa de suor e cansaço, um pouco
de pão duro é grosseiro, é uma alegria semelhante à do preso que, adormecendo
em ferros, despertasse livre. Aquele coração precisa de dilatar-se, aqueles
sentidos de recrearem-se, aquele espírito murcho e triste de se tornar viçoso,
de desabrochar de novo ao sol da vida, ao menos nalguns desses dias reservados
para o descanso. É então que o catolicismo lhe oferece as pompas das suas
solenidades; o templo iluminado, os cânticos dos sacerdotes, as harmonias do
órgão, o espetáculo brilhante das vestes sacerdotais e dos adornos do altar, os
ramilhetes povoando os degraus do santuário ou juncando o pavimento, o incenso
embalsamando a atmosfera. E, como tudo isto é para as multidões, o culto trasborda
do estreito recinto e derrama-se pelas ruas, pelas praças, pelos campos, em
procissões, em círios, em romarias, e o povo flutua, folga, reza, tripudia,
esquece-se dos seus destinos de miséria e trabalho, ama a religião que o
consola e, voltando suas habituais fadigas, leva para o meio delas a saudade do
dia santo e as recordações afetuosas da Igreja.
E o protestantismo? O
protestantismo despedaçou os vultos dos santos, proibiu os oragos, as romagens;
esfarrapou alvas, casulas, amictos, pluviais; apagou as luzes; varreu as
flores; assoprou o incenso. Fechou-se na celebração do domingo; e fez bem!, bem
ao povo a quem, para tédio e tristeza, nos países protestantes, sobra o
domingo. E porque fez ele isto? Foi porque essas coisas eram superstições papistas:
as imagens idolatria, a água, benta água lustral, as vestes sacerdotais
indecências ridículas, as cerimônias visagem, a missa mentira. Passagens da
Bíblia e compridos sermões ficaram bastando ao culto externo, e, se alguma
coisa deixaram ainda a esta poética e atrativa, foi o canto dos salmos e a
harmonia do órgão; porque, como todos sabem, nas ágapes dos cristãos primitivos
cantavam-se os salmos ao som do órgão!! Os protestantes são indubitavelmente
antiquários eruditos, mas, sobretudo, lógicos.
Qual foi o resultado desta
reformação insensata de instituições antigas e venerandas? Foi que o culto se
tornou num hábito maquinal, numa ação que se pratica, pela impossibilidade de
se praticar outra. A polícia vigia sobre isso. Deixe ela, ao domingo, abrir as
lojas, os passeios, os estabelecimentos públicos,
os espetáculos, as fábricas e as oficinas; deixe correr nas veias do corpo social o sangue comprimido, e os templos
dos distritos de Inglaterra mais
fervorosos no protestantismo ficarão tão ermos como as igrejas da Irlanda, onde o reitor prega ao sacrista o
suado sermão que há de um dia, impresso,
iluminar o mundo, enquanto o seu recalcitrante rebanho, a porta do presbitério solitário, ouve, ajoelhado na rua,
a missa que, em altar portátil, lhe diz
o pobre clérigo católico, verdadeiro e legítimo pastor, a quem incumbe
consolá-los, bem como ao pároco protestante pertence... o quê?, Fazer prédicas às paredes e comer os dízimos,
sacramento que, decerto, o puritanismo
protestante achou nalgum alfarrábio velho ter sido instituído por Cristo!
Temos ouvido lamentar às pessoas
de boa fé excessiva, destas. que estudam as nações nas aparências, e não na vida íntima,
que o catolicismo não tome entre nós a
severidade e decência exterior do culto anglicano; que o dia consagrado ao Senhor não seja guardado pontualmente; que
as nossas igrejas não ofereçam na
celebração dos ofícios divinos a gravidade, o silêncio, a ordem, o asseio de um templo protestante, nas horas
destinadas â oração. No estado atual das
sociedades em que o fervor dos primeiros tempos cristãos tem esfriado, em que, tanto entre católicos como
entre protestantes, a religião deixou de
ser o primeiro ou, ao menos, o exclusivo negócio dos homens, o que eles
desejam seria impossível, e, se absolutamente um bem, relativamente um grande mal; porque as causas que facilitam
esse estado de coisas em Inglaterra são
a prova mais clara da morte, se não de uma certa religião vaga, em que os espíritos mais cultivados se
alevantam até ao pé do trono de Deus, ao
menos da religião, positiva e prática e bem definida, morta e enterrada há muito na mina de carvão de pedra chamada
Grã-Bretanha.
Já dissemos que não é tanto o
sentimento religioso que guarda em Inglaterra a decência do culto como a admirável polícia
inglesa. Quem não o sabe? Quem ignora
que, naquele país, a religião tem a natureza de outra qualquer fórmula material da sociedade; que é uma coisa como o
regimento, a nau de guerra, o work-house?
Ao cristão, um vigário, uma Bíblia, e a cadeia se perturbar o ofício divino; ao soldado, um coronel, uma
espingarda e uns açoites, se mexer a
cabeça na forma; ao marinheiro, um comodoro, um posto junto da amurada e um mergulho por baixo da quilha, se ofender
a disciplina; ao miserável que vai cair
no work-house, um diretor implacável, uma atafona e ração curta para aprender a deixar-se estalar à míngua sem
pedir esmola. A cada instituição suas
condições, sua sanção penal, seus destinos; o regimento serve para provar aos cartistas que a melhor organização
política possível é a que faz morrer anualmente
milhares de obreiros de fadiga, de fome e de febres pútridas, sobre uma pouca de palha fétida e úmida, no
fundo de subterrâneos; a nau serve para
civilizar a Índia pelas contribuições e moralizar a China pelo ópio; o work-house serve para curar radicalmente os
que não têm nem pão nem camisa do vício
infame da mendicidade; enfim, a igreja dominante (established church) serve para sustentar de dízimos muitas
famílias honradas, com as modestas e
reformadas prebendas anglicanas, entre as quais nenhuma excede a vinte mil libras esterlinas per annum, que, em moeda portuguesa, apenas montam a uns miseráveis duzentos mil cruzados.
O templo católico é comummente o
símbolo da completa igualdade; lá não há distinções, senão para os ministros do culto;
e, quando o orgulho humano, que forceja
sempre por invadir ainda as coisas mais sagradas, vai aí profanamente estender o tapete aristocrático e
colocar sentinelas, o povo murmura, e
murmura em voz alta; porque sabe que na sociedade cristã, só há um Grande e Poderoso, que é Deus. Os nossos
hábitos, as nossas ideias, são que o
mais cômodo, o mais distinto lugar do templo pertence ao que primeiro o ocupou. O catolicismo entendeu que, diante
da majestade do Criador, os vermes
cobertos de brocado não o são menos que os vermes cobertos de farrapos.
Assim, o vulgo dos fiéis
precipita-se como torrente através dos umbrais da igreja; estrepita nas lájeas
do pavimento com os seus sapatos terrados; roça com o burel grosseiro as Finas
sedas dos nobres e abastados; afasta com as mãos calosas os grupos alinhados
dos peralvilhos; esquece-se, enfim, dos respeitos humanos, que se guardam e
devem guardar cá fora. Como, pois, obter a ordem, as atenções, o silêncio? O
nosso povo é rude e mal educado (não o gabamos por isso; mas o vulgacho inglês
leva-lhe, em bruteza, incomparável vantagem); o nosso povo conserva dentro do
templo os hábitos ruidosos, inquietos, grosseiros da praça pública. E poderia
ele despi-los de súbito ao entrar na casa de Deus? Prova, acaso, desprezo pela
religião, o borborinho que aí soa? examinai os que parecem estar com menos
respeito e decência; os que falam e se agitam; são aqueles entre os quais o
cristianismo iria achar os seus mártires se viessem de novo os tempos em que a
crença do Crucificado precisava de ser revalidada pelo sangue dos seguidores da
Cruz. Que esses pobres tontos, que nos motejam sem nos conhecerem, venham
estudar o catolicismo português, se disso são capazes, e saberão se nós falamos
verdade.
Nestas consequências, tão
lógicas, tão rigorosas, do caráter primitivo da religião cristã e do estado das
classes inferiores da sociedade, pôs cobro a igreja anglicana. É verdade que
Jesus Cristo, segundo o Evangelho, na tradução vulgata, chamou principalmente
os pobres e humildes; e, se no templo há quem valha mais que outrem, não são,
por certo, aqueles que. o filho de Deus achava mais anchos para entrarem no
Reino dos Céus do que um camelo para entrar no fundo de uma agulha. A igreja
reformada entendeu, provavelmente, que outra era a interpretação do Evangelho;
porque é corrente que os católicos nunca souberam grego, desde S. Jerônimo até
Ângelo Policiano ou Aires Barbosa, para o poderem interpretar bem. Assim, em
Inglaterra, aquelas tão formosas e vastas catedrais da idade Média, a que só
falta um culto poético e consolador para serem sublimes, repartiram-se em
camarotes de teatro, fechados à chave, e alguns, até, com todos os requisitos
desse comfort que só os Ingleses
conhecem bem. As jerarquias do dinheiro e do sangue estão lá rigorosamente
guardadas: pelo lugar dos estalos e pelo seu
luxo, os espíritos habituados à
topografia da church podem orçar o
número de avós ou os milhares de libras que possui cada filho da igreja anglicana:
o comum dos vilãos, empurrados para ao pé da porta lá perdem em parte os
deliciosos períodos do sermão do reitor, encarregado de acalentar... queremos
dizer de conservar puros na fé, averiguada e decretada pela grande teóloga
chamada rainha Isabel, os seus dizimados fregueses.
E o vulgo? Os homens do trabalho,
da fome, dos farrapos? Os três quartos da população inglesa? Esses? Esses lá
têm o templo da esperança e do consolo: lá têm o gin'spalace (palácio da genebra), a taberna. Na sua incrível miséria,
os homens que não podem encontrar Deus, porque a igreja anglicana lho colocou
numa atmosfera nebulosa, onde o não descortinam; porque o templo os repele;
porque o priest, com o seu aristocrático, polido e perfumado sermão, não pode
substituir a entidade exclusivamente católica chamada o missionário, sublime de
persuasão, de energia e de virgem rudeza; os miseráveis, dizemos, atiram-se
desorientados aos braços da embriaguez, porque a embriaguez tem o esquecimento,
tem a sua horrível alegria. Lá, no gin's shop, estendendo o braço cadavérico e
vacilante para a destruidora bebida, sorvendo-a com frenesi, essa espécie de
brutos com forma humana resumem, no seu aspeto e meneios e na decadência de
todos os sentimentos de pudor, as últimas consequências morais do
protestantismo.
Que nos seja permitido citar as
próprias palavras de um escritor moderno que melhor, talvez, que ninguém pintou
o estado presente das últimas classes em Inglaterra e que em todos os fatos que
narra se funda ou nas próprias observações ou nos documentos oficiais
publicados pelo Governo Inglês. Perfeitamente imparcial a respeito da
Grã-Bretanha, o seu testemunho é o que mais a propósito podemos neste ponto
invocar:
«A seriedade e o silêncio com que
este licor ardente (a genebra) é tragado fazem arrepiar. É como se o povo
assistisse a um ofício divino. Consumado o sacrifício, vão-se assentando no
banco de madeira corrido em frente do balcão e ali ficam quietos, mudos, como
arrebatados em inefável êxtase. Depois, passados alguns minutos, voltam ao
balcão, tornam a beber e repetem até se lhes acabar o dinheiro. Vai-se assim a
última mealha. E têm ânimo de afrontarem o morrer de fome, eles e os seus
filhos, para se embriagarem. Provou-se, pelos inquéritos feitos por causa da
lei dos pobres, que as esmolas em dinheiro dadas pelas paróquias iam cair
inteiras na taberna e só aproveitavam ao taberneiro. O povo ínfimo da
Inglaterra está de tal modo atolado no seu lodaçal, que não há aí caridade que
possa desempegá-lo.»
«Sabem todos quão rigoroso
preceito eclesiástico e civil é o guardar o domingo em Inglaterra. A única
exceção da regra é a taberna. Lojas, tudo fechado; lugares de honesto ou
instrutivo recreio, como hortos botânicos e museus, o mesmo. Só o gin's shop se
abrirá de par em par a quem empurrar a porta com o pé.
O caso está em que pareça
cerrada; duas meias portas sólidas, que se fechem por si, fazem a festa:
janelas fechadas: dentro, lusco-fusco, como em santuário, e até sua luz de gás.
Tomadas estas cautelas, licença inteira, licença autorizada para se venderem
bebidas todo o dia sem lhe faltar hora. E é neste país, que os
caminhos-de-ferro estão devolutos por todo o tempo do ofício divino, em honra
do domingo! Enquanto, em Manchester, eu me espantava das largas que se davam às
tabernas, apresentava-se à Câmara dos Lordes um bil para proibir o transporte
das mercadorias pejos canais, no sagrado dia do domingo! Na cidade de
Manchester há jardins zoológicos e botânicos, que o povo frequenta gostoso; mas
não se obtém da pontualidade anglicana que estejam patentes no dia santo; e os
bispos, tão escrupulosos no mais, são indiferentes pelo que toca aos gin's shops, abertos publicamente e
frequentados ao domingo. Não é singular que a coisa única permitida ao povo
seja embriagar-se ?»
«Não», diríamos nos ao autor do
excelente livro que havemos citado. O Governo
e a igreja da Grã-Bretanha sabem que entre a horrível miséria das classes
laboriosas, a embriaguez e o suicídio não há uma quarta coisa para suavizar a agonia dos tratos que a primeira dá
ao homem do povo. A religião, que falava
aos sentidos do vulgacho e, por meio deles, ao seu espírito, mataram-na, e. como a morte não tem remédio, o
protestantismo, crença de dois dias, mas
já sem vigor e esfalfada, encomenda à religião das pipas o salvar os mal-aventurados obreiros, não do suicídio
moral, mas, ao menos, do físico.
Dir-se-á que o povo não está
entre nós numa situação análoga à do povo inglês, para o catolicismo ser posto à prova?
Felizmente isso é verdade. Mas já houve
tempos quase semelhantes, posto que ainda inferiores em terribilidade aos que
vão correndo para a gente miúda de Inglaterra. Era quando a peste devastava as
nossas cidades e invadia os nossos campos, levando-nos, às vezes, mais de um
terço da população. Aí existem inumeráveis monumentos dessas épocas
desastrosas: que apareça tini só por onde se prove que o desalento popular
buscasse conforto no vinho e na aguardente. Pois cá o remédio não era caro! O
que achamos são as preces, as romarias, procissões as lágrimas, os votos, o
sentimento exaltado da confiança e da resignação na Providência. Achamos a
pequena diferença que vai de um cristão a um bruto.
«E os Irlandeses?» Oh, bem
sabemos que os Irlandeses, católicos como nós, na sua miséria monstruosa, têm
caído, se é possível, ainda mais fundo que os Ingleses Mas, em rigor, esses
católicos na intenção e na crença podem, acaso, sê-lo no culto que aviventa o
espírito? Onde lhes deixou o protestantismo os seus templos, os seus
sacerdotes, os seus costumes religiosos? O vulgacho irlandês é o argumento mais
dolorosamente persuasivo da necessidade dessas festas, dessas alegrias, dessas
formas materiais do culto. Sem elas, o católico miserável embrutece-se como o
miserável protestante e o seu embrutecimento vem, por outra parte, recordar-nos
de que não é possível achar um nome que qualifique devidamente o descaro com
que o anglicanismo, inquisidor implacável e tenaz de três séculos, nos lança em
rosto as trinta mil verdades e as sessenta mil mentiras que, com justíssimo horror,
se relatam da Inquisição.
Eis o que nós podemos responder
aos insulsos ditérios com que é diariamente vilipendiado o catolicismo
português:. e não dizemos tudo; não dizemos metade. Quanto aos motejos que nos
dirigem, como nação pobre, pequena, fraca, isso não passa de uma covardia, que
só desonra a quem a pratica. Trabalhemos por levantar-nos da nossa decadência.
Será essa a mais triunfante resposta.
E com estas deambulações de
patriotismo religioso saltamos a pés juntos pela história do padre-prior. No
capítulo seguinte daremos satisfação plena ao pio e benigno leitor.
VI
BARTOLOMEU DA VENTOSA
A quem não tem sucedido, nas
horas de solidão, no silêncio da noite em que não pode dormir, ou no pino do
dia calmoso, ao atravessar o bosque cerrado e sombrio, onde só se ouve o zumbir
e o fervor dos insetos; a quem não tem sucedido engolfar-se numa vaga meditação
e, por assim dizer, despenhar-se de pensamentos em pensamentos, presos por fio
tão tênue, tão imperceptível para a consciência, que, depois dessa espécie de
devaneio, pretender remontar da última à primeira ideia seria baldado empenho,
por falta de transições naturais e lógicas? E, todavia, a alma, que, nessa
situação, como que perde o sentimento da vida externa, lá achou, no seu
incessante pensar, uma ponte invisível para transpor os abismos que a fria,
coxa e orgulhosa razão humana supõe existirem, quase a cada passada, no mundo
da inteligência. Quando o espírito se desata dos corpos; quando a imaginação,
depurando o senso íntimo, o faz repelir a matéria, fechando-se, como a mimosa
pudica, à ação grosseira dos sentidos externos, o homem alevanta-se até o viver
de além da morte, a luz dos anjos ilumina-lhe as profundezas mais obscuras do
universo ideal e ele sabe quais os caminhos que, mergulhando pelos vales, unem
as suas cumeadas brilhantes, únicos pontos que se podem enxergar da terra. O
primeiro que disse: «Em tudo está tudo», teve uma destas revelações da
imaginação pura, revelação completa do ideal, que não é mais do que a fusão da
variedade absoluta e infinita na infinita e absoluta unidade.
Mas estes momentos em que somos
iluminados pelo sol da vida celestial passam rápidos: o espírito cai logo
dentro dos limites da sua existência de provança e desterro e, recordando-se
confusamente daquelas inspirações fugitivas, sorri-se e chama-lhes sonhos,
abusões, desvarios. É que a pobre e soberba razão, míope advogada do lodo e do
crepúsculo, rejeita com horror as cogitações puras e luminosas que Deus
faculta, às vezes, ao miserável ente, criado quase anjo por ele e a quem o
primeiro raciocínio que se fez na Terra converteu em insensato e Precito.
E a que vêm estas metafísicas
aqui? De que utilidade são elas para a história do pároco da aldeia e da festa
do orago, há tanto tempo interrompida e que até agora não tem passado de
divagações por objetos sem ligação com a vida e costumes do reverendo
padre-prior? «Venha o padre-prior: venha a festa», dirão alguns, «e deixemo-nos
dessas metafísicas modernas, que escorregam por entre os dedos e não passam de
feixe de maravalhas, ao pé daquelas grandes filosofias dos ideólogos,, que até
um sapateiro era capaz de estudar, batendo a sola e apertando o ponto;
filosofia de pão, pão, queijo, queijo; filosofia substancial; filosofia de
ouvir, ver, cheirar, gostar e apalpar, roliça, atoucinhada, confortativa. Se
era necessário algum troço da ciência do atqui e ergo para atar estes capítulos
ou capituladas da crônica aldeã, porque não recorrer ao claríssimo Condillac,
ao bisclaríssimo Tracy? Para que parafusar em entes de razão impalpáveis, em
armadilhas que trescalam às parvoíces germânicas, quando estava aí à mão a
filosofia do senso comum, que é o senso patagão e russo, tupinamba e sueco,
chim e dinamarquês, enfim, o senso de todo o mundo?»
Ai, leitor, que aí bate o ponto!
Quem me dera isso! Quem me dera poder explicar por um capítulo tantos,
parágrafo tantos, daquele santo homem de Locke o que me sucedeu ao escrever
esta famosa história e lançar na balança da tua inflexível justiça uma desculpa
de obra grossa dos meus rodeios, desvios e viravoltas na ordem e disposição
destes importantes estudos! Por mais que pensasse, por mais que aferisse pelos
bons princípios ideológicos o meu trabalho, saía-me tudo torto: era querer
levantar uma bola com um gancho, ou firmar a tábua rasa do filósofo inglês
sobre uma das pontas de um dilema. Como ajeitar a minha narração deambulatória
pelas regras dó método? Impossível, impossibilíssimo! Fiz então como
Constantino Magno. Não achando escápula, nem esperança na religião da matéria
em que me criaram, fugi para a religião dos espíritos e, por uma teoria de
abstração subjetiva, expliquei, como Deus me ajudou, as minhas, aliás
inexplicáveis, divagações. Encostado a ela, como a uma coluna de basalto (de
basalto, porque as de mármore e de bronze estão muito safadas do uso
quotidiano), rir-me-ei do mais abalizado doutor que venha perguntar-me qual é a
ordem lógica das minhas ideias. A resposta está no que expus: pontes
intelectuais, invisíveis, inapreciáveis pelas regras ordinárias do método;
pontos que unem o branco ao preto, o circular ao anguloso, o próximo ao remoto.
Fecho-me nisto. A imaginação que assim o fez, é porque assim devia ser: está
muito bem feito, ao menos no mundo da idealidade pura. Foi lá que eu passei de
um vulnerável pároco de aldeia, português velho em costumes, em linguagem, em
crenças, vulto poético e santo, para um inglês empertigado, monossilábico,
iconoclasta, libertador de pretos alheios, escravizador de saxões e irlandeses
brancos; numa palavra, galguei de um a outro pólo da humanidade. Foi lá que eu
pude tombar, rolar, precipitar-me do catolicismo suave, consolador, festivo,
ameigador dos miseráveis, desprezador dos poderosos soberbos, simbolizador, no
seu culto, da igualdade ante Deus, para o anglicanismo perfumado, espartilhado,
casquilho, teso, aristocrático, nevoento, dizimador, intolerante, enxotador dos
mendigos, camaroteiro dos templos; pude tombar, rolar, precipitar-me do vértice
brilhante donde derrama a sua eterna claridade o puro espírito do cristianismo
no charco onde o mergulhou e afogou a vontade de um tirano devasso do século
XVI e a vã presunção da sua filha, a pura, generosa e sábia Isabel, espécie de
Concilio Niceno de carne e osso para o protestantismo inglês. Dou vinte anos a
todos os ideólogos para explicarem por outro sistema a transição monstruosa e
in compreensível que fiz a semelhante respeito nestes gravíssimos estudos.
Idealizei um inglês (foi façanha!), idealizei o meu bom prior, e no mundo da
razão pura lá achei que havia entre essas existências, infinitamente opostas,
uma afinidade: qual, não sei eu dizer, porque o esqueci: e, ainda que me
lembrasse, não saberia exprimi-lo. Dada esta explicação aos pechosos, vamos às
prometidas duas palavras sobre a festa.
Era um dia ardente de Julho, a
27, coisa certíssima para o leitor, em consequência das minhas profundas
investigações cronológicas. O Sol ia alto: a igreja paroquial, envolta no manto
tricolor — branco, amarelo e vermelho cal, ocre, roxo-terra — parecia rir no
seu júbilo. Um moço do Bartolomeu da Ventosa, rapazote de quinze anos, quatro
meses, vinte e quatro dias e vinte e três horas e três quatros completos (por
ter nascido a uma segunda-feira à meia-noite menos um quarto, de 2 para 3 de
Março), neste grande dia do orago pilhara ao moleiro duas
graças a um tempo, a de deixar em descanso o seu tonel das Danaides, a
implacável joeira, e a de poder assistir à festa e ouvir a missa cantada e o
sermão, em vez de ir acabar o pesado sono da madrugada à missa das almas.
Gabriel, que assim se chamava o rapaz, ou, antes, Graviel, segundo a mais eufônica
pronúncia saloia, vestiu logo pela manhã as suas calças e jaqueta de bombazina
em folha e o seu colete vermelho, engenhado de um do patrão a troco de dois
meses de sol dada, calçou as botifarras novas e enterrou o barrete azul e
encarnado na cabeça, derrubando-o para trás, e, sem fazer caso do almoço (pois
era uma açorda que os anjos a comeriam) desandou, outeiro abaixo, pela volta
das sete e trinta e cinco minutos da manhã, caminho da paróquia. Via-se que um
grande negócio lhe ocupava o espírito, por isso que levava os olhos cravados no
campanário e, sem fazer caso das trilhas, cortava por entre as restevas,
escorregando, aqui, nas pedras soltas, levando-as, acolá, diante dos bicos
agudos das botifarras. Chegou. O sacristão, que estava à porta da igreja,
apenas o lobrigou, pôs-se a rir, porque entendeu o verso. Gabriel era um dos
maiores pimpões em repicar sinos que havia entre a rapaziada do lugar, mas
desde que entrara para casa do Tio Bartolomeu, nunca mais pusera pé no
campanário. Nos meneios, no gesto, no olhar lhe revia a sede, a ânsia, a
saudade das harmonias risonhas, doidas, estrugidoras de um repique desenganado.
Vinha tão cego, que só viu João Nepomuceno (assim se chamava o sacristão) quando
deu de rosto com ele. Estacou embatucado; tirou o barrete e começou a coçar a
região occipital, olhando de revés para o sacristão, que se encostara à
ombreira com as mãos cruzadas atrás das costas, assobiando o Veni Creator.
«É-lé Graviel!», disse este, por
fim, com um sorriso. «Você hoje campou. O patrão é festeiro; fica o moinho a
dormir! Hem? Galdere; não é assim? Mas, cos diabos!, não sei como não vieste cá
dormir. Botas os olhos acolá para o arraial. Vês? Duas bolacheiras e a Tia
Sezila com queijadas; e disse. Ainda nem sequer o Chico apareceu para começar o
repique. Pois para isso não é cedo, que a missa da festa é às dez em ponto. já
o padre Chaparro e Fr. José dos Prazeres estão na sacristia e dizem que não
tarda aí Fr. Narciso, que vem servir de mestre-de-cerimônias.»
«Ó sô João de Permecena!», acudiu
o saloio, que tornara, ao ouvir o nome do Chico, a enterrar o barrete na
cabeça, mas desta vez à banda, «com a sua licença, há-me de perdoar: não sei o
que fez em chamar num dia destes aquele jumento do Chico para tocar os sinos.
Aquilo!? Ora deixe-me rir. Há de a fazer bonita; não tem dúvida! Olhe, sempre
lhe digo... »
«Não digas nada: bem sei. Mas que
dianho querias tu com uma cravela de doze que dá a menza da irmandade e nicles?
Mesmo o Chico, deu-me água pela barba para o resolver. Se aquilo são uns
dianhos de uns fonas!»
«Pois, se vossemecê quer»,
interrompeu Gabriel, em cujos olhos se acendia o desejo, o deleite, a
esperança, «eu lá vou. Hoje, o patrão deu-me licença até às trindades. Salto na
torre e vai tudo raso. Toco até aquela cantiga de Lisboa, em que dizem que
canta um tal Catragena em S. Carlos:... totro, trão-balão, re-pim,
pi-ri-pim-pão.»
Entusiasmado, o moço do moleiro
cantarolava imitando os sons de um sino, ou, antes, de um tacho, a música
horrendamente aleijada, esfarrapada, assassinada, dueto de Assur e Semíramis:
La sorte piu fiera. Se Rossini ali chegasse de súbito, ou não a conhecia, ou
esganava-se. O sacristão estava enlevado.
«Homem!», disse ele, quando
Gabriel parou, «bom era isso: mas o Chico está ajustado; e já agora... »
«É que o Chico é o seu padagoz:
há-me de dar licença que lho diga, Sr. João de Permecena!», interrompeu o moço
do moleiro, vendo apagar-se a luz que lhe iluminara o espírito. «Pois eu tocava
aí a desbancar, ainda por menos: bastava que me pagasse um arrátel de bolachas
e dois berimbaus.»
«Eu cá não tenho padagozes,
homem! Cos dianhos!», replicou o sacristão. «Se ele não estiver aqui às oito,
dou-te a chave da torre, e são hoje teus os sinos. Quando quiseres terás as
bolachas e os berimbaus.»
A proposta de Gabriel penetrara,
como um bálsamo suave, na alma do sacristão: fazia a despesa com seis e meio e
economizava o resto para a igreja, isto é, para si, como representante dela.
Gabriel saltou acima do parapeito
do adro e pôs-se a olhar para o lado onde morava o Chico. Batia-lhe o coração
com força. Às oito horas devia nascer para ele um dia de glória e
contentamento, ou de desdouro e zanguinha. Deram as oito. «Viva!», bradou,
saltando ao terreiro e correndo ao sacristão. «Venha!», prosseguiu, lançando
mão da chave da torre com tal violência, que João Nepomuceno por um triz não
foi a terra. Ia-lhe quebrando um dedo.
«Dianho!... Safa, alimária! Forte
doido!... Ó Gabriel! Ouve cá, Gabriel! Olha que está passada a corda da
garrida...»
Qual Gabriel, nem meio Gabriel!
Tinha desaparecido como um foguete. O sacristão levantou os olhos para o
campanário e viu já as cordas a bambolearem e a desembaraçarem-se, como as
tranças de nobre dama nas mãos subtis de aia jeitosa. Gabriel era, sem a menor
sombra de dúvida, a flor e nata da rapaziada curiosa da aldeia.
Uma pancada retumbante e sonora
no sino grande, a qual se repetiu lentamente algumas vezes, foi como um
mensageiro, despedido por montes e vales, a anunciar um dia de repouso e
folgares para o homem do campo, curvado sob o sol ardente nas ceifas e mais
trabalhos rurais do Estio, durante os longos dias de trabalho. Era como o
romper de vasta sinfonia. Gradualmente, os outros sinos misturaram as suas
vozes argentinas com a do primeiro e a atmosfera esplêndida vibrou, ondeando em
tempestade de notas, que se cruzavam, cortavam, interrompiam, lutavam, com
bárbara harmonia. A princípio, Gabriel, pausado e lento, lançava sucessivamente
uma ou outra mão a esta ou àquela corda; pouco a pouco, os movimentos
tornaram-se mais rápidos e os sons que transudavam por todas as aberturas,
pelos mínimos poros da torre, começaram a assemelhar-se ao granizo do noroeste,
que, de instante a instante, se torna mais espesso ao passo que a nuvem corre
mais perpendicular. Era, por fim, um remoinho, um delírio, uma fúria sonora.
Gabriel estava tomado de campanomania; mãos, pés, dentes, tudo repicava.
Enovelado, como um gatinho, que quer agarrar e ao mesmo tempo repelir um
dixe que colheu às unhas, o bom
rapaz, com os olhos faiscantes e desvairados, parecia possesso: trepava,
bracejava, careteava, tropeava, agachava-se, torcia-se, pulava, volteava, como
se estivesse recebendo por todos os lados e a cada instante descargas elétricas.
Insensível à matinada infernal que lhe estrepitava nos ouvidos, Gabriel dirigia
palavras de amor, de ameaça, de incitamento aos sinos, como se eles pudessem
ouvi-lo. Queria comunicar-lhes o seu ardor e entusiasmo de diletante; e, como
se o entendessem, dir-se-ia que, no contínuo vaivém, eles oscilavam trêmulos de
prazer e tentavam desprender da pedra os braços robustos e voarem, como as aves
que também soltavam livremente as suas harmonias, pela amplidão dos céus.
No fim de duas horas de lida, a
natureza recuperou os seus direitos. Alagado em suor, perdido o alento,
esgotados os brios e as forças, Gabriel afrouxara pouco e pouco. A estrepitosa
e horrenda caricatura do dueto da Semíramis fora o canto do cisne. A viveza
doidejante do repique converteu-se num tocar lento e solene, que ora imitava o
dobre de finados, ora os três sinais melancólicos que indicam o fim do dia que
expira.
Também era tempo. No seu banco,
parte dos festeiros, cobertos de fitas e medalhas, esperavam já impacientes que
o prior, o padre Chaparro e Fr. José dos Prazeres saíssem da sacristia para
começar a missa. No coreto, as rabecas chiavam, cada vez com o ódio mais
figadal entre si, ao passo que os virtuosos faziam todas as diligências
possíveis para as por de acordo consigo mesmas e com os outros instrumentos. A
gente, não só da aldeia, mas também dos casais e lugares vizinhos, afluindo de
contínuo, enchiam a igreja, e o apertão, que ia a maior, começava a avariar os
chapéus, os xailes e os vestidos das aldeãs mais opulentas, que tinham obtido
transfigurar-se horrendamente com os trajos das peralvilhas da capital, os
quais harmonizavam tão bem com aqueles corpos mal acepilhados e robustos, com
aqueles rostos morenos e rosados, como os instrumentos da revoltosa orquestra
se afinavam entre si.
Era um escândalo, profundo
escândalo, para as beatas da freguesia, para as almas repassadas de patriotismo saloio, ver as
novidades de vestuários que as corruptoras
influências de Lisboa iam exercendo nos antigos costumes, viciados por essas escusadas louçainhas. A
honestidade das raparigas, entendiam
aquelas matronas de virtude tão sólida como as suas sapatas, tinha ido por ares e ventos, envolta nos farrapos
das humilhadas salas de baeta vermelha,
das abandonadas roupinhas de pano azul e das piramidais carapuças. A devassidão, embrulhada nos
vestidos de chita, de lã e de seda e metida
entre o forro dos chapéus de palha, penetrara no seio das famílias. Tudo estava
perdido e a moral ia cada vez pior, diziam elas, com a filosofia maciça que o judicioso Horácio já gastava há
dois mil anos e que é a mentira mais
trivial, mais velha e mais tola que se conhece no mundo. Nas suas reflexões piedosas, as respeitáveis decanas da
aldeia esqueciam, ou, antes, ignoravam,
o único motivo sério que havia para lamentar aquela transformação. Era que esses trajos tornavam
contrafeitas as raparigas aldeãs; matavam
a poesia campestre; associavam ao idílio a valsa e o whist, e como que
impregnavam a atmosfera, pura, brilhante e livre, dos miasmas repugnantes que povoam o ambiente pesado e
abafadiço de tertúlia cortesã.
Mas antes de prosseguirmos nesta
gravíssima história, é necessário que trepemos
àquela encosta que fica em frente do presbitério e que vejamos o que é feito de um nosso conhecimento antigo,
roda indispensável para o andamento da
máquina de sucessos que vamos tecendo. Quem não vê que falamos do jovial e praguejador Bartolomeu,
santo velho, se não fosse um desalmadíssimo
avaro? O moleiro, desde que o filho casara, andava-lhe tudo à medida dos seus desejos. Era ganhar dinheiro
como milho, e o futuro da família dos
Ventosas surgia brilhante no horizonte. O Manuel estava, de feito, aposentado na azenha do Inácio Codeço e com
uma labutação de por aí além. As peças
do padre-prior tinham feito o milagre sonhado por Bartolomeu e ainda tinham sobrado algumas, que o
honradíssimo moleiro associara às do seu
mealheiro, para arranjar o Casal dos Caniços, de cuja venda já lhe dera palavra seu irmão Barnabé, a quem ele, havia
dois meses, não deixava de dor de
ilharga para que lhe tornasse as suas vinte moedas, que lhe eram indispensáveis, dizia o matreiro saloio, para
pagar uma dívida contraída com um
usurário de Lisboa por causa do casamento do seu Manuel, que se vira obrigado a arrumar. E, como Barnabé, que
também era saloio e manhoso, lhe objetasse
que só vendendo o Casal dos Caniços lhas poderia pagar de pronto e que era uma de seiscentos achar comprador
que desse o que ele valia, Bartolomeu,
aceso em amor fraterno, lhe declarou que o maldito usurário dera a entender que, se ele, Bartolomeu, tivesse
umas terras que lhe empenhasse, esperaria
pelo dinheiro com quaisquer cinco por cento ao mês; que, por isso, vendo-se naqueles apertos e aflições, faria o
sacrifício de lhe tomar o casal pelas
vinte moedas e mais o que fosse justo, que iria pedir ao mesmo usurário; porque — acrescentava ele, quase chorando —
vão-se os anéis e Fiquem os dedos. Que
ficaria arrasado, e a bem dizer a pedir esmola, porque, como ele, Barnabé, lhe afirmava todas as vezes que lhe
ia pedir o seu dinheiro, as excomungadas
das terras apenas davam para o fabrico. Enfim, tão despejadas mentiras pregou ao irmão, tanto o atenazou,
tais artes teve de lhe converter as setas
em grelhas, que as bichas pegaram e Barnabé deu o sim, a risco de estoirar os ossos à Tia Vicência, sua
respeitável consorte, à mínima pegadilha, ou de rebentar de paixão alguma noite na cama,
como um Satanás se não desabafasse
daquela grande mágoa com uma boa maçada na mulher, consolação que para um verdadeiro saloio é,
nas aflições, o supra-sumo dos prós e
percalços matrimoniais.
A Providência temperou as coisas
deste mundo de modo que se podem simbolizar
todas as felicidades dele numa ameixa saragoçana. Doçuras, suco, beleza externa, sim, senhor; tudo quanto
quiserem: mas, no fim de contas, travo e
mais travo ao pé do caroço. É o que explica, pé à pá Santa Justa, a teoria das compensações de Azaís. Mais um caso
para mostrar as carradas de razão que
Azaís tinha na sua grande cenreira a este respeito é o que sucedeu ao moleiro no dia em que Barnabé acabou de se
resolver sobre o Casal dos Caniços.
Tinha sido, justamente, no dia da festa pela manhã, que Barnabé fora com a sua Joana à missa das almas e viera pelo
moinho almoçar com o irmão, que não lhe
mostrou a melhor cara a princípio, mas que até mandou fazer uma fritada de meia quarta de linguiça e três
ovos (um botou-se fora, porque estava
goro) quando soube ao que ele vinha. Bartolomeu não cabia em si de contente: obrigou a sobrinha a levar atados
rio avental obra de dois arráteis de farinha,
para fazer umas raivas, pondo lá o açúcar e os ovos e mandando-lhe metade delas, e, por mais que pai e filha se
escusassem de aceitar o seu favor, embirrou
e não houve torcê-lo. Estava naquele dia capaz de lhes dar de presente metade da sua fortuna, e mais era,
dizia ele, um pobre de, Cristo. Logo que se foram, Bartolomeu deitou a correr
para casa, fechou-se no seu quarto, abriu, umas após outras, as vinte gavetas
de um contador, mexeu e remexeu em todas elas, tornou a fechar e, fazendo
contas de cabeça, começou a passear de um para outro lado do aposento, com as
mãos cruzadas nas costas e entregue às suas preocupações.
Os adornos ou guarnição. do
quarto consistiam num leito de casados de pau-santo, de pés torneados e
cabeceira redonda, tálamo nupcial, agora enlutado pela sempre chorada morte da
Tia Genoveva da Ventosa, mãe de Manuel da Ventosa e mulher que fora do honrado
Bartolomeu da Ventosa, que, para falar como os poetas, solitária rola (ou rolo
ou rolho) naquele ninho silencioso, se encouchava triste nas longas noites de
Inverno, aí, outrora tão felizes! O contador ficava em frente, ao lado um
bufete, e sobre o bufete um oratório forrado de damasco amarelo, com sanefa
encarnada. Sete santos povoavam o larário da defunta moleira: S. Sérvulo, Santo
Onofre, S. Miguel, S. Sebastião, S. Gregório, Santo Antônio e S. João Baptista;
este último no centro e em peanha mais elevada; Santo Antônio, à sua direita,
com um cordão de ouro lançado ao pescoço, dando muitas voltas ao redor do
corpo. Como suplemento, por cima da cabeceira da cama, uma lâmina da Senhora da
Conceição e dois registos, um de Santa Bárbara e outro de Santa Rita; no tardoz
da porta uma cruz de S. Lázaro, pregada com massa. Uma arca da índia, com
ferrolho de correr e pregaria de grandes cabeças chatas, de duas
polegadas de diâmetro, e quatro
cadeiras de costas e assentos de couro lavrado completavam a mobília do
aposento. No canto do bufete, quase à borda, estavam cravados um cruzado novo e um tostão
falsos, memórias dolorosas de um mono
que pregara certo padeiro de Lisboa ao moleiro na compra de uns sacos de farinha, história que, se eu a
contasse, havia de fazer arrepiar o pêlo
aos leitores, mais do que as novelas de Ana Radcliffe.
«Dez centos de mil réis!
Chumba-lhe!», dizia o velho, esfregando as mãos, como um botecudo esfrega dois paus de que quer
tirar lume e passeando com passos curtos
e rápidos de um para outro lado. «É isso! Cem peças, setecentos e meio: quatrocentos pintos, dois centos menos
oito: fazem novecentos e meio menos
oito: duzentas cravelas de doze, meio cento menos dois: oito e dois dez: dez centos menos dez: oitenta de
seis fazem duas moedas: duas moedas dez
mil réis menos um cruzado: oito meios tostões quatro tostões: quatro tostões com... justamente, dez centos.
Ah, sô Barnabé, quer setecentos? Hem?
Com vinte moedas que já lá andam a juro, parece-me!... Quer ou não quer?» «Homem, isso é muito
pouco...» «Pouco?! E doze moedas de
foro?» «As terras dão bem para isso: só a Abrunhosa...» «Pois se dão, homem, paga-me as vinte moedas. Ah, embatucas? Oh, oh, ih, ih, ih!»
E Bartolomeu ria a bom rir
daquele diálogo que fantasiava travar com o irmão. De repente, porém, as feições
contraídas pelo riso se lhe imobilizaram diante de uma ideia fatal. Barnabé podia dar
com a língua nos dentes acerca do
negócio, nalguma noite em que fosse para a tenda do Agostinho jogar a bisca a vinho, conforme o seu costume, e sair
um atravessador a picar-lhe o lanço; o
Bento Rabicha, por exemplo, que tinha muito caroço e que era um dos da tripeça da bisca. Vinham-lhe calafrios
com tal pensamento. Uma palavra, uma
alusão perderia, talvez, tudo. Era verdadeira agonia a sua.
Costumado a implorar o céu nas
grandes aflições, Bartolomeu, por uma daquelas
subtilezas morais dos avaros que sabem conciliar a devoção com o seu vício hediondo, ajoelhou diante do
oratório e, com lágrimas e fervorosas súplicas,
começou a pedir a S. João Baptista fizesse com que Barnabé não tugisse nem mugisse a semelhante respeito. Nas
suas orações passou-lhe, talvez, pela
cabeça a ideia de um estupor na língua de Barnabé. Desconfio: não o afirmo; porque não gosto de coisas ditas
no ar. O que é certo é que procurou dar
a entender ao santo que teria duas velas acesas e uma esmola para a sua festa, se as coisas lhe saíssem a
jeito, exprimindo-se, todavia, por tal arte
que não ficasse absolutamente preso pela palavra e pudesse roer a corda depois de se pilhar servido.
Enquanto o moleiro se debatia
nestas tempestades de ambição, passava-se no presbitério a cena que já descrevi entre João
Nepomuceno e Gabriel. A princípio,
Bartolomeu, embebido nos seus cálculos, temores e rogativas, nem sequer ouvira os repiques variados e harmônicos
Com que o rapaz do moinho rompera o seu
grande e festivo concerto; mas, pouco a pouco, o motim dos sinos crescera a ponto que só os defuntos do
cemitério poderiam ficar indiferentes a
tão retumbantes belezas musicais. Na aldeia já ninguém se entendia no meio dessa procela de sons, que,
trepando pelos outeiros ao redor e
precipitando-se para os vales além, iam levar o ruído da festa e a glória de S.
Pantaleão às povoações vizinhas.
Penetrando pelos ouvidos do moleiro, aquelas
vibrações desalmadas fizeram-no despertar do êxtase de sovinaria devota que o arrebatava. Ergueu-se, chegou à
janela, alçou a adufa, pôs-se a mirar o
relógio de sol do campanário, piscando os olhos e fazendo com a mão uma espécie de pala para os defender da luz e,
depois de se afirmar por um pedaço,
deixando cair de golpe a adufa, correu à arca, murmurando: «Nove horas! já mais de nove horas! Esta, só por
trezentos milheiros de diabos! E ainda
tenho de me vestir! Com seiscentos diabos! Daqui a nada estão lá os outros. Ora o Diabo!...»
Estas imprecações em razão
descendente, que o moleiro tinha sempre na boca por um mau hábito e que todas as pregações e
remoques do padre-prior não tinham
podido fazer perder àquela língua danada de Bartolomeu, nasciam de unia circunstância, na verdade séria. A função
de igreja deveria começar às dez horas,
e ele era um dos festeiros. O padre-prior tantas voltas dera que o obrigara a sê-lo e a esportular uma moeda para
as despesas. Devemos acreditar que nunca
o teria alcançado se não fosse o dote de Bernardina, sobre o que o moleiro tremia que o velho clérigo
deixasse escapar alguma palavra. Ele
aproveitara habilmente o caso para passar por bom pai e generoso e, ao mesmo tempo, para se esquivar ao menor ato de
beneficência o resto da sua vida,
afirmando que se empenhara até os olhos para comprar e reparar a azenha do Inácio Codeço, e estabelecer lá o
seu rapaz, quando a verdade era que,
comprada a azenha, posta a casa aos noivos, adquiridos seis machos, paga a soldada de três meses a dois moços, provida
a despensa e deixadas algumas moedas
para as despesas diárias, ainda certo número de louras do padre-prior tinham ido cair, como já disse, no escaninho
onde jaziam, sem ver sol nem lua,
aquelas que o moleiro acabava de contar. Obrigado por tal consideração, e à força de rogativos do pároco e das picuinhas
de outros irmãos da Irmandade do
Santíssimo, que se tinham metido no negócio, o moleiro achava-se elevado a uma situação que estava longe de ambicionar.
Perdida a moeda, que ele havia de chorar
toda a sua vida, importava-lhe não perder a consideração e valia na festa, valia que por tão alto e
raivado preço comprara; era esse o risco que ele via iminente, ao menos em parte, se
não estivesse a ponto de sair da sacristia
para a capela-mor no préstito dos festeiros.
O dia começara bem; mas ia-se
tornando aziago.
Apesar de velho, curto e
barrigudo, o moleiro, não vendo nenhum outro meio de esquivar o contratempo que receava,
apressou-se o mais que pôde em se adornar
com o asseio e pontualidade que requeria o ato. Do fundo da arca saiu o arsenal completo para os dias de ver a
Deus. Era respeitável pela antiguidade!
Monumentos de mais felizes épocas, os arreios esplêndidos de Bartolomeu constavam de uns calções de
gorgorão cor de tabaco, de um colete de
veludo verde e de uma casaca azul de abas largas e gola estreita (isto passava há bem dezoito anos), antípoda da
casaca peralvilha dos casquilhos daquele
tempo. As minudências do trajo diplomático do moleiro compunham-se de um chapéu armado, de um
pescocinho com bofes, de umas meias de
algodão brancas e de uns sapatos de entrada a baixo, ensebados de novo, com
fivelas de prata, que batiam quase na vira, de um e de outro lado. Assim
vestido, era um príncipe. Não; que lá isso é verdade; metia respeito!
Apressado, vermelho, suando com a calma, bufava como um touro, encaminhando-se
para a igreja. Os moços dos seus colegas, os de três padeiros que havia no
lugar e os de cinco lavradores a quem costumava comprar os trigos, passando por
ele, desbarretavam-se até baixo; a outra saloiada, especada pelo arraial, fazia
menção de cortesia com o barrete: dos mendigos que começavam a apinhar-se para
o lado do presbitério ao cheiro do bodo, uns, que não o conheciam, por virem de
longe, estendiam-lhe a mão e davam-lhe senhorias, tudo em vão; outros, que eram
dos arredores, rosnavam e praguejavam-no. Mas dessas rosnaduras e pragas ria-se
ele. Na auréola de glória que o cercava já, que o ia cercar, ainda mais
brilhante Bartolomeu estava tanto acima da maledicência daqueles madraços como
os homens de Estado de qualquer partido costumam estar acima das ferretoadas,
sovinadas e lambadas da imprensa periódica do partido contrário, segundo
afirmam os da sua parcialidade: vide jornais de todas as cores e cambiantes,
passim. Como os políticos, o moleiro podia dizer, pondo a mão no coração «a
minha consciência», «a minha honra», «a opinião pública», «os meus serviços»,
«a nação», «a posteridade», e depois tossir e escarrar grosso, e seguir avante,
sem se embaraçar com aquele rosnatório despeitoso e zangado; porque, como bem
disse um poeta de filosofia ancha:
O prêmio da virtude é a virtude:
O castigo do vício o próprio
Vício.
E foi o que Bartolomeu fez: e com
razão. Não eram os respeitos dos moços e dos outros moleiros e dos lavradores
seus fregueses e os dos pobres que o avaliavam pelo sécio dos trajos a prova
cabal e indestrutível da sua popularidade? Eram. Que caso devia, pois, fazer
dos zunzuns de meia dúzia de farroupilhas? Nenhum. Eu cá, pelo menos, sou de
opinião que fez bem prosseguindo no seu caminho, tranquilo com o testemunho de
uma voz íntima, que o certificava de que era homem de importância e digno por
todos os títulos de representar o papel de festeiro a que fora chamado.
Mas a nobre altivez do moleiro e
a firmeza que mostrara em não deslizar um ápice do caráter grave e sobranceiro
que era próprio da sua situação tinham de ser postas à mais dura prova. O
momento em que chegou ao adro foi aziago. Aí viu e ouviu coisas que o fizeram
sair da gravidade e compostura que até então guardara. O que o negócio deu de
si vê-lo-á o leitor no prosseguimento desta história, que poderá ter mil
defeitos, mas que (não é por me gabar) tenho levado com toda a pontualidade na
cronologia e na averiguação dos mais miúdos fatos que possam ilustrá-la.
VII
TANTAENE ANIMIS?
Quando Bartolomeu ia entrando no
adro, viu um taful e uma senhora que, à porta da igreja, forcejavam para romper
a pinha de povo que a obstruía. Vistos assim pelas cestas, pareciam pessoas de
conta. Trajava ela um vestido de seda preta, um grande xaile vermelho e um
chapéu, franzido à inglesa, cor de café: ele calça e casaca preta da moda e
chapéu fino, posto que já amarrotado pelos apertões da saloiada, que, fingindo
quererem abrir caminho ao elegante par, cada vez se uniam mais, olhando uns
para os outros com aquele sorriso de socapa e malévolo que é peculiar dos campônios
quando colhem algum indivíduo, cujo porte e aparência os humilha, para vítima
das suas graças e perrarias, um pouco abrutadas.
O moleiro tinha nascido naqueles
sítios, nunca dormira uma noite fora do lugar, lidava com muita gente em
consequência do seu tráfego, ia-lhe já a neve pela serra e, por isso, conhecia
perfeitamente os hábitos, propensões e manhas dos seus patrícios. Percebeu logo
que os saloios estavam de embirração com as duas personagens cortesãs e
desenganou-se de todo, vendo vir do lado da igreja um dos moços do Agostinho da
tenda, que, fingindo-se bêbado e cambaleando, dizia: «Cresça o Monte, rapazes;
cresça o monte!»
O magnetismo animal é um mistério
ainda: a extensão das afinidades magnéticas ninguém a pode demarcar. De homem
para homem elas são indubitáveis; mas, porventura, vão mais longe. Ao menos, eu
creio que os calções, a casaca e o chapéu armado do moleiro atuavam fortemente
no seu espírito por influência oculta. Sentia no coração uma espécie de cócegas
aristocráticas, uma vontade de mostrar o que podia e valia aos nobres hóspedes
da sua terra, que, pretendendo assistir à festa, se colocavam naturalmente
debaixo da sua proteção, como festeiro. Era esta uma ideia que não lhe viria à
cabeça quando trajava os seus calções enfarinhados, o seu colete assertoado e a
sua jaqueta de saragoça. Mas veio-lhe então, misteriosa, irrefletida, forçosa,
posto que sem quebra da liberdade de a rejeitar, semelhante, se a comparação
fosse lícita, à graça eficaz. Aproximou-se, pois, abrindo passagem por entre a
turbamulta, O primeiro indivíduo com quem topou em cheio foi com Gabriel, que,
tendo saído do campanário, tratava também de penetrar na igreja para ajustar
contas com o sacristão, logo que se lhe oferecesse oportunidade. Para
aproveitar o tempo, Gabriel, informado do que se passava, ia ajudando a
aumentar o apertão que crescia cada vez mais, de modo que a dama do xaile e o
dândi de preto, entalados junto do guarda-vento, nem podiam recuar nem surdir
avante. Apesar, porém, da pequenez do seu corpo, Gabriel parecia ter de olho as
duas vítimas, como receoso de que, voltando a cabeça, o lobrigassem. Careteava,
ria, empurrava com alma; mas, de instante a instante, punha-se nos bicos dos
pés, espreitava por cima dos ombros e por entre as cabeças dos vizinhos,
agachava-se, ao menor movimento que via fazer aos dois, tornava a empurrar e,
nesta lida, o garoto renovava, incansável em novo combate, as façanhas que,
havia pouco, praticara no sempre memorando repique.
«Mariola!», rosnou colérico o
moleiro por entre os dentes cerrados, ao chegar ao apertão e agarrando de
súbito as orelhas de Gabriel, que, com uma cara onde assomava o choro, encolhia
a cabeça entre os ombros, mal comparado, como um caracol quando lhe puxam os
tentáculos. Não tanto pela voz, como pelo contato das mãos, assaz conhecidas
daquelas pobres orelhas, Gabriel sentira o patrão. Era, todavia, já tarde.
«Mariola!», repetiu Bartolomeu,
com o mesmo grito mal sopeado de cólera. E ouviu-se o tinir duvidoso de uma
fivela, acompanhado de um som baço, como quem dissera o do bico de um sapato
grosso batendo sobre uma pouca de bombazina estufada de certa porção convexa de
carne humana. Gabriel descreveu com o corpo um arco, mas no sentido inverso ao
de quem faz cortesia profunda. E começou a soluçar.
«Mariola!», acrescentou, ainda
outra vez, o moleiro, com aquele fatal rugido que significava o seu profundo
despeito. Ao dito seguiu-se rapidamente o feito. Largou as orelhas do rapaz:
recuou o braço, cerrou o punho e desfechou-lhe tal murro no toutiço, que
Gabriel foi ao chão.
A princípio, uma certa
contemplação com a idade, com o caráter e, mais que tudo, com a fama de ricaço
de que Bartolomeu gozava, conteve os murmúrios dos poucos a quem as diligências
comuns para penetrar na igreja tinham consentido atender ao duro castigo que
convertera Gabriel num como bode emissário dos pecados de muitos. Quando,
porém, o mesquinho rapaz caiu em terra, a indignação dos seus co-réus rebentou.
O moço do Agostinho, posto que a medo, levantou a antífona.
«Também é bater à bruta! Agora, a
prove criança fez-lhe algum mal?! Vá bater assim no Diabo. Olhe não matasse
aqueles milordes!...»
«Entre, Sô Doutor!», atalhou
Bartolomeu, atirando umas escorralhas de pontapé que ainda lhe titilavam nos
tendões da perna direita ao limite inferior das vértebras de Gabriel, já que
não podia sem risco aplicá-las ao orador. Essa fora, todavia, a sua primeira
inspiração.
«Ai, é para isso que uma mãe cria
um filho! Coitadinho, já não tens pai! Não foras tu orfo e prove. Mas, cala-te,
boca. A gente sempre vê coisas!»
Ouvindo estas palavras,
proferidas por uma voz feminina conhecida, o velho moleiro voltou-se. Era a
Sra. Perpétua Rosa, que, em companhia da ama do prior, tinha chegado naquele
instante a mata-cavalos, por se haverem ambas entretido a examinar umas meadas
que a Tia Jerônima dera a curar à lavadeira e que esta, vindo ara a festa, de
caminho lhe fora entregar. Posto que ligados, até certo ponto, pelo casamento
dos seus filhos, a mútua má vontade da lavadeira e do moleiro, alimentada por
largo tempo, tinha sido como o escalracho: cada ano profundara mais um palmo de
raízes. Só havia uma diferença, e era que Perpétua Rosa, protegida pelo genro,
perdera pouco a pouco o medo que tomara a Bartolomeu desde aquela história das
sacas e já se engrifava para ele sem cerimônia. Encontrando-se às vezes na
azenha, nem uma só deixavam de se travar de razões por qualquer palha podre. De
resto, tratavam-se com aparente cordialidade. Era como a aliança e simpatia
atual entre a França e a Inglaterra.
«Pois não, sua lambisgoia!»,
acudiu o moleiro, fazendo-se vermelho. «Acha você muito bonito que meia dúzia
de patifes estejam judiando com as pessoas que querem entrar na igreja? Com um
quarteirão de diabos! Quem dá o pão dá o ensino; e este, pelo menos, hei de eu
ensiná-lo!... Rosna pra aí, pedaço de bruxa velha», acrescentou ele, vendo que
Perpétua Rosa continuava a resmonear, já com acompanhamento de: «tem razão, Tia
Perpétua!», «olha o maluco!», «se queres ver o vilão, mete-lhe a vara na mão!»,
«é agora o senhor assaluto!». Era uma tempestade iminente: era a revolta eterna
do pobre contra o abastado, que resfolga pelo mínimo respiradouro. E o sussurro
crescia, e Bartolomeu, sufocado pela raiva, batia o pé, e debalde tentava
cuspir por cima daquela quase algazarra as pragas, as injúrias, as ameaças, que
lhe faziam maior entupimento na garganta do que pão de cevada faria em goelas
de peralvilho dengoso. Vingava-se, é verdade, em servir de coices e cachações o
mísero Gabriel, que se lhe rebolava aos pés; mas isto não era senão botar lenha
ao forno e aumentar cada vez mais o tumulto. A hirta mó de saloios ao pé do guarda-vento
tornava-se mais flexível, ondeava, alargava-se, dissolvia-se e vinha
aglomerar-se de novo em volta de Bartolomeu, curiosos de indagarem o motivo
daquela assuada. Falavam todos a um tempo: no meio do burburinho já ninguém se
entendia; e, apesar da cólera e da sua habitual firmeza, o moleiro começava a
titubear.
Na fúria em que estava incendido
contra Perpétua Rosa, contra a ama do prior, que também tinha desembainhado a
língua em defesa de Gabriel, e contra outras duas velhas do lugar que ajudavam
a atenazá-lo, Bartolomeu não reparou que o taful, por cuja causa se metera
naquela nora, forcejava por chegar ao pé dele. Por fim, foi a própria Perpétua
Rosa que o fez atentar por isso.
«Venha, Manuel, venha cá: olhe a
figura que está fazendo seu pai. Forte toirão! Abrenúncio!»
A isto o moleiro alçou os olhos
para aquela parte e viu... Quem havia ele de ver? O seu Manuel, que com efeito,
rompia entre a turba, aproximando-se, seguido de Bernardina, que, lá de longe
fazia esgares e visagens à Sra. Perpétua Rosa e à Tia Jerônima para que se
calassem. Os dois tafuis, os dois milordes, os dois fidalgos, por quem
Bartolomeu afrontava as iras populares, eram, nem mais nem menos, seu filho e a
sua nora. Ficou parvo. O luxo dos noivos fez-lhe esquecer Gabriel, as velhas,
as injúrias, tudo. Como o corpo eletrizado pelo contato da resina, que é
repelido ao chegarem-no de novo a ela e desembesta para o vidro se lho
aproximam, a sanhuda indignação do moleiro nordesteou para as novas vítimas.
Cingiu involuntariamente as algibeiras com as mãos; porque cada uma delas se
lhe figurou convertida num repuxo de cruzados novos, que, descrevendo uma curva
parabólica, iam cair nos balcões dos arruamentos de Lisboa. Depois, fincando os
punhos cerrados nos vazios e abanando a cabeça de um para outro lado,
poder-se-ia comparar ao oceano, nos momentos que precedem a tempestade, quando
as vagas, profundamente revoltas, ainda se não encrespam em carneiradas, mas
banzam, como sonolentas, espertando-se para o combate.
Passa a França pela terra
clássica da galanteria. parece que o belo sexo tem ali o seu trono. Neste ponto
cedem a palma aos Franceses os outros povos. Dizem-no todos; mas eu digo que
não. Vence-os esta namorada terra de Portugal. Os nossos afetos serão menos
ruidosos, menos rendidos; são, porém, mais ardentes e duradoiros. Se as frases
de uma língua podem, muitas vezes, servir para revelar o caráter, os costumes
e, até, a história da nação que a fala, a nossa língua e a francesa nos
oferecem argumento da existência dessa superioridade do coração, pela qual eu
ponho, não digo a cabeça, mas quase. E, senão, respondam-me. Que incêndio seria
maior: aquele que precisasse de um ano para amortecer e extinguir-se, ou o que
durasse apenas um mês? Indubitavelmente o primeiro. Belamente. Venhamos agora à
hipótese. O matrimônio é, da sua natureza, resfriativo: a paixão mais violenta
acalma, entibia-se, entisica e morre com
o trato doméstico; e feliz se pode chamar a união em que a amizade e a estima vem
substituir os sonhos e delírios do amor
já saciado. Há, todavia, um período em que, apesar de satisfeito, ele resiste ainda: é durante o lento desabar das
ilusões, que vão caindo peça a peça.
Nesse período, ainda aos casados cabe o nome poético de amantes; depois é que se chamam a coisa mais prosaica e
positiva que se conhece no mundo;
chamam-se marido e mulher. Esta época transitória tem a sua fórmula diversa conforme as diversas línguas.
Exprime-a em francês a frase lua-de-mel: o português diz ano de noivos. É claro que em
Portugal resiste o amor ao matrimônio
doze vezes mais que em França. Lá um mês; cá um ano. Fiquem as raparigas de aviso: nada de amores com
estrangeiros: Se em França, num mês,
colhem todo o fruto da vitória, que será por essas terras de Cristo mais geladas e nevoentas? Eu, por mim, façam lá o
que quiserem. Lavo daí minhas mãos.
Bernardina, essa é que a dera em
cheio casando com o Manuel da Ventosa. Aos
quatro meses de noivo era ainda um baboso por ela. No princípio de Julho ajustara contas com os compradores das
maquias da azenha e recebera algumas
moedas: a festa da aldeia estava próxima: Bernardina morria por tafularia: o moço moleiro também não lhe era
avesso. Tinham o vício instintivo da
gente nova, vício legítimo, se em vícios se pode dar legitimidade. Duas forças arrastavam, pois, o pobre Manuel
da Ventosa: o amor e a própria inclinação.
D. Tomásia, irmã do mestre-escola da aldeia (se Deus me der vida e saúde, ainda talvez um dia conte a história
do digno professor), vivera na corte
muitos anos com o sábio mano. Nisto de modas falava que nem um livro. Quando ia por acaso a Lisboa, nunca
deixava de visitar duas ou três modistas
suas conhecidas, de maneira que, por assim dizer, andava sempre ao par da ciência. Foi num aposento interior, no sancta sanctorum da residência magistral, que se traçou, discutiu e resolveu
a conspiração que devia baralhar os
cálculos de Bartolomeu sobre as maquias da azenha naquele semestre. Seis moedas foram ali barbaramente espatifadas. Foi
um orçamento perfeito: talhou-se por
cima da risca do necessário e gastou-se; gastou-se, daí a poucos dias, até o último real, já se sabe, com
severíssimas economias, ficando-se devendo
apenas uns três mil e seiscentos a D. Margarida, famosa modista daquele tempo. A campanha fez-se do modo
seguinte: Manuel da Ventosa acompanhou
D. Tomásia a Lisboa, para umas compras de certos arranjos domésticos, de que ela dizia muito carecer. Os
arranjos eram os da fatal conspiração
contra o velho Bartolomeu. Os trances de esperança e de receio do bom ou mau desempenho de D. Tomásia porque
passou Bernardina, enquanto os dois não
voltaram, não cabe no possível narrá-lo. Apesar disso, a elegância com que se imaginava trajada e
trajado o seu homem namorava-a de si
mesma e dobradamente dele. Chegava a ter ciúmes das olhaduras que deitariam ao Manuel as outras
raparigas, sem que por isso deixasse de admitir, com certa complacência inocente, a ideia do
quanto a tinham de achar atrativa os
rapazes da aldeia. Enfim, é aqui o caso de dizer com o poeta, acerca do que se passava no coração da moleira:
Melhor é experimentá-lo que
julgá-lo;
Mas Julgue-o quem não pode
experimentá-lo.
Voltaram os dois às trindades. O
escolar valido do mestre, que aviava os recados
de casa, tinha acompanhado a expedição. Num grande saco de damasco amarelo,
herdado por D. Tomásia da sua avó materna, e em duas grandes caixas de papelão,
trazia o rapaz os almejados adornos. Quem diria que o monumental saco era a
boceta de Pandora!? Pois era. Bernardina saltou de contente ao desenfardelar
aquela feira: estava vestida à moda desde os pés até à cabeça, posto que o seu
Manuel houvesse cortado para si uma posta de leão. Digo isto porque, apesar de
toda a farandulagem feminina que a boa da irmã do professor escolhera com fino
tato, quatro moedas tinham ficado no Adrião, num chapeleiro do Rossio e num
sapateiro aí próximo, não me lembra em que rua, porque isto já lá vai há muito
tempo e a história está sujeita a estas deploráveis lacunas. O caso é que ele,
pela sua parte, envergada aquela fatiota, poderia, sem grande favor, passar por
um fidalgo de província chegado de três dias à corte. Fugia-lhe tudo um és não
és do corpo e tolhia-o, é verdade; mas ficava um mocetão teso; um milorde, como
diria o jovem do Agostinho da tenda.
Segredo, segredo profundíssimo
(semelhante ao da nossa tão célebre conspiração em 1640 contra os Castelhanos,
da qual só, talvez, sabia o primeiro-ministro de Castela) se guardou na azenha,
olim de Inácio Codeço, acerca de todas aquelas tafularias. Quantas vezes não se
vestiram a casaca e o vestido de seda! Quantas vezes se não puseram a casaca e
o chapéu de castor e o franzido! Que reviravoltas se não deram, que visagens se
não fizeram diante de um espelho de espinheiro, com as suas cortinas de
paninho, que adornava a casa de fora, sobre uma cômoda de vinhático oleado,
cujas puxadeiras de metal amarelo luziam que nem ouro! Que disputas não houve
sobre o abotoar e o desabotoar, o atacar e o desatacar, o pôr o chapéu assim e
o pôr o chapéu assado! E D. Tomásia, que presidia àquelas conclusões, da alteza
da ciência punha termo à questão com o seu parecer decisivo, magistral,
oracular. No grande dia da festa, a vaidade daquelas duas criançolas,
satisfeita com a admiração popular, não valeria, não podia valer, o deleite que
a antevista glória desse dia lhes dava em imaginação. Ai, assim são todas as
ambições e esperanças humanas! O gozo é sempre o desengano, mais ou menos
ensosso, das fascinações do desejo.
Mas havia uma nuvem negra que
entenebrecia o brilho de tão completa felicidade. Era a lembrança do gemo de
Bartolomeu. As vezes, no meio dos mais festivos comentários sobre a grande
vista que tinham de fazer com as inopinadas sécias, a figura do moleiro surgia
terrível, enrugada a testa pela severidade, os olhos-ervilhacas faiscantes de
cólera, a boca borbulhando pragas. Bartolomeu cortava com o seu vulto ameaçador
aquela linda página dos sonhos da vida, bem como o pingo de amarelado simonte
(perdoe-se o enxovalhado do símile em favor da exação) que, rolando
insensivelmente pelo estendido beiço do velho sapateiro, vai cair sobre o
Carlos Magno, aberto em cima dos joelhos e, espalmando-se arredondado sobre as
linhas mais interessantes do livro imortal, embacia e mata as chispas de
Alta-Clara no momento em que ela rompe o arnês de Ferrabrás. E o mestre pára e
assoa-se; mas a interrupção fatal desvanece as ilusões dos oficiais ouvintes e,
descerrando-lhes os dentes, lhes quebra os brios com que puxavam a encerolada
linha ou cravavam os pinos no alteroso tacão.
Uma ideia, todavia, asserenava
logo a alma de Manuel da Ventosa: o furacão paterno estava certo; mas devia ser
passageiro. Ele não havia de pôr-se a ralhar nenhuns vinte anos. Era um dia ou
dois, e aquelas louçainhas ficavam para toda a vida. Dilatava-se-lhe esta por
horizontes tão ilimitados! O bom do rapaz ainda não dobrara o melancólico
padrão de trinta anos, donde só se começa a medir bem com os olhos o curto
caminho-de-ferro entre o berço e a cova, pelo qual vai correndo esta espécie de
locomotiva chamada existência humana.
Aqui tem, pois, o leitor que
gostar da história lardeada de todas as investigações, exibições e minudências
gravíssimas de que ela se costuma temperar, com tanto juízo e talento, nesta
nossa terra, as causas e itens mais remotos e recônditos da dificultosa
situação em que achamos Bartolomeu, à vista da descomunal tafularia do filho e
da nora, cuja defesa tomara sem os conhecer, como verdadeiro paladino, e que
dava de todo coração ao Demo desde que vira assim arder sem remédio o seu
remédio, como diriam o elegante autor dos Cristais da Alma, ou os poetas da
Fénix Renascida.
Banzou por alguns momentos o
velho. A transição era demasiado violenta e rápida e a revolução que se operava
na sua alma vinha grávida de uma apoplexia. Indicavam-no as velas da cara, que
engrossavam, a vermelhidão do rosto, que ia tirando a roxo. Semelhante ao
hesitar da grimpa no topo do campanário, quando, em trovoada iminente, lutam
dois ventos contrários, Bartolomeu não sabia se repelisse as insolências de
Perpétua Rosa, que tivera a ousadia de chamar-lhe toirão, se descarregasse a
cólera que o asfixiava sobre os dois bárbaros delapidadores da quase sua
fazenda; quase sua, digo, porque o moleiro bem sabia que a azenha, comprada com
o dote de Bernardina, era, em rigor, deles, e, por consequência, deles o seu
rendimento, que, por paternal precaução, se encarregara de administrar e
poupar.
Mas a avareza, superior ao
orgulho no ânimo do velho, fez desembestar para o lado dos noivos o vento da
cólera. Abandonando o arranhado e moído Gabriel, rompeu para os novos
criminosos, que assim de súbito ousavam apresentar-se no seu inexorável
tribunal. Andando, as mãos contraíam-se-lhe por espasmo nervoso, como as garras
aduncas do gerifalte, e, ao chegar ao pé deles, lançou uma à gola da casaca do
Manuel e outra ao braço de Bernardina. Eram duas tenazes de ferro.
«Que patifaria é esta, sô
tratante?», disse, dirigindo-se ao filho em voz baixa, rouca e, de vez em
quando, apipiada pela indignação que lha tolhia. «Você não sabe que o dinheiro
custa a ganhar? Para que é essa trapagem toda? Com quê, já a sua jaqueta azul
tem bichos? E cá a grandessíssima tola não podia passar sem sedas? Não se
lembra do tempo em que andava de sapatas atrás das vacas da Josefa Enguia? Diga,
senhora mosca-morta... Olha a sonsa, que parece não quebra um prato! Anda-se um
homem a matar para lhes fazer casa, e vossemecês, senhores badamecos, a botar o
suor da gente pela porta fora. E eu sem saber nada disto! Com trezentas
carradas de diabos! Pena tenho eu de que essa mariolada os não pusesse num
frangalho. Não têm vergonha de se fazerem alvo do povo e de se
arruinarem e arruinarem-me a mim, que toda a vida tenho labutado para viver com
a minha cara descoberta?... Ó desalmado», prosseguiu depois de um instante de
silêncio, «que contas me hás de tu dar do dinheiro que extravaganciaste e que é
preciso para me acabar de desempenhar da compra da azenhas?»
Neste momento, o discurso de
Bartolomeu, que se Ia encaminhando ao patético, foi interrompido por um rir
esganiçado e trêmulo, que lhe chiou ao pé dos ouvidos. Era o caso que Perpétua
Rosa o seguira sem que ele reparasse em tal e se pusera a escutá-lo
atentamente. A última frase que a boa da velha ouvira tinha produzido nela tão
súbita hilariedade.
«E ri-se você, sua atrevida?!»,
exclamou o moleiro, voltando-se para a Perpétua Rosa. «É natural que fosse
intrépece nesta alhada...»
«Pois você na quer que eu ria a
arrebentar ouvindo-lhe essas lérias da compra da azenha? Calo-me eu, bem sei
porquê. Mas sempre lhe digo que está paga e repaga. O meu dinheiro, teu
dinheiro... Entende-me Sr. Bertolameu! Minha filha não velo descalça... »
«Ó diabo de bruxa!», exclamou o
moleiro fora de si. «Dão-me inguinações de t'esganar! Olha a piolhosa, a
estraga-albardas, que me deu cabo de seis sacas, as melhores que eu tinha, por
desmazelada...»
«Já lho disse, seu mirra-mofina,
seu manita de carneiro assado, seu sovina-mor! Não me faça falar. Olhe que eu
não tenho papas na língua...»
«Um estupor tivesses tu nela, que
te pusesse a boca à banda, aldrabista de centopeia, basculho de chaminé,
carraça do Inferno! Falta agora que a senhora diga que a lesma da filha trouxe
para o casal mundos e fundos!»
«Antão, como mexe nessa
borbulha?», acudiu Perpétua Rosa, agarrando o moleiro por uma das largas abas
da veneranda casaca e sacudindo-o com força. «É preciso que não faça da gente
tola. Assim o quis, assim o tenha. Saibam vocês», isto dizia-o voltando-se para
cinco ou seis velhas que faziam roda e segredavam umas com outras, «saibam
vocês que o Sr. Bertolameu da Ventosa recebeu mais de cinco centos de mil réis
de dote...»
«Eu deito-me a perder com este
diabo!», interrompeu o moleiro, fazendo-se fulo e soltando as mãos do braço de
Bernardina e da gola do seu Manuel, para as lançar no gasnete de Perpétua Rosa.
«Ó língua perversa! Quais quinhentos mil réis?!...»
«Os que o meu amo tinha juntado
grão a grão, como se lá diz, à custa do suor do seu rosto, com muito glória in
incelsis muito bem cantado, e muito enterro feito, e as suas bátegas d'água nos
ossos, e muito sermão pregado, e muito arranjo e poupança desta sua criada, Sr.
Bertolameu. Sr. Bertolameu, tenha propósito! que quem pão diz não houve; que lá
reza o ditado: manha do açougue, e com vilão, vilão e meio. Foram setenta
caras; salvo seja! Vi-as contar com estes olhos, que hão de comer a terra.. E
quem as arrecebeu? Nanja eu. Assim compra-se muita coisa e arrotam-se postas de
pescada. Diz bem, Sra. Perpétua Rosa; diz bem! Quem perdeu, perdeu; mas não
queiram meter os dedos pelos olhos à gente. Nunca \i criatura assim:
t'arrenego!»
Este brilhante discurso, até
certo ponto, e debaixo de certos aspetos, quase parlamentar, fez voltar o
catavento de raiva do moleiro para a oradora, que não era ninguém menos que a Tia
Jerônima, a qual abicara ao pé dele, na alheta de Perpétua Rosa.
Bartolomeu andava-lhe já a cabeça
à roda e fugia-lhe o lume dos olhos. Largou os gorgomilos da sua estimável
consogra e começou a menear os braços, por tal jeito que faziam lembrar as velas
do moinho da Ventosa. Os olhos saíam-lhe das órbitas e a escuma dos cantos da
boca: quase não podia falar. Entretanto, Perpétua Rosa, solta do feroz amplexo,
exclamava:
«Pouca vergonha! Pôr as mãos na
cara de uma mulher velha, este gaiato!»
À palavra «gaiato» homens,
rapazes, mulheres, que de instante a instante aumentavam a roda, ninguém se
pôde conter pelo contraste monstruoso entre semelhante epíteto e o vulto de
capitão holandês, romboidal, vermelho, rugoso, quadrangular, irritado, do
moleiro. Foi uma cachinada, um palmear, um ah ah ah... ih ih ih..., um assobiar
de garotos, que fazia tremer as carnes. Debalde Bartolomeu tentava fazer ouvir
as suas explicações: o estrépito oposicionista embaraçava a atrapalhada voz do
ministro, que pretendia desemaranhar aquela inextricável questão de orçamento.
Ninguém se entendia: era completamente parlamentar.
Neste momento, à porta de um
corredor, que dava para a sacristia, apareceu de súbito, já meio revestido, o
padre-prior. O motim do adro tinha ecoado lá dentro. A vista daquele aspeto
venerável e venerado, fez-se pronto e profundo silêncio.
«Que estrupida é esta?»,
perguntou o velho pároco, com aspeto carregado e voz severa. «É na vizinhança
da casa de Deus, na hora em que vão celebrar-se os divinos mistérios, que os
meus honrados paroquianos vêm tecer disputas e travar-se de razões em vez de
guardarem a compostura e devoção com que devem preparar-se para o tremendo
sacrifício do altar? Rixas e apupadas no dia do, bem-aventurado S. Pantaleão?!
Não o sofro. Vamos, expliquem-me a causa de tal barulho. Que foi isto?»
«São estas descaradas...», gritou
Bartolomeu.
«Saiba vossenhoria...», acudiu,
ao mesmo tempo, a Tia Jerônima.
«E este insolente...»,
interrompeu Perpétua Rosa.
«Não é nada padre-prior; não é
nada», diziam Conjuntamente o Manuel e a Bernardina, mais com a mão, fazendo
gestos negativos, que com as palavras, enredadas ininteligivelmente com as do
moleiro, da ama e da lavadeira.
«Fale um!», gritou o prior.
«Assim, fico jejuando.»
«Foi...», disseram todos aos
mesmo tempo.
«Pior!», acudiu o pároco. «Cada
um pela sua vez. Vamos.»
«Saiba vossenhoria...», vociferou
o moleiro, ganiu Perpétua Rosa, flautou a ama, murmurou o Manuel, pipitou a
Bernardina, exclamaram os circunstantes. «Visto isso, é impossível saber de que se
trata?», interrompeu de novo o prior. «Está bom... Não importa! Depois da festa
averiguaremos o caso. Tudo para dentro já! Vá tomar o seu lugar, Bartolomeu.
Estão os mesários à espera e você entretido aqui com estas toleironas! Vamos.
Nem mais uma palavra.»
E, dizendo e fazendo, recolhia-se
para a sacristia. No relógio de sol, o gnómon estendia exatamente a sua sombra
sobre o ponto de intersecção marcado pelo X. As rabecas soltaram a sua
chiadeira quase harmônica e o grupo, desfazendo-se, escoou-se pelo portal
tricêntico, cujas pedras a broxa vandálica havia amarelado; e dentro de poucos
instantes o adro ficou silencioso e deserto.
Os instrumentos também fizeram
silêncio passados alguns minutos e sussurrou lá dentro uma voz humana, cansada
e débil, que entoava com suave melopeia:
«Introibo adaltare Dei.»
VIII
GLÓRIA AO PADRE-PRIOR!
Estamos à porta da igreja. A
saloiada metemo-la dentro. O padre-mestre Prazeres, o padre Chaparro e o
padre-prior, não sei se d aqui os veem na capela-mor. Fr. Narciso gira, mira,
vira, revira tudo, na credência, no altar, na banqueta. O cerimonial romano é
um mundo de ideias que ele dispôs nos diversos repartimentos cerebrais, com uma
compreensão, um tino, uma lógica de por aí além. Fr. Narciso tem de olho o
padre Chaparro, que foi toda a vida um tonto em liturgia e assim há de morrer.
General naquele conflito, Fr. Narciso, está alerta; nem seiscentos Chaparros
seriam capazes de lhe entortarem uma ou mil missas cantadas. Em semelhantes
ocasiões, o veterano mestre-de-cerimônias contempla impassível da altura da
ciência as evoluções dos seus subordinados: tudo abrange, tudo prevê, tudo
dirige tranquilo. E não solta uma única voz: não repreende, não incita, não
ameaça. Uns beiços estendidos e inclinados à esquerda fazem parar o missal, que
ia a ser extemporaneamente arrebatado da banda da epístola para a do evangelho;
uns olhos trasbordando pelas pálpebras, acompanhados de um oscilar de cabeça
rápido, horizontal e fugitivo, inteiriçam os joelhos, que vão a vergar em
genuflexão deslocada. Enfim, para que estarmos a matar-nos? Como o nome de Fr.
Timóteo na parenética, o de Fr. Narciso, na liturgia, será o nome que a
história transportará às mais remotas eras, enquanto as glórias da família arrábida
durarem na posteridade.
O introibo entoou-se: o negócio
está agora em mãos de mestre: podemos ficar descansados com a festividade. Como
o calor da igreja é muito, venhamos eu e o leitor conversar um pouco à fresca
sombra dos plátanos do adro. Tenho explicações indispensáveis que lhe fazer; dê
por onde der, embora ouçamos a missa descabeçada.
Sou homem de bofes lavados, como
diziam os nossos velhos, e não gosto de que me estejam a morder na pele por
causa de lacunas, mistérios ou contradições nas minhas narrativas. Menos isso.
A história é a história, e não se hão de deixar por aqui e por ali obscuridades
e incertezas que façam suar o topete às academias futuras: muito mais que há aí
uns quidams, cujo ofício é esmiuçar, anatomizar e criticar os escritos alheios
e que lhes fazem os mais cruéis e desalmados processos verbais que é possível
imaginar, não lhes escapando período nem linha, ponto nem vírgula. Crítica
rosnada pelos cantos é a destes, semelhante ao bisbilhotar da cozinheira com a
criada da vizinha, à janela do saguão, sobre os talhos que a ama deu ao
presunto ou sobre o mais ou menos acogulado da medida dos feijões-fradinhos. É
por isso que tais críticas chamo eu verbais; verbais porque seus atores daí não
podem passar. Coitados! Escreveriam vinte heresias se copiassem o padre-nosso.
São os alcaiotes dos lapsus linguae,
os mexeriqueiros dos atos de memória. No vento e com vento compõem: vivem de
epigramas agudos como tranca: morrem sem deixar vestígio. Literatos a barbas
enxutas, eruditos lendo ainda por baixo, passam nas trevas, como a coruja; mas,
bem como a coruja, roçando as asas, que salpicou na alâmpada, pela alva toalha
do altar, a deixa enodoada, assim a página pura, afagada de tanto amor do
artista, estudada com tão sincera consciência lá recebe, na tertúlia de parvos,
a dedada torpe e sebenta de um chapadíssimo tolo.
Não sou dos mais queixosos;
todavia, guardo acatamento profundo a essas caricaturas de adibe, que, à de
dentes para devorarem carniça, contentam-se de fazer e empolas e brotoeja na
pele do próximo. Respeito-os a todos, altíssimos e baixíssimos; que os há de
todas as riscas da craveira social, no civil, no militar e no eclesiástico.
Estou, por isso, sempre com o
credo na boca quando escrevo uma linha, e antes quero que se queixem da
frequência dos prólogos do que me condenem sem me ouvirem.
Disse já que tinha de fazer uma
explicação ao leitor. Tenho; e é indispensável. Estou ouvindo um melenas arguir
assim: «Como soube a Tia Jerônima que as peças do padre-prior se tinham
esgueirado, com tanta mágoa sua, só para dotar Bernardina? Como o souberam os
noivos e Perpétua Rosa? Não se passou tudo particularmente entre o prior e o
moleiro, ambos interessados no segredo do negócio, um por virtude, outro por
avareza? Foi um duende que veio revelá-lo? Mas isso é fazer como Eugênio Sue,
que, logo desde o princípio das suas novelas, arranja um homem humanamente
impossível e,
até, uma entidade imortal, para
nos casos dificultosos se desembrulhar das aperturas da situação. Isso é empalmar;
isso não vale. Queremos saber por onde transpirou a generosa ação do velho
pároco; mas por meios naturais. Não admitimos tergiversação, nem milagres.»
Tá, tá! Nem eu, falando de telhas
abaixo. E era para explicar este mistério naturalissimamente que chamava agora
o leitor para a fresca sombra dos plátanos do presbitério. O caso foi este:
Quando o prior, preocupado pela
ideia de remediar a todo o custo a rapaziada que fizera o Manuel da Ventosa,
deu consigo, ao romper da manhã, no moinho de Bartolomeu, lembrados estarão de
que o velho, acedendo aos desejos manifestados pelo seu pároco de ficar a sós
com ele, pusera fora da porta os rapazes, com o grito de «Rua!». Se o homem
fizesse como Polifemo, o qual, quando tinha Ulisses e os seus camaradas encapoeirados
no antro com os carneiros e como carneiros, à falta do único olho que possuía e
que lhe tinham vasado, ia apalpando e contando os que saíam, conforme mais
largamente narra Homero, não sucederia o que sucedeu, e já as embrulhadas,
picuinhas, ditérios e descomposturas adfacem ecclesiae, de que antecedentemente
dei conta, não teriam sobrevindo, com escândalo das pessoas graves e tementes a
Deus. Era, como no lugar competente deixei especificado, grande o tráfego no
moinho à chegada do prior: duas récuas de machos a inquirir à porta; novos para
dentro e novos para fora; sacos de farinha a rolarem e a empoeirarem a
atmosfera; bulha, encontrões, sapateada, arres, xós, pragas, diabos; um pandemônio,
enfim, em miniatura. A chegada do prior foi tão inesperada e súbita, que
Bartolomeu, azoinado, não reparou nos que saíam à sua voz de comando. Daqui o
dano. Uma testemunha ficava aí, sem que Bartolomeu desse por tal.
Esta testemunha era Gabriel. O
pobre rapaz tinha andado, até à meia-noite, do moinho para a fonte e da fonte
para o moinho, com um macho e dois barris, a carregar água. Depois estirou-se a
dormir atrás de uma pilha de sacos de trigo, com aquele valente sono da
primeira juventude a que se não resiste nem num campo de batalha. Dormiu,
dormiu, dormiu. Rompia a alva, e ainda ele era pedra em poço. O grito de
Bartolomeu despertou-o, na verdade; mas não teve ânimo para erguer-se: bocejou,
bufou, espreguiçou-se, estendeu os, braços para diante, com os punhos cerrados,
virou-se de barriga para o chão, meteu o nariz debaixo do sovaco e prosseguiu
na interrompida tarefa. Felizmente para o pobre moço, que, se fosse pressentido
pelo moleiro, teria de acordar de todo com o despertador infalível dos dois
pontapés, Gabriel não ressonava, ainda no mais profundo sono. Crendo estarem
sós, os dois travaram a larga conversação que no princípio desta famosa
história ficou fielmente trasladada.
Não faço eu tão fraca ideia de
mim ou do leitor que suponha assaz falta de interesse a minha narrativa ou o
tenha a ele por um tal cabeça-de-vento, que admita se esquecesse da estrondosa
gargalhada que desandou o padre-prior ao manhoso saloio, quando este lhe propôs
desse o dote a sua sobrinha Joana, à falta de outra mais digna. À descomunal
risada é que o sono de Gabriel, se não quebrado inteiramente, ao menos já
estalado pelo grito de Bartolomeu, não pôde resistir. O rapaz fez uma
reviravolta, abriu os olhos, deu uma guinada ao corpo, ficou assentado, com as
pernas estendidas e a cabeça inclinada sobre o peito, meditabundo por alguns
momentos e imóvel, como um daqueles manigrepos de que reza Fernão Mendes Pinto.
Depois, levando as mãos à cabeça, começou a coçar rápido de alto a baixo, por
cima das orelhas. Pouco durou, todavia essa primeira fúria. Como o som da arpa
de Ossian, alongando-se e esmorecendo por entre a nebrina das serras, aquele
coçar de alma afrouxou e desvaneceu-se gradualmente; as mãos, confrangidas em
forma de garra, espalmaram-se flexíveis, os braços, hirtos e erguidos,
despenharam-se mortais ao longo do tronco e a cabeça, sonolenta, baloiçou à direita, depois à esquerda,
depois pendeu de chofre para diante e resultou, quase ao bater sobre os
joelhos, semelhante ao judeu martirizado pela Santa Inquisição, quando, ao
descer pendurado da polé, a corda, atada mais curta que o espaço médio entre o
chão e a roldana, o desconjuntava, retendo-o subitamente alguns palmos acima do
pavimento. Assim se desconjuntou aquela máquina de sono, e Gabriel abriu seis
vezes a boca, engradou-a com outras tantas cruzes, esfregou os olhos com a
parte anterior do canhão da jaqueta, mirou por entre os sacos os dois velhos,
embasbacou de ver ali o prior e, sem tugir nem mugir, pôs-se a escutar o
diálogo que se travava entre ambos.
Qual este foi e o seu desfecho
sabe-o o leitor tão bem como eu. Apenas o prior se despediu, encaminhando-se
pela encosta abaixo, Bartolomeu, recolhendo as setenta peças que ele deixara
sobre a arca das maquias, pôs logo tudo em movimento, e Gabriel, por cuja
falta, naquele primeiro ímpeto, o moleiro não dera, teve arte de se confundir
com os outros moços que entravam e saíam, sem que o amo nem por sombras
suspeitasse que havia uma terceira pessoa sabedora do importante negócio que se
acabava de compor e sobre o qual, no meio do seu mandar e ralhar e lidar, já a
ambição lhe ia alevantando na fantasia
muitos castelos de vento.
Segredo em boca de rapaz, outros
dizem de mulher (eu, por decência e pelos meus princípios, sustento a moção
relativa aos rapazes), é manteiga em nariz de cão. Ele, na verdade, contou-o
com variantes para mais e para menos, mas contou-o, que é o caso. E a quem o
havia de ir meter no bico. À pessoa que mais interessada supunha na história; à
Sr. Perpétua Rosa, mas pedindo-lhe pela alma das suas obrigações e pela fortuna
da sua Bernardina que não dissesse nada, porque o patrão, se tal soubesse, era
capaz de esganá-lo. Prometeu-lho Perpétua Rosa; jurou-o e trejurou-o. Pulava a
boa velha de contente, e a primeira vez que levou roupa à cidade fez das
fraquezas forças a trouxe de mimo a Gabriel e um pião novo, uma gaiola de
grilos, coisa de espavento, e uma abada de castanhas do Maranhão e de figos
passados, com que o bom do rapaz se regalou de pôr a boca numa lástima. E o
mais é que teve palavra. Apenas contou o caso a duas ou três freguesas antigas
de Lisboa e à Tia Jerônima, com quem desde a mestra, podia dizer-se era unha.
com carne. Aqui é que foram as ânsias. Pelos domingos tiram-se os dias santos.
A ama do prior fez-se fula quando tal ouviu. A lanceta que sangrara a meio do
forro da escada aparecia finalmente; e a Tia Jerônima, sem lhe importar o ver a
mortificação da pobre Perpétua Rosa, desabafou à sua vontade; mas, passado o
primeiro estoiro da dor, levou do seu brio nunca mais tornar a bulir nesta
desagradável matéria.
Eis a verdade, nua e crua, de
como se aventou o se segredo. A alhada da porta da igreja nascida daquelas
tafularias tolas do Manuel da Ventosa e da sua companheira, acabou de divulgar
o negócio, sem que nisso andasse o fradinho de mão furada, nem os jesuítas,
gente de poder misterioso e terrível, nem, finalmente, o judeu-errante, que
tantas maravilhas obra atualmente na Terra. Mas, se nisto não entraram os
irmãos do quinto voto, nem o caminheiro Ashavero, com as suas sapatas tauxiadas
de pregos em cruz e com os seus alforges de cólera-morbo, entrou, a meu ver, a
Providência, mas uma Providência natural e simples nos seus meios, como ela o é
sempre, sem milagres nem bruxarias. Pensava o prior que a sua nobre e
evangélica generosidade ficasse oculta; pensava Bartolomeu que trevas perpétuas
cobrissem a torpe cobiça e a sórdida avareza com que se houvera neste negócio.
Vai, que faz Deus? Serve-se de um pobre rapaz, que ninguém tinha em conta de
nada, e põe tudo ao olho do sol. E fique desde aqui dito que essa é a
moralidade da minha história: a virtude exaltada e o vício punido. Nem mais,
nem menos, como desfecho daquelas grandes comédias que, há vinte ou trinta
anos, eram as delícias dos nossos pais e a glória dos nossos dramaturgos das
três unidades que Deus haja... As três unidades, entenda-se bem; porque os
dramaturgos, esses o Senhor no-los conserve, enquanto puder ser, para nosso
regalo e consolação.
Quem disse lá que as velhotas,
testemunhas dos itens do moleiro com as personagens que mais conjuntas lhe
eram, entraram para a igreja e se puseram a ouvir o cantar dos padres, e a
música do coreto, e o esbravejar do pregador? Por um óculo! A sombra da sua
vítima que fora e que ia ser; à sombra de Bartolomeu, a quem todos abriam
caminho para o deixarem aproximar-se do banco dos festeiros, elas atravessaram
a mó dos homens, unidos como sardinha em tigela, dos estrados para baixo até o
guarda-vento, e chegaram ao meio do mulherio. Haja o apertão que houver, ainda
não consta que saloia deixasse de fazer praça para si na, igreja. Verdade é que
a Tia Jerônima ia em frente, com a cara de arremeter que Deus lhe dera, e que
mais arrabinada se tornara com a anterior refrega. Quem deixaria de dar campo à
ama do prior, e, sobretudo, àquela carranca? Seguiam-na os noivos, encolhidos e
vergonhosos do escândalo que tinham causado, tornadas em fel e absinto as tão
risonhas esperanças que, pouco havia, punham no seu garbo e bizarria; que nisto
vêm a acabar muitas vezes as vanglórias do mundo. (Mais moralidade.) Após eles,
vinha Perpétua Rosa e após a lavadeira vinha a Verônica do Tiago, padeira
gorda, vermelha e reverendaça, a Engrácia Ripa, mulher do fogueteiro da aldeia,
magra, alta, cor de enxofre, a Eufrásia Tasquinha, tia do Gabriel, e várias
outras, mais anchas ou mais esguias, mais esgrouviadas ou mais repolhudas, que
não sou eu nenhum Homero para estar, nem antes nem depois da batalha, a tecer
catálogos de guerreiros. «Dê licença!...» «Ai, que me pisou!...» «Perdoe!...»
«Não vê?...» Eis o que se ouviu murmurar por alguns instantes. E, no meio daquele
mar de cabeças adornadas de lenços de cor, listrados e brancos, avultava a
pinha das recém-vindas, que tentavam ajoelhar; pinha semelhante à embarcação
rota a ponto de submergir-se, que baloiça vacilante e se atufa lenta mente nas
águas. Manuel da Ventosa, que ficara em pé no topo inferior do estrado, sentia
apertar-se-lhe o coração, vendo a sua Bernardina no meio daquele caos de
capotes e roupinhas, como avezinha do céu no meio de ninhada de sapos. As
sedas, o chapéu, as flores, a romeira rangiam, achatavam-se, engorovinhavam-se
entalhadas entre aquelas baetas, panos, camelões e durantes, do mesmo modo que,
sobre o cadáver da virgem, se achatam e quebram as alvas roupas da inocência e
a coroa de rosas, debaixo da terra áspera, pesada, imunda, que o coveiro atira
brutalmente sobre os rostos do que foi belo, delicado e puro. «Mas que
remédio?» pensava Manuel. «As coisas assim hão de ser sempre porque assim foram
desde o princípio do mundo». Ele, de feito, cria que desde esse tempo existiam
missas cantadas, saloias e apertões. Mas, enfim,
ajoelharam, persignaram-se, e a festa começou.
Não a descreverei eu. Quem não
sabe o que é uma festividade de orago e o que é a missa solene celebrada num
templo católico? Há aí alguém, crente ou não crente ria fé que os seus pais lhe
ensinaram, que não tenha bem vivos na memória esses dias festivos da sua
meninice? Esse culto, que sabe elevar o espírito para o Céu, com as pompas de
espetáculo sensual, pompas que, parece, deveriam fazê-lo descer para a Terra?
Quem se não lembra daqueles bons dias santos dos doze anos, em que o sol era
mais formoso que nos dias de trabalho, sem excetuar a folgada quinta-feira do
sueto escolástico?
Quem se não lembra da época em
que o nosso pároco era para nós um ente quase divino, porque, pobres crianças,
ainda ignorávamos os caminhos por onde esses homens, chamados a uma existência
de santa e sublime poesia, sabem vir despenhar-se no charco das misérias e
torpezas humanas e revolver-se aí com aqueles de que deviam ser esperança
salvação e exemplo? Quem não se recorda com saudade do tempo em que o altar só
lhe aparecia a certa distância, com o seu frontal broslado e a sua toalha
alvíssima, assoberbado pela catadupa de lumes de um trono, perfumado pelas
jarras de flores, envolto de ambiente turvo pelos rolos de fumo raro e pálido
do incenso, símbolo do mistério? A quem não murmura ainda nos ouvidos o ritmo
monótono e severo do salmear sacerdotal mais acorde com as doces tristezas do
coração, que toda a música sentida e dolorosa dos espetáculos cênicos, a que
estes, na impotência de o vencer, têm ido humildemente imitar, nas criações dos
modernos artistas (porque Meyerbeer, para ser o rei das harmonias, foi invadir
o templo)? Quem, finalmente, não refugiu uma vez, cansado de ceticismo, para as
memórias infantis das comoções geradas pela religião dos primeiros anos,
religião toda de afetos, de inspirações, sem ciência nem raciocínio, os quais,
semelhantes ao sal espalhado sobre a Terra, podem fertilizar algum coração, mas
esterilizam os mais deles? As impressões indestrutíveis das festas religiosas
guardam-nas os que creem, como consolação do passado e como esperança de
regozijo futuro, e guardam-nas também os que não creem, no longo crepúsculo da
sua alma, como guardamos no Inverno as plantas odoríferas já murchas, que,
debaixo do céu pardo e frio, ao pé da veiga nua e da árvore desfolhada, nos
recordam o hálito suave dos campos ao pôr do Sol de um dia sereno do Estio.
Eis aí porque não descrevo a
festa. Era especular descaradamente com os leitores: era como se ao Bartolomeu
se lhe metesse em cabeça ir ensinar o cerimonial romano ao incomparável Fr.
Narciso.
E que terá Fr. Narciso, que já
escarrou duas vezes, já se assoou quatro, já bufou seis, já arregalou os olhos
para o corpo da igreja oito? É que as atenções estão distraídas. Fortes brutos!
Uma perfeição de cerimônias, que nem na Capela Sistina no dia da bênção urbi et
orbi! «Olha o que lá vai, o que lá vai!», rosnava ele, cheiro de indignação.
«Aquelas endiabradas... Quem vos decepara as línguas tarameleiras! Até aqui!
Louvado seja Deus! É de mais. Psiu!»
Tinha razão. Era um zunzum na
igreja, que quase galgava por cima das rabecas; e mais, chiavam e desafinavam
com alma. O arrastado psiu de Fr. Narciso restabeleceu, porém, a ordem, que nem,
num motim popular, uma carga de cavalaria.
Mas para se restabelecer a ordem
é necessário haver desordem. Quero ver se também dizem os parvos que esta
proposição é uma das minhas esquisitices, ou excentricidades, para lhes falar
na sua algaravia. A coisa tinha saído do lugar onde estavam a Tia Jerônima,
Perpétua Rosa e Bernardina. Qual coisa? Isso é o que não diz a história. — O
que é certo é que era um bisbis que partia do centro para a circunferência,
como os círculos concêntricos que encrespam a superfície do lago ao meio do
qual se atirou uma pedra, e era ao mesmo tempo um baloiçar de pontas de lenços
sobre os cabeções dos capotes, um rir abafado, um sussurro, uma agitação entre
o mulherio tal, que atraíra a atenção e logo a cólera de Fr. Narciso. O mais
que se pôde perceber foram alguns fragmentos de diálogo entre a Tia Jerônima e
a Engrácia do Estanislau fogueteiro.
«Padre-nosso que estais nos
Céus», dizia Engrácia Ripa, deixando correr um dos bugalhos de umas contas da
Terra Santa que tinha nas mãos. «Ora essa! — Santificado seja o vosso nome. —
Forte tratante! — Venha a nos o vosso reino. — E uma pessoa com a sua aquela de
que era um home como se quer! — Seja feita a vossa vontade. — Safa! — Assim na
Terra como nos Céus. Com que então, setenta?»
«Entregadinhas! — Ave Maria,
gracia plena», respondeu a Tia Jerônima, que latinizava raivosamente, à força
de viver com o prior. «Como lhe hei de dizer — Domisteco — Foi o Demo que o
tentou. — Benedites tu...»
Neste ponto, a interessante
conversação das duas matronas foi interrompida pelo psiu fulminante de Fr.
Narciso. Não podemos dizer sobre que ela versava nem aonde iria dar consigo; e,
quando, numa crônica profunda e grave como esta, faltam fundamentos favoráveis
para afirmar, é dever do cronista ser sóbrio, ou, antes, abster-se de
conjeturas. Direi só que, ao sair a gente da festa, não havia cão nem gato que
não soubesse tim-tim por tim-tim a história do Manuel da Ventosa e da
Bernardina.
Mais moralidade: é o que eles
tiraram das suas tolas tafularias.
Quando o prior saiu da igreja, os
rapazes desbarretavam-se, ainda com mais sinais de cortesia e respeito do que
era costume; as raparigas afagavam-no com um sorrir e volver de olhos afetuoso,
que fazia pensar o bom do pároco. Todos olhavam para ele e falavam em voz
baixa. O prior estava zangadíssimo.
Mas, qual foi o seu pasmo ao ver
chegarem-se a ele muitos velhos de cabeça branca (eram vários lavradores seus
fregueses, honrados pais de família) e beijarem-lhe a mão, com os olhos
arrasados de água! Estava fumando. Uma onda se lhe ia, outra se lhe vinha de
destampar com tudo aquilo, e pregar uma descompostura solene e por atacado nos
velhos, nos rapazes e nas raparigas.
E para isso não lhe faltava
metralha. Mas lembrou-se de que era o dia do orago da aldeia e teve mão em si.
Só lá perguntava aos seus botões qual seria a causa deste destempero e doidice.
Como havia ele de atinar, se
tinha o costume de esquecer-se do bem que fazia, porque, sendo fraco de
memória, reservava-a toda para o bem que recebia?
A história do casamento feito
pelo velho pároco, conforme depois me contaram (era eu pequeno e lembra-me como
se fosse hoje), chegou aos ouvidos do prelado diocesano, o qual disse ao fâmulo
do fâmulo do seu secretário, um dia em que se levantou de dormir a sesta com
vontade de galhofar, que, na primeira visita que fizesse à diocese, havia de
elogiar, publicamente, aquele digno pastor. Nunca, porém, houve ocasião para a
primeira visita, porque esta costumeira velha tinha passado já de moda. Eram pieguices
só boas para os Bartolomeus dos Mártires e para os Caetanos Brandões; pobres
homens, a quem Deus fale na alma, se é que valiam a pena disso.
Ajuda, Novembro de 1844.
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Nota:
Alexandre Herculano: "Lendas e Narrativas" (1851)
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Nota:
Alexandre Herculano: "Lendas e Narrativas" (1851)
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