AS
CINCO PANELAS DE OURO
Dona
Esmeralda Foz era filha de Dona Gertrudes Lemos que em Jataí-Estação muito fez
pelo espiritismo. Tidoca Lemos morreu desprevenido, Dona Gertrudes ficou
nervosa com a incerteza do destino que tivera a alma do marido. Daí o ter
entrado para sócia contribuinte do Centro Espírita Amigos de Jesus. Logo na
primeira reunião Tidoca apareceu pigarreando seco (velho cacoete dele), disse que estava bem, mandou lembranças para os amigos, recomendou insistentemente
à mulher que não deixasse de pagar os vinte mil-réis que ele morreu devendo ao
Tenente Euclides (orador oficial do Centro), falou nos deveres de amor e
caridade para com o próximo e se despediu pigarreando seco. Dona Gertrudes
virou espiritista fanática. Porém não pagou os vinte mil-réis ao Tenente
Euclides. O que foi um dos motivos do cisma havido no Amigos de Jesus
e imediata fundação do Companheiros
de Cristo com Dona Gertrudes no cargo de primeira-secretária.
Por essa
época Dona Esmeralda tinha seus dezesseis-dezessete anos e já por qualquer
coisa ria demais ou chorava demais. Ou ria depois chorava, chorava depois ria.
Diziam para ela: O Inacinho do Areão caiu do cavalo. Ela ia e ria que era um
despropósito. Acrescentavam: Bateu com a cabeça numa pedra, morreu. Ela ia e
desandava a chorar soluçado de cortar o coração. Dá uma boa médium, pensou Dona
Gertrudes. E levou a filha no Centro.
Até então
a médium preferida do Companheiros de Cristo era a filha do presidente Maestro Angiolini. Chamada
Celeste Aída. Logo
se estabeleceu uma
rivalidade tremenda. Porque Angiolini achava ruinzinhas as
comunicações feitas por intermédio de Esmeralda. Espiritismo é como música.
Precisa coração. O coração é que comanda. E a Esmeralda só tinha cabeça. Por seu lado
Dona Gertrudes atrapalhava
com apartes caçoistas
os discursos que
os espíritos ditavam para
Celeste Aída. A diretoria aí resolveu consultar Pai Jacob, protetor do Centro.
Um médium de pencinê
veio especialmente de
São Paulo. Pai
Jacob entrou nele
e decidiu a questão a favor da filha do presidente.
Dona Gertrudes protestou inflamada dizendo que a coisa lhe cheirava a tribofe. Esmeralda principiou a
chorar. Dona Gertrudes agarrou na mão dela, antes de sair deu uma gargalhada
satânica, gritou para Salvini: - Você, seu carcamano, quando nasceu te jogaram
duas vezes na parede: uma vez grudou, outra não! Esmeralda compreendeu, largou
de chorar e riu até a mãe dizer chega com dois beliscões.
Meses
depois Dona Gertrudes se mudou para Jataí-Vila e casou a filha com um moço
muito bom, Nicolau Foz, empregado da Luz e Força e oposicionista vermelho. Dias
depois morreu de susto. Tarde da noite explodiu perto da casa dela uma fábrica
de fogos. Dona Gertrudes foi encontrada já fria apertando contra o peito O
Triunfo na Vida Terrena pelo Magnetismo Pessoal do professor E. Bedlamite
de Columbus, Ohio, U.S.A. Morreu de susto.
A filha
sofreu muito. Gostava da mãe. E morta a mãe passou a gostar do único bem do
espólio: uma cachorrinha peluda.
Muito vagabunda mas
muito célebre. Tinha
sido presente de uma
comadre da de
cujus. Dona Gertrudes
a recebeu novinha
com dias apenas.
E já batizada
Goiabada. Nome horrível que Dona Gertrudes resolveu mudar. Consultou a
filha, a filha pediu um dia para pensar,
pensou e sugeriu dois a escolher: Florzinha e Violeta. Dona Gertrudes recusou,
passou em revista outros e afinal se decidiu por Dorotéia Cabral. Daí a
celebridade. Toda gente fez questão de conhecer Dorotéia Cabral. E Dona
Gertrudes explicava: - Os animais não são nossos irmãos inferiores? Pois então,
ué! Devem ter nome de gente! Por isso o genro se animou um dia
a observar: Se a cachorrinha tem
direito a nome de gente
tem direito a apelido. Dorotéia Cabral é muito comprido:
fica sendo Tetéia. Dona Gertrudes não discordou. Fez porém uma restrição: - Não
há dúvida. Tetéia está bem. Mas só na intimidade.
Enquanto crescia
o amor de
Dona Esmeralda (que
não tinha filhos)
pela Tetéia grandes sucessos modificavam a vida do país.
E Jataí-Vila (cidade, cabeça de comarca, mas sempre Jataí-Vila para distinguir
de Jataí-Estação onde passavam os trilhos da Boigiana) foi teatro de muitos e
variados acontecimentos. Com seus quatro mil e setecentos vizinhos há muitos
anos vivia empenhada em furiosa luta política: de um lado os partidários de
Zéquinha Silva desde cinco lustros chefe do situacionismo, de outro os do Major
Mourão (alentejano de nascimento) e seu braço direito Nicolau Foz. Aqueles eram
os perrepistas. Estes os oposicionistas. Luta local só. Os
antiperrepistas também pertenciam
incondicionalmente ao P.
R. P. Mas ao P. R. P. estadual,
ao governo. Nunca ao de Zequinha Silva. A ambição deles era constituir um dia
com sua gente o P. R. P de
Jataí-Vila. Obedeciam à orientação de um deputado que em
Jataí-Estação era situacionista, em Jataí-Vila oposicionista. E tecia seus
pauzinhos na Capital junto aos chefões para derrubar o tiranete de Jatai-Vila
que a oposição não se cansava de apontar como indigno dos nossos foros de
civilização e cultura.
A coisa
porém continuava no mesmo pé sem dar esperanças de modificação próxima. Até que
veio o
movimento revolucionário de
outubro de 1930.
Então principiou uma
emulação desesperada. Todas as provas iniludíveis de dedicação à causa
da legalidade (o que equivalia dizer
à causa sagrada
do Brasil unido)
foram dadas pelos
dois partidos. Zéquinha
Silva telegrafava
solidariedade aos Presidentes
da República e
do Estado, o
Major Mourão imediatamente fazia
o mesmo. Fazia mais: estendia essa solidariedade inabalável ao Ministro da
Guerra ao Ministro da Marinha, ao Presidente da C. D do P. R. P., ao Secretário
da Justiça e ao Chefe de Policia do Estado. E quando Zéquinha resolveu
organizar um batalhão patriótico a oposição anunciou a formação de dois:
infantaria e cavalaria. Porém Zéquinha Silva contava com maior
número de elementos.
Trinta e dois
sujeitos pegados à
força pelo Subdelegado Tolentino foram
convenientemente calçados e
seguiram logo sob
o comando do
cabo do destacamento. Este
levava uma carta do diretório para o Secretário da Justiça pedindo que os voluntários
de Jataí-Vila fossem aproveitados na faxina dos quartéis da Capital "para
sossego de suas respeitáveis famílias.
cujo patriotismo honra
sobremaneira as nossas
gloriosas tradições bandeirantes". Passados uns dias a Viúva Mané
Bindão (inventora e fabricante única de um doce chamado
"beija-me-devagar") recebeu carta do filho dizendo que a coisa em
Itararé estava bem preta. A Viúva Mané Bindão foi na casa do Zéquinha e
amaldiçoou a família Silva até a última geração. A oposição pulou nas ruas de
contentamento Pulou um dia só entretanto: o governo mandou perguntar para o
Major Mourão se os homens dele seguiam ou como era. O major respondeu
que estavam de
partida. Foi uma vergonha. O Afonso
Henriques. filho do major, afundou no mato com dois primos.
Antônio Vicente de Camargo Júnior, um dos chefes oposicionistas. declarou que
não criara filho para carne de canhão. E
assim todos. Até que Nicolau teve uma idéia. Três léguas
para o norte em São Benedito do Alecrim, nas divisas de Minas, havia
dois batalhões em
pé de guerra:
um paulista aquartelado
no Grupo Escolar Marechal Deodoro, outro mineiro no
Grupo Escolar Marechal Floriano. Os dois prédios ficavam na mesma rua. Mas seus
ocupantes trocavam gentilezas. Cada batalhão só esperava a hora de aderir ao
adversário. Pois então: era comunicar para o governo que o pessoal
oposicionista de Jataí-Vila iria reforçar a tropa de São Benedito do Alecrim. E
estava tudo arranjado.
Não
estava. O governo mandou ordem para os homens partirem sem demora para a
Capital. Aí seria resolvido o
destino deles. Que
remédio? O Major
Mourão recrutou três
matadores profissionais, dois ladrões de cavalos, um preto maluco que
pensava que era relógio e vivia no Largo da Matriz movendo os braços que nem
ponteiros, um surdo-mudo de nascença e um tal Chico Rosa mais conhecido por
Chico Perna-de-Pau. Os matadores e os ladrões custaram cem mil-réis por cabeça: quinhentos mil-réis que o major desembolsou
sem a mulher
saber. A Filarmônica Doutor
Quirino tocou o Hino Nacional, Antônio Vicente fez um discurso patriótico, os homens
subiram num caminhão, o Laudelino Pinto
do Centro Cultural gritou: "Que cada um traga uma orelha do Bernardes, são
os meus votos sinceros!", e toca para Jataí-Estação pegar o trem. A
Filarmônica em outro
caminhão e os
chefes oposicionistas num
torpedo foram escoltados.
- Assim a
gente tem a certeza de que os maganos embarcam - disse o major.
- Que não
desertam antes de chegar na estação - corroborou Nicolau.
- Eu
sapeco outro discurso neles quando o trem chegar - prometeu Antônio Vicente.
Seguiram
já a noite vinha descendo. Daí a vinte minutos estavam chegados. Estação
pequetita, encheram a plataforma. A Filarmônica iniciou imediatamente a Canção
do Soldado Paulista. E o major dava suas últimas instruções aos bravos de
Jataí-Vila quando o chefe da estação chegou todo transtornado.
- Seu
major!
Seu major
suspendeu as instruções, ficou esperando.
- Seu
major! Deu-se!
- O quê?
- A
coisa!
- Hein?
- A
coisa! O Washington! Não percebo, homem!
- A REVOLUÇÃO VENCEU!
- Estás
doido!
O chefe
da estação ficou possesso:
- Eu,
doido? O senhor é que está maluco! Se não é analfabeto leia isto!
Tirou do
bolso um papel, encostou na cara do major. O major pegou no papel, deu para
Nicolau ler. Nicolau leu:
- 5-0-9.
7-1-3. Centenas invertidas pelos cinco...
O chefe
deu um pulo.
- Não é
esse!
Arrancou
o joguinho das mãos do Nicolau, meteu no bolso, puxou outro papel, leu, deu
para Nicolau ler. Nicolau leu três vezes. Ia ler outra vez com os olhos cada
vez mais esbugalhados mas o major não deixou.
- Dize lá
do que se trata, vamos!
Nicolau
devolveu a cópia do telegrama para o chefe, o chefe saiu correndo para avisar
outros. Nicolau puxou o major e Antônio Vicente de lado e falou:
- A
revolução venceu no Rio! O Washington fugiu!
O major
rugiu:
- Lérias!
Aquilo é um homem, homem! Não sabe o que é fugir!
-
Telegrama oficial, seu major!
- Pois se
é oficial, a revolução não venceu! Telegrama oficial só pode ser do governo! O
governo está de pé!
Antônio
Vicente procurou chamar o major à razão. O maior teimou. Começaram a discutir.
O sino da estação anunciou a saída do trem de Engenheiro Abrunhosa: daí a
minutos estava em Jataí. Um vivório se ouviu longe. Cousa indistinta. Os três
abriram bem os ouvidos.
- Júlio!
- disse o major. - Que é que lhe dizia eu?
- Getúlio!
- disse Nicolau. Ouvi perfeitamente.
-
Escutem! suplicou Antônio Vicente.
O vivório
foi se chegando. Começou o foguetório também.
- Júlio!
- disse o major. - Não tem discussão!
-
Getúlio! - disse Nicolau. - Getúlio Vargas!
-
Esperem! - pediu Antônio Vicente.
Esperaram.
O foguetório não deixava os três perceberem bem o vivório. Mas de repente
juntinho deles explodiu com tanta violência um Viva o Doutor Getúlio Vargas que
os três até recuaram de susto. E Chico Perna-de-Pau repetiu o viva. O major
indignado ia gritar com o Chico mas os matadores profissionais e os ladrões de
cavalo sacaram das garruchas e deram de atirar para todos os lados. O major se
agachou atrás de um banco gritando:
- Não me
matem que eu sou português!
Chico
Perna-de-Pau perguntou:
- Quem é
que é português?
Antônio
Vicente subiu no banco e gritou desvairado:
- Abaixo
a plutocracia!
Os
voluntários de Jataí-Vila, esgotadas as munições, corresponderam:
-
Viva-a-a!
Antônio
Vicente tornou a gritar:
- Abaixo
os opressores do povo!
E os
voluntários de Jataí-Vila delirantes:
-
Viva-a-a!
A estação
já estava cheia de revolucionários. O trem chegou. Vivórios e mais vivórios. O
trem partiu. O major no meio do povo bradava:
- Que eu
sabia que vinha lá isso sabia! Mas, caramba rapazes, nunca pensei que viesse
já! Viva Jataí-Vila!
- Morra!
- berrou um mulato no ouvido do major. - Isto aqui não é Jataí-Vila!
O major
pediu muitas desculpas mas o mulato não queria desculpas. Queria dez puas para beber
à saúde do Isidoro. E exigia um viva ao Isidoro.
- Viva -
disse o major. - Toma lá cinco mil-réis que dez não tenho.
O Nicolau
conferenciava na sala do telegrafista com o Doutor Querido que desde a
monarquia era oposicionista na zona.
- Está
feito!
Disse e
saiu à procura dos companheiros. Arrancou o major das mãos de um italiano
recém-chegado da Penitenciária que já obrigara o major a dar três morras (Morra
Mussolini, Morra Matarazzo e Morra D'Annunzio), interrompeu um discurso de
Antônio Vicente sobre a Revolução Francesa, arrebanhou com promessas os músicos
e os voluntários, saiu com eles da estação. Em dois tempos conseguiu convencer
todos a voltar imediatamente para Jataí-Vila tomar conta do governo.
Com uma
provisão de foguetes e bombas de parede chisparam na estrada. E entraram em Jataí-Vila de escapamento aberto. No
caminhão da frente os voluntários soltavam foguetes e jogavam bombas. A
seguir no torpedo de capota descida
os chefes da oposição vivavam a democracia brasileira e gritavam para os
que abriam bocas de espanto nas calçadas e janelas: - Vencemos! Por último os
músicos tocavam o Hino a João Pessoa. Foram direito para o Largo da Matriz.
Fez-se um ajuntamento de uns trinta sujeitos. Antônio Vicente arengou. Enquanto
ele arengava o coronel chamou um negrinho:
- Corre
lá em casa e dize a Emília que vencemos!
O
negrinho voltou logo com a Emília. E a Emília louca de alegria:
- Já
telegrafaste ao Senhor Doutor Washington com as nossas felicitações?
O major
explicou. E ela rebentou:
- Tu mandas
dizer-me que vencemos eu penso que venceram os legalistas! Agora se é para perder
de uma vez a vergonha viva esse tal de Getúlio e mais a cambada toda.
Deu meia
volta e se retirou muito digna. Deixando o major frio. Mas daí a pouco chegou
fardado o Coronel Cerqueira,
veterano do Paraguai,
com o peito
cheio de medalhas,
imensamente comovido, derrubando lágrimas. Abraçou o major dizendo:
- Um
abraço, meu bravo! Conte comigo! Quando é que chega o Imperador?
O major
ficou sem
saber o que
responder, a filha
do Coronel Cerqueira
fez uns sinais desesperados, o major compreendeu,
respondeu:
- O
Imperador? Ah, sim! Sua Majestade não demora está aí para nossa felicidade! Eu
aviso o dia exato da chegada! E agora vá para casa que a noite está fria!
O coronel
se retirou pelo braço da filha. Antônio Vicente alheio ao que se passava em
torno continuava arengando. Nicolau
mandava recados. E
ia chegando gente,
iam chegando moleques, todos os
moleques de Jataí-Vila. Nicolau contou por alto os presentes.
Cassou a
palavra de Antônio Vicente (Me deixa ao menos meter a ronca na Bastilha! Eu
ainda não falei na Bastilha!) e gritou:
- Quem
for brasileiro que me acompanhe!
Houve uma
indecisão. Porém o Lázaro Turco da Verdadeira Loja Síria falou:
- Como é,
pessoal? Patriotismo!
E o
pessoal acompanhou. Menos o Janjão porteiro do Grupo:
-
Enquanto eu não ler isso no Correio Paulistano eu não acredito mesmo!
Ocupada a
cadeia (o delegado desaparecera vestido de mulher, disseram muitos que juraram ter
visto), os revolucionários soltaram dois negros desordeiros, um leproso e a
Mariazinha Louca que encontraram acorrentada anunciando para breve o Juízo
Final. Nicolau não queria libertar Mariazinha antes de tirar uma fotografia
para mostrar os métodos inquisitoriais dos déspotas vencidos. Mas Antônio
Vicente propôs coisa melhor:
- A gente
solta a peste e no lugar dela acorrenta o Zéquinha Silva para ele ver se é bom.
A casa do
Zéquinha Silva estava com a porta e as janelas de pau cerradas quando o grupo parou em
frente dando morras.
Vai ver que
já abriu o
chambre, pensou Nicolau.
Bateram, ninguém veio abrir. Mas logo depois os gritos de Arromba!
Arromba! fizeram com que uma das janelas se abrisse e espiasse uma pretinha de
olho assustado. Antônio Vicente mandou:
- Vá
chamar seu patrão!
- Sim
senhor!
Demorou
um instante, voltou.
- Dona
Trindade manda dizer que o patrão não pode vir não senhor porque a filha dele Dona
Isolina está tendo filho.
-
Mentira! - berrou Nicolau. Diga pra ele que venha senão nós arrombamos a porta
e fazemos uma gravata nele!
A
negrinha foi dizer. E Nicolau não
tinha acabado de explicar para o major o que era uma gravata gaúcha
quando a parteira Dona Gegé apareceu na janela.
- Vão
embora, seus vagabundos, seus covardes! A criança nem bem nasceu e vocês já
querem estragar a vida dela! Seus assassinos!
Houve um
silêncio. E no silêncio se levantou a voz amável do major:
- Ah?
Nasceu mesmo? Pensamos que fosse broma! É homem ou mulher?
- Não é
de sua conta! - disse Dona Gegê e bateu a janela na cara dos patriotas.
Antônio
Vicente falou:
- E
agora?
O
entusiasmo tinha esfriado. O major arriscou:
- Vamos
todos para as nossas casas que o dia já foi muito bem ganho.
- Vão
vocês - falou Nicolau. - Eu não durmo esta noite.
Não
dormiu. Com três ou quatro mais dedicados passou a noite inteira tomando
providências. E o major acordou no outro
dia presidente da junta provisória de Jataí-Vila. O que reconciliou Dona Emília
com a revolução:
- Assim
está conforme! Os valores pra frente, é o que se quer!
A junta
Mourão-Nicolau-Vicente tomou conta de Jataí-Vila dois dias com poderes
discricionários. Na manhã do
terceiro chegou o
delegado mandado de
São Paulo: Doutor
Santos Dumont Salomão. A
junta foi destituída
e nomeado prefeito
o agente da
Ford, Idílio Madeira. Despeitadíssimo o
pessoal da ex-junta
organizou o Bloco
dos Destemidos ou
Os 18 de Copacabana. O Doutor Salomão se viu meio
fraco, procurou se chegar ao Zéquinha. Mandou dizer para
ele que quando
precisasse de garantias
de vida era
só dar uma
telefonada. Preparando terreno para
uma aliança no
momento oportuno. Nicolau
ficou fulo com
tais manobras. Telegrafou para São Paulo protestando mas São Paulo não
deu resposta. Recorreu então ao mimeógrafo da Papelaria Humaitá. Todos os dias
Jataí-Vila se enchia de manifestos xingando os usurpadores adventícios: Doutor
Santos Dumont Salomão ("filho de mascate sírio com mulata
sem-vergonha") e Idílio Madeira ("brasileiro, sim, mas natural da
terra de Calabar"). O Doutor Salomão reagiu conservando 24 horas no xadrez
o Afonso Henriques Mourão acusado de ter desencaminhado uma menor três anos
antes. E organizou o Bloco dos Animosos ou Os Mártires da Clevelândia. Os
Mártires se reuniram à noitinha no Largo da Matriz e quando se sentiam de
fato Animosos marchavam
para a casa
do prefeito berrando:
Nós queremos Madeira! E merecem,
escreveu Nicolau num de seus manifestos.
Então vendo
as coisas assim
malparadas o vigário resolveu
pacificar os espíritos.
A matriz estava sendo reformada.
Engrandecida até com um altar dedicado a Santa Joana d'Arc.
A primeira
quermesse tinha rendido
pouco apesar dos
esforços da comissão
presidida por Zéquinha Silva.
Padre Zoroastro pensava
realizar outra com
umas dez barraquinhas pelo menos. Bonito pretexto para a paz.
Padre
Zoroastro foi falar com o Doutor Salomão. Provou para ele a vantagem de uma
concórdia e a oportunidade que
para ela oferecia
uma obra de
religião e caridade.
Aparentemente ninguém cedia, ninguém dava parte de fraco. Sobrevindo um
motivo de ordem superior o acordo se fazia para garantir à quermesse o êxito
que não podia ter se realizada num ambiente de ódios. Padre Zoroastro sabia
convencer. E tinha um modo de falar irresistível: falava baixinho, devagarzinho,
perguntava: não é? Se encontrava resistência ele mesmo respondia: é, não ligava
às objeções nem estudava o que os outros diziam, continuava falando,
caceteando, embalando de mansinho, os outros concordavam cochilando já. Doutor
Salomão não fez exceção e disse:
- Pois
sim.
Padre
Zoroastro saiu da delegacia, foi para o escritório da Luz e Força. Mas não
contou para o Nicolau que já tinha estado com o Doutor Salomão. Repetiu só o
que havido falado pouco antes. Naquele tonzinho sumido de confessionário.
Sempre igual, sempre igual.
- Escute,
Padre Zoroastro! - exclamava de vez em quando Nicolau.
Sem
acrescentar palavra, Padre Zoroastro tinha lá falar, não tinha ido ouvir. Isto
é: tinha ido ouvir o sim, só o sim. Enquanto esperava a hora do sim falava para
impedir o não.
Nicolau
disse o sim quando - depois do último não é? é - Padre Zoroastro deu licença
para ele dar um
pio.
E o
acordo se fez.
O Doutor Salomão
continuava na delegacia
e o Idílio
na prefeitura prestigiados
daí em diante pelos 18 de Copacabana.
Sob duas
únicas condições: a
prefeitura não dava
andamento aos executivos
por impostos atrasados
que tinha em juízo contra Nicolau e a delegacia deixava sossegado o Chalé
Felizardo de que
era proprietário um irmão do major.
Acordo
que não agradou nada alguns dos 18 de Copacabana. No Bar Ideal um descontente
chegou a
falar em traição na cara de Nicolau.
Nicolau
ficou vermelho. E tratou de mudar de assunto. O descontente (cuja brutalidade
como
centro-médio
do Águia de Haia F. C. era famosa) percebeu a fraqueza do chefe, tornou a falar
em traição e de mau começou a acariciar o gargalo da garrafa de cerveja Tip-Top. Nicolau
empalideceu,
balbuciou uma desculpa boba, caiu na rua. Então ouviu uma risada irritante.
Irritou-se.
Seguiu para a delegacia e lá exigiu a remessa de um bilhete azul para o
descontente que era
fiscal do serviço contra a broca do café. O Doutor Salomão porém não concordou.
E Nicolau
foi para casa
se remoendo de
raiva. De tanta
assobiou uma hora
inteirinha o Miserere,
do Trovador. Não
assobiou mais porque Dona Esmeralda veio chamar para dormir.
- Vá
você. Eu vou depois.
- Logo
hoje que eu estou tão nervosa, Nicolau! Você sabe que eu não durmo sozinha
quando
estou
nervosa!
- Então
não dorme nunca. Nervosa por quê?
- Tetéia
está passando muito mal.
- Que é
que tem a excelentíssima?
- Não
sei: uns tremores, uns vômitos, umas coisas esquisitas.
Foram ver
a Dorotéia Cabral. Nicolau olhou bem para ela, depois disse:
- Está
agonizando.
Dona
Esmeralda pôs as mãos na cabeça e se encostou no marido chorando.
- Ora,
Esmeralda! Que é que significa isso? Não se pode mais brincar então? Você não
conhece a anedota
do português? Pensei que você conhecia. Por isso é que falei assim.
Esmeralda
com a cabeça no peito de Nicolau engoliu umas lágrimas e perguntou entre dois
soluços
horríveis:
- Que
anedota, hein?
Nicolau
contou fazendo cafuné na mulher:
- Eu acho
que já contei pra você. Não se lembra? Aquele português que estava muito doente
e com um
medo danado de morrer. Então para levantar o ânimo dele chamaram um grande
amigo que ele
tinha. O amigo veio, chegou perto da cama. sorriu para o doente e disse com jeito
de carinho:
Agonizantezinho, hem?
Esmeralda
se desprendeu do marido.
- Essa é
formidável!
E rompeu
numa gargalhada nervosa.
- Não ria
tanto, Esmeralda! Faz mal pra você'.
Ela
queria dizer que não fazia, mas não podia, se sacudia toda de riso. Nicolau
então pegou na Dorotéia
Cabral com muito nojo e levou para a cozinha. Deitada de lado perto do fogão
Dorotéia Cabral sacudiu
as patas, vomitou,
jogou a cabeça para
trás, morreu. Nicolau voltou
para o quarto.
- Morreu,
coitada.
Esmeralda
pranteou a morte de Dorotéia Cabral (Ah minha mãe, minha mãe! dizia) até cair
de cansaço
nos braços de Nicolau.
- Vamos
dormir para esquecer este dia. Dia mais desgraçado!
Foram
dormir.
- Acenda
a vela que no escuro eu não durmo. Nicolau acendeu a vela, se deitou encolhido,
cobriu a
cabeça com o lençol.
- Não
cubra a cabeça assim que eu fico com medo.
- Feche
os olhos.
- Não
posso.
Nicolau deu
um suspiro, puxou
o lençol para
baixo, enterrou a
cara no travesseiro. Dona Esmeralda
virava para a direita, dava com a chama da vela, virava para a esquerda. não
achava jeito, se
impacientava.
-
Nicolau! Passa a vela pro seu lado, faz favor!
Nicolau
pegou no castiçal, pôs no criado-mudo dele. Sem dizer palavra. Tornou a meter a
cara no
travesseiro. Fechou os olhos.
Aí viu a
chama da vela. Apertou bem os olhos. A chama foi diminuindo, diminuindo.
morreu. O
relógio da matriz bateu horas. Dona Esmeralda contou: um, dois. E
acrescentou: feijão com
arroz. Continuou:
três, quatro feijão
no prato. Está
errado. Devia ser:
uma, duas. Hora
é feminino.
O professor da Escola 15 de Novembro, Seu Mesquita, que sujeito engraçado. Que horas
são? Meio-dia e meio. Ó ignorância quadrúpeda!. Meio-dia e meio quer dizer seis
horas da tarde:
meio-dia mais meio dia. Meio-dia e meia é que você quer dizer, seu idiota.
Quando o bispo de
Samburá foi visitar a escola Seu Mesquita se atrapalhou, gritou: - Viva o
senhor doutor bispo! E
a meninada jogou pétalas de rosa.
Padre
Dito quase estourou de rir. Que homem bom. Não quis ser bispo. Dava tudo para
os órfãos.
Morreu a cavalo. Vinha do sítio. Teve urna síncope, caiu pra frente mas não
caiu do cavalo. Entrou
na cidade assim.
Abraçando o pescoço
do cavalo. E
o cavalo andava devagarzinho
para não derrubar Padre Dito. Milagre verdadeiro. Aquele sim: era um santo.
Está enterrado -
onde é que
está enterrado mesmo?
- está enterrado
aqui mesmo. E
Dorotéia pobrezinha?
A gente enterra no quintal. Depois planta umas flores. Não precisa cruz. Padre
Dito parece
que chegou a conhecer Tetéia? Chegou. Ele morreu quando a torre da matriz caiu.
Era um santo
mesmo. Gostava muito de jardinar. E que jardim bonito. Tem jasmim, tem perpétua, tem
cravo-de-defunto, tem camélia. Camélia é flor de muita estimação mas só no pé.
No vaso perde
muito. Amarelece. Fica bom um pé de camélia na sepultura de Tetéia. Que diabo.
A modo que vem
gente. E olhe que vem mesmo. Bom dia, minha filha. A benção, Padre Dito. Que é
que você está
fazendo no meu jardim, Esmeralda? Estou escolhendo uma planta bonita para
plantar na
sepultura de Dorotéia Cabral. Morreu? Morreu hoje. Mas isso é pecado, minha
filha. Não sabia.
Deus não fez as flores para enfeitarem sepulturas de animais. Não sabia:
desculpe. Deus fez as
flores para enfeitarem os altares das igrejas. Eu vou enfeitar um, então. Diga
antes como vão as
obras da matriz. Vão bem, muito obrigado, muito obrigado. Não tenha medo de
mim, Esmeralda.
Tal seria, Padre Dito. Senta aqui neste banco que eu quero contar um segredo
pra você. Às
ordens, Padre Dito. Você conhece meu túmulo? Conheço, sim senhor. No meu túmulo tem cinco
panelas cheinhas de ouro. Sim senhor, Padre Dito. Você vá lá, desenterre as
panelas e dê para
a comissão das obras que o ouro é para acabar com a reforma da matriz que já
está demorando
muito. Eu vou hoje mesmo, Padre Dito.
Vá com Deus, minha
filha. E a Virgem Maria,
Padre Dito. Deixa te dar um beijo minha filha. O senhor disse um, Padre Dito.
Eu não sou o Padre
Dito. Me larga que eu
grito. Eu sou o Anticristo. Eu grito, eu grito. Gritou. Nicolau acordou.
- Que é
isso, minha filha?
- Não me
chame de minha filha! Onde é que eu estou? Ai, eu morro com esta aflição! Não
se
encoste
em mim! Não se encoste em mim! Ah minha mãe, minha mãe!
A aflição
só passou com água de flor de laranja tomada à força. Então Dona Esmeralda
sorriu, beijou
muito o marido e contou o sonho.
- Ele
disse cinco panelas só? Você tem certeza?
- Cinco: me
lembro perfeitamente.
- Sei.
Ele não disse que espécie de moedas era? Libras esterlinas por exemplo? Ou
dólares?
Tem
dólares de ouro se não me engano...
- Isso
ele não disse.
Nicolau
desistiu de dormir o resto da madrugada. Preparou café forte, bebeu duas
xícaras, foi
para a
sala da frente, se estendeu no canapé, deu de fumar. Pensando.
-
Esmeralda! Você ainda está acordada?
- Que é?
- Você
acredita em sonhos?
-
Acredito sim.
- Está
bem. Veja se dorme.
De barriga para o ar imaginava tão depressa, tão grandiosamente, que lutava contra a imaginação.
Deus existe. Se existe. A justiça divina não falha. E vem mais depressa do que
se pensa.
Dormiu triste e humilhado e acordou rico. Primeiro pagava os impostos. Não precisava mais de esmolas. Depois São Paulo. Aplicava o cobre bem aplicado. Depois Rio Depois Europa.
Não. Estados Unidos. Conhecer aquele colosso. Pára, imaginação. O dinheiro é
para as obras da
matriz. Olhe o castigo do céu. Mas não é justo isso. Quem tem o segredo do
tesouro é dono do
tesouro. Depois não havia perigo. Ia de noite no cemitério e desenterrava a
dinheirama. Pára,
imaginação. O Crispim zelador já queimou uma madrugada os dois polacos da
Colônia Sobieski que
queriam avançar nos
florões de bronze
dos túmulos. Do Padre Dito mesmo. Subornar
também não adianta. Quer dizer: é impossível. Melhor é revelar o segredo. Falar
com Padre Zoroastro e revelar não: vender o segredo.
Pára, imaginação. Padre Zoroastro não acredita nessas coisas. Homem, arranjava
um capanga, matava o Crispim e pronto. Pára, excomungada.
Bobagem. Aquele retrato ali no Diário é da Greta Garbo. Ô boa. Onde será
que ela mora? Pára, sem-vergonha, cachorra, desgraçada. E o Zéquinha Silva presidente
da comissão?
Desaforo. É preciso arranjar outro presidente, outro tesoureiro: ele. Ai está.
Regime novo:
gente nova.
E o cobre
com o tesoureiro.
- Você já
está acordada Esmeralda?
- Eu não
dormi.
- Que
maçada! Vamos enterrar a excelentíssima?
- Enterre
você sozinho. Você sabe que eu não gosto de ver enterro.
Dorotéia
Cabral foi sepultada dentro de uma lata de gasolina e perto de um mamoeiro.
Nicolau tomou
mais duas xícaras de café, se arranjou e saiu. Foi para o escritório da Luz e
Força. Não parava
sentado. Também não parava em pé. O gerente estranhou tanto nervosismo.
Perguntou:
- Que é
que há?
- Osvaldo
Aranha. Isto é. desculpe, nada. Dormi mal esta noite. A Dorotéia Cabral morreu.
- Não
diga! Dona Esmeralda deve ter ficado bem triste?
- Ficou.
Está doente até. Se me der licença eu vou ver como é que ela vai indo.
Padre
Zoroastro não estava em casa. Nicolau ficou indeciso sem saber se devia ou não
procurá-lo na
matriz. Talvez fosse melhor conversar num lugar mais discreto. Porém a coisa
era urgente. Era. Ia.
Não ia. Começou a andar. Foi andando. Foi. De repente apressou o passo e tomou
o caminho
do cemitério.
Encontrou
Crispim chupando num pito de barro perto do portão, ouvindo as queixas de um
coveiro
despedido por não ter mentalidade revolucionária.
- Que é
que vem fazer aqui, Seu Nicolau? Morte em casa, ainda que mal pergunte?
- É.
Morreu a Dorotéia Cabral. Mas não isso não.
- Morreu?
De quê?
- Não
sei. Doença de cachorro.
O túmulo
do Padre Dito era logo na entrada. Olhou enviesado para ele.
- Estou
pensando em mandar fazer um túmulo pra minha sogra.
Foi ver a
sepultura da sogra. Era lá no fundo. Estavam abrindo uma cova perto.
- Quem é
que vai ser enterrado?
- O
Bastião.
- O
Bastião da Filarmônica?
- Não. O
pegador de cachorro.
- É o
mesmo.
-
Terceiro cachaceiro que a gente enterra este mês.
Deu uns
passos em torno
da sepultura da
sogra para fingir que
tomava a medida.
E veio voltando.
Bem devagarzinho. Olhando os túmulos. Aqui
jaz o Doutor Manuel Bacalhau. Esse também
morreu de cachaça. A memória de Dona Iracema Vaz de Castro Soares. Pra
quê dona agora?
Passou a vida toda na cozinha. Viandante,
pára! Aqui repousam os restos mortais de Monsenhor
Benedito Moura.
- Então,
Crispim, não vieram mais roubar os bronzes do túmulo, não?
- Que
esperança! Eu tenho sono leve e pontaria certeira!
- Sei...
De cada
lado do túmulo tinha um canteirinho de cravos. O anjo de mármore jogava flores
sobre a lousa.
Já tinha jogado cinco. Faltava ainda jogar três.
- O
caixão está debaixo da terra?
- O
senhor não esteve no enterro, Seu Nicolau? Está no gavetão. Debaixo da terra
está Nhá
Belarmina.
Faz uns vinte anos. O túmulo foi feito por Padre Dito quando muito uns dois
meses
antes de
morrer.
- Tem
razão. Não me lembrava.
Túmulo
sólido, pesado. Gavetão duro de abrir. Tampa bem encaixada. Nem se perceberia
que era tampa
se não fosse o argolão de bronze.
-
Monsenhor Benedito de Moura. Homem bom. Um santo.
- Que
dúvida! Cada vez que vinha aqui arranjar o jardinzinho...
- Que
jardinzinho?
-
Ué! O jardinzinho que tinha! Antes do túmulo só tinha um jardinzinho e uma
cruz no meio.
Desse
jardinzinho é que Padre Dito cuidava todas as semanas que Deus dava. Quando
podia
ajudava
ele. E ele já sabe: me...
Nicolau
disse de repente:
- Até
outro dia, Crispim!
Não podia
mais. Se ficava mais um minuto se traía contava tudo. Mas meu Deus do céu, como
é difícil a
gente guardar um segredo assim dentro da gente. Hoje mesmo precisava resolver
tudo. Senão não
agüentava: morria de aflição. Agora é ir almoçar que já são horas. Nem se
discute: Padre
Dito com a desculpa de arranjar a sepultura da velha o que fazia era enterrar
ouro e mais ouro, o
filho da m...
- Está
falando sozinho, rapaz?
- Hein?
Ah sim! Estava fazendo uns cálculos. Estou com muita pressa. Lembranças em
casa.
Passar
bem, Abílio. Apareça.
Depois do
almoço mandou Dona Esmeralda dizer para o major e o Antônio Vicente que estava doente
sem poder sair de casa mas que queria muito conversar com eles. Eles que
viessem logo. E
na reunião convenceu os companheiros políticos de que era uma infâmia a
permanência de
perrepistas na comissão das obras da matriz. Era preciso organizar outra com o
major na presidência
e ele Nicolau feito tesoureiro.
Assentado
isso Dona Esmeralda foi buscar Padre Zoroastro. Padre Zoroastro foi dizendo que
sim com a
cabeça mas na hora de resolver a coisa falou:
- Está
tudo muito certo. Porém não pode ser.
- Por que
que não pode ser?
- Não
pode ser porque Zéquinha Silva é pessoa - não é - de muita confiança do bispo.
É.
E não
permitiu mais que Nicolau abrisse a boca. Não é? é, os amigos bem compreendiam
a
situação.
não é? é, apertou a mão dos três, foi-se. Botando Nicolau no auge da
indignação.
Começou a
injuriar Padre Zoroastro, a falar o diabo do bispo, a dizer coisas de Zéquinha
Silva, da filha
de Zéquinha Silva. Insinuou mesmo que entre Dona Isolina e Padre Zoroastro
havia grossa
patifaria. Então o major saiu de seu silêncio espantado:
- Mas
afinal de contas, Nicolauzito dos meus pecados, o caso não tem assim tanta
importância. Não se
trata de cargos políticos. São cargos - como direi - são cargos... técnicos!
- Olha a
grande besteira!
De seu
lado Antônio Vicente não percebia também a causa de tanto ódio. Está claro que
seria melhor
arranjar outra comissão mas o bispo não querendo não valia a pena brigar com o
bispo por tão
pouco.
- Eu acho
assim. Com saias a gente não briga que saí perdendo na certa.
Nicolau
ia e vinha na sala bufando. Tapava os ouvidos quando os outros falavam, dava
murros
na
parede, dizia palavrões. E por fim estourou:
- Vocês
querem saber o que há, não é verdade? Vocês estão cheirando qualquer segredo,
não
é isso?
Pois têm toda a razão: há um segredo! Eu conto. Não tenham medo não!
Contou à
moda dele. E porque os outros assumiram uns ares incrédulos, até caçoistas,
contou,
gritou
duas, três, quatro vezes o sonho da mulher.
- Caramba,
carambolas! - disse o major. - É muito capaz de ser verdade mesmo! E olhem que as ervas
são muitas!
- Mas
quatro quintas partes são pro Nicolau - disse Antônio Vicente com um jeitinho
malandro.
- Quase
tudo é pro Nicolau! E o resto pra matriz!
-
Naturalmente! - disse Nicolau.
O major
coçou a nuca, fechou os olhos, pensou, depois falou:
- Mas o
nosso Nicolau tem que ser cordato, tem que ser camarada. Que diabo! A gente
pode
entrar aí
num entendimentozinho... Hein? Que e que diz a isso o nosso amigo?
Nicolau
não disse nada. E começou a andar de novo pisando duro. Houve um silêncio
cacete.
Antônio
Vicente acabou com ele:
-
Talvez... Eu também penso assim... A bolada é grande, dá para satisfazer
todos... Você não
acha,
Nicolau?
- Digam
com franqueza! Vamos! Desembuchem!
O que vocês querem é ganhar no negócio,
levar sua
vantagenzinha, não é?
Os dois
tentaram protestar mas Nicolau cortou a palavra deles:
-
Pois muito bem! Eu já esperava isso! Quanto é que vocês querem? Mas fiquem desde já
sabendo
que da minha parte eu não cedo um tusta, ouviram bem? Agora na que é pras obras
da matriz
podem avançar à vontade!
O acordo
custou. Mais de uma vez Antônio Vicente pegou no chapéu e ofendido ameaçou se
retirar.
O major porém não deixava.
-
Senta-te aí, homem! Não saias que te arrependes logo!
E foi ele
que disposto a não perder o negócio forçou Nicolau a se contentar com sessenta
por
cento. Ele
e Antônio Vicente
se comprometiam a
auxiliar o amigo
em qualquer terreno recebendo
cada um quinze. Os dez restantes seriam para as obras da matriz.
- Está
bem. Mas não está de acordo com a vontade de Padre Dito.
-
Deixa-te de bobagens, homem! Tu modificas o sonho e acabou-se! Quem é que vai
provar que o padre
disse coisa diversa à tua patroa? Olhe que até me acode um trocadilho bem
feliz: fica o dito do
Padre Dito por não dito e pronto! Otimíssimo, hem? Não há nada como um bom
negócio para pôr
a gente alegre! Eu até sou capaz de pagar uma cervejinha!
Nicolau recusou.
E despediu os
amigos. Precisava de
sossego para estabelecer
um plano seguro a
ser executado sem perda de tempo. Pensou o resto do dia, pensou parte da noite
e na manhã
seguinte combinou a coisa com os sócios.
Os 18 de
Copacabana foram convocados para as 19 horas em casa do major. Compareceram dez. Nicolau
arranjou mais uns
malandros e marcharam
todos incorporados para
casa de Zéquinha
Silva. A fim de exigir a renúncia coletiva da comissão. Ou ao menos a do
presidente e tesoureiro
que era o genro do presidente. Mas Zéquinha Silva mandou dizer que não recebia ninguém.
E quando a coisa já estava quente chegaram Padre Zoroastro, o Doutor Salomão e
o Prefeito
Idílio. Discutiram na rua mais de meia hora. Afinal os 18 de Copacabana
concordaram em que no
dia seguinte haveria uma reunião na Câmara Municipal a fim de se resolver com calma e
definitivamente o assunto,
presentes as autoridades, interessados e
pessoas conspícuas
de Jataí-Vila. Concordaram a muque (Paulista não tem ânimo bélico! costumava afirmar o
Prefeito Idílio) porque o Doutor Salomão mandou chamar o destacamento.
Nicolau
pensou a noite toda, gastou a manhã limpando o revólver, encheu o tambor, pôs
outras balas no
bolso, beijou a mulher aflita, respondeu carrancudo ao sorriso da vizinha sua
comadre, tomou a
Rua Siqueira Campos (antiga Júlio Prestes), atravessou o Largo Juarez Távora
(antigo de São
Paulo), deu um
esbarrão distraído no
Solicitador Raimundo de Matos, não
pediu desculpa,
também não ouviu o palavrão do solicitador, passou pelo Correio sem perguntar
se havia
carta, entrou na Câmara Municipal com a braguilha da calça aberta.
- Abotoa
aí! - disse o major.
A sala
das sessões já estava apinhada. Padre Zoroastro na presidência explicou os
fins da
reunião e
deu a palavra para Antônio Vicente. Este falou:
- Os que
como nós costumam buscar no passado os ensinamentos para o presente sabem que na Idade
Média várias expedições
armadas chamadas Cruzadas
deixaram a Europa
para arrancar
Jerusalém das garras sacrílegas dos muçulmanos!
- Que é
que nós temos com isso? - perguntou o genro de Zéquinha Silva.
- Muita
coisa! Vossa Excelência não me deixou terminar o paralelo que pretendo esboçar!
Com efeito,
meus senhores, ao grito de Deus o quer! os cristãos do Ocidente mais de uma vez
se levantaram
de armas nas mãos para expulsar da Cidade Santa os infiéis do Oriente! Pois
bem! Nós, os
fundadores da República Nova, também nos levantamos ao grito de Revolução o
quer! para
exigir que os membros da atual comissão das obras da matriz, infiéis de 24 de
Outubro, sejam
destituídos e imediatamente substituídos pelos fiéis de Copacabana, pelos
heróis...
Padre
Zoroastro interrompeu:
- Eu acho
que a discussão deve ser curta não é? - e se cingir aos fatos. É. Devemos
economizar nosso
tempo.
- Também
acho, excelentíssimo senhor presidente desta augusta assembléia! E é por
isso...
- O que o
Senhor Antônio Vicente pede é a substituição da comissão atual. Não é? E funda
seu pedido no
fato do Senhor
José Silva e
demais membros da
referida comissão não
serem revolucionários.
Pois então. Já estamos cientes. E eu vou dar a palavra ao Senhor José Silva para
dizer o que julgar conveniente a respeito. Fica bem assim. Não é? Tem a palavra
o Senhor José
Silva.
Zéquinha Silva
principiou dizendo que
desconhecia revolucionários em
Jataí-Vila a não
ser alguns de
última hora. Colocava pois a questão em outro terreno. Achava que se devia
somente indagar
se a atual comissão era ou não composta de gente trabalhadeira e honesta.
Porque ser revolucionário
só não adianta.
- Eu sou
produto do meu trabalho honrado - gritou o major.
- Como é
mesmo? - perguntaram.
- Ficam
proibidos os apartes -~ falou Padre Zoroastro. - Não é melhor? Continue, Seu
Zéquinha.
Zéquinha
provou documentadamente que a comissão presidida por ele sempre se houve com
diligência
e probidade. Em todo o caso desistia, por si e pelo genro, de continuar nela se
a
maioria
dos presentes quisesse. Mesmo porque confiança não se impõe.
Padre
Zoroastro disse que era melhor recolher logo o voto dos presentes. Os presentes
(com
exceção
do major, Antônio Vicente e Nicolau que queria a palavra para uma explicação
pessoal) concordaram. E
Padre Zoroastro falou
que antes de
proceder à votação
desejava ler para governo
de todos uma carta do bispo de Samburá. Na carta do bispo dizia que, caso fosse destituída
a comissão atual que lhe merecia a mais absoluta confiança, não autorizaria
outra que se
formasse a dirigir as obras da matriz e suspenderia estas até melhores tempos.
- Ah! É
assim? - berrou Nicolau. - O senhor, Padre Zoroastro, quer fazer pressão? O
senhor se engana!
Não estamos mais sob o domínio do perrepismo!
E a
confusão se fez com injúrias pesadas. Mas Padre Zoroastro ameaçou se retirar e
conseguiu assim
restabelecer a calma. Então disse:
- Senhor
Nicolau Foz, saiba que eu não fiz mais do que cumprir o meu dever de pároco
lendo a carta do
excelentíssimo senhor bispo desta diocese. Não é?
-
Perfeitamente! - apoiaram.
- Mas se
o senhor tem algum esclarecimento importante a dar e promete não se exaltar eu
lhe
concedo a
palavra por cinco minutos.
Nicolau
de olhos fechados fungava forte entre o major e Antônio Vicente.
- Não tem
nada a dizer? - perguntou Padre Zoroastro.
Nicolau
abriu os olhos, viu o sorriso vitorioso de Zéquinha Silva, pulou da cadeira,
afirmou:
- Tenho!
Tenho uma coisa a dizer!
- Não
diga! - disse Antônio Vicente baixinho.
Nicolau
se virou para o companheiro e falou:
- Digo!
- Diga de
uma vez! - gritaram.
- Pois
digo! Se a comissão atual não for destituída.
- Ela tem
a seu favor a honestidade com que tem agido! aparteou o prefeito.
- Em face
da revolução não há direitos adquiridos! - berrou Antônio Vicente.
- Que
asneira é essa? - falou o Doutor Salomão.
- Que que
o senhor está dizendo? Asneira? São palavras textuais do Ministro da Justiça!
- Está
com a palavra o Senhor Nicolau Foz! - advertiu Padre Zoroastro.
- Se não
destituírem a comissão do P.R.P. eu não revelarei um segredo...
- Não
revelaremos! - secundou o major excitadíssimo.
- ... o
qual segredo foi contado pelo falecido Padre Dito à minha senhora!
E a confusão
se fez de novo. E Padre Zoroastro de novo conseguiu restabelecer a ordem.
- Temos o
direito de saber, não é?
Então aos
berros Nicolau soltou tudo menos o lugar onde se achava escondido o tesouro. E
Padre Zoroastro
desistiu de restabelecer mais
uma vez a
calma. Impossível. O
genro de Zéquinha
Silva subiu na cadeira e começou a arengar sem ser ouvido. Antônio Vicente só
sabia dizer:
Conheceram, papudos? Entre os que achavam que aquilo era uma mistificação
ignóbil e os que pensavam
que por via das dúvidas convinha verificar a coisa direito houve ameaças de tiros. O
turumbamba estava armado. Puxaram o genro de Zéquinha Silva por uma perna,
deram uns tabefes nele, ele rolou no chão gritando:
Basta assassinos! Padre Zoroastro com muito custo
salvou o coitado e se retirou com ele e Zéquinha abanando a cabeça.
- Sempre
a maldita história do espiritismo estragando tudo! Não é? A mãe, a sogra, a mãe
de
Esmeralda,
a sogra do Nicolau, já eram assim!
Aos
poucos os mais chegados a Zéquinha Silva foram também saindo.
Disposto
a aclarar o negócio do tesouro o Doutor Salomão em pé na cadeira da presidência
perguntou se
estavam numa terra
de bugres. O
silêncio respondeu que
não. E o
Doutor Salomão se declarou pronto
a servir de intermediário
entre os grupos
adversos e fazer um acordo
honroso.
- Não há
acordo! - disse Nicolau.
Para o
Doutor Salomão era chegada a hora de todos usarem da máxima franqueza. O Senhor
Nicolau
Foz não queria fazer acordo. Prescindia assim da colaboração alheia. Mas que
essa
colaboração
era indispensável para ele estava patente no fato do Senhor Nicolau Foz, embora conhecendo
o lugar onde se encontrava o tesouro, não haver até então se apossado dele.
- Porque
fui educado na escola da honestidade! Sou brasileiro legítimo! De raça!
O Doutor
Salomão insistiu em que a hora só admitia cartas na mesa. A honestidade do
Senhor Nicolau
Foz estava acima de toda e qualquer suspeita. Mas ele era de carne e osso como
os outros.
Se tivesse jeito de se apossar sozinho do tesouro já teria feito. Achava pois
conveniente que antes
de mais nada
fosse revelado o
lugar onde as
cinco panelas de
ouro estavam escondidas. O
que foi aprovado
com calor. As
considerações do Doutor
Salomão tinham abalado a
assembléia. Nicolau sentia sobre ele e através dele sobre o tesouro o olhar
ávido dos dois
irmãos Tarantelli, do Tenente Messias Jesus Conrado, do Alcibíades Valentim
vulgo Ali-Babá, do Bibi,
do Dadau, do
Zizi, do Doutor
Teotônio de todos
os presentes, de
todos os ausentes.
Canalhada. Felizmente estava armado. Matava. Morria. Mas não dizia.
O Doutor
Salomão sentara-se fixando Nicolau. A assembléia sentou-se fixando Nicolau. O
major se
levantou:
- Somos
todos pessoas de respeito e que se prezam, não é verdade? Pois muitíssimo bem.
O que há a
fazer é entrar num entendimento cordial com o nosso simpático amigo Nicolau a
fim de que ele,
certo de que não será prejudicado, possa revelar o lugar em questão. Pois não
lhes parece
assim?
-
Compreendo - disse o Doutor Salomão. - O Senhor Nicolau impõe condições.
-
Condições não! - falou o major. - Ou
melhor: existem condições mas quem as
impõe é o
próprio
Padre Dito que Deus tenha.
- Que
condições? - perguntou o Doutor Salomão.
-
Razoáveis, muito razoáveis - disse o major.
-
Justíssimas até. E é preciso que sejam respeitadas. Está claro.
- Mas
quais são elas? - insistiu o Doutor Salomão.
- O
saudoso Padre Dito
faz absoluta questão
que noventa por
cento do dinheiro
fique pertencendo
ao nosso prestante amigo Nicolau empregando-se os dez por cento restantes nas obras da
matriz... Então? São ou não...
- O quê?
- Está
brincando!
-
Bandalheira!
- Quanto
leva no negócio?
- Que
piratas!
- A
assembléia gritava de pé. O Doutor Salomão tornou a subir na cadeira, ameaçou
dissolver a reunião
com o destacamento, pediu calma, obteve relativa. E falou:
- O
Senhor Nicolau sustenta o que disse o Maior Mourão?
Nicolau
disse:
-
Sustento até morrer!
O major
suspirou aliviado. O Doutor Teotônio disse:
- Eu
proponho para harmonizar as coisas que o dinheiro seja todo
entregue ao benemérito
governo
provisório para ajudar o resgate da dívida nacional!
Houve uma
salva de palmas. Mas não unânime.
- Nunca!
berrou Nicolau. - Ao menos cinqüenta por cento eu exijo pra mim porque foi pra
minha mulher
que Padre Dito apareceu em sonho!
O major
falou sincopado:
-
Como? Cinqüenta por cento? Mas.. Ora essa! Cinqüenta por cento? Não pode ser!
Há aí
engano!
Não... não é... não está certo!
Antônio
Vicente se ergueu com altivez, foi até a porta, virou-se antes de sair e disse:
- Com
traidor eu não discuto!
O
Prefeito Idílio disse:
- Eu
proponho que cinqüenta por cento sejam para as obras da matriz mesmo e
cinqüenta por
cento
entregues à prefeitura para serviços de utilidade pública!
- Nunca!
- berrou Nicolau. - Cinqüenta por cento pra mim! O resto pode ficar pro que
quiserem!
Zizi
disse:
- Eu
proponho que o dinheiro inteirinho...
- Nunca!
- berrou Nicolau. - A metade tem que ser pra mim!
O Tenente
Messias disse engrossando a voz:
- Eu
proponho que se obrigue o Nicolau a dizer já, mas já, imediatamente, nem que
seja à força, onde é
que está o cobre!
Nicolau
quis falar mas não pôde. E os dois irmãos Tarantelli, o Tenente Messias Jesus
Conrado, o
Alcibíades Valentim vulgo Ali-Babá, o Bibi, o Dadau, o Zizi, o Doutor Teotónio,
os outros, todos,
até o Doutor Salomão, até o Prefeito Idílio, até o Major Mourão que já não
sabia direito o que
fazia, com os punhos erguidos cercaram Nicolau. Aí Nicolau puxou o revólver.
-
Cachorros! Ca... chorros!
Foi
andando de costas até a porta, saiu correndo. Na rua o Afonso Henriques esperava
o pai de baratinha.
Nicolau brandindo o revólver entrou no auto. Mandou:
- Toca
pro cemitério!
Afonso
Henriques começou a chorar.
- Toca
senão te mato!
O Ford
pulava na Rua da Expiação. Afonso Henriques suplicava:
-
Vamos... vamos voltar, Seu Nicolau! Por favor! O senhor está... está tão
nervoso!
Nicolau
dizia:
- Toca,
seu covarde!
Não
esperou o Ford parar. Saltou, tropeçou, quase caiu, entrou no cemitério de
revólver na mão. Deu
poucos passos, parou. Estava tonto. Olhava de um lado para outro. Pensava: Que
é que eu vim
fazer, meu Deus?
Com um
enxadão Crispim surgiu
por detrás da capela.
Longe ainda. Nicolau
deu com ele, correu para
o túmulo do
Padre Dito, sem
largar o revólver
começou a desmanchar
um canteirinho.
Crispim correu também gritando:
- Que é
isso, Seu Nicolau? Não faça isso!
Nicolau
viu Crispim já perto, pulou na frente do túmulo, apontou para o gavetão,
atirou.
- Larga
esse revólver, Seu Nicolau!
Nicolau
enfrentou Crispim, disse com voz sumida:
- Me dá
essa enxada!
- Eu dou
se o senhor largar o revólver!
- Me dá
essa enxada! Me dá essa enxada!
- Não se
chegue, Seu Nicolau!
- Me dá
essa enxada! Me dá essa enxada!
Nicolau
ia avançando, Crispim recuando.
- Por que
que o senhor quer?
- Me dá
essa enxada!
A voz
sumia cada vez mais, o revólver tremia, os olhos se enchiam de lágrimas.
- Eu
mato! Me dá essa enxada!
Mal podia
suster o revólver, segurou com as duas mãos. Crispim recuou até o túmulo do
padre. Com o
enxadão erguido.
- No
túmulo do Padre Dito o senhor não toca, Seu Nicolau!
- Eu te
mostro!
Mas antes
de apertar o gatilho, levou com o enxadão no alto da cabeça, caiu com os miolos
de fora.
- Acuda!
Acuda! - deu de gritar Crispim.
Foi quando
no portão do
cemitério pararam vários
automóveis e seguida
dos dois irmãos Tarantelli,
do Tenente Messias Jesus Conrado, do Alcibíades Valentim vulgo Ali-Babá, do
Bibi, do Dadau,
do Zizi, do Doutor Teotônio, todos, até o Prefeito Idílio até o Doutor Salomão,
até o Major Mourão
com o chapéu
de Nicolau na
mão (O doido
esqueceu a cabeça!),
Dona Esmeralda
entrou de carreira. Deu um grito, se jogou sobre o cadáver. Mas não chamava
pelo marido
não. Dizia só:
- Ah
minha mãe, minha mãe!
---
Nota:
---
Nota:
Antônio de Alcântara Machado: Contos Avulsos (obra póstuma, 1961)
Nenhum comentário:
Postar um comentário