A PENA DE TÁLIO
Romance Histórico
Mais uma novela sai a tentar a
fortuna.
Que sorte a espera em caminhos
tão perigosos?
Como outras mais dignas de
acolhimento, recebida pela indiferença, irá jazer no silêncio, ou ditosa, sem
prendas, descansará nos braços dessa hospitalidade benévola, que em uma hora
paga meses e anos de vigílias?
Deus o sabe!
São estas as criações do aceso
imaginar, de que falavam os trovadores, .e por mais que se queira disfarçar, o
coração do autor, verdadeiro coração de pai, é inseparável delas, seguindo-as
ansioso pela beira ao precipício, e acompanhando-as de cuidados até alcançarem
o suspirado termo da jornada.
Será orgulho só, e cobiça de
glória?
Não! É que as filhas da
inteligência também são filhas queridas, e levantando-se para entrar no mundo,
levam-nos consigo a alma e o amor! Nasceram de nós, e vimo-las balbuciar e
crescer, e nas longas noites, em que o pensamento percorre as ruínas do
passado, e os espaços infinitos, que a imaginação povoa, conversaram com o
nosso espírito, e fizeram seu enlevo.
De que modo brotam, e quem dá o
ser a estes entes e ideais que a chama do engenho torna mais duráveis muitas
vezes do que a própria realidade? Um raio de luz, um sorriso da fantasia, um
acaso basta!
Entre mil confusas sombras, que
se agitam, a mente escolhe, e infunde-se em algumas. Então o quadro surge sem
podermos dizer como; a tela anima-se pouco a pouco, e as figuras, já com as
cores da vida, começam a existir, umas para não morrerem como as de Romeu, de
Hamlet, e de Beppo, outras para brilharem um só momento, e logo se apagarem no
tropel das outras que vêm chegando.
A forma o que faz depois é pintar
ou cinzelar seguindo a visão interior; mas a imagem está dentro da alma; só ela
a vê e a sente, e nem tinta, nem palavras a revelam como nos apareceu, com
metade da viveza com que nós a conhecemos.
Este romance nasceu assim, e do
mesmo modo nasceram e hão de nascer outros.
A leitura de alguns capítulos do
segundo volume da História de Portugal do meu amigo A. Herculano suscitou o
assunto. Disposta a imaginação, um dia acordou de repente aquilo que um
escritor alemão denomina o nosso sexto sentido, e boa ou má, feliz ou
deplorável, estava traçada a abria como havia de ficar, e como hoje se oferece,
porque a reflexão e a lima podem polir as grossuras e os defeitos superficiais,
mas na essência não tocam, sob pena de sair um monstro, ou talvez pior, uma
estátua regelada.
Depois de feito o livro era fácil
ligá-lo a remontadas cogitações, e administrar-lhe o batismo filosófico; mas tendo
a desgraça, ou a ventura, de acreditar pouco na missão política da arte, deixei
as teorias sociais e os problemas grandiosos no lugar que lhes pertence. Sempre
entendi que se invadiam assim, mas talando-as, duas províncias independentes; e
que a preconizada conquista de uma pela outra seria vitória efêmera, e pouco
digna de louvor se em verdade é lícito dizer-se que seja vitória!
Interpretar fielmente a natureza,
expressar os grandes rasgos, de que se compõe a fisionomia de uma época, e não
desvairar muito na análise do coração humano, decifrando por ele o mistério da
existência, pareceu-me sempre não ser a menor dificuldade do gênero; e como
raros a têm atravessado incólumes, acho que os Cooper, os Walter Scott, e
tantos imaginadores da mesma escola, ocupam de direito o posto, que o triunfo
lhes granjeou.
Se eles, que foram os mestres,
temeram passar além, e se os seus monumentos nem por isso deixam de ser vistos
de toda a parte, enquanto desabam em ruínas, dias depois, as construções
ambiciosas dos inovadores, creio que não merecerá censura o ater-se qualquer
tão obscuro como eu aos bons modelos, e de longe, na mesma distância, a que se
reputa deles, fazer por agradar sem se atrever a mais.
De Cervantes a sir Walter Scott e
a Goethe, desde o imortal romance do Quixote até à soberba epopéia em prosa de Ivanhoé, e à sombria e esplêndida
manifestação de Fausto, a forma tem
adiantado muito.
Não sei se resta ainda que
inovar, ou se a reforma deverá parar por aí, por maior prudência. É delicada e
espinhosa a questão!
Entretanto não duvido acrescentar
que a verdadeira originalidade reside para mim na idéia, na propriedade com que
se retrata, na expressão e na cor dos costumes, que se avivam.
A travessura, que se jacta de
infringir deliberadamente as regras, e que se chama arrojo e novidade ao misto
híbrido da anarquia, nunca me deslumbrou. Vive apenas curiosidade vulgar, e
como esta se desvanece com a mesma rapidez com que se excita, o que torna o
livro durável e aceito, a estima e a correção, hão de faltar eternamente, e
nada o poderá suster na sua queda.
Imaginando um romance, e
colocando a fábula nos fins do segundo quartel do século 13, procurei desenhar
as feições das diversas classes com a possível exatidão, explicando ao mesmo
tempo o viver e crer da época, os interesses e idéias que a animaram, na
prolongada luta, que acabou por fim ararancando a coroa ao desditoso Sancho II.
A cena histórica de si grandiosa
e variada encerra elementos que a fantasia mesmo nem sempre ousaria conceber.
Interpretados por uma consciência
austera, e por uma crítica elevada, os monumentos revelam-nos a maior parte do
segredo tenebroso; e os dois vultos principais de Sancho Capelo, e do astucioso
conde de Bolonha, seu irmão, levantam-se do sepulcro, e quebram com a lousa as
mentirosas inscrições, que a lisonja ao vencedor, e a calúnia contra o vencido
tinham lavrado no mármore, sem pejo de profanar a paz dos mortos, ultrajando a
justiça de Deus!
Quem ler a narração, direi antes
escultura de relevo em que A. Herculano estampou a imagem deste período, não
menos fértil em perfídias e infâmias, que fecundo em rasgos de nobre lealdade,
apenas voltar as primeiras páginas, logo sente ativas e enérgicas em torno de
si as paixões ardentes da meia-idade, vendo passar os homens, como a época os
formara, e o ódio das parcalidades os caracterizou.
Que mais é preciso para o
romancista delinear o painel, distribuir as figuras, e adaptar o colorido à
cena?
Desenhando por modelos tão
perfeitos que mais se desejará ainda para fundir o ideal em tipos vigorosos e
naturais? Não acha ali conglobados e em um só tantos dramas de ação e de
sentimento? Não sacodem os sudários à nossa vista interrompendo o pesado sono
de sete séculos, esses guerreiros, cujo peito foi de ferro como as armas, esses
prelados orgulhosos, cuja voz envenenou a luta, e, embora fossem poucos, esses
corações de ouro, firmes no dever, que abraçados ao infortúnio, preferira.m o
caminho do desterro com o príncipe desditoso à versatilidade afrontosa de ornar
o triunfo da ambição?
A tradição, lembrando-se mais do
que a história, simbolizou em um só nome toda a poesia destes exemplos raros,
mas admiráveis. Martim de Freitas recusando entregar as chaves de Coimbra,
enquanto não se levantasse desobrigado do preito pelo testemunho dos seus
olhos, é a personificação dos cavaleiros, que não dobraram a fé a dádivas e
ameaças.
Como Egas Moniz, o velho lidador,
exprime em toda a formosura viril do tipo os brios da antiga honra portuguesa,
e a generosa abnegação do sacrifício! Depois dele encontraremos ainda nas
vésperas de d. João I o alcaide de Faria.
Não se imagine, porém, que,
apontando o severo desenho da história, o aceitemos para nós como juízo ou
queiramos impô-lo como regra absoluta, e limite desta qualidade de novelas.
Longe disso! Eira fazer de duas coisas ótimas uma péssima.
A verdade da poesia não é a
verdade austera da ciência. A invenção e o estilo sempre desfaleceram em
ferros, e não os há mais duros, que a cega obediência, que semelhante sistema
exige.
Como as fadas dos contos
populares, o romancista goza de altos privilégios. Basta um aceno da sua
varinha de condão, também, para as distâncias desaparecerem, para os segredos
escondidos se descobrirem, e, em casos urgentes e extremos, para até falarem
vivos e sadios personagens, que anos antes tinham deixado o mundo e as suas
vaidades.
Nem sempre, nem nunca é a sua
divisa.
Guardadas ais leis da
verossimilhança, pode lavrar como entender a moldura da sua fábula. A história
será como um espelho onde ela se reflita.
Um vez que sejam humanas e
possíveis as figuras, e que por obras e palavras não desmintam as crenças e os
costumes, há plena liberdade de sair e entrar, de mandar falar os mudos, e de
ressuscitar os mortos.
As normas prescritas pelo gosto e
pela arte só lhe proíbem o absurdo, a incoerência, e a deformidade; porque os
monstros em toda a parte são horrorosos.
No mais interpretação livre e
independente.
Nunca me pareceu grande mola
dramática o belo-horrendo.
Sem excluir de todos os
Quasímodos e Haudibras, acho muita graça à redonda e galhofeira pessoa do nosso
amigo Sancho Pança, e ao empinado ventre e jovial presença do honrado sir John
Falstaff, o Sancho inglês, que Shakespeare nos deixou como protesto contra o spleen do sua nevoenta e enfumada
Albion. Se a família dos Adônis e Narcisos não é extensa, nem espirituosa, a
nova raça dos abortos físicos e dos aleijões morais, não vejo que possa e deva
suprir as vagaturas com bom êxito.
Felizmente os pesadelos
literários envelheceram depressa; e hoje não é vulgar o perigo de encontrarmos
o cemitério no prólogo, o purgatório no segundo ato, a dança das caveiras no
terceiro, e o inferno, com seus demônios e diabruras, no epílogo.
Deus é grande!
Nunca senti mais viva e sincera
comoção do que ouvindo representar a admirável tragédia de Frei Luís de Sousa.
Nunca tanto se me comprimiu o
peito, nem me saltaram assim as lágrimas, como assistindo àquele espantoso
sacrifício de duas almas inocentes e amantes, condenadas a sobreviver à própria
ternura e felicidade, sepultando o coração a arder ainda na fria mortalha do
claustro
Que drama, que paixão, e que
imenso e profundo terror!
O diálogo contudo parece que
todos o podiam dizer facilmente; aquelas cenas e aquelas pessoas julgar-se-ia
que foram da nossa intimidade, e que chorando e magoando-se estavam conosco há
pouco ainda, e a nós se queixavam.
Sem exagerações, sem antíteses
forçadas, sem imagens estrondosas, a ação chega às últimas raias da trágica, e
a prosa, subindo insensivelmente, voa onde raras vezes se remontou o verso!
Tudo ali é natural e verdadeiro:
e entretanto o ideal, na sua mais elevada e grandiosa expressão, domina tudo!
Assim é que devo crer a arte. A
originalidade consiste naqueles toques finos, naquela voz e sentir tão nossos,
tão portugueses, que nem um momento nos deixam perceber que assistimos a uma
ficção.
Que venham os abortos e os
monstros depois e as suas visagens e arremessos: e em vez de terror causarão
riso.
Farão o mesmo efeito, que a
formosura ingênua e simples ao pé da velha casquilha e rebocada.
Deve, porém, notar-se que o
século 16 não é o século 13, e que a interpretação, que naquele exprimia a
verdade da vida, neste seria falsa e incompleta.
De Felipe II a Afonso III, e
mesmo a d. Manuel, a jornada pode dizer-se longa, e a todos os respeitos bem
diversa.
Nos quadros da meia-idade o maior
perigo consiste em se lhes errar a expressão, atribuindo às paixões e
sentimentos linguagem e caráter, que lhes foram desconhecidos, e que
transportam a ação para anos muito posteriores.
Há um certo verniz moderno, que é
mortal para as cenas antigas, porque as retinge, desfeia, e desmente a cada
momento.
Em uma carta do sr. Prosper
Merimée, escrita acerca de um dos meus ensaios de novela com excessiva
benevolência, o autor de Colomba e de
Cármem censura o personagem de Gomes
Lourenço, e observa que o acha demasiado sensível e delicado para a época
remota em que figura. Estou certo de que será assim; mas por mais que o
desejemos não é sempre fácil, sobretudo em rasgos apaixonados, respirar
exclusivamente na atmosfera de um século extinto, traduzindo as idéias, e os
vocábulos de tal modo, que as entendam todos, e que o verdadeiro cunho se não
apague.
Naquelas eras de rudes
cavaleiros, e de pouco menos rudes prelados, os atos e as palavras concordavam
com os costumes; mas os crimes e os vícios, se não eram em menor escala,
levavam aos de hoje a vantagem única de não se agravarem com a hediondez da
hipocrisia.
A força, manifestada em tudo,
zombava das leis, atropelava os direitos, e nem sempre se detinha respeitosa às
portas do templo, e diante das aras consagradas; porém no seu ímpeto brutal
julgaria rebaixar-se, recorrendo a pretextos e sofismas para se escudar.
Encostado à lança, ou com a mão
no punho da espada, o rico-homem falava como senhor, e oprimia como tirano, se
olhando em roda, e contando os seus, podia supor que ficava impune. Mosteiro,
conselho, terras do rei, ou bens de burguês, nada escapava à sua cobiça, uma
vez que julgasse fácil a presa, e seguro o lanço. As suas armas, como as garras
da águia, caíam sobre quanto lhe podia despertar o apetite.
Mais brandas, mas traindo a
aspereza do seu tempo mesmo por entre a suavidade do sexo, as mulheres no
desdiziam da feição geral do século. A sua ternura à mais leve injúria sabia
fazer-se cruel e desapiedada. A febre do ciúme, ou o ressentimento do orgulho,
descompondo-lhes a beleza, e mudando num instante o coração, depressa o
convertiam de mavioso e bom em implacável e quase ferino.
Não são raros, nem difíceis de
colher os exemplos disso!
Há mais sedutor e fascinante
olhar, que o da donzela árabe, quando a pupila negra e aveludada num relâmpago
fugaz denuncia o júbilo quase selvagem do amor, que lhe agita os seios, e
alegra os lábios de um riso tão sedutor? Que se veja iludida ou afrontada, e os
mesmos olhos tão meigos antes que pareciam destilar em torrentes todas as
doçuras do afeto, acesos subitamente em sinistra chama, logo hão de revelar que
fugiu o anjo, porque daí em diante mora naquele peito, cujas dores são fundas e
silenciosas, o pensamento da vingança e a impaciência do ultraje!
A gazela transforma-se em tigre,
e se esconde as garras por momento é só para levantar o salto com mais certeza.
Na existência ignorada e agreste do aduar, nas espaçosas campinas, que se
estendem a beijar as orlas do vasto mar de areias chamado Saara, quantos dramas
semelhantes se têm desenlaçado, afogando a morte repentinamente o amante
crédulo, quando cuidava reclinar-se nos braços da ternura?!
Eis o que procurei não perder de
vista no esboço dos caracteres, e na descrição das cenas.
Abstive-me, porém, de remendar o
diálogo de palavras obsoletas. Onde não chegam as dos nossos dias preferi
estender a frase para melhor aclarar o sentido.
Um romance que fosse necessário
verter da língua velha para a nossa com o Elucidário
de um lado, e o Glossário de Ducange
do outro, seria talvez uma obra-prima como testemunho de erudição, mas duvido
que à sexta página deixasse de vencer a insônia mais teimosa.
Prezando a linguagem vernácula e
o estilo correto, não levo a paixão tão longe, que busque de propósito o
extremoso oposto, mascavando de arcaísmos, joeirados a esmo, períodos escritos
para serem entendidos por todas as classes.
Estrangeirar a dicção por moda é
prova de ignorância; carregá-la de termos desenterrados dos entulhos dos
bacamartões, é sinal de se dar mais apreço à forma do que ao pensamento,
sacrificando à ufania de alardear riquezas, que nem sempre o são, e que mesmo
sendo-o devem introduzir com escolha e discrição.
Foi o grande erro de d. Filinto
Elísio, e pagou-o desviando a leitura das suas obras duas partes dos
admiradores que elas teriam se alatinasse menos, e medisse com mais escassa mão
os ornamentos quinhentistas com que as enfeitava.
Para mim a pureza difere tanto da
impertinência dos vocábulos esmerilhados, quanto a virtude risonha e
sinceramente cristã se afasta dos biocos e reverências da falsa devoção.
A língua é um instrumento para a
expressão das idéias, e por isso deve acompanhar todos os progressos da sua
época, e traduzi-los com clareza. Fazê-la voltar dois séculos atrás a pretexto
de a purificar, forçando-a a locuções desusadas e a termos carunchosos
(perdoe-se a frase) equivale a vestir um rapaz gentil com o venerando trajo de
nossos bisavós. Ninguém decerto lhe invejaria a figura, nem o garbo!
Outra culpa vou confessar aqui já
que nesta larga conversação estou dando conta de quanto se pode inquirir a
respeito desta mui verídica narração, que um noveleiro do século 16 intitularia
sem remorso Dos Claros Amores de El-rei
d. Sancho e das Manhas da Rainha d. Mécia.
O meu pecado ou foi muito grande,
ou é muito pequeno, segundo a severidade dos que o julgarem.
Meti em cena, embora achacado e
velho, o bispo de Coimbra d. Pedro, que tinha falecido doido anos antes de
1246, data em que abro o meu romance. Roubei assim a mitra por longos meses ao
reverendo mestre Tibúrcio, valido do conde de Bolonha, e, pelo que dizem as
informações, homem pouco talhado para sofrer semelhantes graças.
Vale-me felizmente não poder sua
reverência excomungar-me da sepultura, como excomungava os cavaleiros do bando
de el-rei d. Sancho... senão era obrigado a enviar o pobre demente para a sua
cova, perdendo a pintura de um dos aspectos mais curiosos deste século
inquieto.
A paz seja com todos! Mas em
boa-fé uma novela rigorosamente cronológica deve de ser bem insípida e
emperrada coisa! Deus a arrede das nossas horas de melancolia!
Tendo falado de quase tudo, seria
falta de cortesia deixar de dizer um pouco dos heróis desta veracíssima e
autêntica história.
Quando ela se compôs, houve
decerto a intenção de traçar mais do que cenas avulsas, ou de levantar os
vultos sobre si. O pensamento que se liga, e que procura dar ao quadro alguma
forria de merecimento e de unidade, talvez não perca por ser elucidado
concisamente. Preso por um, preso por dez mil, reza o adágio! Já agora ainda
abusarei da paciência dos leitores, pedindo vênia para lhes apresentar quase à
inglesa os meus personagens ma!s ilustres, acompanhando-os de breves notas.
Direi o que se quis tentar e ver-se-á melhor assim o que se conseguiu.
Compondo a Pena de Talião, desejei abranger em uma só ficção complemento moral
de outro romance já publicado, Ódio Velho Não Cansa, e ao mesmo tempo retocar
uma novela inserida na Revista Universal
Lisbonense com o título de Rausso
por Homízio.
Ambas imperfeitas como saíram da
rápida composição que requer uma folha semanal, tiveram a inocência (devida aos
poucos anos !) de se atreverem ao estudo de épocas espinhosas de interpretar, e
ainda mais difíceis de escrever; e embora sejam imensos os erros, e nenhumas as
belezas, certa inclinação que não se explica, mas que todos sentem pelas
primeiras tentativas, decidiu o autor a não as largar da mão, limando em uma as
maiores asperezas antes de a oferecer de novo às colunas do Panorama, e
desatando hoje o enredo, e alargando o acanhado círculo da outra, que neste
romance aparece ainda, mas reduzida só às proporções de simules episódio.
No Ódio Velho expôs-se a paixão
no seu ímpeto, e a vingança inexorável, que provocou, autorizada pelos costumes
e pelas leis.
O caráter indômito de d. Maria
Pais Ribeiro, e o amor desgraçado de Gomes Lourenço formam o nó da ação, e
encerram os elementos dramáticos, que ela envolve. As duas famílias rivais dos
Viegas e dos cavaleiros de Lanhoso, separadas por um rio de sangue, agravam com
o último crime as longas discórdias que as dividiam.
A morte de Martim Pais e os
remorsos da orgulhosa dama sua irmã assim começam a expiação; mas dos lábios do
mancebo traído saiu uma imprecação tremenda, a mesma que foi lançada sobre Caim
diante de Abel assassinado, O ódio das duas raças inimigas não expira com os
primeiros que arderam nele. Os filhos recebem inteira a sua herança de
lágrimas, e das cinzas quase frias dos pais ainda se ateia chama igual para os
queimar a eles.
A Pena de Talião representa este reverso do painel.
Na idade grave aqueles que depois
de avisados desprezaram a voz do céu, sentem a espada do castigo sobre a
cabeça, e nem mesmo encostando-o ao sepulcro podem descansar. De dentro dela
voa o grito do remorso, e o fatal pregão de que a culpa será remida à custa da
ventura de seus filhos.
D. Maria Pais na extrema velhice,
e frei Soeiro em idade cansada são como dois espectros que o passado evoca.
Afonso e Branca no verdor da mocidade, e na pureza do mais extremoso afeto,
pisam descuidados as primeiras flores da vida, e caminham, inocentes de tudo, e
sem saber, para o sacrifício que há de congraçar pelo amor das antigas rixas,
apagando os vestígios do sangue.
A par destas figuras, filhas da
imaginação, movem-se as que viveram e choraram sobre a terra.
Sancho II, d. Mécia de Haro,
Martim Gil de Savorosa, Reimão Viegas de Porto Carrero, Mestre Vicente, e
outros, pertencem à história, e foram desenhados pelos modelos que ela oferece.
Talvez pareça favorecido o
retrato do infeliz monarca, e carregado o da mulher, que ajudando a
precipitá-lo fingindo ternura que não sentia, cravou o derradeiro punhal
naquele ulcerado coração, cujas mágoas só ela podia consolar.
O que a história aponta por
conjeturas, o romance tem o direito de o figurar como realidade.
Vendido por quase todos, e
atraiçoado pela esposa da sua escolha, o príncipe, na terra do desterro,
alongou os olhos para a pátria; e ditando as últimas vontades não soltou uma
saudade ou uma alusão que revele a maior paixão que lhe abrasou a alma.
Este silêncio do infortúnio sobre
ela é a sentença de d. Mécia.
Fiel e sensível, o seu lugar era
ao lado do pobre foragido, que já inclinava os passos para o sepulcro. Ausente
e livre, como a vemos logo depois do rapto de Coimbra, o desprezo com que seu
esposo nem lhe quer pronunciar o nome diz-nos quanto Sancho padeceu,
denunciando ao mesmo tempo quanto ela ousou.
Pouco mais temos a acrescentar,
É provável que alguns austeros
levantem as mãos ao céu com horror, lendo alguns episódios a que não duvidamos
dar a cor do século. Saibam, se os molestam, que os monges e veneráveis
prelados daquele tempo, com exceções, eram piores ainda do que os pintamos.
Quem o estranhar sem grande
trabalho pode desenganar-se. Percorra a narração das proezas de d. João
Peculiar em Coimbra, de Martim Rodrigues no Porto, e de Diogo Gelmires em
Compostela; e se os atos de violência, os desacatos e as torpezas e cobiças
destes virtuosos varões não o espantarem, concedemos-lhe que nos acuse por
caluniadores, e nos condene como ímpios.
Nas cenas populares seguimos
também os monumentos; colocando os cavaleiros vilãos e os peões de Coimbra
defronte dos burgueses de Leiria, e em presença do cabido sublevado, não
fizemos senão esboçar uma das perspectivas da grande luta civil e religiosa,
que principiada nos dias de Afonso II entre o rei, o clero e a nobreza, veio a
terminar-se pela queda de Sancho, e pela astuta e pérfida política de seu
irmão, o conde de Bolonha. Nesses anos de inquietação e ansiedade o povo pagou
o seu tributo de sangue e de discórdias, a par das poderosas classes, que
enriquecia com o suor das fadigas, ajudando-as com o auxílio do seu braço.
Tudo está dito. Agora a obra que
responda! Fica entregue a bons padrinhos.
O resto pertence à fortuna,
embora, segundo afirmam os dramaturgos pateados e os romancistas sem leitores,
ela seja a deusa mais volúvel e mais cega que se conhece. Cada qual conta da
festa como lhe vai nela.
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Nota:
Texto-fonte: Rebelo da Silva: “Contos e Lendas”, de 1866, da edição publicada em 1973 pela Editora Três
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