OS NOIVOS
Encontrava-a, muitas vezes, aos
domingos, em casa de uma família da minha amizade, onde costumava ir jantar.
Era uma menina de 15 anos,
graciosa e viva, de olhos negros como a noite, de sorriso claro como o dia.
Nunca o sol alumiara sobre a terra mais alegre e descuidosa criatura, nem a
palheta de um pintor conseguira toques mais pronunciadamente doces do que duas
pequeninas pregas, que se lhe desenhavam nas faces quando os lábios se lhe
entreabriam num sorriso!
Chamava-se Maria do Carmo. Tratávamo-la
por Carminho quase sempre. O seu gênio travesso aparentava-lhe a índole de um
diabrete. Quebrava por gosto, e rasgava para se entreter. Era um demônio, mas
um demônio bom; antes isso de que um anjo... mau!
A primeira vez que a encontrei
tinha ela 12 anos. Cresceu- me diante dos olhos; de domingo para domingo fazia
diferença na altura! Era uma coisa galante para ver a ufania com que ela nos
contava que havia feito descer a bainha de um vestido.
De repente, num belo dia em que a
encontrei ao Chiado, disse-me sorrindo com o seu ar mais gracioso e mais
afável:
— Que novidades nestes dois meses
em que não nos temos visto! Caso-me amanhã.
Depois, apertou-me a mão, que eu
lhe abandonei extático, e entrou para uma modista, pulando de alegria.
No dia seguinte teve lugar o
casamento, e recebi convite dali a uns dias para uma soirée, que os noivos
davam.
O marido de Carminho era um homem
de 40 anos, que parecia ter 30: isto é decerto preferível a ter 30 e parecer
ter 40.
Eu conhecia-o de vista, mas não sabia
nada a seu respeito.
Um amigo meu, que estava no
baile, e com quem o vi conversar na melhor intimidade, foi o incumbido de me
dar explicações. Era um moço poeta que interrompera os seus estudos
universitários por uma loucura amorosa, e que andava em Lisboa passeando a sua
melancolia.
— Meu caro Carlos — disse eu
dando-lhe o braço —, preciso da tua boa veia de observador; explica-me o noivo!
— Um homem de 30 anos.
— Ouvi dizer 40!
— Quarenta ou 30, como tu
queiras: mas 30 anos é uma feição, e 40 é uma idade; por isso te digo que o meu
amigo Gonçalo Dantas, cavalheiro da província, que gastou em Lisboa a sua
fortuna e o seu coração, guardou apenas o seu espírito... para fazer um
casamento!
— Um especulador!
— Um homem do mundo.
— Julgas que a noiva possa ser
feliz?
— E julgas que ele próprio o
possa ser?!
— Por que não! Uma menina que
entrou na vida por uma porta dourada, e que possui a dúplice felicidade de ter
um nome de família que a dispensaria de uma fortuna, e uma fortuna que a
dispensaria de um nome de família!
— Sim! Dizem-me que o pai é aí
visconde não sei de quê!
— E o teu amigo Dantas?...
— O meu amigo Dantas é um homem
que conhece a vida, uma coisa em que tu só tens ouvido falar.
— E que a tornará infeliz, embora
lhe salve aos olhos do mundo as aparências de vitima!
— Admira tu no amor a
superioridade das mulheres: elas representam sempre o papel de desgraçadas, e
deixam-nos o de tirano, que a nossa vaidade aceita às vezes com desvanecimento.
Para que te obstinas a ver uma namorada numa noiva — e para que insistes em não
ver na noiva uma mulher? Gonçalo Dantas é um homem educado, que se sabe sorrir,
e calar-se até! Essa menina deixou-se encantar menos pelo espírito dele do que
pelo desejo de dançar no seu próprio baile de núpcias; ela tem 15 anos; a
família prometeu-lhe uma boneca para o dia do seu casamento: essa criança é um
anjo, se assim o queres, mas os anjos podem enfastiar-se das harmonias celestes
e pedirem à terra a agonia dos seus hinos. Ela quis casar, meu amigo, eis tudo;
Hamlet fez para um caso destes o seu that
is the question! Quando uma mulher nos induz à tentação, tornou-se nossa
cúmplice; não nos pode ser juiz. O noivo é um homem distinto, que há de ser
sempre para ela um marido delicado e amável.
Amável é possível.
— E delicado!
— Não é provável. A delicadeza é
um metal que não tem liga; a amabilidade já tem — já pode ter — alguma, cm
pequena porção que seja!...
— E que importa que suceda assim?
O que conheces tu de verdadeiro na vida? O último ato dela até.., uma bela
morte, não é quase sempre senão uma última mentira! Julgas tu extremamente
sincera a noiva?
— Crês sincera a inocência?
— A inocência... Seja. Que sabes
tu dela, meu bom amigo, que sabes tu da inocência que não seja o que vem nos
livros? Onde a viste, que te disse, como cumpriu as promessas que te fez e de
que forma compensou a confiança que lhe adiantaste? O que é preciso no mundo
para dar ares da inocência: ter 15 anos? preciso então não andar nos bailes
desde os 13! As polcas, as shotisches, as redowas, todo esse frenesi que põe
prematuramente em relevo as graças de uma menina, são o primeiro ataque à sua
pureza e à sua candura! Olha para elas! Repara! Os homens apertam as senhoras
nesta valsa — não vês? — como uma obreira aperta uma carta! Olha a noiva: que
gentil criatura, realmente! Mas tem mau sorrir; sorri com os lábios sem sorrir
com os olhos! Oh! desconfia... desconfia sempre de pessoas assim. Ë uma criança
sem aspirações e sem alma, aposto; toda vaidades!
— Conhece-a já?
— Não a conheço, adivinho-a. Os
pressentimentos, meu amigo, são as sombras visíveis de corpo que não se vê.
Esta rapariga é fria!
O noivo chegou-se a nós nesta
ocasião.
— Vem cá, Carlos — disse ele —,
quero apresentar-te a minha mulher.
E Carlos foi pelo braço de Gonçalo
Dantas.
— Com que — disse-lhe Carlos a
meia voz —, estás casado!
— Dispensa-me da tua piedade! —
respondeu o marido, rindo.
Ao contrário! Quero saudar pelo
pasmo a tua heróica resignação!
— Que queres! As dores
imutáveis.., não soltam nem um grito!...
Estavam diante de Carminho.
— O sr. Carlos Eduardo de Lemos —
meu amigo, disse o noivo. — Escuso lembrar-te que sabes de cor quase todos os
seus versos; é o suficiente para não lhe falares em tal, visto que ele não tem
a coragem de se declarar poeta nesta sociedade de Lisboa, que principia a não
crer neles!
Carlos Eduardo conversou durante
todo o tempo do baile com Carminho, e tomou parte em duas contradanças, a
pedido seu. Era destes dançarmos sem coragem, que tremem no chevalier seul. Fazia-se pálido como uma
cidra, depois vermelho como uma romã e, em seguida, lívido como um defunto;
todavia agüentou-se o melhor que pôde, e quando, pelo fim da noite, tive pela
primeira vez o prazer de o tornar a possuir, pareceu- me um homem contente de
si e do mundo.
— Que tal conversa a noiva? —
perguntei-lhe.
— Oh! Não me fales nisso. Uma
tagarela insofrível, que me moeu o espírito e a palavra. Isto faz-me por força
uma doença. Não há maneira de conversar com semelhante preciosa, que fala tudo,
que fala sempre, que fala mais que sempre! Toda a noite, meu amigo! Toda a
noite! Tenho o inferno dentro de mim!...
— Há de fazer-te sofrer do
estômago.
— Ela?
— O inferno. Deve ser de digestão
difícil.
— Ah! tu zombas! Ah! tu ris! Pois
sim, vai para lá! Entrega-te em holocausto ao martírio de lhe dares trela. Tu
tens o talento de saber escutar? talento que eu não desfruto, infelizmente;
sinto a alma estropiada pela verbosidade da minha interlocutora! Ah! Gonçalo
Dantas, pobre Gonçalo Dantas, não casaste com uma mulher, casaste com um
monólogo! Esta noiva é um solilóquio, de que eu conservarei eternas e cáusticas
lembranças! Adeus: deixa-me sair; Lara pedia soda nos banquetes; eu peço apenas
ar nesta festa!
Há uma idade em que as mulheres
mudam tão subitamente de índole, que não estranhei quase que Carminho, a quem
eu conhecera modesta, espirituosa, sem ambições e preciosa de salão, e cheia de
atração e de graça na sua simplicidade encantadora, houvesse, em dois meses que
eu a não vira, passado pela metamorfose de que Carlos Eduardo me dava a
descrição. Tive vontade — palavra de honra! —, tive vontade de ir contar-lhe
tudo, e fazer-lhe ver a que se expunha o seu talento de loquacidade; todavia,
não conhecia o marido e não tinha para com ela familiaridade que me autorizasse
a isso.
Decorreu algum tempo sem eu
tornar a ver Carminho, nem Gonçalo Dantas. Seis ou oito meses depois, em
Cintra, no hotel Lawrence, tive a fortuna de os encontrar. Era em março. Cintra
realizava já o delicioso Eden de
Biron, mas não parecia ainda o sítio característico do verão elegante. Em
Colares não se encontrava nenhuma das formosuras de Lisboa a recrear-se na
várzea, ou gravando com a ponta de uma tesoura um nome ou uma data na casca do
olmeiro. Nem a várzea estava já cheia, nem o bote lá estava ainda. Aquele lugar
encantador de poesia achava-se todo entregue à melancólica serenidade da sua
solidão. A aragem balouçava molemente os ramos, e a cor verde deles parecia
falar das felicidades que deviam vir no futuro.
— Como Cintra está insípida neste
momento! — disse-me Carminho com o seu sorriso simples e bom, mas mais lânguido
e mais triste do que outrora.
— Cintra é sempre bela! —
replicou o marido bocejando.
— Os poetas têm-na envelhecido — redargüiu
Carminho a rir. — O sussurrar da brisa na folhagem, o rolar da água sobre as
pedras na sua marcha obscura, o canto namorado dos passarinhos nas tardes
quedas do estio, os raios brancos da lua que se divisam entre as ramagens do
arvoredo, são tudo coisas lindas, que enfastiam apenas... os que as vêem!...
— A tranqüilidade é um doce
estado! — ponderou o marido.
— A tua observação é do tempo da
gavota!
— Não é fácil ser novo.., aos 40
anos! Vamos nós jantar?
Fomos jantar, todos. Gonçalo
Dantas pareceu-me um excelente homem, levemente misantropo, amável de meia em
meia hora, e tendo o espírito... de não pensar em o- ter.
Carminho conversou pouco, mas
conversou galantemente. Não gesticulava, não falava alto, não falava muito. —
Eu não sabia realmente a que atribuir a opinião de tagarela e de preciosa que
Carlos Eduardo lhe dispensara! Falou-me de um álbum, é verdade — assustador,
indício! — mas num tom tão ligeiro e fácil, que não atraiçoava as ambiciosas
vaidades de alguma colecionadora de autógrafos.
— Encarrego-o muito de escrever
alguma coisa, esta noite ainda. O meu pobre álbum tem tanta página em branco,
que a miséria dele dá-me o direito de impor uma contribuição forçada aos que
têm a fortuna de poderem dar a esmola... do espírito!
A despedida entregou-me o álbum.
— Não seja avarento! Escreva bastante.
Os ricos não devem ser mesquinhos! Há dois meses que tenho esse álbum, e não
conta ainda senão uma página escrita! Se os senhores poetas se fizerem rebeldes
este verão, eu e o Gonçalo acabaremos de o encher! Não é assim, Gonçalo?
Faremos versos um ao outro, meu amor! Queres isto?
E dando um salto para chegar ás
barbas do seu marido, pareceu pendurar-se nelas, cheia de alegria, enquanto ele
lhe formava um colar com os seus dois braços.
Fui para o meu quarto encantado
de os ver. A sorte daquele Gonçalo parecia-me invejável. l glorioso aos 40 anos
ser amado por quem tem 15. — “Fria!” disse eu a mim próprio, recordando-me do
diálogo no baile: fria, ela! Com aqueles olhos e aquela voz! Se Carlos Eduardo
não se enganou, então enganou-se Deus!...
Abri o álbum.
Havia apenas alguns desenhos e,
como ela própria o dissera, uma só página escrita.
Principiei a ler.
“Que importa ao sultão que as
mais belas odaliscas se extorçam de desespero em cima das peles de tigre! Que a
favorita perturbe com as suas lágrimas na água do tanque o reflexo do seu rosto
encantador? Fica frio no meio do amor que inspira, e debalde o eunuco, ministro
dos devaneios dele, alcança a peso de ouro as escravas mais raras. Nada pode
demorar um instante o olhar distraído do soberano. A matéria fatiga-o e
cansa-o. Namora-se do impossível, e quisera lançar-se nas regiões ideais, à
procura da beleza sem defeito. A embriaguez não lhe basta — precisa de êxtase.
A força de ópio tenta soltar os laços que prendem a alma ao corpo, e pede à
alucinação o que a realidade lhe não quer dar...
— Ah! ah! — interrompi eu. — Este
foi incomodar o sultão para o pôr num álbum! Não me parece caridoso!...
E continuei a ler.
“Por isso, aqueles ombros de
nácar, aqueles braços artísticos, aqueles colos de cetim que o sopro da vida
faz ondear — toda aquela mocidade, todo aquele brilho não bastam para encantar
o spleen desse coração insaciável! Ao lado das formas mais puras de que a
beleza humana se possa revestir, o sultão diz a si próprio: — É só isto?!...”
— Com mil diabos! — interrompi
eu, outra vez. — Há fogo! Há fogo! Quem é que me diz, até onde vão chegar as
veementes apóstrofes deste observador do sultão, que tem todo o ar de um poeta
namorado?!
A página estava quase no fim.
“O que ele pede a cada instante é
o espírito, é a alma, é o raio! Quer um amor com asas de chama, um corpo de luz
que se mova no infinito e na eternidade, como a ave no ar! E a terra que
estende os braços para o céu! — para o céu, que olha para ela com ternura pelos
seus olhos, Carminho, pelos seus admiráveis e prestigiosos olhos!...”
— Ui!...
E dei um pulo.
Por baixo da última linha acabava
de ler o nome de Carlos Eduardo de Lemos.
Que havia ele feito — este
implacável amigo! — das veementes apóstrofes, que arremeçara à noiva, naquela
noite em que a achara fria e abelhuda, e em que me dissera da sua fisionomia e
da sua formosura tudo que lhe lembrou de excêntrico.., menos que o céu houvesse
olhado para a terra pelos olhos dela?! A página, de mais a mais, estava datada
de Cintra, e da véspera, o que dava esperanças de me encontrar com ele no dia
seguinte nos Pisões ou em Seteais.
De manhã, porém, tão depressa
abri a janela do meu quarto para olhar a serra que principiava a dourar-se
pelos primeiros raios do sol, vi quase ao meu lado, no terraço da entrada,
Carlos Eduardo, embrulhado numa manta, fumando tranqüilamente o seu charuto
madrugador.
O leitor, até este instante, tem
tido os encargos de prestar a sua imaginação a dar cor e vulto aos personagens
do meu conto. Confiei-os à sua fantasia, por uma delicada atenção, que deve
ter-lhe sido sensível. Há sempre para mim não sei que vago receio de desenhar
um personagem, que não quadre ao gosto do leitor. Sei de espíritos meticulosos,
que de tudo fazem delitos; e tive medo, em verdade o digo, de apresentar
Carminho trigueira ou loira sem consultar primeiro a opinião de quem me está
lendo.
Isto posto, os fantasiadores
saltem os seguintes trechos de descrição, colorindo a seu agrado as figuras que
lhes apresentei; e os leitores reverentes emprestem-me por duas páginas a sua
compreensão obsequiadora.
Carlos Eduardo era um destes
homens de quem se diz em Lisboa: muito bom rapaz!
Muito bom rapaz em quê, e por
quê, é o que ninguém pergunta. Isto nasce de alguma forma da indiferença com
que o espírito do nosso público aceita as reputações; e ainda nasce mais de
haverem as coisas chegado ao ponto de que ser muito bom rapaz não signifique
coisa nenhuma.
Assim todos nós conhecemos:
Um bom rapaz, que é um tolo;
Um bom rapaz, que é um mentiroso;
Um bom rapaz, que é um petulante;
Um bom rapaz, que jogador de ofício;
Um bom rapaz, que é um temulento;
Um bom rapaz, que é
um covarde;
Um bom rapaz, que é um traidor;
Um bom rapaz, que é caloteiro;
Um bom rapaz, que é vilão;
A sociedade, por uma nuança
delicada, abre apenas uma variante á maneira de falar deles, em vez de
principiar por dizer de um homem — “Ë muito bom rapaz!” e enumerar em seguida
as suas boas qualidades, começa pelos seus defeitos e conclui pelo simples
expediente de uma adversativa conciliadora:
— “Mas, é muito bom rapaz!”...
Carlos Eduardo não tinha no rol
dos seus defeitos nenhum pecado de leso-pudor. Todavia, era uma destas
criaturas que provam uma ou outra vez de todos os defeitos da humanidade, sem
terem sequer a força de se lhes apegar a alma a um. Tratava-se de jogar, perdia
até a cruz de ouro que sua mãe lhe pusera ao peito, como relíquia e como
memória. Depois, é certo, não pensava mais no jogo., até que em certa ocasião
dada, o chocalhar dos dados, ou o baralhar das cartas lhe despertava no ouvido
uma adormecida sensação. Propunha uma noite perdida a alguns amigos lá de
tempos em tempos, e aceitava sem réplica a noite perdida que outros amigos lhe
propusessem a ele. Era pródigo, às vezes, para ter que contar; libertino para se
entreter uma hora; avarento, para poder depois ser perdulário. No fundo de tudo
isto, está o egoísmo, evidentemente. E a única coisa que ele era sem
intervalos!...
Os homens achavam-no feio; as
senhoras diziam-no simpático. Ele dava-se bem assim, e conquistava o seu
terreno palmo a palmo nos interesses da vida ou nos interesses do coração.
Tinha fama de feliz em amores; insinuava-se com um artifício extremo no
espírito de todos, caracterizando o seu caráter ao jeito e gosto de cada um. A
serpente tem uma pele só, ele tinha sete: por isso mudava-a muito mais vezes!
A sua fisionomia denotava
sofrimentos que ninguém lhe conhecera. Dir-se-ia que a desgraça havia passado
por aquela existência o seu sopro glacial. Era um rosto pálido, de olhos
profundos, e faces descoradas, que traduzia o fastio da vida ou a impressão de
uma saudade. Tudo isto se dissipava em ele principiando a falar, à medida que
um espírito mais agradável do que original, mais fácil do que verdadeiro, mais
gracioso do que exato, se auxiliava na sua conversação de todos os estudados
recursos dum jogo de fisionomia, aberto, característico e franco.
Falemos agora de Carminho.
Nas novelas inglesas, desenham-se
sobre um fundo de paisagem, cercados dum céu límpido e claro, as figuras de
heroínas que se harmonizem com a cor azul do céu, e que sejam loiras, frescas e
serenas! No retrato que se pudesse fazer de Carminho, encontrar-se-iam mil
reminiscências das mulheres de Richardson.
As feições da noiva apresentavam
uma combinação de traços puros e nobres, que não se apreciavam à primeira
vista, e só lentamente se revelavam. Era alta, formosa, brilhante de saúde e de
vida! Os seus olhos escuros por baixo dos loiros cabelos, que lhe ornavam a
fronte, davam um caráter particular àquela fisionomia em que a sinceridade se
deixava ler. Tinha a testa breve, mas desenhada com pureza, e o todo do seu
rosto indicava uma alma terna e boa!
Era ela capaz dum heroismo? Não
sei. Creio, quase, que não. Compreendia as coisas grandes e sérias da vida? Era
capaz de apreciar o que vale um destino, e o que um destino importa? Duvido
ainda.
Era uma dessas criaturas que
seguem a primeira impressão, que se sujeitam à primeira lei, que se curvam ao
primeiro olhar. Alma sincera e cândida, que, no seu rápido período de solteira,
gostara muito de namorar e ser namorada. O seu espírito não costumava
prender-se a nenhuma das distrações que para as senhoras da sociedade tomam por
vezes as proporções da paixão: nem a música, nem a literatura, nem a pintura
lhe mereciam o decidido interesse a que só as vocações conduzem. Gostava alguma
coisa de tudo isto — mas, nesse pouco amor que por tantos ramos repartia, não
se revelava porventura a alma que para nenhum deles nasceu?!
Caráter meigo e honesto, sabia
atender aos preceitos da dignidade do seu sexo, e prometia tornar feliz um
espírito desambicioso, que só queira de uma esposa a fidelidade e o coração;
mas, se algum grande talento elevasse para ela vôos ardentes de uma fantasia
caprichosa, como a dos poetas ou a dos artistas, viria tempo em que por si
mesmo caísse amor veemente que um homem superior lhe desse, ao conhecer que não
podia aquela alma simples, aquela imaginação serena e quieta resistir ao sopro
ardente da paixão, que se inflama em aspirações e em sonhos. à medida que a imaginação
a engrandece, no colorido que sabem prestar ao amor os que amam mais pela
cabeça do que pelo coração.
Parecera haver nascido para os
serenos destinos da vida doméstica, simples, harmoniosa e prática. Há flores
que não resistem ao dardejar do sol, e florescem na penumbra recatada dos
crepúsculos!
— Olá! Carlos Eduardo? — gritei
eu da janela ao fumista do terraço.
— Em Cintra! — exclamou ele! — Em
Cintra, neste tempo!?
— Que ar magnífico!
E um pouco cedo ainda!
— Sete horas da manhã!
— Um pouco cedo para vir para
Cintra, queria eu dizer!
— Ah! Não julgo assim. A
primavera é a única época da vida para os campos ou para o amor. A propósito de
amor li, esta noite, uma página sua, traçada com uma graça extrema!
— Uma página!?
— Uma página, sim.
— O meu amigo ignora que eu nunca
escrevi senão cartas a alguma namorada!
—
É talvez isso!
— Como diz?
— Digo... que não é bem isso!
— Trata-se então?
— De um álbum!
— Oh! — exclamou ele, como
acordando a uma idéia nova.
— Já sei! Já sei, meu amigo! Não
me fulmine! Essa é a história mais deplorável da minha existência, senão da
existência humana! Eu tenho pelo álbum um horror que nenhum grito, nenhuma
frase, nenhum espírito explica. O homem tem pressentimentos fatais; eu sonhei
em pequeno, uma noite em que não saíra o luar, que haveria um dia escrever num
álbum! Decorreram muitos anos e, à semelhança dos heróis de melodrama, que têm
todas as manhãs um remorso à cabeceira, a idéia pavorosa, a sombra escura, o
aspecto aterrador dum álbum era sempre o meu “Deus te salve!” Fugi de Lisboa e
fui para a província, na intenção de me esquivar ao meu destino. Chegado a
Tras-os-Montes, onde eu cuidava que as pequices da civilização não houvessem
penetrado ainda, respirei com a suprema alegria dum homem que descobre um mundo
do seu agrado. Na primeira casa em que entrei, de umas excelentes senhoras,
aliás, havendo-me regalado com um jantar abundante, e com as mais afáveis
maneiras deste mundo, remataram um tão bem passado dia proporcionando-me uma
cólica!
— Oh! desgraçado!
— Faça idéia. Pois, não me
apresentam, à hora do café, dois valentes e rechonchudos álbuns, um de casa,
outro da vizinha, para eu enriquecer com alguma das minhas melhores poesias?!
Dois álbuns, meu amigo; a única coisa, diz um autor, que se tem descoberto de
pior... que um!...
— Era caso para um suicídio!
— Se contasse com uma notícia
diversa, tinha-o feito! Este ódio cordial que me inspira o álbum dispensa-me de
lhe descrever o quarto de hora de agonia, que veio oferecer-me esse que leu!
— Agonia que se disfarçou no mais
eloqüente entusiasmo!
— Vou ser franco consigo. Eu não
escrevi essa página para aquele álbum, mas na dificuldade de me inspirar pela
dona deste, recorri ao expediente de lhe repetir exatamente o mesmo que
escrevera uma de dama que está a esta hora provavelmente tomando o seu banho de
leite no Brasil!
E Carlos Eduardo cantarolou, como
recordando-se numa toada graciosa e meiga, não sei que canção da América
Gentes, gentes,
Se voando.
— Isso prova apenas que teve o
talento de acertar duas vezes, porque não há forma de pressentir que não fosse
inspirada por Carminho!
— Oh! A vaidade dela dir-lhe-á
que sim! E todavia, que diferença, que mundo, que abismo, entre o olhar destas
duas mulheres! A minha estrela, que ainda é mais cassoísta do que funesta,
trouxe-me a Cintra antes de ontem. Encontrei em Colares Gonçalo Dantas e sua
mulher. Eu trazia o ouvido enfastiado dos elogios com que Lisboa tem formado à
noiva um concerto de louvores; isto devia ter um resultado menos propício, e
assim foi — a noiva já tem álbum! Aqui está para que serve a admiração posta em
música, cantada em redor da beleza pelas vozes de uma população! Cintra em
março sob as influências dum álbum é uma coisa cáustica; vou partir!
— Hoje mesmo?
— Dentro de instantes.
Aconselho-o que siga a mesma idéia; dou-lhe condução, venha comigo para Lisboa!
— Não. Cheguei ontem, e conto
ficar dois dias.
— Que distância entre nós! Eu
fujo do álbum: e o meu amigo fica... por ele!
Pouco tempo depois, Carlos
Eduardo partiu para Lisboa, encarregando-me de fazer as suas despedidas aos
noivos, que estavam recolhidos ainda. Acompanhara-o até o portão; e ele disse-me
apenas, erguendo a vista para o hotel:
— Deixo sempre este quadro com
saudade! É pena que Cintra não esteja... em toda a parte!
Fiquei um instante a olhar o
caleche que o conduzia, Uma camélia caiu a meus pés. Fui a olhar, e senti
fechar uma janela. Apanhei a camélia e levei-a para cima.
— De quem é esta flor, rapaz? —
perguntei a um criado.
— Isso há de ser desse senhor,
que foi para Lisboa: que trouxe ontem uma camélia de Monserrate.
— Deste senhor...
Ninguém estava levantado ainda no
hotel senão o criado e eu. Eram sete horas, estávamos em março, e o frio
convidava apenas a madrugar algum pobre diabo, poeta ou folhetinista, que goste
até de admirar a natureza, constipando-se.
Fui para o meu quarto, pus a
camélia num copo e agarrei num livro que andava a ler.
Era a Apologia da Revolta de Eva.
O autor admite como exato o que
diz o Genesis, da desobediência da primeira
mulher: todavia, longe de reputar isso um crime, demonstra-nos com uma precisão
admirável que a sua rebelião tinha sido ao mesmo tempo um ato de coragem, de
dedicação e de sacrifício! Era um verdadeiro livro para se ler em Cintra!
“A primeira de todas as
revoluções, de que o gênero humano conserva memória — dizia o livro —, essa
revolução simbólica e sagrada de que nasce no andar dos tempos todo o progresso
do homem e das sociedades, vêmo-la aparecer nas Escrituras sob o nome e imagem
de uma mulher: o Todo- Poderoso disse aos cônjuges, fracos e ignorantes, mas
felizes e imortais: — ‘Não haveis de comer o fruto da árvore da ciência, ou
morrereis! Resignou-se o homem a esta inativa felicidade., mas a mulher,
escutando em si mesma a voz do espírito de liberdade, aceitou o desafio,
preferindo a dor à ignorância, e a morte à escravidão. Sem que lhe importe o
perigo, arranca com pequena mão ousada o fruto proibido, e leva consigo o homem
nesta nobre rebelião. Banidos depois e condenados à morte, Eva ficou sempre,
todavia, aos olhos da sua triste e orgulhosa posteridade, a personificação
gloriosa e maldita da independência do gênero humano.”
E singular! disse eu
interrompendo a leitura, a cismar, e volvendo os olhos para a camélia: é
realmente singular que Carlos Eduardo trouxesse ontem esta camélia de
Monserrate!
O livro estava me incomodando.
Fechei-o. Que me dizia ele, por fim de tudo, senão que sem o erro de Eva
procurar-se- ia debalde a causa das inquietações da mulher? O que vinha ele a
dizer-me senão que o espírito da liberdade é imortal, e que revolta, essa Eva
perpetuamente moça, prefere ai’nda hoje, como nos primeiros dias do mundo, o
desterro, o anátema, a dor e a morte, á monótona paz da ignorância, da
escravidão... ou da felicidade até!...
Entreguei o álbum a Carminho, á
hora do almoço. Ela pareceu-me contrariada e triste, por ter que deixar Cintra
antes da tarde; uma carta de sua irmã lhe pedia muito que voltasse a Lisboa:
estava doente e só tinha esperanças em vê-la. Carminho confessou-me que era
para ela o mais atroz dos sacrifícios apartar-se de repente das sestas nos
Pisões e das tardes no Castanheiro, mas que ainda que supunha que sua irmã
teria apenas um defluxo, desejava ir melhorá-la, abraçando-a.
Um daqueles garotos que
acompanham as burricadas á Peninha, para ir buscar cruzinhas de pedra ou
fazerem um buquê de flores silvestres, que nascem por ali ao acaso nos valados,
apareceu à porta de barrete na mão, a dirigir a clássica pergunta:
— A senhora não quer levar um
ramo de camélias?
— Não — respondeu Carminho.
— São ainda tão bonitas! Todas
raiadas! continuou o rapaz.
— Não! Não quero — insistiu ela.
— Raiada, achei uma ainda agora e
linda! — disse eu.
Carminho não disse nada. Olhei-a,
pareceu-me fazer-se corada: continuei:
— Permite-me V. Exa.
oferecer-lha? Ela está ainda viçosa, apesar de haver ‘sido apanhada ontem.
— Entendi dizer-me que a achara
ainda agora?
— Sim. Caiu-me aos pés, escapando
das mãos de alguém numa destas janelas: todavia foi colhida ontem em
Monserrate, ao que me disseram.
— Ë talvez dessas meninas
inglesas que cá estão? — respondeu ela fazendo-se mais vermelha ainda.
— Provavelmente — disse eu.
Duas horas depois, os noivos
partiam, e Carminho levava como recordação de Cintra... aquela camélia.
A irmã de Carminho era uma menina
alta e delgada, que parecia não ter mais de 16 anos, e tinha 20. Elegante,
cheia de gentileza e de graça, era de uma tão distinta finura de formas que
faria cuidar que ia quebrar-se toda, quando mudava de atitude!
Havia uma mistura sublime de
inquietações e de resignação na sua fisionomia melancólica. Era dotada de uma
sensibilidade extrema, mas que em raras ocasiões se revelava. Só grandes dores
podiam abater aquela gentil fronte inspirada!
Não era destas criaturas cheias
de bondade, e todas coração — como se usa chamar-lhes —, que são boas para
todos, sem distinção nem na intensidade do favor, nem na forma de o fazer, nem
na facilidade de o concederem. Tinha as suas pessoas prediletas para quem era
toda delicadeza; para as demais, sem as ofender com desdens, afastava-as pela
indiferença. Não era amiga de conversar, senão com os que lhe mereciam estima;
no seu conceito, confiar a um e outro idéias um pouco mais íntimas como são as
que no decurso de uma conversação inevitavelmente acodem de uma ou outra vez, é
dar muito a quem nos merece pouco. Por isso reservava para as suas amizades
favoritas toda a expansão dos seus sentimentos e das suas idéias. Uns
acusavam-na de altiva e pouco amável, por lhes não atender; outros chamavam-lhe
fria, porque raramente chorava. Quando a primeira lágrima atravessasse as suas
longas pestanas, traria após si um dilúvio de pranto, que nem o tempo
reprimiria — porque a mágoa então seria extrema!
O que havia de antigo e severo
nos traços da sua beleza era suavizado por uma expressão serena e meiga. Como
ela era bela à noite, à claridade das luzes! A cor da sua pele, levemente
biliosa de dia, tornava-se então de uma alvura magnífica.
Tinha cabelos loiros, finos,
lisos e iguais. As azuladas olheiras, que se desenhavam por baixo dos seus
meigos olhos, davam uma expressão de inteligência e de melancólica firmeza
àquela airosa fronte, cuja beleza linear tocava as proporções do belo antigo!
Tinha vaidade — algum defeito
havia de ter —, tinha vaidade em duas coisas: em cantar bem, e em ter os mais
bonitos pés do mundo. Ai de mim! Não pode esta pena sincera e imparcial
contestar-lhe o direito a semelhante orgulho! Ela tinha deveras uns lindos pés
e um lindo talento musical! deus atendera aos dois extremos desta adorável
criatura: num pais como o nosso, em que tanta gente não tem pés nem cabeça,
fazia-se ela valer sobretudo pela cabeça e pelos pés!
Pés! que pezinhos! De uns que há,
em que se procuram asas nos calcanhares, por nos parecer razoável que a gentil
criatura que os possui deva ser filha do ar!
E andava, aquela tontinha, andava
pelo chão, como qualquer de nós! a martirizar, impiedosa, aquelas duas
admiráveis miniaturas!...
Chamava-se Amélia. Era mais velha
cinco anos que Carminho. De índole perfeitamente diversa, havia um mundo entre
as duas irmãs.
Ela tinha, mais que tudo, o
condão de não se impressionar. Era uma destas criaturas de quem se não pode
ficar sem lembrança, quando uma vez as encontramos. Podia agradar ou
desagradar; não podia esquecer!
Para o seu espírito, a melhor e
mais doce distração parecia ser a música, porque em todas as ocasiões de
melancolia ou de tristeza recorria ao piano como pedindo consolações às
melodias. Então, compondo ao acaso sobre alguma poesia cheia de queixas e
lamentos, traduzia a inquietação, a ansiedade, a febre, no timbre meigo e
encantador, que suspirava em notas saudosas como uma harpa viva, presa ao seu
coração!
Por que era ela infeliz? Não sei;
e todavia, era-o. Todas as condições materiais da existência humana porfiavam
em a fazer sorrir: era riça, formosa, moça, bem nascida, e educada com os mil
esmeros de uma mãe carinhosa: e apesar de tudo a sua fronte dobrava-se a todo o
instante ao peso de uma singular tristeza. Por que havia querido Deus
distanciar tanto o caráter destas duas crianças? Carminho só pedia á vida a
esperança; Amélia parecia pedir à esperança a morte!
Quando Gonçalo Dantas foi
apresentado em casa da mãe destas meninas, não conhecia nenhuma delas. Levou-o
ali, por suprema distinção, um amigo da família, na simples intenção de lhe
proporcionar uma noite agradável. Era um homem grandemente instruído, um pouco
cáustico, mas de uma sinceridade extrema. Para que o leitor não diga que os
meus heróis vivem todos do ar, façamo-lo médico. Gonçalo Dantas chegava da
província, e cuidava tudo, menos que havia de namorar-se de alguém em Lisboa, O
pai das duas meninas acabava de lhes faltar. Encontraram-se herdeiras dum
excelente nome.., e duma excelente fortuna. Diz-se na sociedade que Gonçalo
pensara nisto, quando se propôs a pedir a mão de Carminho. O que se sabe apenas
é que a sua simpatia por ela não ia tão longe que o impedisse de dirigir ao seu
amigo esta singular pergunta:
A qual achas tu que faça a corte?
— Gostas de alguma delas?
— De ambas!
—
É mais difícil do que se principiasses por não gostar... de nenhuma!
— No teu caso?
— No meu caso, esquecia isso.
— Tens um motivo?
— Tenho uns poucos. Estas meninas
são duas criaturas angélicas mas, ordinariamente, dos anjos não se fazem boas
donas de casa.
— Prosaísmo!
Prosaísmo será, mas não é pelos
poetas que se inventou a prudência! Nenhuma destas meninas te convém, Gonçalo;
és rude demais, meu velho, para te entenderes com qualquer destes querubins.
Que idade tens tu, Matusalém?
— Quarenta e um!
— Salvo o erro!...
A que veio a pergunta?
— Para esta resposta — uma delas
tem 15, a
outra ainda não fez 20 anos!
— Histórias da vida, meu amigo!
Andam vocês apegados a essa falsa máxima de que as crianças devem casar umas
com as outras! Se eu tivesse também 15 anos, dir-me-ias tu que estava apto para
marido de alguma destas donzelas! És estúpido como uma porta, e massador como
uma porta a ranger. Tenho 40 anos, é verdade, mas tenho muito mundo, e sei a
vida na ponta da língua!
— Também não é assim!
— Pois, dirás como é!
— O mundo que tu conheces não é
este. Vieste três invernos a Lisboa na intenção de passeares pela capital a
reputação, que te haviam feito na província, de cavalheiro bizarro. Meteste-te
no Marrare — o Marrare neste tempo levava dinheiro! — Fizeste mil diligências
por uma dançarina, que faria mii diligências de tu a quereres. Foste às
partidas de um fidalgo, apostaste cem libras a cada carta; perdeste sempre.
Ceaste em casa de uma prima-dona. Estafaste dois cavalos, e tiraste um dente no
Vitry. Aqui está o que fizeste em Lisboa; nada mais! Ficaste sabendo alguma
coisa do mundo dos homens, e nada dos homens do mundo!
— Disparata por aí! Há uma coisa
que eu guardo ainda nos meus 40 anos, é o pudor. Quando uma mulher se me desse
por esposa, para me desonrar depois, matava-a.
— Isso tudo é lá de fora!
— Conheces-me desde criança, e
sabes que não sou vaidoso. Sinto-me em toda a força da vida, podes crê-lo, e
obstino-me a não concordar em que já não é tempo de me casar. A idade é o pão
dos imbecis. Tudo tem de ser! Podes achar-te belo como Apoio, ter 25 anos e a
glória dar-te o seu melhor sorriso: — a tua namorada terá um capricho,
trocar-te-á pelo primeiro alferes que lhe apareça! Esperar o pior ou não
esperar nada; eis tudo! Carmo e Amélia têm o dom de me encantar, e tu vais
escolher-me uma delas; fecho os olhos e aceito, e-me igual uma ou outra; quem é
que diferencia os anjos?
— Sim! Também me parece, meu
amigo — respondeu o doutor. — 1-lá em cada donzela um anjo, que mal roça pela
terra as asas; mais tarde, deixa como mãe o suave rasticio dos seus passos, e
depois de haver vivido como a rosa, sem perder o viço e a cor, o anjo querido
dos salões torna-se às vezes, quando envelhece, em demônio do lar doméstico,!
— Que importa? Lê alguém, de
longe, o seu destino!? um capricho, uma loucura, talvez, o ir eu casar-me; quem
sabe, todavia, se este casamento tem de evitar-me alguma loucura maior! Vamos,
doutor! mostra-te meu amigo, escolhe-me a noiva, e encarrega-te perante ela das
flores do meu elogio!
Olha que é asneira, Gonçalo!
— Melhor para ti: evita-te cair
noutra semelhante! Deixa-me ser tolo a meu modo: os tolos prestam serviços à
sociedade, encarregando-se de fazer os disparates.., que estavam reservados
para os que têm juízo!
— Pois bem! Vou acender a
fogueira; esta noite já te darei resposta. Tu não gostas mais dos olhos da
Amélia?
— E os cabelos de Carminho?
— A outra tem melhor sorriso!
— E aquela melhor olhar!
— Oh! ímpio ancião — queres as
duas?
— Não rias — redargüiu Gonçalo —
há alguma coisa de sério em tudo isto, e toda esta aparência de frivolidade é
apenas como o véu de um sonho! Estou casado, doutor, ou nenhuma delas me
quer!...
Todo esse diálogo teve lugar,
passeando os dois no Chiado. Era das três para as quatro horas, quando a
sociedade elegante passa inquieta, entrando ou saindo das lojas de modas. Um
caleche parou perto da casa Lombré: o médico apertou o braço ao seu amigo,
quando viu a viscondessa e suas duas filhas, que se apearam.
— Vem! — disse-lhe. — Vamos encontrá-las.
Escolherás talvez!
— Ser-me-ia agora impossível,
antes de saber o que pensam de mim!
— Até à noite, então!
— No teatro.
Com um fino trato de diplomacia
amorosa, o doutor, que foi jantar à casa da viscondessa, tratou de insinuar
Gonçalo no ânimo das duas meninas. Era um homem astucioso e arteiro para esta
ordem de empreitadas, e possuía o segredo de saber conversar com senhoras,
acompanhando-as naquele borboletear de espírito, que passa incessantemente de
um assunto a outro sem pousar em nenhum!
Quando se quer recomendar um
homem aos olhos de um senhora, antes de se fazer o elogio dele, deve contar-se
o elogio que ele fez dela. O doutor sabia todas estas práticas da vida, e
pô-las em ação; mas, se a vaidade de Carminho foi levemente tocada por este
improviso, Amélia, ao contrário, sorriu fria- mente ao ouvir o nome de Gonçalo,
e deixou cair esta frase, que foi a pior condenação:
— Grosseira criatura!
— O meu amigo Gonçalo? — pergunta
o doutor.
— Se é seu amigo... demais,
arrependo-me de haver dito isto.
— Oh!. diga! diga! acudiu o
doutor, que percebeu logo que era útil aproveitar a antipatia de uma para
merecer a simpatia de outra. Parece até — caso estranho! — parece-me que se
ajustam as guerras de coração na distância e na escuridade!
— Por quê? — perguntaram ambas.
— Porque Gonçalo Dantas —
respondeu o doutor rindo. — Não tem uma predileção grandemente decidida pela
sra. d. Amélia, e...
—E...?
— E adora o espírito da sra. d.
Carminho!
Este é o momento em que se faz
corada a donzela mais indiferente ao amor. Quando uma declaração chega por
intermédio de terceiro, ganha tanta cor de sinceridade, como os suspiros e
segredos, que um coração contasse à brisa! Não há maneira de desconfiar de quem
nos admira em silêncio. A alma humana tem para uma senhora mil razões de
vaidade, e elas absolvem com gratidão os que cometem a ousadia... de as adorar.
Gonçalo tomou nesse instante para Carminho as proporções de vulto interessante.
Não é porventura inevitável reconhecer espírito em que nô-lo encontra? E
depois, o doutor descreveu o seu amigo com os toques brilhantes da paixão e do
entusiasmo: que era um tipo excêntrico, bravo e leal: que tinha olhos pretos, e
um bigode magnífico: que atirava como um mestre de armas; que era impetuoso
como um leão, e meigo como uma donzela... Quando o leitor fizer o seu plano de
ataque numa campanha amorosa, incumba sempre um amigo de o retratar à sua
escolha, realçando-lhe os dotes e esquecendo-se dos defeitos. Isto poupa-lhe
meia jornada.., se o amigo que escolher não tratar de si em vez de tratar do
senhor — o que também pode acontecer, poupando-lhe dessa forma a jornada
toda!...
A viscondessa, a quem Gonçalo
caiu em graça, encaminhou muito sua filha Carmo, na maneira de se conduzir para
com ele, e em poucos dias, o doutor, que fizera ao seu amigo uma primeira carta
para amenina, viu-se rogado por esta, numa confidencial mais que extremosa, a
aconselhá-la se devia responder ou não.
É inútil explicar que quando o
doutor disse que sim, já a viscondessa tinha dado a Carmo o rascunho do que
cumpria copiar.
O casamento efetuou-se com uma
brevidade incrível, e o que Carlos Eduardo no princípio desta história me
contou acerca da boneca de presente de núpcias, era perfeitamente exato.
Ao chegarem de Cintra, os noivos
foram imediatamente à casa da viscondessa.
— Pobre mamã! — exclamou Carmo à
entrada. — Já sei que está aflitíssima! Amélia não está melhor?
— Como, melhor?
— Como melhor! Melhor da doença
que a conserva de cama há dois dias.
— Mas tua irmã está
perfeitamente, meu anjo! — respondeu a mãe com a mais sincera expressão de quem
ouve uma novidade. — Escuta! Não ouves o piano? Não a conheces nesta valsa?
Quem pode haver-te dado semelhante idéia?
Carminho ficou estática e, com um
ar infantil e desconfiado, meio risonho, meio triste, respondeu com voz
trêmula:
— Se a mamã receasse dar-me uma
má notícia...
— Uma má notícia, filha de minha
alma! Mas, que quer dizer essa insistência!
Gonçalo, que se conservava
pasmado, contemplando sua sogra com o olhar especialíssimo de um genro de
província, entendeu ser tempo de tomar a palavra; e tomando a viscondessa pelo
braço, disse-lhe a meia voz:
— Há, seja o que for em tudo isto, senhora
viscondessa! Eu afirmo a V.Exa., que li hoje uma carta de sua filha, minha
senhora, suplicando a Carmo que voltasse sem demora, para a acompanhar na sua
doença!
— Que louco imbrogilo! — ponderou a fidalga. — Vai, minha filha, vai pedir a
tua irmã que interrompa o entusiasmo da sua valsa, e te explique...
O doutor entrava neste momento.
— Oh! — prosseguiu a viscondessa.
Aqui está o doutor, que, na qualidade de médico da casa, vai informar-nos das
melhoras de Amélia!
— Como, das melhoras? Pois esta
manhã ainda a vi tão bem disposta, e venho ter a mágoa de a encontrar doente!
— E a história de d. Basilio! —
disse a viscondessa, rindo. — Ë preciso ir tirá-la do piano, e entoar-lhe o Vad’a letto!... Não, doutor,, não! Minha
filha, Deus louvado, tem apenas hoje, como sempre, a doença da poesia, que é a
doença... de quem não tem outra! Tem estado toda a tarde a compor música para
uns versos, enfermidade que não me dá muito cuidado... por ser da moda! Vamos
nós fazer um wisth?
— Com muito prazer! — disse o
doutor.
Em quanto a viscondessa, Gonçalo,
o doutor, e uma velha aia da casa se entretêm na sua partida de wisth, aqui
está o que se passa entre as duas irmãs.
— Sabes que não compreendo a
singular notícia da tua doença, de que nem a mamã, nem o doutor, nem a nossa
velha aia Justina, estão informados?!
— Meu amor — respondeu Amélia,
sorrindo —, eu não estive doente.
— A tua carta, todavia...?
— A minha carta mentiu.
— Com a intenção...
— De te salvar.
— Que quer dizer?
— Digo de te salvar, meu pobre
anjo — e abraçou-se-lhe com uma meiguice melancólica e encantadora —, meu pobre
anjo, tu vais perder-te!
Carminho tornou-se pálida.
— O que pode fazer-te supor...?
— Sei tudo. Carlos Eduardo tem
uma irmã, que estava comigo no convento das Salésias e, se essa irmã é a única
pessoa para quem ele não tem segredos, a única pessoa para quem ela os não tem
sou eu!
Carminho curvou a fronte sobre o
seio de Amélia, orvalhando-o de lágrimas.
— Que te disse, pois?
— Que Carlos Eduardo tem um
capricho por ti, um capricho, minha pobre irmã! e que tu autorizas a sua
temeridade.. esquecendo-te de Gonçalo, e não lho recordando a ele! Oh! — vou
dizer-te. Uma predestinação fatal preside a tudo
isto. Desde o meu baile de
núpcias, que os olhos daquele homem me procuram, me seguem, e me prendem! O que
há nele de singular não sei: tento fugir áquela vista aguda, penetrante e
irresistível, mas ele subjuga-me, vence-me e prostra-me. Eu tenho medo, Amélia,
medo dele! E todavia não se é mais dócil, mais submisso, mais dedicadamente
respeitoso do que o tem sido sempre para mim. Um poder, que eu não explico,
encadeia a minha alma a pensar nele! Não é de certo mais belo do que os outros
homens, apenas o seu espírito o distingue do maior número; ruas quando ele
aparece no teatro, no circo, ou nos bailes, a sala parece redobrar de luz pelo
seu olhar! Sente-se que há tristeza na sua aparente alegria. Ele parece falso,
aquele homem: há afetação no seu ar de simplicidade e de distração e, apesar do
meu desdém, do meu horror até por tudo que não é verdadeiro, enleia-me,
seduz-me, encanta-me, aquele tipo especial de ironia e de inocência, e fico
cismando nele, sem saber se devo adorá-lo como o anjo do infortúnio, se como o
anjo do mal!... Nada nele é sincero, vês tu! Estuda, prepara, e planeja tudo. A
ouvi-lo no mundo, ele não pode suportar a minha beleza, e esta continuamente em
remoques acerca dos meus dotes do espírito. Gonçalo já uma vez me disse que
apenas lhe perdoava a pouca simpatia que eu parecia inspirar-lhe pelas
galanterias com que se esforçava em vencer o seu natural desamor por mim! Que
idéia preside a tudo isto? Por que não dispensa ele nunca, no mundo, ocasião de
desdenhar do meu merecimento — quando, por menor que ele seja, parece havê-lo
prendido? esta a sua arte de guerra no amor, talvez: amar desdenhando, para que
ninguém suspeite do objeto da sua adoração! Nós somos fracas, Amélia: todas nós
somos fracas, minha irmã, e eu sinto, Deus me perdoe, que adoro esse homem!...
A irmã mal teve força para a
abraçar e conduzi-la até a janela do quarto, que deitava para o jardim.
— Olha! — disse-lhe. — Não gostas
de ver de novo ao pé de ti estas árvores, de que toda a nossa vida temos
aspirado o perfume e escutado o murmúrio? Há consolações em tudo isto, irmã; e
tu, que vens do mundo, do ruído.., e das paixões, precisas falar com Deus! Deus
está aqui: na doce serenidade desta natureza simples e alegre! Não o sentes?
Não o escutas? Não o adoras, Carminho? Quando estamos abraçadas, como outrora,
a esta mesma janela, entretidas a ver os ramos escuros das árvores balouçarem
ao sopro da viração da noite, não te faz medo o mundo, e a tua alma à simples
idéia dele não recua aterrada de ver de perto a inquietação que a espera, não
se abraça a si mesma, e não redobra de força e de energia?
Carminho escondia a fronte entre
as mãos e chorava.
— Se eu fosse solteira ainda! —
balbuciou ela.
Horrível frase de uma noiva:
frase em que vai quase sempre a honra do marido e a virtude da mulher — a
felicidade de ambos!
— A irmã de Carlos Eduardo —
disse Amélia — assustava-se sem motivo dos resultados desta temeridade. Aquela
menina chegou a recear que a tua imaginação simples e sincera se impressionasse
a ponto de esquecer o mundo e o dever. Eu jurei-lhe que não aconteceria assim,
e que a tua alma nobre e cândida teria a força de repelir a tentação. Quando um
homem é bastante calculista para ter ânimo de desdenhar por toda ‘a parte na
beleza da mulher que adora, embora haja para admitir a prudente sutileza do seu
caráter, há a deplorar contudo a pouca espontaneidade da sua índole! Antes um
imprudente, que me perde, perdendo-se, do que um calculista, que me salve,
ferindo-se! Tudo isto não foi mais do que um fatal episódio na tua existência,
que ainda agora desponta; os teus destinos de noiva iam perder-se sob a
influência de uma estrela do mal: chora hoje comigo a tua loucura, em vez de um
dia eu ter de chorar sozinha a tua desonra! Supõe por um instante que teu
marido...
— Oh! — exclamou Carminho,
estremecendo. — Nem me dês essa idéia! Quando ás vezes se fala diante de mim
das leviandades de alguma senhora, a sua fronte enruga-se; e cada palavra dele,
austera e cruel, vem cair no meu coração como chumbo derretido! Gonçalo é uma
boa alma, mas aterra-me!...
Ficaram silenciosas ambas fixando
vagamente o olhar no céu. A lua erguia-se pálida e, a pouco e pouco, à medida
talvez que olhava a terra, melancólica, namorada, triste, ganhou cor, ganhou
luz, ganhou alma, e sorriu.
— Ontem á noite em Cintra — disse
Carmo como que a si própria — estava a lua como eu nunca a vi! Eu estava
sozinha no terraço do hotel, enquanto Gonçalo lia os jornais. Tinha na mão uma
camélia... que ele me trouxera de Monserrate; ora olhava para ela, ora para o
céu! Não se ouvia senão o sussurro das águas nas fontes dos Pisões, e não se
via mais do que os pinheiros que se erguiam na sombra, as aves que lhes dormiam
no tronco, e a lua a coroar a serra! Uns frocos de nuvenzinhas brancas vieram
como uni véu afagar-lhe a face, e a casta deusa quase parecia vaidosa! Depois,
penderam-lhe dos lados, como os brincos alvejantes de uma virgem que se adorne:
dali a nada molduraram-lhe a fronte com um diadema pálido de noiva. De
noiva!... E fugiram-lhe, e deixaram-na nua, bela, esplêndida, toda luz, toda
amor! Oh! se tu visses, minha pobre Amélia, como a camélia resplandecia então
de amor, de encanto e de luz, pensarias naquelas flores do Oriente, que
embriagam a vista, e trazem nas pétalas a loucura e a morte!
— Carmo! Carmo! — disse a irmã,
abraçando-se-lhe.
— Oh! sim! prometo-lhe: não me
lembrarei mais dele! Que a sua voz, meiga e suave, não torne a acordar a minha
alma pela esperança. Esperança de que e em quê? Não sou eu casada? Não procurei
eu a morte? Aquele imprudente, que julgou que ia a tempo ainda de pedir-me a
felicidade no meu baile de núpcias — como se uma noiva a tivesse!...
— Oh! minha irmã, minha irmã!...
Que estás dizendo? Pois não podes tu ser feliz com Gonçalo, que tanto te
agradou de princípio? Em que julgas tu superior esse rapaz, que apenas conheces
por leres versos dele, e porque o achas simpático, a teu marido, que não faz
versos, mas que já te pareceu simpático a ti?
— Tiremo-nos desta janela! —
disse Carminho. — A vista da lua enche-me de saudades, que me enlouquecem! Vai!
Brilharás ainda para outra, como te vi brilhar para mim. Seja essa menos
infeliz do que eu! O teu império é na solidão, ó lua! Vives sobre a serra, e
dormes por detrás dela. Levanta-te cada noite, e vem sorrir à natureza e às
almas, porque a poesia morre se tu fugires... Mas, esconde-te na Peninha,
louca! Não venhas para o mundo fulgir sobre a cidade! Não és a mesma aqui! É
preciso ver-te erguida sobre um trono de penedos, ao longe o mar, a solidão em
roda, e aos teus pés a ave e a flor!...
— Cuidado! — disse Amélia, a meia
voz, apertando a mão de Carmo. — Sinto os passos da mamã!
Pouco tempo depois, os noivos
retiraram-se, tendo-se dado como única explicação da carta de Amélia a
impaciência em que estava de ter perto de si a sua irmã.
— De quem, dentro de um mês, V.
Exa. terá de novo que separar-se! — disse o marido, sorrindo.
— E por quê? — perguntou Amélia,
inquieta.
— Porque devemos ir a Barcelos,
para Carminho ver a nossa casa, e demorar-nos-emos dois meses.
— Ora — replicou a noiva. — Para
que nos disseste isso já?! É a maneira de Amélia principiar a afligir-se desde
hoje!
— E por que não vem V. Exa.
conosco, mana, se a senhora viscondessa permite?
— Sou doente demais para
jornadas, e ia perturbar-lhes todo o prazer da sua viagem. Vão! Fazem muito
bem! Vão! O tempo está lindíssimo, para viver no campo. Não há mais bonito
março do que este! Aí está que, pelo contrário do que supunham, alegra-me, em
vez de inquietar-me, essa resolução em que os encontro de irem ver Barcelos.
Dois meses correm depressa e, para ainda me ser mais fácil, escrever-me-ás
muitas vezes; não é verdade, meu amor?
— Sim! Muitas vezes...
— Quando partem, mano? — perguntou
Amélia a Gonçalo.
— Em 15 dias, o muito.
— Devem partir antes: quando
março não tem inverno de manhã, é porque junho vai tê-lo de manhã e de tarde.
Tomara eu ter saúde, que os acompanhava; mas havíamos de partir dentro em três
dias!
— Tão depressa! — disse Carmo — e
acrescentou-lhe ao ouvido: — Es cruel!
— Três dias! — exclamou Gonçalo,
rindo. Aí está justamente a imaginação dos 16 anos, nos seus frenesis, nos seus
entusiasmos, nas suas ansiedades! Dou-me por feliz, de Barcelos lhe haver caído
em graça, mana: isto foi uma pura questão do acaso, que me salvou dos seus
epigramas: se não tem acontecido assim nunca eu conseguiria levar Carmo à
província!...
À saída, as duas irmãs
abraçaram-se estreitamente, e disseram de relance, ao ouvido uma da outra:
— Partirás?
— Talvez.
— Sim!
Oito ou dez dias depois,
passava-se a noite em casa da condessa d’Alguber, que recebia às
segundas-feiras. A condessa tinha 30 anos, e nascera feia; quando se é condessa
e se nasce assim, aos 30 anos tem-se ódio ao mundo. A vida para esta dama era
uma viagem monótona, uma jornada de churrião. Nada conseguia distraí-la, senão
os mexericos da sociedade. A sua honestidade tinha ganho fama, à sombra do seu
temperamento, que lhe não permitia senão ser fria: chamam-se às vezes virtuosas
estas organizações insensíveis. O que a recreava em extremo era levantar o véu
às mais íntimas cenas da comédia social, e seguir o andamento destes entrechos,
um instante misteriosos, mas destinados de ordinário ao desenlace de um escândalo.
Os noivos achavam-se ali; Gonçalo
a uma mesa de wisth; Carminho num grupo de senhoras, que discutiam com Carlos
Eduardo de Lemos. O que discutiam eles? Eu não sei bem: discutiam modas,
literatura, amor, política, bailes de máscaras, religião, que sei eu?!
Falou-se em milionários.
— O que Deus me defenda de eu ser
um dia! — disse Carlos, rindo.
— A poesia quase lhe o assegura!
— respondeu alguém. — Se é preciso er poeta para ser infeliz, não é infeliz
quem quer!
— Oh! os ricos são hoje os únicos
infelizes. Há uma coisa apenas tão desgraçada como a miséria, é ter milhões!
Não conheço um único milionário feliz! Passam os dias amarrados à carteira, sem
irem procurar um instante ao ar livre um só raio de sol que os aqueça! A
sociedade, para tudo ser, obriga-os a representar çegamente o seu papel de
ditosos: há mil casamentos a procurarem-nos, mil falsos amigos a tomarem-lhes o
tempo, mil parentes a desejarem-lhes a morte. Não lhes é permitido passar uma
noite no Marrare, entre uns poucos de rapazes e umas garrafas de cerveja
inglesa; chamam-lhes pródigos se derem, como nós, todo o troco ao criado!
Receiam tomar intimidade com toda a gente, por cautela: ninguém os acompanha,
que não tome logo o ar de explorador! Se têm amante, diz-se que são amados pela
sua fortuna! Se freqüentam uma família honesta, a vizinhança principia em
remoques! Ninguém os quer, ninguém os respeita! São uma espécie de leprosos
sociais! Horrível!
— Que os infelizes saibam amar
melhor, convenho, — disse um deputado, que se chegou ao grupo: — mas que os
infelizes sejam mais amados...
— A que chama infelizes? Aos
deserdados, aos bastardos, aos filhos segundos? O único amor que tem voz é o
que se apresenta despido das grandezas do mundo, que não brilha senão da luz da
sua chama, não & par do reino, nem ministro, nada tem e nada há de ter, e
faz consistir a sua força nas graças atraentes da sua fraqueza! E aquele pálido
semblante, que tem o sorriso melancólico e o olhar choroso; que se sente mal
neste mundo, que se queixa de não ser entendido, que ostenta a riqueza da sua
miséria, que vive.., de ser pobre, que interessa por ser pequeno, que comove
por ser triste, que é feliz.., por ser desgraçado! Eterno peregrino, que
atravessa a vida encostado ao seu mau destino como a um bordão de romeiro; pede
hospitalidade ao cair da noite, é mais bem tratado que o dono da casa, deve
mais atenções à caridade do que os grandes da terra à opulência, e parte de
madrugada para ir seguindo, da mesma forma sempre, a sua sublime romaria! E
este amor, que ê o perigoso. Pede esmola como um pobrezinho, e é ele sempre
quem mais impera: bate à porta com humildade, e anda depois pelas casas todas:
tem ar de implorar as migalhas, e o melhor manjar é-lhe destinado sempre!
As senhoras sorriam-se para
Carlos Eduardo como dizendo- lhe: — Tem razão! Apenas Carmo permaneceu séria,
baixando a vista, e cravando-a vagamente numa das flores do tapete. O deputado
encarregou-se da réplica, mas, para sermos exatos, as senhoras não o escutaram,
o que me serve de pretexto agora para não lhe registrar o discurso!
— E bem verdade tudo o que disse
este moço! — ponderou a condessa ao ouvido de Carminho. — A tentação, meu anjo,
surge na vida do lado de que se não espera!
— De que maneira evitá-la então?
— perguntou a noiva com uma sublime acentuação de ingenuidade.
— Quem o sabe? — disse a
condessa, sorrindo; — ou antes, minha querida, quem é que tem a força de
procurar sabê-lo? Pela minha parte, confesso-lhe a verdade, tenho um grande
fraco para desculpar o que o mundo chama más cabeças; inspiram-me muito menos
confiança as boas. Ë triste de dizer, mas é assim. O pára-raios é para as
tempestades o que a tentação é para os corações. Atrai-os. Tirem do mundo os
homens superiores; ou acusem-nos de perigosos, em vez de nos acusarem de
fracas. Caluniam-nos os que dizem que só os tolos nos interessam!...
— Oh! Os tolos!... — exclamou
Carmo com horror.
— Sim. São eles próprios, creio
eu, que fazem espalhar esse boato! A sociedade é justamente a culpada de que os
homens de merecimento passem na sombra para as distinções do amor; por que não
os chama a si, por que não os requesta, por que não os desdenha até? Ah! meu
anjo, entra na vida, e ignora bem que pandemônio vai observar! Condenam-nos
como classe, às que nascemos em berços dourados. O mundo é o nosso juiz e o
nosso algoz. O que é, infelizmente, uma mulher honesta? Menos que nada. Uma
coisa em que não se fala!
— Ao menos — disse Carminho,
desviando de Carlos o olhar com que o procurara, — fica a consciência às que
fogem da chama que vai queimá-las, e isto é o mesmo que ficar-lhes Deus, não é
verdade, condessa?
— Eu sei! Eu sei, meu anjo! A
humanidade é tão... desumana: condena ou absolve ao acaso. Felizes dos que caem
em graça, porque há sempre desculpas para quem não se quer considerar culpado.
A primeira coisa de que se deve acautelar na vida, minha pérola...
— O que é? — perguntou a noiva
ansiosamente.
— Ë de acreditar nos que a
amarem. Veja que não lhe digo “dos que fingirem amá-la ou dos que lhe disserem
que a amam”, digo-lhe dos que a adorarem. Não há mais inconseqüente inimigo do
que o amor dos homens. O que eles estimam mais em nós é justamente o que nos
querem fazer perder... a virtude!...
— Para depois...?
— Nos acusarem, ou
desprezarem-nos.
— Oh! É horrível! — balbuciou a
noiva.
— Horrível, principalmente,
porque quando a minha querida for obrigada a colocar um homem no lugar que lhe
compete... já terá perdido o seu!
— Oh! Espero que...
— Sim! E que mais pode cada um do
que confiar na providência... e um pouco em si! A fidelidade, de mais a mais,
tem as suas glórias. Aqui vê, passando a noite, algumas antigas ligações. Há
gente que pasma disto, sem saber que as ligações antigas duram... justamente
por terem durado! A constância tem um orgulho à parte!...
— Que é, neste caso, o orgulho da
desgraça!
— Quando a desgraça dança nos
bailes, minha boa amiguinha, nem Deus a vê. Há uma nuvem, que costuma passar
pela lua-de-mel das noivas; quando ela lhe aparecer, verá que há de
aconselhá-la a ser indulgente com o próximo!
— Que nuvem vem a ser?
— Simples devaneio, às vezes. De
outras vezes, a sombra de um crime. A curiosidade de Eva que renasce no meio de
um espetáculo, auxiliada por um óculo de teatro, o pior dos intérpretes, o mais
perigoso dos confidentes! O fruto proibido, que passa de fraque e luva cor de
violeta! A nuvem surge de repente, e vem do lado de que não se espera. À mesa,
ao ver partir um fruto que se nos destina; na igreja, ao aceitar a água benta,
no bissope que se nos oferece; no verão, entre as árvores, ao encontrar três
vezes, fixos nos nossos olhos, uns olhos que nos procuram; no jornal, quando
uma vaga simpatia pelo nome de um escritor nos obriga, antes mesmo de terminar
a primeira página, a ir vê-lo no fim da segunda; no baile, quando o nosso
braço, que não tremeu na primeira valsa, que demos a um deputado, nem na
segunda, que demos a um poeta, nem na terceira, que demos a um príncipe, treme
na inocente contradança que um desconhecido alcançou de nós!
Mas, sabe tudo a condessa?
— Sei a vida apenas, meu anjo.
— É possível, contudo, que se a
nossa alma tentar perder- se na cerração da nuvem, uma voz amiga nos avise do
perigo e nos subtraia a ele, pois não é?
— Que voz’?
— ...de um marido, por exemplo!
— Os maridos não avistam nunca a
nuvem, meu amor; e, por mais incautos, ou mais cegos do que o resto do gênero
humano, só depois de toda a gente falar do seu dissabor, chegam eles alguma vez
a percebê-lo!...
— Alguma amiga, ao menos!
A condessa sorriu-se.
— As amigas na sociedade têm a
missão exclusiva de nos tirarem o marido ou o amante. Nada mais! Ao avistar da
nuvem, passa-se palavra entre todas, mas há sempre cautela de não avisar a
vítima da tempestade que a ameaça! £ um romance de horas, ou de toda a vida; um
capricho, ou um amor; quase sempre um capricho, felizmente! E bom ser virtuosa,
Carminho; ao menos, para enraivecer o próximo!...
— Cruel condição!
— Não é bem assim, perdoe-me.
alegre contemplar a sociedade a exasperar-se de despeito, e tem graça até vê-la
babar epigramas sobre o freio que é obrigada a roer!
Neste momento, Carlos Eduardo,
aproximando-se das duas senhoras, pegou no buquê de Carminho, e conservou-o na
mão enquanto ali esteve. Conversou-se em coisas triviais, em teatros, em
flores, em livros, em bailes de máscaras; todavia, ele achou um pretexto para
dizer a Carminho, num tom sentimental e sisudo, volvendo friamente a vista na
direção da condessa:
— Os preceptores são sempre
pérfidos; para que os inocentes saibam evitar o erro.., revelam-lho!...
A noiva estremeceu.
— Ouviu tudo! — pensou ela.
Depois, Carlos Eduardo mudou de
tom, e por algum tempo fez o maior dos milagres de um namorado: — teve
espírito.
A condessa, com uma leve
acentuação vingativa, disse-lhe em voz alta:
— Parece estar hoje feliz, sr.
Carlos de Lemos!
— Sou-o sempre aqui, senhora
condessa!
— Hoje mais que nunca, talvez!
— Creio-o bem — replicou o
mancebo com uma finura de olhar que revelava distintamente haver percebido a
intenção. — V. Exa. sabe, senhora condessa, que a felicidade é do número das
coisas, que diminuem em não aumentando!...
Foi a primeira vez que Carminho
ergueu a vista para Carlos Eduardo, dando-lhe aquele característico olhar de
gratidão, com que uma senhora sabe recompensar a um homem de espírito a lucidez
de réplica que corte a crise.
À saída, quando Gonçalo Dantas
lançou o burnous sobre os ombros de
sua mulher, um movimento casual fez que ela pedisse à condessa a graça de lhe
segurar o buquê. Esta dama guardou-o um momento, e, ao entregá-lo de novo à sua
amiga, disse-lhe a meia voz, com expressão de susto e de terror, indicando o
ramo:
— A nuvem!
O marido, a esse tempo,
conchegava ao pescoço as dobras do seu cache-nez
e despedia-se do conde (porque nesta casa havia um conde, que era nem mais nem
menos do que o marido da condessa: eu ainda o não tinha dito: os marido
esquecem- se sempre!) por esta simples frase:
— Agora, meu caro conde, até à
volta!
— Como, até á volta?!
— Sim. Vou a Barcelos.
— Para ter demora?
— Dois a três meses.
— E muito natural que não vá só?
— Carmo está com desejo de passar
uns dias na província, e é útil que se habitue à vida patriarcal do campo, onde
eu tenho a intenção de passar de ora em diante os verões.
— Partem para a semana?
— Dentro em três dias. Escrevi já
a meus irmãos, para nos esperarem.
— Muito boa jornada, Gonçalo
Dantas.
— Obrigado, meu caro conde!
Até ao momento de entrar no
quarto, a noiva mal pôde conter a inquietação em que a deixara a frase da
condessa. Tocava apenas o buquê pelas pontas dos dedos como receando que ele a
queimasse. Ao soltar as flores, e encontrar uma carta, a sua alma agitou-se num
vago terror.
— A nuvem! — disse a si própria,
recordando-se do que a condessa lhe havia dito, e estremecendo de vergonha. —
Quem é então que me quer perder? Ele que me escreve, ou ela que me avisa? Os
seus olhos de lance observaram o que eu não chegaria a ver. E ela a culpada de
eu não atirar o meu buquê pela janela, por medo de que esta carta fosse
encontrada. E incrível a tristeza que tudo isto me produz, e o horror que a
condessa me inspira através de seus conselhos amigáveis. Sentia-me menos
culpada e menos infeliz, enquanto ignorava tudo que ela hoje me contou. E
talvez a sua boa estima por mim que lhe ditou as especiais considerações sobre
o amor e a sociedade, com que me entreteve há pouco! Mas que empenho de me
mostrar o mundo pela sua face medonha!? Pérfidos preceptores, me disse ele, e
disse bem: para nos ensinarem a evitar o erro, principiam por nos dar a
tentadora notícia do que isto é! Por que não tem a minha alma força para se
resgatar de uma vez para sempre da idéia deste homem, que me atrai e me enleia?
Se a felicidade não pode estar para mim senão na tranqüilidade e na paz — por
que não hei de quebrar eu própria a tentação, e dissipar a nuvem que me
persegue?
E, pegando da carta, e encostando-a
à luz, olhou-a apenas quando a viu arder.
No dia imediato, Carminho, indo
visitar sua mãe, encontrou-a de cama. As duas filhas passaram o dia à cabeceira
da doente, e quando Gonçalo ali apareceu à noite, pediu muito à sua mulher que
não fizesse o sacrifício de o acompanhar a Barcelos, deixando sua mãe doente
em’ Lisboa. A noiva, que não poderia deixar de consentir nisto, já essa noite
ficou em casa da viscondessa, despedindo-se de seu marido, que partiu na manhã
seguinte.
A doença da viscondessa
prolongou-se por muitos dias, e, quase um mês depois, o doutor aconselhava o ar
de mar, instando que partissem para uma casa, que tinham em Paço d’Arcos.
Durante todo esse tempo, Carminho
nunca mais pensara, pelo menos não tivera desde então o ar de pensar na
condessa, na carta, ou nele! Uma vida de reclusão conservava-a na
impossibilidade de avistar a nuvem, como ela lhe chamava, ou o céu, como a sua
alma lhe dizia! Amélia, pela sua parte, parecia feliz pela dignidade com que
sua irmã terminava o seu mal encetado romance de noiva. Partiram para Paço
d’Arcos, contentes, desocupadas e alegres. O doutor, que era na verdade um
personagem jovial e de bons ditos, dissipou durante os primeiros dias a
monotonia daquela nova existência, desacompanhada de sociedade e de distrações.
Mas, nas horas em que ele ali faltava, a vida de Paço d’Arcos tornava-se para
as duas meninas de um fastio, de um torpor, de uma atonia insofrivel. Uma carta
da condessa preveniu Carminho, por essa ocasião, de que, sendo o seu dia de
anos num sábado imediato, não a dispensava por nenhuma forma de a ter nessa
noite. A condessa rematava a carta por este post
scriptum: “Para que nenhum receio a afaste, certifico-lhe que a nuvem não
aparecerá essa noite.”
— Que devo fazer’? — perguntou
Carminho à sua irmã, mostrando-lhe a carta.
— Ir! — respondeu Amélia.
— Não achas inconveniente nisto?
— Nenhum. Teu marido foi o
primeiro a recomendar-te que fosses ver a condessa de tempo a tempo.
— E... ele?
— Este post scriptum assegura-te que não é convidado.
— Vem comigo, então!
— Oh! Deixar só a mamã, já vês
que seria imperdoável. Demais, que tens tu a temer?! Fizeste o que a dignidade
te aconselhava, e a condessa reconhece-o a ponto de não lhe haver esquecido
que, para estares em sua casa, é preciso que ali não se ache esse homem!
— Sim. Não pode ser mais
delicada, nem fazer-me sentir mais finamente que sabe quanto eu repeli a
temeridade do seu hóspede.
— E depois, distrais-te, minha
pobre irmã! E tu precisas, querida, dar horizonte á tua imaginação,
entretendo-a. A tua alegria não me ilude, e eu bem tenho conhecido que há um
fundo de tristeza por baixo desses sorrisos. Só o tempo e a sociedade podem
fazer-te esquecer aquele primeiro capítulo da novela que eu te rasguei...
Descansa. Se alguma coisa me
oprime é a idéia de que... Vais zombar de mim, decerto!
— Eu, zombar.., de ti! Dize tudo,
meu anjo!
— E a idéia de que, quando mesmo
eu o esqueça, é ele que me não esquecerá!
— Carmo! Carmo! Isso é ainda o
amor! Isso é a vaidade dele! A louca e perigosa ilusão de quem afere pela sua,
a alma de outrem! Es tu que ainda te lembras, Carmo! Es então tu que não te
esquecerás! Es tu que o amas!
— Oh! Poupa-me! Por que atribuis
unicamente às vaidades do coração, o que não é mais do que resgatar de um conceito
aviltante o amor desse homem, atribuindo-lhe a sinceridade? Em que é mais nobre
e mais cândida a tua maneira de julgar, do que a minha ilusão, se ilusão é? Nem
a tua idade, nem a tua alma te 4dão o direito de já não acreditar no amor.
Deixa às presumidas, que o tempo e os desdéns oprimem, essa gala ridícula de
apregoar os homens como incapazes de amar! Fica-te mal, minha irmã, a afetada
frieza com que julgas os que não conheces. Não te disse nunca — e ainda to não
digo! — que Carlos Eduardo me inspire confiança. Longe disso. Confessei-te eu
própria que ele me produzia o efeito dum homem que estuda e planeia os mais
leves atos da vida. Resta saber se isto é um mal! Tenho evitado constantemente
encontrá-lo, vê-lo, falar dele sequer. A única carta que se atreveu a
escrever-me, queimei-a sem a ler — já to jurei. Por que te assustas, pois,
assim, condenando-me sem motivo?
— Vem! — disse-lhe Amélia,
apertando-a ao peito. — Que eu te abrace, minha irmã, para me perdoares, sim?
Sei o que tu vales, Carminho, mas — que queres, meu anjo? — há uma coisa de que
eu tenho mais medo ainda do que de um homem...
— De quê?
De toda a gente.
— Queres dizer?
— ‘Do conceito público, que
condena quase sempre antes da culpa; tanta esperança tem de que a vítima venha
a errar!...
— O mundo não condena ao acaso,
porque o mundo não inventa. Está nisto a minha justificação; até esta hora,
seria prec,iso caluniar-me para me reconhecer culpada!
Pobre Carminho; ela não sonhava o
que havia de profético nos receios de sua irmã! Quando estava a vestir-se para
a noite, os seus olhos umedeceram-se de lágrimas ao avistarem sobre uma mesa a
carta da condessa. O previdente post
scriptum tranqüilizava a noiva, mas acordava-lhe ainda a adormecida idéia
do perigo. — Ele não vai! Não vai, felizmente. Ainda bem que não o hei de ver!
— dizia ela à sua alma, enquanto a sua alma lhe dizia: — Vês! A noite vai ser
triste. Embora os cristais refuljam, as luzes brilhem, as flores embriaguem,
nem as flores, nem os cristais, nem as luzes poderão dar-te alegria a ti! Vai,
vai, e recorda-te. A música, ao menos, conversará contigo; e por mais alegre
que seja a valsa, sentir-lhe-ás lágrimas e saudades! Em redor de ti, os felizes
da vida dançarão contentes. Uma menina de 15 anos, como tu, passará diante de
teus olhos, numa redowa com o seu
namorado. Depois, na contradança, hás de ver outra da tua idade também,
sorrindo a seu marido, um galante rapaz de 25 anos, que de contente morda o
bigode a olhá-la. Mas nem tu já podes ter namorado, nem teu marido tem 25 anos.
Um baile é sempre um baile: dançar e amar. Mas, quem não dança? Mas, quem não
ama? Enfim! A melancolia tem as suas doçuras, e a saudade é a fortuna dos
infelizes. Vai, para te recordares!...
Enquanto, se lhe colocava uma
rosa no cabelo, viu um livro sobre a consola, e abriu-o ao acaso. Era o volume
de versos de Carlos Eduardo; um livro dos 20 anos que dizia amor da primeira
página à última. Ela leu:
..................ao baile esta noite.
Tu irás, mas já sem mim!
E se entre as danças ruidosas
As saudades dolorosas
Minha imagem te lembrarem,
Chora, pensa, e dize assim:
Nunca mais! Quebrei o encanto
Do que neste mundo havia
De maior e de mais santo!
Desfolhei de flor em flor
A coroa que ele formara
Das galas do nosso amor.
Ai adeus! Para sempre adeus.
Amor, promessas, cíúmes!
Que ainda o rubro clarão
Desse frenético afeto
Me abrasa o pensar inquieto
De remorsos e queixumes!
Vejo-o nas sombras longínquas
De um cismar vago e incerto,
E quanto mais longe o julgo
Mais dele me sinto perto...
Ouço-o nas águas dormentes
Ainda a falar-me de amor,
E nas vagas doudejantes
Entregue a raiva e à dor!
Depois ao dardo da lua,
Naquelas noites formosas,
Noites de amor e de rosas,
Se fito a vista no espaço
Cuido em luminoso traço
Soletrar o nome dele...
Depois, se a tormenta supre
E algum raio longe cai,
Na chama cuido que vai
O resto do seu amor!
— Do seu amor! — repetiu
indistintamente a noiva, fechando o livro. — O resto do seu amor!
E uma lágrima de dor e de
melancolia, das que só brotam nos olhos das angustiadas criaturas, que sobem
passo a passo a montanha do arrependimento e da expiação, lhe umedeceu o olhar,
anuveando-lho.
— Vai! diverte-te! — disse a
irmã, abraçando-a, à despedida.
— Abafe-se bem, minha menina. A
noite está tão úmida, meu Deus! — exclamou a velha aia. — Quer V. Exa. o seu
xale mais forte?
— Não, não! Adeus, mamã! Até
logo! Minha querida Amélia, adeus! Ainda hás de estar acordada quando eu
voltar!...
Minutos depois a carruagem rodava
surdamente por aquela longa estrada de Belém. Um nevoeiro espesso erguia-se em
colunas transparentes à roda dos candeeiros de gás; ouvia-se o gemer das ondas,
exasperado e lamentoso; a praia estava deserta; os navios distinguiam-se ao
longe pelas lanternas dos mastros, como estrelas num céu escuro!
Quando a noiva entrou no baile,
estava pálida como as rendas brancas que lhe ondeavam sobre os ombros, e o seu
primeiro olhar revelava tanta ansiedade, tanta inquietação, tanto terror
talvez, que a condessa disse-lhe no primeiro beijo:
— Não veio, sossega!...
Ela respirou livremente então,
como quem se salva de um perigo de morte. O baile pareceu-lhe triste, todavia;
as luzes pareceram-lhe pálidas, as flores sem perfume, a música sem harmonias.
As suas amigas perguntaram-lhe se tinha boas notícias de seu marido. Todos os
dias ela tinha carta e todos os dias escrevera. Mas nesse dia justamente,
havia-lhe esquecido escrever; tanta perturbação lhe causara o convite da
condessa. Um doloroso sentimento a oprimia ao pensar nisso. Os lábios
tremeram-lhe, e balbuciaram apenas não sei que ininteligível frase. Ela não
estava ainda bastante senhora do mundo e da vida, para que a sua astúcia de
dama soubesse valer-se dos recursos do espírito, nem possuía o indispensável
arsenal de réplicas para as conversações de sociedade, em que um sangue- frio,
que coisa alguma perturba, faz que a mentira saia tão graciosa de uma boca
bonita, que se é obrigado a aceitá-la como verdade. Pela primeira vez na sua
vida se sentiu mal no mundos e teve horror às grandes coquetes, que pelo poder
da sua insensibilidade, ainda mais que pelo dos seus encantos, brincam com as
alegrias do céu e com as torturas infernais. Humilde, casta, tímida, passou de
olhos baixos numa contradança, como se atravessasse as cerimônias de um culto
e, desfolhando distraidamente o seu buquê, juncou o chão de flores.
Em redor dela, alegres, ruidosas,
dançavam as outras, sorrindo e namorando com o olhar em fogo e o penteado em
desordem. Dir-se-iam os anjos do mal, criando e destruindo logo, iluminando a
vida pelo amor, queimando-a pelo ciúme, extinguindo-a pela indiferença! E eram
belas todas; tentadoras, provocantes. Tinham a eloqüência nos lábios, tinham a
melodia na voz, tinham a felicidade no olhar — aquele olhar da sedução, da
voluptuosidade, da festa; aquele olhar dos bailes, da vaidade, da promessa, do
encantamento! aquele olhar da noite!...
Mil frases começadas,
interrompidas, quebradas, mas mil frases de amor! O incenso da adoração
espalhava-se no ar! Todas elas pareciam amar e ser amadas! Era uma embriaguez
delirante, que reduzia os sentidos a um único, a felicidade!...
Só ela pensava, só ela sofria, só
ela não tinha um sorriso para dar, nem via um olhar que lho pedisse! Também,
diga-se tudo, apenas ela é que tinha medo das palavras cortesãs, e dos apertos
de mão, medo da alegria, medo até da vaidade, entre todas aquelas suaves
criaturas, que faziam a misericórdia do amor!
No melhor do baile, quando todos
os corações se incendiavam, todos olhos diziam desejos, e os leques se agitavam
ruidosamente para não deixarem ouvir os segredos ditos por detrás do buquê,
Carminho abandonou as salas, e partiu inquieta, aterrada, trêmula, sem se
despedir sequer da condessa.
— O meu trem!- — disse em voz
convulsa aos criados. — Façam chegar o meu trem!
Os criados estavam sentados nos
bancos, a tomar gelados e a jogar a bisca. Ergueram os olhos, viram-na isolada,
pálida, com o olhar indeciso e receoso, e tomaram-na por uma senhora que se
retirara do baile por intimação especial da dona da casa. A bisca estava quase
no fim, e eles, sem se alterarem, foram continuando o jogo. Carminho desceu
ainda os últimos degraus, e a uns lacaios que estavam à porta pediu em tom
suplicante que lhe mandassem chegar o seu trem; mas o largo estava cheio de
carruagens, e foi preciso muito tempo para encontrar o cocheiro. Assim que a
carruagem partiu, Carminho escutou uma voz que lhe falava, e sentiu as suas
mãos entre outras mãos; os seus olhos procuraram na sombra, e ela viu Carlos
Eduardo em frente de si.
— Perdão! Oh! perdão! — disse
ele. — A extremidade do amor tem delírios fatais, e sei o que há de temeridade
no que me atrevi a fazer! Mas, se era o único meio de a aproximar e de poder
falar-lhe, não mereço eu que me perdoe de o haver tentado?
Carminho sentia-se sufocada de
susto. Ele continuou:
Confie-se, é lealdade de um homem
de bem. Adoro-a, e por isso mesmo respeito-a. Nada tem a temer pela minha ousa-
dia. Queria apenas vê-Ia, e estou vendo-a: queria falar-lhe apenas, e tenho-a
ao pé de mim. Nada mais! Que esta noite fique na lembrança de ambos nós, para mim
como um instante do céu, para si como memória ao menos do amor que acendeu na
minha alma. Ninguém o saberá além de nós, Carminho; ninguém na terra. Vê? —
disse ele apontando através das vidraças da carruagem. — O céu está negro; Deus
neste momento não olha para a terra. Oh! nem Deus o saberá?...
— É preciso sair, senhor!
— Já? — respondeu ele no tom mais
meigo e humilde de um namorado. — Oh! ainda não! Há quanto tempo procuro eu
esta hora, para que assim a deixe nos primeiros instantes! Temos muito tempo
ainda; a noite vai em meio apenas, o baile principiava agora, na casa de V.
Exa. dormem todos; — que pensa? que espera? que receia? A minha estrela não me
concede, talvez, na vida, mais do que esta hora de felicidade; tem alma de querer
abreviar-me estes momentos celestes? Sim! E a sua mão que sinto e aperto entre
as minhas! Esta mão alva e linda, que devia ter o condão de mandar a sorte! E
hei de separar-me de si, Carmo; estes cavalos têm uma velocidade maldita, e
daqui a pouco devem chegar ao seu destino: depois, a noite que termina para a
terra continua na minha alma; eu não sei, querida, qual é maior, se o meu amor,
se o meu infortúnio; sei apenas que não me cabem ambos neste coração, que não é
meu já!...
— Oh! Cale-se! — balbuciou Carmo.
— Para que insiste em perder-me, que tanto vale insistir nesse amor? Pode
esquecer porventura quanto a minha posição é delicada, e que até o escutá-lo é
opróbrio da minha alma? O que pôde autorizá-lo a uma ousadia, como a que neste
momento me enche de sobressalto da sua parte? Não lhe fugi eu sempre, não tenho
acaso evitado todas as ocasiões de o avistar no mundo? Que direitos encontra
num amor tão condenável como o seu, a sacrificar-me perante a minha consciência
e talvez, quem sabe, perante a minha família — mais tarde perante a sociedade!
Até que ponto me cumpre ser delicada para consigo, visto que tão mal interpreta
a minha timidez.
— No momento em que da primeira
vez a vi, adivinhou-me o coração que ia adorá-la. Dir-se-ia que a primeira
vista que os seus olhos me lançaram era um filtro para me encantar. Amei-a
desde então, e senti nesse instante um vago terror pelo futuro. A desgraça
preside sempre ao meu destino: deve estar maldita esta existência que me pesa.
Se soubesse, Carmo, com que prudência evitei sempre que o mais leve olhar, o
mais leve gesto, o mais simples tom de voz denunciassem ao mundo o meu amor por
si? Se pensasse o que seria preciso de coragem e de arte para ter a força até
de desdenhar de si, eu, que me prostro e a adoro! Não há futuro para mim, senão
o que se lê nesses olhos apaixonadamente negros, na tépida palidez do seu
rosto, nesse oval melancólico e belo, nos seus cabelos abundantes e soberbos,
no sorriso como que doente e terno, no ardor inquieto e nervoso que respira em
si!
— Por Deus lhe peço, parta,
deixe-me, esqueça-me! Nada houve, nada há, nada pode haver entre nós, e contudo
a vergonha está já em tudo isto. Parta sem olhar para trás, sem se lembrar mais
desta noite em que Deus parece ter desamparado a terra da sua misericórdia,
abandonando-me a um capricho fatal. Meu marido vai voltar dentro em pouco e é
preciso que eu possa aparecer-lhe ainda digna dele. Esperar, seria uma loucura:
esperar o quê? Chore-me, ou esqueça-me, mas suponha-me morta!...
— E para que havia eu de viver
então? A glória não me atrai, nem me fascina. Que poderia eu esperar dessa
pálida consoladora das grandes almas, que o mundo não entende? O meu amor
espera, Carmo; se não esperasse, morria eu com ele. O gênio não é apenas a
inspiração, o amor não é apenas a chama: o amor e o gênio são também a
paciência: é preciso passar pela cruz para ser Deus!
— Chegamos a Paço d’Arcos! —
disse Carmo. — Como há de ser agora, senhor?
— A carruagem vai sobre areia, o
cocheiro não me sentirá saltar! Antes de partir, porém, diga que me perdoa!
— Digo-lhe só que não procure
ver-me mais!
— E nem uma palavra de amor?
— Insiste em esquecer que não sou
livre? Oh! prometa que não fará a mais leve tentativa de me encontrar de novo!?
— Não. Não prometo, porque a amo.
Hei de vê-la, Carmo! Há de encontrar-me sempre no seu caminho, porque este amor
está no seu destino, e porque, é Deus que mo diz, sou amado por si!
— Oh!
De um salto rápido, Carlos
Eduardo atirou-se à estrada. A carruagem continuou a rodar surdamente, e parou
instantes depois. Ninguém dormia em casa. Carmo encontrou as criadas de pé, e
Amélia à cabeceira de sua mãe: a viscondessa, havendo-lhe repetido o ataque,
achava-se perigosamente enferma. Esperava-se a cada instante o médico, a quem
enviara recado para Lisboa. O quarto estava às escuras quase. A chama de uma
lâmpada parecia expirar por momentos no seu globo de cristal. Pelo tapete de
que estava coberto, o sobrado absorvia o menor ruído. Quando se escutava a
doente, via-se que uma respiração de abatimento e de febre a agitava e a
oprimia. O olhar vago tinha um brilho sombrio. Os lábios estavam roxos. A
expressão da sua fisionomia decomposta não deixava esperança. Carmo chegava do
baile, e encontrava a morte.
O médico chegou pouco depois. Era
aquele mesmo amigo de Gonçalo, que neste conto apareceu já. Os esforços
sublimes que empregara para vir depressa, nada valeram todavia: a viscondessa
expirava no momento de ele aparecer.
— Perdi minha mãe! — exclamou
Amélia, entre soluços, abraçando-se-lhe.
— Tudo me abandona! — disse
aflitivamente a noiva, escondendo a fronte no seio de sua irmã. — No espaço de
alguns meses, tenho visto caírem uma por uma as minhas superstições, e as
minhas alegrias! Uma única esperança, me restava, e já essa mesma se quebrou! À
medida que as desilusões e as amarguras iam experimentando a minha coragem,
tinha eu a alegria ao menos de dizer que a alma de nossa santa mãe seria o meu
refúgio contra este mundo. Agora, mais do que nunca, sinto medo da vida!
— Tu não podes ter a ‘culpa,
minha pobre irmã, nem das circunstâncias nem dos acontecimentos: fique pura a
tua consciência no centro da desventura e dos reveses!
— A minha consciência... Mas é
ela que me assusta, Amélia! Se o espelho reproduzisse os pensamentos, que são
as imagens da alma, como reproduz a imagem dos corpos, bastaria um espelho para
me perder!
O médico, tomando Carmo de parte,
disse-lhe ao ouvido:
— A morte não separa, torna a
unir o que estava separado. Há alguma coisa mais fatal ainda do que perder a
mãe: é envergonhar-lhe a memória!
— Que significa?
— É isso que devo perguntar-lhe:
o que significa encontrar eu, quando para aqui me dirigia, Carlos Eduardo perto
desta casa a semelhante hora da noite.
Carminho demorou vagamente a
vista na do médico, não se atrevendo sequer a desviá-la. Um indefinido terror
se apoderou da sua alma, e sentiu pela primeira vez o frio da vergonha gelar-
lhe os lábios.
— É preciso escrever amanhã a
Gonçalo — continuou o médico — e chamá-lo a esta casa. Eu cheguei tarde para a
vida da mãe: não chegue ele tarde para a honra da filha!
— Doutor! — exclamou Carmo,
cobrindo a figura do médico com um olhar glacial. — Que se atreve a dizer-me?
— O que a sociedade me tem dito a
mim, o que uma carta de Gonçalo me perguntou hoje a mim, e o que eu vi esta
noite, eu próprio!
Quando Amélia escutou de sua irmã
a confissão de toda a história dessa noite, abraçou-se a ela chorando e
consolou-a por esta simples frase:
— A mulher mais honesta não pode
dizer a maneira por que se há de portar numa circunstância imprevista. Tu
tiveste, todavia, a coragem de uma grande alma! Se a sociedade principia a
acusar-te, se alguma coisa de tudo isto chegou já aos ouvidos de Gonçalo, se o
doutor viu esse homem às três horas da noite perto da nossa casa, se a tua
dignidade sofre, se a alma de nossa mãe vai sofrer...
— Então?
— Então
salvarei eu tudo!
— Tu?
— Eu só!
A datar dessa noite, os
acontecimentos precipitaram-se. Gonçalo Dantas regressou triste, desconfiado, e
sombrio. Uma nuvem negra pairou sobre o horizonte desta família. Nas
conversações mais simples e triviais, o marido encontrava a ocasião de lançar
como que ao acaso frases irreparáveis: destas coisas que a gente, na vida, está
muito tempo antes de se atrever a dizer, mas que, uma vez ditas, se vão
repetindo a cada hora.
Estava-se nos dias pálidos de
outubro; a temperatura neste mês valetudinário é cheia de variações
caprichosas. São os contrastes da primavera.., menos a esperança! Os últimos
raios do verão e os frios precursores do inverno encontram-se e confundem-se; o
crepúsculo é cheio de tormentas, e a aurora de nevoeiros. As harmonias serenas
e puras das noites de verão já não vêem expirar no ouvido como o mistério da
felicidade. Se o outono entristece a alma, é à noite principalmente, quando se
interroga através da vidraça, o céu pesado e chuvoso, e o vemos alargar-se, a
perder de vista, até as paragens solitárias, em que o vento baixa com a noite!
A tristeza que reinou entre os
noivos explicava-se pela saudade que a morte da viscondessa viera trazer-lhes:
explicava-se assim para os estranhos; para eles próprios, não!
— Com que .— disse o doutor a
Gonçalo, de uma ocasião em que estavam sós no terraço a olhar para o mar: —
recebeste uma carta anônima?
— Sim! — respondeu o marido num
tom sombrio.
— Sabes que importância deve
dar-se a esses artifícios da calúnia?
— Sei que sofro.
— Para que
casaste?
— Que vens a dizer nisso? E então
uma condição infalível, que o casamento traga o infortúnio? Tira do mundo as
mulheres e as flores — que te resta? Ninguém espera encontrar no seu próximo
virtudes de ordem muito elevada; a humanidade não as comporta; mas há o direito
de não esperar vilanias de caráter, que destroem toda a estima e todo o
sentimento. Se é acaso verdade que um dos meus amigos, Carlos Eduardo...
— Não é verdade, não. Pensa
noutra coisa! O que é certo apenas é que o horizonte conjugal tem destes
nevoeiros, de que eu por muitas vezes te preveni!
— Grande razão! Porque tu leste
numa notícia diversa a história de algum divórcio, deve o resto da humanidade
fugir das mulheres! Quem pode adivinhar-lhes a índole, ou conhecer-lha pelo
trato do mundo? Os metais preciosos experimentam-se ao tocá-los, o coração
delas também!
— E que resolves, em referência à
tua?
— Observá-la. Se não é como eu a
suponho, um anjo cai de bem alto, mas cai para sempre...
E ele:
— Oh! — replicou Gonçalo com um
sorriso sinistro. — Ele! Como tu lês sempre os jornais., os jornais to dirão! E
preciso que aprendam em Lisboa como se vingam os da província! Um marido
enganado, que se zanga, é um ente brutal: o que não se zanga é um tolo; aqui
está o que eles por aí dizem. Que farias?
— Eu sei cá!
— Não é fácil de antecipar, não.
Nesta cena da comédia humana, não é o ator quem é mau, é o papel! Oh! Como eu
sofro!...
Todas as manhas, Carminho e
Amélia iam rezar ao pé do túmulo de sua mãe. Ao terceiro dia, quando a noiva
foi a ajoelhar, viu sobre a pedra um ramo de saudades. Desde então encontrou
sempre flores sobre o túmulo, sem avistar nunca a oculta mão que ia juntar a
sua oferenda à dela. Uma vez, por irem mais cedo que de costume, ou por ele se
ter esquecido indiscretamente, perdido nos seus sonhos, viram Carlos Eduardo
encostado às grades do mausoléu. As duas senhoras, por um movimento instintivo,
pareceram querer partir, quando, ao voltarem-se, avistaram em distância Gonçalo
Dantas e o médico.
Um sentimento de perplexidade e
de terror pareceu retê-las um momento; mas o braço de Amélia teve força de
conduzir sua irmã até o jazigo. A noiva, assombrada e lívida, caiu de joelhos,
encostada ao túmulo. Amélia teve apenas tempo de dizer debilmente a Carlos,
cuja vista acabava de descobrir os dois imprevistos personagens:
— Jure-me pela alma de quem nos
ouve, senhor, que aceita a única maneira de salvar esta mártir!
Ele pareceu interrogá-la num
olhar.
— Sou sua! — acrescentou ela.
O mancebo, que num relâmpago,
sentiu o que havia de sublime nesta resolução suprema, umedeceu de lágrimas a
mão que beijou.
Um mês depois, Carlos Eduardo e
Amélia, cujo previsto casamento o mundo explicava pela morte da viscondessa,
como havendo-se oposto sempre esta dama à misteriosa corte do mancebo para sua
filha, partiam para Itália, na intenção de irem depois residir em Paris, O
doutor, nesse dia, deu um prolongado abraço no seu amigo Gonçalo, e disse-lhe
com a mais solene alegria:
— Pois agora é que to confesso!
Quando te declaraste em perigo, pelas insinuações da maldita carta anônima que
recebeste em Barcelos, e me induziste à indignidade de irmos espreitar tua
mulher ao cemitério — julguei-te um marido.., em bancarrota!...
— Reconhece-a um anjo, meu
petulante, e pede perdão à tua consciência!
— Ele era poeta, e eu tenho medo
deles como de apanhar sol! Gente perigosa na intimidade! Cumpre a um marido
evita-los com prudência. São como as vistas de teatro — devem ver-se de longe!
Eu tinha-o encontrado, uma noite, rodando a tua casa às três horas da
madrugada; a tua casa, percebes? E depois, Matusalém, a criatura humana — já
hás de ter lido isto! — é extremamente frágil!...
— A criatura humana é pérfida ou
estúpida, é o que ela é. Um homem segue duas irmãs, de que uma só é solteira:
por que se lembra o mundo, de preferência, que séja à casada que ele se
dirige?!
— Tens
razão! Dá cá outro abraço!...
Nota:
Júlio
César Machado: “Contos ao Luar”, publicados originalmente em 1861, extraídos da
edição de 1974, da Editora Três, da Coleção “Obras Imortais da nossa
Literatura”
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