OS DOIS
PESCADORES DE LESSA DA PALMEIRA
I
É preciso
ver Lessa da Palmeira, ao cair da tarde, quando o sol beija saudoso a costa,
depois de se despedir do rio, e as mulheres dos pescadores, concertando as
redes na praia, entoam as canções da noite!
Toda a
gente vos dirá que é no tempo dos banhos, quando uma grande parte da sociedade
do Porto para ali vai habitar, e consegue dar à vila o bulício, a vida, a
elegância — toda a gente vos dirá que é nesse tempo que deveis ver Lessa. Eu,
não. Nem o meu conto ia entender-se com a sua ação simples e vaga, se eu não
vos dissesse já que tudo isto vai ler-se, se passou em princípios de junho, mês
em que a sociedade já não dança nas cidades, mas em que a natureza é a
elegante!...
Não é
uma coisa fácil, por fim de tudo, descrever Lessa em toda a sua feição
melancólica e marítima. Não se sabe bem, ao vê-la se é uma rica vila, se uma
pobre aldeia. Por entre choupanas humildes, erguem-se prédios magníficos.
Dir-se-ia o sorriso do luxo a insultar as lágrimas da miséria, se a melhor
poesia deste lugarejo não consistisse exatamente neste singular contraste, cuja
explicação forma o seu louvor.
Eis o
segredo:
Lessa é
uma terra de pescadores: cada um dos barqueiros da costa tem ali a sua cabana,
onde procura no seio da família o esquecimento das lutas do mar e a serena
alegria do amor doméstico, Às vezes, estes pescadores cansados dos perigos, ou
levados pela ambição, embarcam como marinheiros, a bordo de algum brigue, e vão
ao Brasil procurar fortuna. Mas, antes de partirem, cada um deles ajoelhando
diante da capela do Senhor dos Aflitos — que fica situada na praia, olhando
sempre o mar — dirige a Deus a promessa de no caso de voltar rico da terra para
onde parte pobre, edificar um opulento prédio no sítio em que deixa a sua
cabana.
A crença
popular conserva e aumenta de dia para dia a fé consagrada a esta capelinha,
que as ondas banham quando o mar vai alto. Foi junto dela ,que se encontrou o
braço do Senhor de Matosinhos. Por que se chama Senhor de Matosinhos, é que eu
ignoro: a crônica — que não é pequena aliás, e forma um grave volume de
quatrocentas páginas in.49, de que o único exemplar que resta se mostra por
curiosidade a quem visita a igreja — denomina-o Bom Jesus de Bouças.
Como é a
história do braço do Bom Jesus de Bouças, ou Senhor de Matosinhos, ou mesmo
Senhor dos Aflitos, como se vê da história que ao princípio lhe chamavam? Oh!
Uma simples tradição, uma lenda toda infantil; meio graciosa, meio ingênua;
galante quase: nem muito séria, nem irrisória: levemente fantástica; coisa
entretida de ouvir; que não dá nem tira às coisas deste mundo; e que, em todo o
caso, quem não quiser estar sério pode dispensar-se de ler!
O Senhor
de Bouças perdera um braço. Ele estava na sua igreja, bem agasalhado; bem
servido, bem festejado — mas, pobre Bom Jesus, faltava-lhe o seu braço: um dos
seus braços: se era o direito ou esquerdo é o que eu fiz mal em não indagar,
mas a verdade fiel é que os meus apontamentos nada me dizem sobre isso.
Tinha a
gente dos arredores mágoa veemente que tão bom Senhor assim se visse privado da
satisfação de ser completo. As velhas do sitio — e se há sítio em que tenha
havido velhas era Lessa das Palmeiras! — rezavam em cada noite orações
expressas para que um milagre do mesmo Senhor lhe deparasse o braço que
perdera.
— Vejam!
Vejam! — exclamava a velha Brazia, a quem por ali chamavam a coruja do pinhal .
—
Vejam o que é o poder divino, que tem mais à mão o braço de cada um do que o
seu próprio! Perdera eu o meu, e veriam se o Bom Jesus de Bouças m’o tornava
logo a pôr, ou não!
— O Bom
Jesus de Bouças não perdeu o seu braço — redargüiu a velha Paula, conhecida ali
pela nortada. Foram os fariseus que
lho tiraram, para o deitarem ao rio!
— Se ele
estivesse no rio via-se!
— O rio
levou-o para o mar!
— Se
estivesse no mar, havia calma!
— Que te
Deus livre! Ele tem na mão a tormenta!
Um
furacão rompia; a vaga espumava na costa; as gaivotas adejavam, e fugiam.
— Te
arrenego! Te arrenego! Ai! Os malditos dos fariseus! Não ouves o vento? Não
ouves o mar? a vingança! Ë o castigo! a morte. O braço do Senhor de Bouças
revolve as ondas!...
Muito
tempo decorreu desta forma, entre terrores e sustos. O braço do Senhor de
Bouças era a preocupação constante da gente devota de Lessa da Palmeira. Onde
estaria ele? Que seria feito dele! Havê-lo-iam roubado, escondido, aniquilado?
Singular destino!
Uma
ocasião, um padeiro do sitio despediu um dos moços, por lhe haver faltado ao
respeito. A contenda nascera simplesmente de que o rapaz se lhe queixava de
estar endemoninhado o forno.
— Oh!
Rapaz excomungado! — gritava o padeiro fulo de cólera. — Endemoninhado o meu
forno! O meu forno que faz o melhor pão de Deus, que há por estes sítios, a cem
léguas em redor!
Endemoninhado!
E digo! E repito! Todo eu me sinto queimado pelas lavaredas do maldito, que
repele uri tronco da lenha que se lhe deita!
— Repele
agora um tronco! Já se viu alarve assim?
— Tão
certo seja, enquanto que Deus me alumie em quanto eu quiser viver!...
Despedido
o moço, outro o substituiu. Ao terceiro dia, porém, o pobre rapaz estava também
queimado e despedia-se cheio de terror do forno maldito!
— Oh!
praga de moleiros! — exclamava o padeiro na maior consternação. — Que descrédito!
Que abandono eminente para a minha fábrica! Vejam se é possível, como estes
marotos inculcam, que o forno ouse repelir a lenha que se lhe deita! Eu
próprio, voto a Cristo! — vou mostrar aos vizinhos, para que me sirvam de
testemunhas, o embuste destes dragões, que querem desacreditar-me! Acerquem-se
os meus moços! Chegue-se a minha família! Reclamo a vizinhança! Peço o concurso
dos imparciais! Eh! rapazes! (a uns banqueiros que iam passando). Venham cá
também, se têm amor à verdade! Entre na minha casa a gente de boa língua. Ao
forno!... Ao forno!...
E o
padeiro, cercado de uma multidão imensa, caminhou resoluto ao forno, e lhe
atirou pela terceira vez o tronco que no dizer dos moços, já o fogo duas vezes
repelira. Então o assombro foi geral, e a vozearia nos circunstantes subiu aos
ares em gritos de medo: por entre a lenha, que o fogo aceitava, as chamas
repeliram o tronco, que veio bater sobre a multidão! O povo fugiu horrorizado,
e o padeiro caiu de cama, tão doente ficou de susto. A autoridade e o cura da
paróquia visitaram nesse mesmo dia o estabelecimento, que, parecendo mal
agourado, tinha de ser o lugar glorioso de onde saísse o primeiro grito do mais
festivo júbilo de Lessa da Palmeira: o pároco conheceu com inefável alegria,
que o tronco, que o fogo rejeitava, era o braço do Bom Jesus de Bouças!...
Convocada
uma romaria, foram os devotos à igreja de Matosinhos entregar ao Senhor o seu
recém-chegado braço, e, como ele lhe ajustasse à própria, ofereceram-se-lhe muitos grilhões de ouro, muitas
argolas de filigrana, tudo ao som de foguetes, de vivas, de orações e de
soluços das beatas, prometendo-se logo edificar uma capela no sítio do
abençoado forno, celebrar todos os anos a gloriosa e. produtiva romaria do Senhor de Matosinhos, Senhor de Bouças,
Senhor dos Aflitos ou Senhor do Braço, como lhe chamava a gente rústica dos
arredores.
Hoje
ainda — ainda e sempre! — a crença popular conserva na veneração mais sincera o
culto pela tradição. Os pescadores de Lessa, nas tormentosas noites do inverno,
quando o mar açoita a costa, o vento geme nas ondas, e a catraia perde o leme,
não tem senão uma prece e um voto para elevar a Deus:
—
Piedade, Senhor! Pelo vosso bendito braço!
II
Dizia-se
em Lessa que a mãe do pescador Raimão tinha 40 anos. Por mais que ela e a sua
certidão de idade porfiassem em atestar 52, não havia quem lhes desse crédito.
O povo tinha razão, talvez; a verdadeira idade de uma mulher é a que ela parece
ter; quem não prefere uma de 40 que pareça ter 30, a uma de 30 que pareça
ter 40!
Era
branca de neve e parecia ter sido extremamente formosa: as leves rugas que se
lhe divisam na fronte, tinham o ar de se encontrarem em direções combinadas, e
devam-lhe um aspecto grave e melancólico; chama-lhes ela dádivas da
experiência. Os seus olhos, conquanto não tivessem já o brilho fantástico, que
passa com a mocidade, guardavam ainda luz bastante para que uma vista sua
penetrasse a alma, e decifrasse sem custo os mais guardados segredos. Tinha o
nariz pronunciadamente aquilino, e, apesar da idade, conservava todos os dentes
alvos e brilhantes. Desenhava-se-lhe pelo rosto uma expressão continuadamente
perscrutadora, severa, e por vezes de uma ironia, que gelava a alma.
Ana se
chamava. Tratavam-na em Lessa pela “senhora Ana”. Estava viúva havia nove anos;
desde a morte de seu marido, que era um dos pescadores mais remediados do
sítio, ninguém teve que ralhar dela; e conquanto se enfeitassem muitos para a
tentarem a segundas núpcias, nenhum conseguiu obter dela o mais leve olhar de
promessa.
Tinha
dois filhos. A um deles, na intenção de o fazer seguir estudos, chegou a
mandá-lo a um colégio do Porto: um dia, porém, foram também precisos à casa
aqueles dois braços, e o pequeno, trocando a aula pelo mar, fez-se barqueiro
aos 12 anos.
Todo o
período da sua mocidade foi triste como a noite. Ele nem sequer andava na
catraia de seu irmão, e teve que sujeitar-se, por alcançar mais lucros, a fazer
parte da campanha de outro barco da costa. Quando alguma vez, por estar muito
rijo o vento e o mar em vagalhões, não podiam sair à pesca, o pobre rapaz
passava a tarde na praia, ajudando a consertar as redes e deixando
insensivelmente correr-lhe o pranto pelas faces.
— Que
diabo tens tu, rapaz — perguntavam-lhe os companheiros.
—
Tristezas a que sou dado! — respondia ele sorrindo e disfarçando. — Isto é do
sítio!
Os
barqueiros espalhavam a vista em redor, e pareciam dar- lhe razão. A natureza
ali é tudo; natureza agreste, ainda que cheia de encantos em todo o seu tom de
melancolia, de saudade e de fé. Rio, árvores e mar! Está-se bem ali, mas
sente-se a necessidade de chorar! À medida que se alarga a vista por aquele
horizonte da cor da esperança, por que não sente esperança a nossa alma? Mil
idéias fatais nos lembram! Chega a parecer-nos felicidade o morrer moço, e diz
a gente a si próprio, olhando para o farol e para as ondas: — Quantos irão no
comboio da tarde, levando pena de não haverem ido no da manhã?!
Todos do
sitio estimavam Roberto. O patrão da catraia, que tinha uma filhinha linda como
os amores, havia dito um dia à mãe do mancebo:
— Esta
há de ser para o seu Roberto!
A mãe
sorriu-se; o rapaz fez-se corado.
— E
então eu fico ao sinal? — perguntou Raimão, rindo
— Tens
razão, meu rapaz. Esquecia-me de ti. Pois digo-te que há de tudo ser regulado
por outra bitola. Ela é que há de escolher a seu tempo aquele de vocês que lhe
quadrar nais ao jeito!
A
criança pendurou-se a um braço do Roberto e exclamou num tom caloroso:
—
Este!...
Foi
puramente uma galanteria. Ficou por muito tempo na memória do povo esta graça
infantil. Um dia, porém, houve quem visse Roberto ir ajoelhar-se diante da
capela do Senhor dos Aflitos: ele tinha 13 anos então: a prece que dirigiu a
Deus foi a prometer um palácio edificado no lugar da sua cabana, se tivesse
vida e fortuna para voltar rico. Criança ajoelhou, e ergueu-se homem — estava
marinheiro. Já nessa noite não apareceu em casa, e quando na manhã seguinte se
espalhou a notícia de que ele partira a bordo de um brigue para Brasil a mãe
recordou-se aterrada de que o pequeno lhe umedecera a mão de lágrimas, a última
vez que lha beijou!
Catorze
anos se passaram desde este acontecimento: na ocasião em que principia o meu
conto voltara Roberto do Brasil, e correra a abraçar sua mãe e seu irmão àquela
humilde choupana de Lessa da Palmeira, que o tinha visto nascer!...
Entre os
dois irmãos o contraste era completo, Roberto era um mocetão alto, magro,
levemente pálido, de olhos negros e melancólicos, expressão serena e elegante.
Raimão parecia ter 40 anos, não tendo mais que 32: era baixo, grosso, corado,
olhos claros, expressão alegre e um caráter franco, prazenteiro, rude. Tinha as
boas qualidades do primeiro, probidade, sisudez, bom coração e boa índole, mas
faltava-lhe a sua principal qualidade, o seu principal defeito talvez — a ambição
— ; por isso, enquanto Roberto lutou com as dificuldades da vida material,
atravessando a miséria para chegar á fortuna, Raimão prosseguiu na sua condição
obscura, passando os melhores dias da sua mocidade numa catraia sobre as ondas!
Raimão
estava casado. O patrão do barco havia morrido, e ele desposara a filha que
ficara órfã — aquela criança que se pendurara no braço de Roberto, ao
escolhê-lo por noivo, Isabel era o seu nome — tinha a este tempo 23 anos.
Toda a
gente de Lessa se recordava de ver um velho de barba grisalha e longos cabelos
brancos que lhe davam um ar de patriarca, e que levava sobre a fronte, sem ela
se lhe curvar por isso, as neves de 80 invernos. Alguma coisa de altivo e
digno, uns restos de antigo ar marítimo, atitude de coragem, que não se perde
nunca, revelavam que esse velho era um pescador tornado mendigo, que ganhava
amargamente aquele triste pão de cada dia, que se pede cada noite ao céu. Ao
seu lado, como uma Antígona rústica, ia sempre uma rapariga, sua filha, cujo
ombro se oferecia á mão do octogenário, apesar dele afetar que andava direito e
leve, O seu fato, quase tão velho como ele, tinha o asseio da miséria altiva;
nem uma nódoa, nem um buraco. A rapariga dava uma graça severa ao seu traje,
mais que simples, que parecia um molho de farrapos noutra que não fosse ela. A
sua tez pálida, a sua fraqueza que dissimulava uma vontade enérgica, o seu ar
de reserva quase soberbo, de tanta frieza era, indicava uma dor profunda que se
aceitou, um segredo penoso calado para sempre!...
Esse
velho, outrora patrão num barco de pesca, perdera o barco no mar; quando Deus o
chamou para si, a rapariguita que o acompanhava a pedir esmola, ficou órfã.
Raimão viu-a uma manhã ao sol, e achou-a tão formosa que a quis para noiva. Era
Isabel.
Durante
a ausência de Roberto, a vida daquela família era tranqüilíssima. De manhã
fazia-se o trabalho da casa; e de tarde, um pouco antes do pôr-do-sol, iam a
senhora Ana e sua nora passear pela praia até avistar a catraia, quando Raimão
andava no mar; ou, se partia ele de noite, ficavam as duas a fazer serão.
III
Voltou
Roberto enfim e quebrou-se naquela cabana o sossego habitual para o filho que
há tanto tempo arredado de sua família fosse recebido sob o teto paterno com um
aparato ruidoso, que equivalia em Lessa da Palmeira ao festim de Salomão á
rainha de Sabá, ou ao rei Assuero á judia Ester. Roberto chegou a Lessa no
começo de uma linda noite de junho, e no dia seguinte foram convidados todos os
pescadores do sítio para um jantar na praia. Eram para cima de 30 homens do
mar, com as suas famílias, todos sentados na areia, em roda das caldeiras da
cozinhada de peixe miúdo.
— Eis-me
entre .vós — dizia Roberto: — Eis-me entre vós como outrora, irmãos! A fortuna
não me tornou altivo, e a maior alegria da minha existência é tornar a ver
minha terra, e poder dizer: A minha família está aqui! minha mãe! P. meu irmão!
Os pescadores de Lessa! Eis a minha família, irmãos!
—
Esqueceu-te falar de mais alguém que te é parente! — exclamou Raimão, indicando
Isabel.
Oh!
Perdoa-me, Raimão! A mulher do nosso irmão é nossa irmã, e depois de minha mãe
sois vós dois a quem eu estimo mais no mundo. Como é sua graça, mana?
—
Isabel! — respondeu a rapariga, fazendo-se corada.
Nome de
santa! — replicou Roberto em tom de cumprimento.
— E dos
sítios?
— E mais
que é — disseram os pescadores.
— Bem
pequena, a viste! — redargüiu Raimão.
— É o
que fizeste em ir para o Brasil! — exclamou a senhora Ana, rindo e beijando
Roberto.
— Perdeste a Isabel!
— Agora
perdeu! — disseram os pescadores.
— É que
vocês não sabem a história! O caso passou-se assim: haverá hoje 15 anos, o pai
desta rapariga disse-me por esta maneira: “Senhora Ana, esta minha filha há de
ser para um dos seus rapazes!” Isabel, que teria nesse tempo seis anos, agarrou
a mão de Roberto e gritou: — Há de ser este!
— Ai que
graça!...
— Mas
depois, com o tempo — acrescentou Raimão, rindo —, tive artes para fazer mudar
o vento, e preguei com ela, bem mastreada, na capela-mor do Senhor de
Matosinhos, onde o padre me deu para a mão o leme, navegando até hoje com maré
a favor!...
E uma
coisa imprudente avivar lembranças do passado. Se o passado é o nada, pira que
evocar fantasmas? O coração deixa-se levar às vezes de visões, e eu não sei que
haja predileções mais perigosas do que as que uma sombra inspira... Os olhos de
Roberto procuraram os de Isabel, e ao encontrarem-se pareceram fugir-se.
— À
saúde da companhia! — disse Raimão, empunhando um dos canjirões de vinho.
— À
saúde de Roberto! — gritavam os pescadores, bebendo.
— A
saúde da menina Isabel! — exclamou Roberto.
— Mana
Isabel é que se lhe chama! — redargüiu Raimão. — Meninas são as crianças, meu
rapaz!
— À
saúde da sra. Isabel! — gritaram os pescadores.
— Parece
tudo isto à minha alma um sonho! — exclamou a mãe. — Estares tu em Lessa de
Palmeira, rico e feliz! Meu bom filho!...
Roberto
sorriu-se para Isabel.
— Não és
tu feliz?
— Por
que o não seria, se estou ao lado de nossa mãe?
— Mas
deixaste-a para seres rico! — respondeu Raimão rudemente.
— Nunca
mo perdoarão, bem sei. Na terra é uma loucura querer ter muito; tudo aqui se há
de deixar...
A
senhora Ana não perdeu um único movimento de Roberto nem de Isabel, quando
acabou o jantar, e Roberto lhe pediu & bênção, foi com singular expressão
de severidade que ela lhe respondeu:
— Deus
te acuda!
Raimão
estendeu a mão a Roberto, e sentiu a dele fria e trêmula: então, com um sorriso
de bondade, perguntou-lhe, abraçando-o:
Que tens
tu, vamos, que tens tu?
Roberto,
fixando a vista na de seu irmão, retorquiu, fazendo-se pálido!
Eu!?
IV
Por que
parecia Roberto entristecer-se no meio das festas? Que melancolia indefinível
se desenhava no seu pálido sorriso, quando, mergulhando-se em êxtase, demorava
um olhar anuveado sobre o primeiro objeto que a vista lhe encontrasse? Ah!
Pobre mãe... Pobre mãe! Só ela sentia o alcance de todos estes indícios, que
pareciam esclarecer-lhe o que o coração lhe adivinhava! Roberto não dirigira
nunca a palavra a Isabel senão com um indizível ar de amargura, e a rapariga de
quando em quando arriscava até ele um olhar fugitivo, mas dir-se-ia que
preocupado.
Alguns
dias se passaram depois da chegada de Roberto, sem sucesso notável naquela
casa. Apenas a senhora Ana continuava perscrutanto tudo, e fazendo experiências
para conseguir tirar uma conclusão que ela cuidava pressentir. Uma noite —, era
véspera de São João —, a senhora Ana e Isabel, sentadas cada uma de seu lado a
uma janela que dava para o rio, conversavam acerca dos diferentes caracteres
dos dois irmãos. Isabel falando de seu marido conservava o ar de frieza que lhe
era habitual; quando, porém, se tratou de Roberto parecia ver-se o céu no fogo
do seu olhar, sentir-se a felicidade na perfumada doçura da sua voz. A senhora
Ana fixou a vista na de sua nora, e disse-lhe em leve acentuação de ironia:
— Que
entusiasmo quando falas de Roberto, e que frieza falando de teu marido!
É porque
saúdo em Roberto qualidades, que meu marido não possui.
Não é
por isso, Isabel!
Então...
— É
porque o amas!
— Eu!
exclamou a rapariga, tornando-se pálida.
— Tu
mesma! — replicou a mãe do pescador, severamente.
Depois,
tomando-lhe uma das mãos, continuou assim:
— Ouve,
Isabel. Há cinco dias que meu filho Roberto voltou a Lessa, e há cinco dias que
conheço em ti uma fatal mudança. Tu tens 21 anos, Isabel; e eu tenho 52. Gostas
pela primeira vez de um homem — sim! porque nunca quiseste a teu marido!
infame, este atrevimento. Seu próprio irmão! Oh!
Isabel
deixou pender a cabeça sobre o peito e pareceu cismar. A noite estava tão
amorosa que tudo parecia alheio às paixões terrestres. O mar sussurrava ao
longe, a brisa suspirava no rio; cuidava-se ouvir a harmonia das esferas,
julgava-se sentir a dança dos astros; cada grão de areia tinha voz de poeta:
murmúrio encantador e inexplicável como o bater das asas das pombas e das
fadas! Oh! que linda noite de junho!
A
senhora Ana, sem despregar a vista de Isabel, foi dizendo-lhe:
— Ambos
são meus filhos, e quero tanto a um como a outro — mas quero ainda mais à honra
desta casa; a deles!... 13cm sei que Roberto não é capaz... nem tu tampouco,
bem o sei; não é de nenhum que eu me receio, mas do amor de ambos! Raimão
quer-te a seu modo e bem sabes que aquela alma não é de paixões ardentes, mas
suave e boa, honesta e santa, como não é para desprezar na terra; supõe —
defenda-nos Deus! — que ele desconfiava dessa simpatia, que te prende a
Roberto! Naquelas organizações como a dele, são muito mais para temer certas
crises, e se a vida nesta casa tem sido até hoje o céu, não tens tu remorsos de
ir fazer um inferno de um paraíso?
Isabel
ergueu a fronte e balbuciou?
— Logo,
às fogueiras, hei de falar-lhe: pedir-lhe-hei que me esqueça, que me não perca.
que me não tente!
— Às
fogueiras?
— Sim;
depois da ceia. Ë a primeira vez que me fala. Será a última em que lho conceda
às escondidas. Hoje, irei.
— Não
hás de ir.
— Não
hei de...
— Não.
— Quer
então que o engane, que o faça esperar?
— Não
esperará debalde, Isabel, sossega. Há de encontrar alguém. Encontrar-me-á a
mim!
— Quê!
— E
preciso.
— E tem
ânimo...
— De
remediar tudo; daqui a pouco seria já tarde!
Viram
neste momento Raimão e Roberto, que vinham pela estrada. Isabel teve apenas
tempo para dizer com ar suplicante á senhora Ana:
— Ao
menos não seja áspera com ele, não?
— E para
não vir a sê-lo que lhe irei falar. Nem uma palavra, vê bem!
— Não
sou eu quem mais que ninguém precisa que nada disto se saiba?!
V
Os
pescadores, as mulheres e os filhos dançaram toda essa noite na praia em redor
das fogueiras. Raimão, a senhora Ana, Isabel e Roberto foram também assistir ao
queimar das alcachofras. Oh! a poética noite! A noite saudosa! A noite de um
instante!
— Olha!
— dizia Roberto aos pescadores. Nas estrelas fugindo do céu, já as mouras saem
das covas, seduzidas pelo perfume da erva pinheira queimada, que sobe aos ares
com os cânticos do amor!
— Não
sabíamos, — diziam os pescadores. — Conta-nos isso Roberto; tu que sabes contar
tão bem!
— As
mouras, meus amigos, vivem escondidas nas suas covas. Ficaram aqui desde dominação
mourisca e ocultaram- se para melhor guardarem os seus tesouros.
O que é
o tesouro das mouras? — perguntavam as raparigas.
— É um
mundo de pérolas, de esmeraldas, de rubis e de safiras! Os pescadores de coral
nunca o avistaram tão rubro como o dos seus braceletes; nas sestas do Oriente
nunca se adornou a favorita com pérolas mais pálidas que as dos seus colares:
nem as damas da Europa mostraram num baile mais esplêndidos diamantes, que os
dos seus toucados!
— Ih!!!!
— exclamaram as raparigas.
— Tal
qual como ela reza! — ponderavam os pescadores.
Roberto
continuou:
— As
mouras têm cordões de ouro, que é um sonho! Brincos e anéis, que é um milagre!
Logo, pela volta da madrugada, é que elas saem das covas para arejarem o seu
tesouro sobre a terra... E quando as estrelas empalidecem, e a noite se despede
num saudoso suspiro... Então, elas saem, e ninguém as vê! ninguém as pressente!
A natureza não acordou ainda: a lua esconde-se entre duas nuvens brancas, e não
se deixa ver mais; o rouxinol calou-se; as namoradas sonham; a onda nem rumoreja!
As brisas da noite aquietaram-se... Tudo dorme... E as mouras estendem os seus
tesouros! E olham-nos estáticas! Ébrias de felicidade! De opulência! De
prestígio! Ouro e jóias!... A alegria! A riqueza! A força!...
— Como é
belo! — exclamaram as raparigas.
— Como é
belo! — disseram os pescadores.
E
Isabel, que o escutava estática, balbuciou, olhando-o::
— Oh!
Sim! E belo!...
— E
depois? — perguntou Raimão.
—
Depois, aos primeiros raios do sol, as mouras desaparecem, e os seus tesouros
apagam-se! Pobres encantadas, vão de novo para debaixo da terra guardar, á
sombra, a sua beleza e as suas jóias, donzelas, a alcachofra à fogueira. Nesta
noite tudo tem virtude, e o futuro •sabe-se por qualquer coisa! Deitem cinco
réis no lume!... deixar queimá-los bem! De madrugada., é dá-los a um pobre
pedinte, sem mais que estas palavras: “O teu nome, irmãozinho?” O nome do pobre
há de ser o do noivo da dama, que lhe dá a esmolinha do São João e depois, é os
bochechos! E as sortes no copo d’gua! E nadar de noite! E ir lavar a cara à
fonte para ficar bonito! E amar! E esperar! Viver!...
— Toca a
bailar! — gritaram os pescadores.
— Que
dança há de ser? — perguntaram as raparigas.
— A
feliz cadeia! A feliz cadeia, que é dança de feição. Rompam os pares!
Alcachofra ao lume!...
—
Alcachofra ao lume!
Os pares
formavam uns detrás dos outros, girando em redor da fogueira, dançando no fim
de cada volta, e mudando de par em seguida.
— Vivam
os pescadores de Lessa da Palmeira! Viva a noite de São João!
— Viva!
— Viva!
Roberto,
aproveitando a ocasião, afastou-se lentamente pela praia, e foi mais para perto
do mar, esperar Isabel no sítio ajustado. Estava a noite pesada, mas serena; a
brisa discreta da madrugada beijava as ondas, e fugia rápida. O ar estava morno
e débil, o céu sem nuvens, ainda que sem transparência. Todas as forças
naturais pareciam extinguir-se, e os espíritos participariam da mesma atonia,
se aquela não fosse a noite do ruído, da alegria, da esperança, a noite de São
João — noite que até as aves conhecem, porque ela acorda aos seus cânticos e
sorri aos seus amores! Ouviam-se apenas as vozes dos pescadores e das
raparigas, depois, a intervalos, ao longe, uma flauta executando modas do povo,
música não se sabe de onde, que o ar espalha! O orvalho da noite impregnava-se
de perfumes; a areia estremecia no aproximar da onda; os latidos surdos dos
cães da aldeia perdiam-se lentamente no espaço.
A pobre
mãe sentiu confranger-se-lhe o peito de íntima dor, ao aproximar-se de Roberto;
mas o mancebo, ao avistar um vulto de mulher, não se lembrou sequer que pudesse
ser outra senão Isabel, e exclamou fervorosamente:
—
Obrigado por ter vindo, Isabel! A minha alma precisava tanto revelar-lhe que
sentimentos lhe inspira!
A
senhora Ana, que ia baixando a fronte, ergueu-a para que seu filho a
conhecesse: Roberto balbuciou com voz trêmula:
— Quê!
Não és tu, Isabel? Então, é...
— Tua
mãe!
A morna
aragem, precursora das tempestades, pareceu nesse instante gemer nas ondas.
— Mas
por que motivo a encontro eu aqui, tão distante das fogueiras, perdida na
noite!
— Eu
devia perguntar-to a ti, se não soubesse o que aqui te trouxe!
— Pois
sabe...
— Tudo!
Ficaram
por algum tempo silenciosos ambos.
—
Roberto — disse a senhora Ana ao fim de instantes — esperavas encontrar Isabel,
e era tua mãe que te esperava! Não mintas; não tentes mentir-me. Estás-te
portando infamemente, porque insistes em amar Isabel? E Isabel é a mulher de
teu irmão!
— Devia
ser minha noiva; não mo disse já?
— E hoje
mulher de teu irmão! — replicou a senhora Ana, austeramente.
— Mas se
sinto, que, ao avistar estes sítios queridos e memoráveis, acordou de novo na
minha alma esse amor de criança, que o tempo adormecera?
A mãe
fixou os olhos nos dele, e disse-lhe com uma expressão de bondade e de
consolação infinita:
— Não
deves filho, permanecer aqui. Lembra-te da honra de teu irmão! Isabel não te
ama... Não... Foi ela quem me disse que lhe pediras uma entrevista para esta
noite...
—
Disse-lhe...
— Disse.
E eu prometi dissuardir-te dessa louca temeridade. e sosseguei-a, jurando-lhe
que há de reinar de novo nesta casa a tranqüilidade, que sempre tornou feliz o
nosso lar. Partirás esta madrugada, sim, Roberto? Peço-to eu!
—
Impossível!
—
Ordena-to tua mãe, Roberto! Mas...
— Nada
mais. uma afronta à honra de Isabel teimares nesse amor. Dirás, direi eu, que
os novos hábitos da tua existência te não deixavam viver aqui entre nós:
chamar-te-ão soberbo, talvez — quererás antes que te chamem ruim? Partirás?
—
Partirei, minha mãe!
Quando
voltaram para entre os grupos, que dançavam em redor das fogueiras, encontraram
já alguns dos pescadores a desamarrar as catraias.
— Que é
isso? — disse Roberto a Raimão. — Para a pesca já?
— Vão
fugir as estrelas; são mais que horas!...
— Um
favor, Raimão! Tenho neste momento um capricho, quero recordar-me das noites da
minha infância; empresta-me a tua catraia, e segue tu em alguma dos
companheiros. E um desafio que te proponho; arredado do mar há tantos anos,
quero ver se ele me conhece ainda; na madrugada se verá qual de nós recolhe
mais peixe!...
Os
pescadores romperam num grito de alegria:
— Viva
Roberto, o pescador!
Raimão
abraçou-o, chorando.
— Alma
de marinheiro! Há de ser sempre boa! Leva a catraia, leva! Guia-a sozinho, tu a
quem Deus guiou!
— Ao
mar! — exclamou Roberto.
Depois,
abraçando sua mãe, olhou para Isabel, dizendo com a voz tomada pelas lágrimas:
— Parto!
Bem vê!...
As
fogueiras continuaram ainda. Aos descantes da festa misturavam-se as vozes dos
pescadores, cantando, no mar. As catraias afastaram-se, em direções contrárias:
quando deixou de se avistar a de Roberto. Isabel abraçou-se à senhora Ana, e
ambas choraram em silêncio, orando. Uma idéia de susto as oprimia. A escuridão
é um espectro sem forma, que dispõe para crenças e para terrores: quem tem
medo, reza!... Ao ruído insolentemente alegre da festa confundia-se por
instantes o rumor dos soluços e suspiros. Para aquelas duas almas — da mãe e da
amante — cada hora que decorreu até a madrugada teve a imensidade. Pareciam
inspirar, aos que dançavam, um sentimento de susto vago, supersticioso, e, como
eles se arredavam, elas tinham sempre em redor de si um círculo de solidão...
Cada uma delas dizia à outra, palavras de que o eco lhe causava medo... Uma louca
aragem lhes trouxe ainda ao ouvido, frouxamente, uma voz que cantava, ao longe,
no mar. Abas estremeceram, no primeiro momento, e disseram sorrindo de
esperança:
— A voz
de Roberto...?
Mas,
ouviram apenas este nome, que as ondas pareceram repetir.
É o eco!
— disse a mãe, tremendo. — É aquele espião, que se esconde nos rochedos!
Ia
romper a aurora; as fogueiras extinguiam-se; os pares fatigados da noite
pareciam expirar com ela, à medida que se dissipavam no ar os perfumes, que ela
exala na sua urna... Avistaram então as duas mulheres, uma sombra ao longe, no
mar; a maré crescia.., crescia.., e a sombra vinha aproximando-se da praia. À
pálida claridade do crepúsculo elas puderam reconhecer a catraia de Roberto.
— A
catraia! Oh! A catraia!... — exclamaram ambas, com a alegria no olhar e o paraíso
na alma.
Mas o
barco vinha vogando à mercê das ondas, sem leme e sem barqueiro. Elas
olharam-no fixamente numa vista desesperada e fúnebre, como interrogando o mar.
Pouco depois, numa lancha que vinha da mesma direção, apareceram uns poucos
pescadores, conduzindo um cadáver: o cadáver de Roberto, que se atirara às
ondas!
—
Roberto! — gritaram as duas mulheres, como loucas! — Roberto!
O grito
perdeu-se nas brisas da madrugada.
— Morto!
— exclamou a mãe. — O meu filho! Morto! e... por mim!... Oh! E sobre aquela
cabana, em que devia erguer-se um palácio, teremos de erguer um túmulo!
A voz de
Raimão cantava ao longe...
Nota:
Júlio
César Machado: “Contos ao Luar”, publicados originalmente em 1861, extraídos da
edição de 1974, da Editora Três, da Coleção “Obras Imortais da nossa
Literatura”
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