PEDRINHO
Quando a
senhora morgada da Dos Negros deu a notícia de estar resolvida a vir habitar na
corte, o cura da paróquia, costumado numa doce convivência de anos à sua
conversação e ao seu chá, foi um homem que se sentiu cair das nuvens, e que
ficou fazendo uma idéia da fatalidade!
Era-lhe
tão fagueira a intimidade que havia cultivado naquela família, no centro de uma
alegria frouxamente evangélica, que o deixava desafogar o ânimo a murmurar dos
vizinhos: achava tão jucunda a torrada cotidiana os especiones da casa
pareciam-lhe regulados por tão acertada receita, e seduzia-se a tal ponto pelos
jantares dos dias de festa, em que por muitas vezes, antes de ver o fumo á
sopa, já a fidalga lhe dava para o bolsinho o rebuçado devido ao sermão que
pregara na capela, que, o pobre homem, ao escutar a nova partida, sentiu-se
mais infeliz que um cego que perdesse pau e cão!...
— O meu
Pedrinho anda triste, padre Venâncio, e é de ruim presságio o descontentamento
naquelas cidades! Deus sabe o vai custar-me deixar a solidão da aldeia:
criei-me com ela; e o ruído da sociedade, que me assustou quando eu era moça,
tem de inquietar-me na velhice! Todavia, a felicidade de meu filho é hoje tudo
para mim, e eu espero ainda que aquela precoce melancolia se dissipe nos
espetáculos do mundo, O coração das crianças tem o seu movimento regulado como
o de um relógio, e pára, quando a mão amiga de uma mãe se esquece de lhe dar
corda. Que eu não me acuse nunca, meu padre, de não haver evitado a tempo que
este menino, cujo caráter tristonho me assusta hoje, veja solitário, um dia,
caírem-lhe as folhas da existência antes da chegada do seu outono!
Valha-nos
Deus! — replicava o cura, preparando um conceito. — O menino, senhora morgada,
sempre me pareceu dotado de caráter circunspecto, próprio a brilhar na idade da
razão. Pelo que olha a ser débil e franzininho, bem vemos que está agora a
crescer, e que o ensino melindroso que tem tido lhe não permite encorporar como
esses rapagões do campo, que acordam de pequenos com a enxada às costas!
— Não me
dê razões dessas, cura! Há verdadeira doença de espírito naquela alvéola que
ali vê!
— Frutas
verdes que come! — respondia o padre no tom catedrático de quem se despega de
uma dificuldade metafísica.
— Frutas
verdes que como e muitos sóis que apanha!
A
morgada fazia um derradeiro esforço e aspirava uma vez mais a ser compreendida
do padre que, mais estúpido que uma ameixa, se obstinava a não ter sequer
instintos!
— Meu
rico, diz-se nas comédias e nas novelas que nós, as mulheres, pobres criaturas
a quem o mundo atribui todos os defeitos e pequices do caráter humano, somos
apreensivas até loucura, visionárias até o ridículo. É possível. As namoradas
às esposas, deve isso suceder: creio-o bem. Às mães não acontece assim, e o
coração adivinha-nos. Pedrinho é o filho do meu terceiro ano de núpcias, e meu
marido já não tinha amor. uma existência que a tristeza dos pais predestinou, e
o pranto da viuvez batizou mais tarde! Tem 15 anos, e sente-se infeliz. Não é
da sua idade o pálido sorriso que lhe expira nos lábios. Na sua fisionomia,
crestada pelo sol do campo, parece ler-se o vigor e a força: a debilidade da
sua voz desmente-a. Têm talvez os extremos do meu amor, quem sabe, concorrido
para que um dia o seu espírito se contriste ainda mais da vida! Mas, se sempre
temi que a austeridade do estudo aniquilasse aquela existência melindrosa e
débil!... A sua alma, todavia, parece desprender-se às vezes do invólucro
carnal, e voar liberta, para os mundos superiores em que os grandes espíritos
se extasiam, mas onde vão devorar-se as almas tímidas, que, como uma flor
impelida pelo vento, têm de sucumbir ao sopro inflamado das e.m que se formam
tempestades.
—
Senhora morgada! senhora morgada! — ponderava o cura, que não entendera —
tenhamos temor a Deus!
— Temor
a Deus, sim, padre! E que posso eu mais do que esperar dele que a sua piedade
infinita alumie a minha alma numa inspiração que salve a vida do meu Pedrinho!
O cura
encolhia os ombros, amofinado por não poder comover-se. Um pouco de espírito
torna os corações bons: espírito demais, creio que os perde: mas ele,, coitado,
tinha-o de menos! e enquanto ao coração... é melhor não falarmos nisso!
Formou-se
um silêncio de alguns minutos, em que a morgada parecia concentrar-se numa
idéia fixa e o seu olhar tomava a expressão desanimada de uma mãe que pressente
a morte ao filho, O cura torcia o guardanapo, rolava uma bolinha de pão entre
os dedos, e bocejava a intervalos breves. As pulsações de um relógio de parede
quebravam apenas’ aquela mudez; e os latidos do cão da quinta, rolando pelo
espaço, vinham perder-se ali tristemente...
— O
senhor desembargador, se bem me recordo, morreu antes do nascimento deste
menino? — perguntou enfim o padre, para dizer alguma coisa.
— Na
véspera do seu nascimento! — respondeu a mãe. — Olhe, padre, fale-me outra
coisa. Nunca se deve andar por cima de flores secas, para nos livrarmos de
pisar memórias...
O cura,
que estava à espera de uma frase que lhe parecesse própria a ficar sem réplica,
ergueu-se e procurou o chapéu, com os ares molestos de quem recolhe o espírito.
— Todós
temos a nossa cruz! — disse, ao retirar-se. — Peço ao Divino ue lhe abrande as
suas mágoas, e lhe resolva tudo para bem!
— Deus
há de ouvir-me, padre. f por um inocente que o imploro.
A
criada, que fora alumiar ao cura, principiou a trancar as portas, como era
costume depois da retirada desta visita de cada noite. A morgada conservou-se
imóvel, fixando a vista vagamente num e noutro objeto. A noite ia agreste: o
vento açoitava as vidraças, e gemia por entre a rama das árvores da quinta. A
morgada tirou os pés de dentro do cesto em que uma botija de água quente lhos
aquecia, pegou num castiçal, e dirigindo-se ao quarto de seu filho entreabriu
brandamente a porta.
O
pequeno estava acordado, e olhou para a mãe sorrindo. Era uma fisionomia
angélica em que reluzia o gênio, e que deixava adivinhar que alguma suprema
idéia, raio divino da sua alma, não podia sair do corpo opaco que a sufocava,
senão quebrando-se!... Tinha olhos negros e magníficos, uns lânguidos e
aveludados olhos de mulher: a fronte alta, a expressão inquieta, e uma vaga
melancolia no sorriso, que raramente suavizava o arco inflexível dos lábios
pálidos.
Não
havia ainda amado, mas sonhado. Desenhara mil vezes na fantasia os traços
poéticos de uma visão encantada, mas debalde a imaginação dos 15 anos tentara
dar cor e vulto àquela sombra adorada no êxtase de um sonho... Era o vago anelo
de um coração de criança, que já receava não poder esperar da vida a felicidade
que se atrevesse pedir-lhe!
— Ainda
não pegaste no sono, filho da minha alma? — perguntou-lhe a mãe, abraçando-se a
ele entre carícias.
— Já, e
sonhei! — respondeu a criança num tom de abatimento. — Sonhei e vi-a, a ela.
Vinha tão bonita, hoje!
— Quem,
meu filho?
— A
sombra! A sombra com quem sonho sempre, que vem falar comigo às noites enquanto
durmo, tão discreta e medrosa que me foge ao despertar do sono, fazendo-me
chorar o momento em que acordei!
A
morgada misturou de lágrimas os beijos com que cobria as faces de Pedrinho.
— Dorme,
dorme, filho! Tenho medo desses sonhos. Esses sonhos fatais! Vê se sossegas,
para te ergueres,cedo e partirmos!
— Sempre
vamos, mamã?
— Ao
romper do dia havemos de ir na estrada. Por que não foi ontem já? Não terá a
vida das cidades o condão de desvanecer na tua alma a vaga melancolia que a
existência da aldeia faz nascer?
A
partida teve lugar nessa noite, mas a esperança tornou-se inútil. Pedrinho
pareceu cada vez mais triste e mais enleado no labirinto dos seus sonhos. Era
uma febril e doente imaginação de criança! Dir-se-ia que não era um anhelo, um
desejo vago, uma indefinida esperança o que lhe devorava o espírito; mas uma
recordação, uma saudade, uma reminiscência... Ele vira já essa mulher, que
nunca encontrara: falara já com essa mulher, a quem nunca vira: vivera com essa
mulher, a quem jamais falara!... Mas, onde e quando?
Um tio
que tivera, frade de S. Domingos, velho desconfiado da vida e da ciência,
contara-lhe uma vez algumas passagens tristes de uma triste história. Eram os
amores de duas crianças, que se haviam reconhecido numa vida, depois de se
haverem amado noutra. Pedrinho sonhou com isto três noites, e lembrouse às
vezes da transmigração das almas.
—
Haverei eu já vivido? — perguntava ele a si próprio, nas longas noites de
insônia em que esse amor vago e sem esperança, concebido por uma mulher
impalpável, vinha apoderar-se dele ao chegar do sono, para apenas lhe fugir ao
acordar. A similhança de uma figura, como que há muito tempo esquecida,
aparecia-lhe então duma forma distinta; mas, como por encanto, a visão
apagava-se-lhe entre os dedos, no momento de qurer tocar-lhe.
E era
criatura bela, que parecia não ser da terra! Dir-se-ia a sua pele resguardava a
chama sedutora e esplêndida do sol quando está nascendo: dentre os seus
cabelos, saiam raios luminosos, e os seus olhos, que deviam ser o espelho da
sua alma, pareciam dourar o mundo num relâmpago.
— Anjo,
anjo ou sombra! — exclamava Pedrinho, despertando em êxtase. Por que me foges?
Uma vez,
a senhora morgada levou Pedrinho ao teatro. uma sensação que se não repete na
vida, o êxtase supremo de quem passa pela primeira vez a noite num teatro! Era
um conto do oriente a peça dessa-noite, e a fantasia de não sei que dramaturgo
arruinara-se em mil prodigalidades de imaginação. Pedrinho sentia-se outro, e a
sua alma passava por aquela fase amena e grata, que os franceses chamam rêverie, e que não é mais do que sonhar
acordado!
Uma
atriz sobre tudo, prendia-lhe a vista. Era incumbida de um papel de fada, e
parecia querer alargar até ele o seu condão.
— Quem é
— perguntou ele a alguém — esta deliciosa criatura? Vai ela, a prestigiosa
fada, empalidecer ao acabar da noite, e expirar aos primeiros clarões do sol?
— É
Margarida, menino: uma rapariga perdida, que deixou pai e mãe pelo teatro!
— Que gentil
talento!
E
Pedrinho, ao sair do teatro, já tinha n’alma um desejo: ver Margarida outra
vez! A sua vida pareceu acordar ao seu primeiro desgosto, quando na noite
seguinte encontrou fechadas as portas do teatro.
— Ó
Margarida!... Margarida! Por que pensei eu assim em ti, rainha de uma noite?
Que há em ti de maior e mais poético do que nas outras mulheres, para que a tua
imagem ficasse gravada na minha alma e o teu nome ressoe ainda no meu ouvido!
Poderás ao mundo parecer má ou vulgar, mas a minha alma adivinha-te, a minha
alma que não se ilude! e bem sinto que não és semelhante às outras, tu que
nasceste de um sopro de poesia!...
Há duas
récitas que não vejo o pequeno! — disse dali a tempo Cândida a Margarida,
durante um intervalo em que espreitavam pelo óculo do pano de boca. — Morreria
acaso, por haver aturado a mágica oito noites, acompanhado pelo criado?
Cândida
e Margarida eram duas atrizes que se estimavam muito, mas que disputavam sempre
uma à outra os melhores papéis e os melhores amantes. Com ambas as coisas,
porém,, era Cândida infeliz. Uma natureza triste e inquieta, um temperamento
desconfiado e nervoso originavam nesta pobre rapariga a amargura perpétua que
suscitam os reveses da fortuna e os pesares do coração.
Enquanto
a Margarida, era uma criatura bem alheia ao que os 15 anos do meu herói a
figuravam. Tinha uma voz falsa, que disfarçava no calor da dicção, tirava às
vezes partido de um gesto, de uma inflexão, de um olhar, mas exagerava sempre o
olhar, a inflexão, o gesto: ardente, sincera, excêntrica, havia momentos
todavia em que o seu entusiasmo a salvava, e em que ela tinha lágrimas na voz,
lágrimas nos olhos, lágrimas no coração.
—
Disseram-me que o seu nome é Pedro; Pedrinho, lhe chamam; acha-o bonito? —
perguntou Margarida a Cândida.
— Se tem
um defeito é sê-lo demais.
— Rico?
A outra
encolheu os ombros.
— Se tem
outro defeito prosseguiu Margarida, rindo — é talvez sê-lo.., de menos!
— Quere-lo? — perguntou Cândida.
— Para
qual de nós olha?
— Para
ambas.
— Não!
— Gosta
tu dele?
— Mais
que de mim.
— E se
eu gostar também?
É mais
uma coisa em que me contrarias.
Bem!
retrucou Margarida, depois de cismar um instante. — Decidirei amanhã.
No
ensaio?
Na
récita, à noite.
E se não
o quiseres?
—
Dou-to.
—
Guarda-o já! — redargüiu Cândida. — Nem eu o quereria agora!
—
Espera! — disse Margarida, encontrando com a vista um copo de dados, que tinha
de figurar na peça. — Tiremos à sorte qual de nós o há de ter! Impar por mim.
Atira!
A outra
chocalhou o copo: os dados marcaram 11.
— Ímpar,
ganhei! O pequeno é meu! — exclamou Margarida entre gargalhadas.
— Pobre
criança! — redargüiu Cândida. — Sabes que é horrível havermo-lo jogado aos
dados?
Passaram
dias. Depois de mil diligências tímidas para chegar até Margarida, Pedrinho
conseguiu ser-lhe apresentado numa ceia. A atriz nesse dia fazia anos, o que
lhe costumava suceder a miúdo, tendo de janeiro a dezembro pouco menos
aniversários natalícios do que o ano tem de meses!
Margarida
recebeu Pedrinho com um olhar e um sorriso; sorriso de esperança, e um olhar de
promessa: estendeu-lhe uma bonita mão, que ele beijou, e ofereceu-lhe ao seu
lado um lugar, que uma vista dos seus olhos parecera implorar-lhe.
Dali a
um instante todavia, oh! Deus piedoso! ele olhou petrificado e atônito a sua
heroína adorada, sem já lhe ouvir a voz com que o tinha encantado, nem lhe
avistar o ardente olhar que o seduzira! Era uma voz áspera, era um olhar
embaciado! E nem os mais leves traços daquela fisionomia cativadora lhe
apareciam senão desfigurados, extintos, perdidos,..
Nem
brilho na pele, nem luz nos olhos, nem cor nos lábios. Que fizera dos gestos
rasgados e sublimes com que acompanhava as palavras? Que fizera mesmo das
inflexões suavíssimas, que lhe matizavam cada frase? Que havia feito da graça,
do gesto, da beleza da Margarida da cena, esta Margarida da orgia, cujo hálito
acusava o abuso dos licores, e de que até o olhar revelava os extravios da
impureza?
A ceia
tinha todo o aspecto de uma ruim festa. Pedrinho nunca vira coisa mais feia do
que gente grosseira a comer.
— Como
seríamos felizes — disse um dos convivas a Margarida — se este Porto fosse tão
seco como o teu coração!
A
rapariga riu-se. Era estupidez? Era bondade? O bem e o mal tocam-se de tão
perto, que é impossível saber onde acaba um, e onde principia o outro.
— Dize
mais! — retrucou ela. — Todos nós sabemos que é uma condição do teu caráter não
abrires a boca — quer para falar, quer para beber — senão.., a custa de alguém!
Eram
destas as galanterias que ali se trocavam, e a sociedade parecia divertir-se
assim. Propôs-se uma saúde a Pedrinho, e aos seus amores. Todos os olhos se
fixaram em Margarida.
— É
inútil! — redargüiu ele. — Se não amo ninguém!
—
Ninguém! — disse a atriz, sorrindo — , nessa idade e com esses olhos não amar
ninguém!?
—
Considero-me muito inferior para que aspire a ser amado como eu sonho, e
sinto-me muito altivo para aceitar o amor que me poderiam dar!
— Ah!
ah! — replicou a rapariga, numa gargalhada. — Como é então que preciso ser para
lhe agradar?
Ter alma
e ser bela!
— Duas
coisas menos raras exijo eu no homem que me fizer a corte! — redargüiu ainda
Margarida em tom azedo, ferida no seu amor-próprio. — Contar 20 anos e ter
bigode!...
Pedrinho
fez-se corado. Era o adorável pudor dos 15 anos que o argüia de ainda não ter
barba! Também, para que fora ele ali, se por mais que quisesse corromper a sua
consciência, ela podia absolvê-lo em voz alta, mas tinha de o condenar
baixinho! Sentia-se só, coitado dele, e a solidão mais terrível é a que, ao
entrar da vida, se encontra no centro da sociedade!... Margarida tentou
reconciliá-lo, e estendeu-lhe a mão, que ele repeliu frenético com uma
expressão de cólera indomável.
—
Vai-te, disse-lhe. Não mereces o amor que eu te podia dar, nem o amor que
cheguei a sentir por ti! O.teu reino não é o coração, é o palco; o teu futuro
não é a serenidade dos afetos, mas o ruído dos aplausos. Estremeço agora ao
encarar o abismo em que a paixão ia precipitar-me. Podia comprar as tuas
carícias e os teus beijos, mas a quem compraria para tas dar a ti! às sensações
que o meu amor ia pedir-te? Não! Tu guardas a alma no camarim, onde conservas o
pó de arroz com que nos seduzes!
Margarida
olhava-o pasmada, e estava a ponto de o tomar por doido.
— Adeus!
— disse-lhe ele ainda, erguendo-se e apertando- lhe a mão. — Adeus para sempre!
Tenho pena que não pudesses entender-me, porque és incapaz de sentir e
compreender e igualar! Sabes tu! Se eu elevasse a Deus um voto pela tua
felicidade, seria pedir-lhe que não te desse bexigas!... Aliás ficará perdido o
teu futuro, que tudo depende dessa pele suave e magnífica que á noite, ao
clarão das luzes, encanta e desvaira. Adeus, Margarida! Fica com a tua frieza,
que eu fujo com o meu amor!
Instantes
depois de Pedrinho partir, Cândida foi encostar-se à cadeira de Margarida, e
balanceou-a para a acordar do torpor e atonia em que caíra.
— De que
esteve ele a falar?
— De um
sonho que tivera. Viu uma mulher que sou eu, e que não se parece comigo. É meio
louco!
—
Pareceu-te meigo?
—
Vaidoso como tu!
—
Lisonjeou-te alguma vez?
—
Ofendeu-me sempre.
— E
sofreste-o?
— Se me
agrada, se lhe quero assim!
O resto da
noite, para Pedrinho, passou-se em claro. Tudo foi cismar, e empreender mil
planos. A coragem de nunca mais ver Margarida pareceu consolar a sua alma. Com
o chegar do dia, porém, veio o desejo de ir ainda uma vez ao teatro, e adquirir
a certeza de que não a amava se nenhuma impressão sentisse ao vê-la. Baldado
empenho. O fogo daqueles olhos e o som daquela voz tiveram o poder de encantar
novamente, e a sua alma de criança não teve forças para repelir uma hora de
sedução. Loucura é isso? Quem sabe?! Os efêmeros não vivem senão um segundo;
mas, se é um segundo de felicidade.., vivem bastante !...
Isto
passava-se pelo carnaval. Os atores haviam ajustado entre si irem depois do
teatro a um baile público. Duas ou três atrizes tinham prometido fazer parte do
rancho, e do número destes era Margarida. Esta notícia deu-a um ator a
Pedrinho, convidando-o a ser da caravana. Na idéia de matar impressões de amor
pela Margarida da cena com o inevitável desgosto que a conversação e as
maneiras de Margarida da vida real lhe iam ministrar, Pedrinho aceitou. Logo
depois do espetáculo, subiu para um dos caleches, de que só restou um lugar a
preencher. Noutro, já os quatro lugares estavam tomados. Faltava Margarida
apenas.
—
Teremos que esperar boas horas! — disse um ator. — Margarida entra na última
cena, e levará séculos a despir-se!
Neste
momento, porém, ouviu-se uma gargalhada penetrante e fina: era a atriz que
subia para o caleche, vestida ainda com o traje da cena.
— Para
os não fazer esperar! — disse ela, fixando a vista em Pedrinho, que estremeceu
quando a sentiu a seu lado.
Os
caleches partiram. Pedrinho contemplou a atriz, sem poder sequer falar-lhe. Que
surpresa foi a sua ao vê-la vestida e caracterizada assim! A mão de Margarida
descansava sobre a dele, e os olhos de ambos encontravam-se num febril e
apaixonado olhar. Vinha num costume de princesa grega, com uma larga túnica de
damasco amarelo bordada de vermelho, cinto de seda, e as mangas largas do traje
oriental. Pedrinho nunca a havia visto tão bela, tão moça, e tão poética! Uma
atmosfera de milagrosa claridade parecia cercá-la e apoderar-se das almas
convidando-as a adorá-la. Brilhava por uma graça ideal, e o olhar parecia
fixar-lhe no infinito. Pedrinho dizia a si próprio que aquela singular beleza
não era da terra! A cena da véspera, a fatal cena da ceia, impediu Margarida de
lhe dirigir a palavra; a ele, impedia-o de lhe falar o encanto em que ela viera
mergulhá-lo. Que de inefáveis revelações traiu o úmido olhar do pequeno,
enquanto a atriz permanecia calada olhando-o, e que ele sentia todo o seu
sangue afluir-lhe ao coração! No momento de se apearem, Margarida pôs a
máscara, e estendeu a mão a Pedrinho, que lha apertou cheio de paixão: mas, nem
uma palavra de algum deles cortou o silêncio que toda essa noite guardaram.
No meio
do baile, a atriz, que dera o braço a um dos seus companheiros, dissera-lhe com
um fundo suspiro:
— Por
que não consenti eu que a Cândida gostasse dele?!
—
Disseram-me que é rico! — replicou o ator.
— Que me
importa?
— Não te
importa que seja rico? — redargüiu o homem espantado.
Gosto
dele! — disse Margarida.
— Deste
pequeno?
— Desta
admirável criança, de cujo amor não sou digna!
— Que
loucura! Que uns copos de Porto te apaguem essa idéia! Vamos cear ao botequim!
Quando
Pedrinho tornou nessa noite a avistar a atriz, encontrou-a a uma mesa, cercada
de homens, com quem ria, a gritar e a contender com os que passavam. Ao ver
Pedrinho, tornou-se pálida e escondeu a cabeça entre as mãos. A embriaguez a
que chegara, porque o ator a obrigara a beber até se embriagar, não lhe riscara
todavia da lembrança as feições dele, e ao reconhecê-lo, tremeu de vergonha e
de raiva pela consciência do estado em que se achava. Pedrinho deixou logo o
baile, e na manhã seguinte escreveu esta carta à atriz. Pobre Pedrinho! era a
primeira vez que escrevia a uma mulher! É-me impossível permanecer aqui,
Margarida! O meu espírito acusa o meu coração, e é triste sempre o amor que a
razão desdenha! Por que não pode a gente amar e detestar, quando quiser? Para
que me está Deus condenando a um amor sem amor, e a um ódio sem ódio?! Conheço
agora que irresistível encanto me prende à sua voz e ao seu olhar... Mas — pois
que é preciso assim! —, não tornarei a encontrar esse olhar, nem a escutar essa
voz. Julguei que tinha esquecido tudo, vencido tudo. Louco! Quando te vi junto
de mim, prestigiosa e sedutora, naquele traje de teatro, a minha paixão
incendiou-se de novo pelo primeiro raio de luz que os seus olhos despediam
sobre mim! Vence-me e prostra-me. Quando a minha alma se julga livre do amor,
tento ver-te outra vez e encontro-me a amar de novo! Fraqueza é isto! l força;
força funesta do teu poder. Mas, teimar num amor assim, que há de morrer ao
aproximar-te, e nascer quando eu te vir na cena... Teimar num amor assim, para
quê? Adeus, e sê feliz! Pela minha salvação te juro, que te fujo para te
adorar! Esta noite irei ainda ouvir-te, e depois nunca mais! Tenho na vida,
como se tem nos campos, medo da altura em que se vê de mais perto o céu!
Margarida, adeus!...
Quando,
à noite, criança imprudente, quis ir pela última vez brincar com o fogo, o
porteiro do teatro entregou-lhe uma carta com a recomendação instante de que a
lesse antes de sair do palco. Pedrinho voltou ao salão. e leu estas palavras:
“Fica, e serás feliz. A Margarida da noite da ceia há de desaparecer para
sempre, e cairá ao seu primeiro amor a frieza que lhe vivia nalma; porque
Margarida é outra agora! Margarida ama! sofre! espera! Quero ver-te esta noite
depois do espetáculo. Se a tua obstinação fosse tão longe, que desdenhasse
agora o amor que me acordou; se, apesar dos meus rogos, insistisses em partir,
seria esta a minha última noite de teatro. No intervalo do segundo ato,
mandarei procurar-te à platéia. Dirás então a quem eu aí te enviar, se consentes
em ter dó de mim! Livre-me Deus que a resposta não seja marcar-me a hora a que
devo esperar-te depois da récita: o público não me ouviria no terceiro ato”.
Pedrinho
sentiu uma singular impressão por esta carta.
— Quem
me diz que não seja chalaça de bastidor, aposta entre cômicos que se propõem a
rir á minha custa, se eu não partir depois do que escrevi?
Deu-se o
sinal do erguer do pano, e Pedrinho entrou na platéia. Representava-se não sei
que negro drama de conspiradores.
Margarida
abria a peça por uma longa fala; a franqueza e o abatimento, que se lhe
revelavam nas feições, faziam supor que convalescente apenas de alguma doença,
que a houvesse afastado do teatro, deixara naquela noite o leito pelo tablado,
e tentara a luta suprema da vontade contra a fraqueza física. Quanto mais
pálida se mostrava, mais negra profundidade tinha o seu olhar; quanto mais
emagreciam as linhas da sua gentil fronte, mais deixavam transparecer o fogo
sombrio da sua alma; e quando a inspiração chegou e a languidez se extinguiu a
pouco e pouco, saíram daquele colo de cisne gritos e ais, que quebrariam um
tronco de Hércules... Palpitante de amor, ébria, inquieta, delirante de raiva e
de ciúme, estremecia e elevava-se em agonias de gigante... Por um momento os
seus olhos, aqueles olhos soberbos de voluptuosidade e de luz pareceram
procurar o lugar de Pedrinho, e despediram sobre a criança um olhar suave,
meigo, humilde, um doce olhar de esperança!
—
Impossível! — disse Pedrinho a si próprio. — IE impossível partir se continuo a
ver-te. Que instinto me conduz para ti, não sei! Dir-se-ia que na tua fronte
vejo brilhar a minha estrela!...
E
impetuoso e desvairado ergueu-se e saiu. A atriz acompanhou-o com a vista, e
sentiu-se tremer de terror. Ele fugia-lhe!
Pedrinho
vagou pela rua como louco, e pediu à sua alma o ânimo e a fé. — Margarida!
Margarida! — dizia ele. — Oh! deixa-me partir! À semelhança das princesas
encantadas, de que rezam as lendas, perderias o encanto se um dedo te tocasse!
E a cena e a arte a tua vara de condão... Quando as luzes se apagam e o público
te abandona, a tua vara mágica quebra-se, como o poder instantâneo das fadas,
que morrem ao nascer do dia... O imprudente que se atreve a fixar o sol
encontra a vista perseguida por um aterrador círculo escuro; pois sim: seja a
recordação e a saudade o castigo de te haver amado! Ficar a ver-te de perto,
seria a queda do teu reinado: o meu amor é o trono que te ergui, e a ilusão o
reino em que te adoro; se saísses desse reino, perdias o trono!
Um
indefinido desejo, um vago pressentimento talvez, pareceu conduzi-lo de novo ao
salão do teatro.
Encontrou-o
apinhado de gente e, apesar de conseguir romper por entre os grupos e chegar
até à platéia, ninguém encontrou ali. Os camarotes estavam desertos e o lustre
principiava a apagar-se.
— Às dez
horas! Mas, são dez horas! Pois é possível que o espetáculo terminasse já?
Acabava
de atirar esta pergunta ao primeiro vulto que topou, quando lhe apontaram um
anúncio em que encontrou estas palavras: “Por haver desaparecido a atriz
Margarida, não é possível continuar o espetáculo. O público pode receber o
importe dos seus bilhetes”.
Ao
lembrar-se então da carta que Margarida lhe escrevera, e que ele em tão pouca
consideração tomara, um terror súbito se lhe apoderou do ânimo e as lágrimas do
remorso escaldaram pela primeira vez aquele rosto de criança.
A atriz
não havia prevenido ninguém do que planejara. A pobre rapariga saíra num
entre-ato, escondida no velho capote de uma comparsa, e fora, a pé, andando,
andando, até chegar à humilde casa que a vira nascer, e de que a sua alma havia
tido saudades muitas vezes. A filha perdida voltava ao lar doméstico, contrita
e em lágrimas. Das suas pompas da cena, nenhuma memória, nenhuma recordação
levava: abandonara com os aplausos do público os anéis e dádivas dos amantes:
voltava pobre, desamparada e triste, como partira. A celebridade e os amores
tinham sido para ela um sonho, e a infeliz, ao menos, acordou aos beijos de sua
mãe!...
Quando
Pedrinho voltou à Dos Negros, a senhora morgada recebeu parabéns gerais das
melhoras do menino. Ele falava, cantava e lia. Era a febre! O cura considerou-o
salvo quando lhe disseram que para em tudo estar mudado até já dormia horas
inteiras. Fez-se uma festa em ação de graças, e o sermão deu-o por pronto.
Ninguém imaginou que a criança era mais infeliz que nunca, e que o sono dos
olhos é horrível quando o coração não dorme!...
Era
possível nesta situação, ainda, fazer dele um poeta mas, a mãe mandou-o a
Coimbra para o alcançar doutor. O pequeno viu o Mondego, e atirou-se ao rio.
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Nota:
Júlio César Machado: “Contos ao Luar”, publicados
originalmente em 1861, extraídos da edição de 1974, da Editora Três, da Coleção
“Obras Imortais da nossa Literatura”
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