AS
FESTAS DE NAZARÉ
I
As seis
horas da manhã de um lindo dia de setembro de 1860, partia eu pelos caminhos de
ferro, na aprazível companhia de criaturas de todo o feitio, que deixavam em
Santa Apolônia parentes ou amigos madrugadores, a darem-lhe o adeus do estilo,
a avivar-lhes na memória, ao primeiro sinal de partida do comboio, as últimas
recomendações.
— Levas
as esporas?
— Não te
esqueças de trazer os pêssegos!
— Dize
ao Procópio que já casou a Brigida!
— Tens a
camisa de malha?
— Não te
debruces!
— Vê se
te esqueces de me comprar aquela coisa?!
— Olha
que o ferrinho dos calos vai no saco pequeno!
Depois
deste coro de expedientes à última hora, o andamento grave dos ônibus do Poço
do Bispo, o que tornou a viagem mais recreativa. Chegamos ao Carregado, e a
carruagem do José Paulo, que oferece á comodidade pública 14 lugares, partiu...
com 16. Numa carruagem estreita e curta, com calor, e uns restos de crinoline,
que a moda atirara para a estrada, 16 pessoas acomodam-se o melhor possível, e
não correm senão o risco.., de se asfixiarem.
Dois
olhos de passageira fizeram-me esquecer que sufocávamos, que morríamos. Era uma
pálida, que dava uma esperança em cada sorriso, uma promessa em cada olhar! A
trança dos seus cabelos era negra; a expressão dos seus olhos, melancólica; uma
tristeza vaga, que procurava disfarçar, desenhava-se-lhe em cada traço da sua
angustiada fronte, e quando sorria, era toda luz!
As cinco
horas da tarde, a diligência parava na Caldas da Rainha, e eu entrava
conscienciosamente para casa da Malhoa. Santa e respeitável estalajadeira! com
que veneração pela literatura ela respondeu às perguntas que lhe dirigi, acerca
de um cavalo que me levasse a Nazaré!
— Um
cavalo manso e grave, que tenha ar distinto e porte sereno! Cavalo que não
comprometa o cronista, fazendo-lhe partir os ossos antes de escrever a crônica!
— Está o
senhor servido! Oh! Está o senhor servido! — retrucou a Malhoa, a honesta
velhinha, embuçando-se melhor no seu xale de baetilha. — Vou dar-lhe uni animal
seguro! Ah! o sr. Corvo que o diga!
— Como,
o sr. Corvo? Quem é aqui o sr. Corvo?
— Aquele
senhor que sabe muito, e que não queria outro cavalo enquanto aqui esteve senão
esse que lhe vou dar!
— O sr.
Corvo que sabe muito, é o sr. João d’Andrade Corvo, então? O autor do Anjo da
Corte, certamente?
— Há de
ser esse! Há de ser esse! — replicou a Malhoa, encolhendo-se de veneração.
— Oh!
Tanto melhor, patroa! Tanto melhor!
Passei
essa noite no clube. A sociedade das Caldas, porém, já dispersara quase toda e
o baile que havia direito a esperar, por ser quinta-feira, metamorfoseou-se
numa reunião familiar, em redor de uma mesa grande, entretida num jogo de
loteria.
Dividia-se
o baralho em três cartas por parceiro, depois de se haver colocado três outras
sobre a mesa, e os prêmios eram distribuídos às cartas iguais a essas três. Era
uma coisa singular; monótona como tudo que é inocente, inocente como tudo que é
fastidioso. Às senhoras, porém, e esse foi o condão do seu poder, coube alegrar
pelas graças da amabilidade um entretenimento, que seria sem elas o mais pesado
suplício do gênero humano!
A noite
prometia ser longa, a loteria tinha ares de durar muito, e a minha romaria
aconselhava-me que partisse cedo. De mais a mais, retirar depois do chá, a não
sair tarde, é perigoso:
ou
partir cedo, ou retirar com todos; é a única maneira de acusarem um homem de se
enfastiar — como às viúvas que largam o luto depois de o terem usado além do
tempo prescrito, deixando conhecer desta forma o limite da sua dor!...
À
meia-noite, quando justamente eu queria partir, novos inconvenientes, novos
transtornos, obstáculos novos se ergueram. O cavalo recolhera tarde, estava
ceando, e só de madrugada devia partir! Conforme se vê, o destino
transformara-se todo o dia em vítima de maquinações ocultas: dir-se-ia que
inimigos misteriosos formavam em redor de mim linhas de circunvalação! Tudo
parecia encaminhar-se com uma diplomacia traiçoeira a armar-me laços mais
imprevistos do que as astúcias que se referem no livro do Príncipe do
Maquiavel!...
De
madrugada, montei a cavalo, e parti. Estava frenético. Sentia em mim o espírito
da época e o sangue do séculol9; o meu sonho era a rapidez, e o cavalo da
Malhoa, que o sr. Corvo encontrara talvez na flor da infância, pareceu-me já de
uma saúde deteriorada, e tão magro, tão magro, que em vez de cavalo.., podia
ser jóquei, e correr montado num colega!
Das
Caldas a Nazaré fazem quatro léguas. Em lhes dizendo que duas são de areal, e
que nenhum carro pode vencê-las, já devem imaginar que tive negócio para cinco
horas!
Às nove
da manhã trepava a ladeira da Barquinha, e de repente parava estático a espalhar
a vista pelo vasto horizonte que dali se descobre.
Os
arneiros suspenderam também a marcha, tiraram respeitosamente os barretes, e
soltaram num tom de fé este simples grito:
— Lá
está a Senhora de Nazaré!...
Então,
eu vi ao longe a rocha, as torres, as casinhas brancas da praia, os pinheiros
da encosta, e o mar debruçando-se, num efeito original e novo, em que o ar, o
sol, as sombras, brincavam gentilmente.
As
barracas da praia estavam ainda armadas.
As
últimas banhistas saíam trêmulas do mar, entre ais e sorrisos, entre amuos e
graças, entre arrepios e apóstrofes...
Era uma
tentação dizer-lhes:
— Ontem
ainda — vedes? ontem ainda, quando os vossos cabelos se anelavam sob os
enfeites da noite, havia brilho nesses olhos, cor, vida, elegância e moda, em
cada gesto, em cada atitude, em cada expressão do semblante! E agora, seduzidas
talvez pelas brisas da manhã, que se misturaram ao rumorejar da vaga, tomastes
o concerto da natureza pelos últimos sons de uma serenata, e pediste ao mar que
vos contasse pela sua voz grandiosa os segredos que a viração vai contar-lhe em
cada noite... Imprudentes! A maré cresceu sobre vós, e como um bando de aves,
ides fugindo da onda, depois de a terdes ido procurar!
Fugir! Ë
tarde agora. A roupa cai-vos sem pregas, pesada d’água. Não é do sal das
lágrimas que os vossos cabelos estão úmidos, mas do sal do mar, que vos escorre
das tranças... O pé delicado e breve já não tem asas, e vai gracioso pelo
sapato úmido, e demorado pela areia que lhe pesa!
Logo ao
cair da tarde, quando os vossos cabelos enxugarem, os lábios retomarão a cor, o
olhar a vida, o corpo a graça, sereis belas outra vez! Andorinhas imprudentes,
voltareis com o calor! Vós, que fugistes ao chegar do frio!
Como a
rosa que abre ao sol as pétalas, deixa! Deixa que ele vos torne à vida, à
felicidade, à beleza, que é tudo em vós! As flores batidas da manhã hão de
tornar-se um buquê através o bulício da conversação, dos jogos de prendas, das
amabilidades dos protestos e da adorável simplicidade da vida íntima. Mas,a
essa hora, já a praia estará deserta e triste, cortado o silêncio apenas pelo
suspirar das ondas, e pelo som do adejar de asas de anjo que se espalhou no ar
quando de manhã fugiste!
Então,
pobre praia de Nazaré, a maré há de encher, crescer, erguer-se, e correr sobre
ti, que estarás abandonada à tua solidão e à tua melancolia! Oh! maré
impiedosa, que és como a fortuna! Como a felicidade! Como a alegria! Como a
sorte! Como a inconstância! Como a traição! Vai-te, ingrata: tu, que não podes
nunca cobrir uma praia sem abandonares outra!...
Mais
tarde, porém, quem sabe? Quando a noite se envolver toda no seu manto, e a lua
ocultar á terra a sua face pálida, os rochedos hão de tremer de deformidade, o
vento virá gemer nas ondas; e esta natureza árida só terá um hino de tristezas,
de saudades e de ais! As sombras serão tão densas, que não se possa ver a rocha
nem o mar... E quem estiver na praia, a essa hora, nesta praia imensa de Nazaré
há de sentir-se crescer pelo terror, em vez de se abater por ele! E se não vos
puder ver — andorinhas da manhã, que a essa hora estareis dormindo, sonhando,
verá todavia nessa majestosa solidão alguém que se avista através do espaço,
através da noite, na casa, no mar, na floresta, no firmamento, que se avista a
toda a hora, que está em toda a parte, e que se chama — Deus!
***
Estou na
Nazaré, amigo? — perguntei a um pescador.
— O
senhor vem para a praia ou para o sítio?
— Para a
Nazaré, homem! Para a Nazaré!
— Se o
senhor vem para o sítio, trepe por esta ladeira que lá há de chegar!
No fim
da ladeira, perguntei a uma peixeira:
— Isto é
a Nazaré criatura?
— O
sítio é, sim senhor.
— O
sítio? E a Nazaré?
— Pois o
sítio é que é, sim senhor!
Vi as
esquinas cobertas de cartazes para teatro, arlequins, touros fenômenos, que sei
eu! Os feirantes principiavam a armar as barracas, os festeiros já se muniam de
foguetes, e a igreja tinha as portas abertas de par em par, para receber os
devotos e os romeiros. Sentia-se movimento, agitação, expectativa. A Nazaré
estava em vésperas das suas grandes festas! Não havia que duvidar.., senão se
eu estava já na Nazaré ou no sítio!
Entrei
no meu quarto, pus a mala a um canto, e fui para a janela.
Um homem
gordo ia passando.
— Olá,
senhor! Estou decididamente na Nazaré?
— Não
está noutra parte!
E no
sítio?
— Pois
no sítio é que o senhor está!
— Para
que serve então esta distinção especial?
— Por
ter sido aqui que aconteceu o milagre.
— Bravo
amigo! Acertou você com a intenção popular!
— O
senhor vem para as festas?
—
Exatamente. Chego neste instante, e vou demorar-me até a retirada dos círios!
— Para
se divertir?
— Para
contar tudo a um amigo meu, que se chama.., o público!
— Pois
eu sou do Alentejo, e já cá estou desde ontem!
— Para
negócio?
— Para
me pesar.
— Vem
pesar-se longe!
— Uma
promessa. Venho pesar-me a dinheiro.
—
Pesar-se a dinheiro!... Escolherei para mim outras devoções!...
— Não,
de certo, porque isso pudesse fazer-lhe transtorno?
—
Nenhum. É porque sou muito pesado!
—
Felizes festas, senhor!
— Até
elas, amigo. Até elas!...
II
Já lá
vêm cobrindo a estrada, os círios uns após outros! Que soberba cavalgada!
Deixêmo-lo, deixêmo-lo entrar, o grande círio de Prata-Grande! Depois dele virá
o das Caldas e depois do das Caldas chegará à noite o de Obidos descendo brilhantemente
as serranias da Pederneira, e ilumiando a Nazaré ao clarão dos seus archotes!
A
alegria popular, misturando-se ao instinto religioso, eleva aos ares o cântico
da fé. Que vida! Que devoção! Que ardor! Todo aquele povo espera e crê. Ê um
mundo encantado em que os lírios místicos abrem ao sol os seus cálices de
prata!...
Como é,
pois, ó meu Deus! Como é e por que é então, que só ali no meio do ermo, ali no
meio do campo, brotam as flores do mais vivo e embriagante perfume, que a
poesia católica produz?
Quando,
na cidade, se entra nas grandes festas de igreja que a moda nos prepara, porque
é que não se sente a impressão suavíssima que se me acordou no ânimo, quando
ouvi os sinos de Nazaré, dando ao povo ajoelhado os seus conselhos argentinos?
Aquela
vasta praça, que se torna pequena num momento, está apinhada de povo durante
três. dias. Os degraus do adro parecem feitos de cabeças humanas! Panorama
monstro de fisionomias de mulher, molduradas umas entre as outras! Se aquela
gente vivia e respirava, não sei. É de crer que não. O painel das 11 mil
virgens tinha-se realizado desta vez, se elas se têm lembrado.., de se
conservar donzelas!...
Quantos
foguetes há no mundo, todos ali sobem aos ares nos grandes dias. Dir-se-ia,
tantos são eles, que a humanidade tem estado um ano.., a fabricar foguetes para
Nazaré!
Há no
sítio um rochedo escarpado, que olha atento para o mar, e se debruça a vê-lo.
Os pescadores têm um homem de campanha que passa ali o dia e a noite, e se
rende alternadamente a outro.
O povo
apinha-se durante as festas a visitar esse rochedo. Foi ali que o cavaleiro se
avistou perdido e elevou à Virgem a. invocação que o salvou!... Alguns devotos
curiosos vão com uma corda pela cintura estirar-se pelo rochedo para verem
ainda hoje a pegada do cavalo! O caso é que isto não faz mal a ninguém..,
exceto a eles, que os deixa derreados para mais de um mês!...
.A
altura do rochedo é enorme, e o olhar perde-se quando da praia o erguemos até
ali! As nuvens banham-no! E a águia, ao passar, rasga a asa nele!
Eu fui,
uma tarde, debruçar-me ali. O mar sussurrava ao longe, e o eco perdia-se nas
rochas, chegando debilmente ao meu ouvido... Tudo me pareceu triste, lamentoso
nessa hora... A meus pés desenhava-se um vasto abismo, em que apenas lá muito,
embaixo alvejava entre um vapor azul a água sabonática do Ah! que de
lembranças, então! Que viva tristeza! Que fundas saudades! Vivi ali uma hora de
tudo quanto faz morrer!... E senti, e cismei! E recordei-me! E vivi! E
apartei-me dali mais velho, como se houvesse atravessado uma das imensas noites
dos pólos, em que as estrelas brilham seis meses no céu!...
Em pleno
lago, de manhã e de tarde, uns poucos de camponeses jogam continuamente o pau.
A multidão faz-lhe círculo, acotovelando-se uns aos outros na esperança de qual
haja de ver o jogo mais perto. Há nisto professores e simples curiosos. Os
curiosos gastam ali o seu tempo a amestrarem-se neste exercício; os professores
vão de propósito a Nazaré nesta época para darem lições de pau, a pinto por
discípulo! E a multidão aplaude, aclama, e festeja-os! — boa e singular
multidão, que não é das mais escolhidas, mas das mais alegres e animadas!... É
uma sociedade de peixeiros e varinas, carreiros e guardadores de cabras, que
ostentam na sua toalete um certo gosto selvagem que lhe dá feição, e passam
aqueles dias a cantar, a dançar, a rezar e beber.
A dança
deles é magnífica! Compõem passos e inventam atitudes e tempos. Pulam; Saltam!
E riem de si mesmos! Têm tudo quanto falta aos dançarmos de profissão... mas
também falta-lhes tudo quanto eles têm, e é provável, que, se estudassem,
perdessem o merecimento!...
Enquanto
as mulheres lhes dançam em redor, os jogadores de pau serenam a fúria bélica, e
assistem encostados aos varapaus, a este recreio das artes belas; danças em sua
honra e em seu louvor, espécie de apoteose, a que assistem pelos seus próprios
olhos, mais felizes que os césares romanos que só se tornavam deuses.., depois
de comerem cogumelos!...
A moda
está estragando a forma e uns poucos de peixeiros de Peniche, que estiveram ao
pé de mim no largo, durante a luta de varapau, pareceram-me com a sua meia
calça larga, a sua perna nua, a sua camisola ampla, e o seu gorro vermelho na
cabeça, entes singulares e magníficos, superiores cem vezes em elegância ao maior
número dos meus amigos do Marrare, de pé comprimido e cera no bigode!
Quando
os foguetes e os sinos davam o sinal da entrada de um círio, todo aquele povo
corria numa onda imensa, e ia colocar-se no sitio do trânsito, para assistir de
perto às três voltas do estilo.
Então, a
atmosfera aquecia pelo hálito ardente de milhares de almas que se apinhavam
ali!
A
romaria desfilava pela praça girava três vezes em roda da igreja.
A música
rompia a marcha, e os anjos encetavam o cortejo. São três crianças de calção de
meia, manta bordada e gorro de paladino, que se agüentam cm cima dos seus
cavalos, e guardam os pés em enormes estribos de pau!
Num
guincho enorme prolongado, sem cadência e sem melodia, estes três meninos
desprendem a voz e deitam as loas.
A
harmonia é tão maviosa, que até o povo, na sua frase característica, não se
atrevendo a chamar áquilo cantar, nem recitar, nem declamar, chama-lhe
“deitar”.
Agora já
nossos olhos
Vêem de
perto a habitação,
A
simpática mansão
Da linda
flor de Jessé.
Parabéns,
nobres romeiros,
Graças a
Deus e a Maria,
Nossa
estrela e nossa guia,
Chegamos
a Nazaré!
O povo
ajoelha, escuta e aplaudee.
Segue-se
a berlinda, que conduz a imagem de Nossa Senhora, , adornada de cordões de
ouro, pedras preciosas, fitas, flores, franjas de prata.
Na sege
imediata vai o sacerdote, que distribui ao povo as loas do ano. A multidão
precipita-se sobre os cavalos e sobre as rodas, num fervor cristão que se não
conta!
Eis
porém, a traquitana em que o senhor juiz e a senhora juíza se expõem á pública
admiração — ele com a sua gravata alta, um colete de veludo de todo o preço, a
casaca preta do casamento, boa calça de presilha, e colarinhos no estilo
clássico da vela grande da nau Centauro...
— ela, de vestido decotado, com folhos em abundância, mangas de tufos, brincos
de palmo e meio, 17 cordões de ouro ao pescoço, coisa de 30 pulseiras em cada
braço, toucado de flores e fitas de pinto a vara, sapato aberto de cetim
branco, e lenço bordado na mão com pontas arrendadas, representando emblemas
delicados, á maneira de corações, setas, liras e mais galanterias!...
Durante
o trânsito, o povo está em montão, em pilha, em cogulo. Ninguém fala! Ninguém
se mexe! Ninguém respira! As moscas fogem... por não terem lugar!
Tão
depressa cai a noite, varre-se a praça e corre toda aquela gente para o teatro,
sequiosa, insaciável de espetáculo!
Eu fui
também, ávido de cor local, assistir á representação do Milagre da Senhora de Nazaré, oratória de grande espetáculo.
Este
Milagre da Senhora de Nazaré fez-me recordar
uma aventura de jornada.
Uma
ocasião — dirigi-me eu a Durruivos, a visitar minha mãe — encontrei na estrada
uma companhia ambulante. Um parêntesis é necessário aqui para lhes descrever
uma companhia volante em marcha: o parêntesis, porém, tornar-se-ia longo pela
descrição: faça-se a descrição sem o parêntesis.
Imaginem
seis ou oito carros, carregados a não poderem mais com bagagens russas e
velhas, trouxas em lenços rotos, caixas de papelão sem tampa, canastréis,
saquinhos, uma cabeleira que havia esquecido, e que vai pendurada num foeiro ao
pé de um corpete de papel prateado e de umas barbas postiças! Reúnem-se os
carros num ponto dado e, como sejam de diferentes donos, principiam as mulas
aos comprimentos, que é um inferno de berraria! Cada guincho diz um! e vale por... dois. Então, principia
o pai cauteloso com admoestações, para que não lhe pisem o menino, que é quase
da idade do pai: surde uma velha a pedir que evitem semelhante bulha por causa
de sua filha, uma ingênua idosa, que corre risco em se assustar: os arrieiros
praguejam, os atores gritam, os circunstantes indignam- se, as mulas dão coice,
os pequenos da vizinhança querem ir ver o caso de perto, as mães gritam, as
crianças choram! A caravana parte, enfim: não se vê senão homens embuçados,
amarrando os queixos: mulheres com capas, xale por cima da capa, outra capa por
cima do xale, sete lenços na cabeça e a competente touca de lã — distintivo da
atriz ambulante! E não se ouve então, senão o rodar dos carros: este ou aquele
a petiscar lume, o galã a bichanar
com a ingênua, o barbas com a lacaia, o pai
nobre com a mãe nobre, o ponto
com o vegete.
Fizemos
jornada juntos durante uma légua. Planeei logo um grande espetáculo para aquela
gente ganhar mundos e fundos, que pareceu encantá-los — “Os senhores devem
encarregar alguém de lhes escrever uma oratória, que tenha por titulo: O Milagre da Senhora de Nazaré! A peça
deve ter dois atos e uma mutação à vista no final, representando a última cena
uma enorme e alcantilada serra, o cavaleiro da lenda partindo a todo galope,
sumindo-se um instante atrás de uns rochedos, e aparecendo depois ao longe no
cimo da serra uma contrafigura, num cavalo de pau, suspenso sobre o abismo,
como a tradição conta que ficara o indômito cavalo, que ia arrojar no precipício
o cavaleiro, que a Senhora de Nazaré salvou!”
A
companhia pareceu encantada da lembrança; incubiram-se logo de mandar fazer as
máquinas: eu prometi escrever a peça; e, ao despedir-me daqueles generosos
desconhecidos, era coisa assentada que íamos enriquecer os fastos de Tália pelo
novo Auto do Milagre de Nazaré!
Este
ano, chego a Nazaré, leio um cartaz, e encontro Fuas Roupinho, já posto em
obra!...
Verdade,
verdade — tive pena! Este Fuas Roupinho já me parecia meu, e custou-me deveras
vê-lo andar assim por mãos alheias!...
O teatro
de Nazaré é maior do que o nosso ginásio e tem todas as proporções de teatro
real. Duas ordens de camarotes, uma platéia extensíssima e galeria para o povo.
A sala enche-se a deitar fora, nas noites de festa. E de uso na Nazaré ter cada
pessoa um varapau enorme a que se encosta. Este varapau não nos desampara
nunca. Na igreja encostamo-lo à parede; nas salas colocamo-lo atrás da porta,
com o boné em cima, para depois o diferençarmos; e no teatro guardamo-lo na
mão. Quando o pano sobe os atores vêem mais os varapaus do que os espectadores,
e dir-se-ia que estão representando... a um canavial!...
O
público de Nazaré é o público mais exigente e ruidoso de que eu tenho notícia,
e estava incessantemente a gritar, a rir, a bater com os varapaus, e a fazer um
motim, que satanás invejou para o seu reino!
Todavia,
mal principiou a peça sacra, a multidão aquietou- se, e a idéia religiosa
triunfou no centro daquela balbúrdia de rapaziada, tornando-a atenta e
fazendo-a escutar.
A
orotória tratava da lenda de d. Fuas Roupinho, que toda a gente sabe, o que me
dispensa de Iha fazer constar mais uma vez. Era um pequenino ato abundante de
movimento, que não podendo sustentar-se por qualidades literárias, atendia
exclusivamente ao efeito. E tanto é assim, que até a tradição se apresentava
alterada, sendo na peça uma filha de d. Fuas, e não o próprio d. Fuas quem
descobre a Virgem. A lenda não diz isto. A lenda diz que d. Fuas, andando uma
vez a divertir-se com os seus amigos pela Nazaré, que nesse tempo era um
matagal, encontrou por ocasião de uma caçada a imagem de Nossa Senhora. Ainda
que seria fácil não prejudicar a tradição, todavia o elemento principal no
teatro, que é seguramente o enredo, a ação, o interesse, pedida que houvesse dama
na função, porque para todas as coisas da vida — e agora se vê que até para as
coisas sacras! — não há função verdadeira em que não entre filha de Eva!...
O
desempenho era regular. A companhia compunha-se de atores de Lisboa.
Nas
toradas e nos arlequins, se passava o resto do tempo. Uma tourada na Nazaré tem
um caráter mais pronunciado do que em Lisboa. Há mais ruído, mais coragem, mais
raiva e mais delírio! Dir-se-ia um resto das colossais festas da Antiguidade!
Os toreros eram aplaudidos, mas custavam-lhes
caros os aplausos. Era bela aquela vitória da coragem, do sangue-frio, de todas
as qualidades morais, sobre a força cega e a ferocidade estúpida do touro!. O
público parecia sentir-se solidário daquela intrepidez, e saía da praça mais
contente de si!
As
festas de igreja não têm de particular senão o auditório, que se compõe — caso
raro nos auditórios de igreja! — de gente que tem fé, e que crê em Deus!...
Os
sermões chovem ali. Ainda um padre não rematou com o Disse! já um colega lhe salta ao lado, a pregar nova encomenda!
No adro
é uma coisa única — para não dizer escandalosa, porque abomino palavrões
bombásticos! — a forma por que os sacerdotes agenciam a sua vida nestes dias de
chega-a-todos.
Acaba um
campônio de contratar uma missa, e depara logo com outro padre que lha oferece
mais em conta.
— Já
ajustei por um pinto! — retruca o lapônio. — Um homem não tem senão uma
palavra!...
— Não
seja criança! — replica o sacerdote. — Negócio é negócio. Vocemecê tem a missa
dita por mim com toda a cautela, sem fazer tanta despesa!
— Então
quanto é que hei de gastar?
— Doze
vinténs, que é conta redonda.
O
lapônio fica em meditação, quando sente agarrar-se pela gola da jaleca.
— Quem é
que me está rasgando?
E outro
padre ainda, que se lhe encosta ao ombro e lhe diz ao ouvido:
— Uma de
seis, e não falemos mais nisso!...
E
todavia a devoção ali conserva-se firme, apesar destes deploráveis ajustes. E
fabuloso o número de criaturas que se arrastam de joelhos pela praça! Pelo
adro! Pela igreja! Que levam ouro à Virgem! E se despem para dar esmolas!...
Havia um
homem em quem a crença popular se fixava quando a sua palavra eloqüente
ressoava no templo de Nazaré.
Era um
poeta e um sacerdote, sacerdote e poeta de toda a sua alma, esse!
Desgraçadamente a doença não lhe permitia já a vida pública, e eu encontrei-o
como um particular modesto, assistindo a uma das festas, escondido
melancolicamente a um canto da igreja.
Este
homem era Malhão.
Quando
aquele grande talento, quando aquele respeitável caráter iluminava do público o
espírito do auditório, as festas de Nazaré tinham ainda mais que ver! A este
tempo, porém, a tristeza definhava-o, e ele, o homem simpático, que era tudo
ali, já ali não foi nada nesse ano! Os padres no adro haviam-me desconsolado:
ainda bem que encontrei este para me reconciliar com a igreja!... Oh! o valente
enfermo! Como ele era forte ainda, na sua triste e simpática fraqueza!
Para
viajar é preciso ser muito feliz ou muito infeliz, pobre, ou muito rico, gostar
de tudo um pouco, e não gostar muito de coisa alguma. Sou viajante perigoso,
porque me apaixono. Não há maneira de me apartar de um sítio, sem me parecer
que saio do mundo! Também, o meu mundo é uma coisa de convenção, que se ajeita
por mil desencontradas faces a este caráter incerto, que Deus me deu! O meu
mundo é aquele torrão de Durruivos, quando estou na aldeia: à sombra do
castanheiro quando estou em Cintra: o ruído das ondas quando estou na Nazaré!
Contanto que o céu esteja azul, que o sol alumie, que haja flores, ou música,
ou mulheres ou mar, adormeço contente cada noite com o desejo de ainda ali
acordar no outro dia!...
E uma
velha idéia e uma velha frase, a que diz que a vida é cheia de néctar e de fel;
todavia, é tão verdadeira que ficará sempre moça! O néctar, por ser mais
ligeiro, apresenta-se aos lábios, e quando menos se espera já não há senão fel
para beber! Não há nada que compense a alma daquele anelo delicioso de quem
viaja, nas primeiras horas que passa num lugar qualquer. Basta a idéia de que
pouco nos demoramos ali, para lhe fazer crescer o encanto!
Por
isso, quando disse adeus ás suas festas, as barracas principiaram a
desarmar-se, os romeiros montaram a cavalo, os foguetes da despedida subiram ao
ar e os círios deram as três voltas da retirada em redor da igreja, senti uma
certa pena ao lembrar-me que eram horas de eu partir também!
Tudo
pareceu triste nesse instante. A romaria tinha o ar de quem se despede da
felicidade, e os anjos, — os próprios anjos!
— tinham
a voz mais rouca, mais confusa, mais entrecortada de pausas, mais
lamuriosamente arrastada do que nunca, ao dizerem em frente do templo:
É chegado o momento, ó Virgem pura,
É preciso deixar estes lugares;
Asilo de piedade e de ternura.
De nossos olhos lágrimas a pares
Nos arranca a tristeza e o sentimento,
E a saudosa lembrança destes lares!
E o povo
benzia-se, batia contrito no peito, e deixava correr pelas faces crestadas o
pranto sincero da saudade e da fé! Boas e simples almas! Com que impulso de
religião pareciam elas elevar-se a Deus, quando repetiam entre si num coro
sufocado e uníssono as estrofes da loa:
Ah! quem fora tão ditoso
Que pudera aqui ficar,
E neste monte sagrado
Os seus dias acabar!
Quem vem
falar-me de educar o coração?! Coração tem-no aquela gente, e coração de lei!
Que foi o que lhe ensinaram? Como, ensinar! O coração não tem que aprender.
Sabe, pressente, adivinha tudo. Muito faz ele, — ou, para dizer melhor, faz o
mais possível... — em não se esquecer... Eu ainda sou dos que crêem nas
lágrimas e apesar de me dizerem que o seu melhor mérito é enganarem bem,
quero-me com gente que chora. E como eu vi, naquela memorável partida, nascer o
pranto nos olhos do povo! E nós, a gente da cidade, que estávamos por ali uns
poucos, seria a insensibilidade, que nos roubou a dor? Se rimos do que faz rir
os outros, porque não choramos nós que os faz chorar?
A Nazaré
não vão apenas os turistas. Além mesmo da população flutuante que ali surge de
repente nos três grandes dias, as casas da praia alugam-se todas a um grande
número de famílias, que ali corre de toda a parte em procura das soberbas ondas
montanhosas, que nos elevam consigo como se fôssemos parentes daqueles caldeus
que tentaram escalar o céu!...
Rompe
ainda mal o dia, já a gente pobre da vila vai banhar-se lá a uma extrema da praia,
vestindo-se e despindo-se por detrás das pedras... A pouco e pouco principiam a
povoar- se as barracas, e os banheiros encetam o seu giro de cada dia, que é
sair d’água e entrar n’água, para dar a mão às tímidas e aos medrosos.
Destino
singular e excêntrico!
Que uni
desgraçado esteja desde o nascer do sol até as li horas, a tomar mergulhos
forçados, que lhe granjeiam os seus 50 banhos por dia, é realmente uma judiaria
que esqueceu à inquisição! Os banheiros inspiram-me um sentimento de piedade
que eu não saberia explicar. A moda criou estes mártires. Se não fosse moda,
ninguém tomava banhos: se ninguém tomasse banhos, não se haveriam inventado os
banheiros. Desditosa raça! Para eles o verão é a estação fria; passam-na dentro
da água! Como estes pobres diabos hão de achar quente... o inverno!
Das oito
horas em diante chegam as elegantes e os dândis da praia. Elegantes... até ao
entrar da barraca. Perante o roupão de baeta, a humanidade tem uma só feição.
Num traje daqueles toda a gente tem o mesmo feitio! As damas confundem-se a
ponto de se tomarem a si próprias por uma amiga sua, e dirigem-se a palavra num
frio solilóquio! Eu mesmo, quando me vi assim, enganei-me de tal forma que me
tomei por um estranho de quem costumava rir!
A vida
da praia principia então. Toda a gente se conhece, toda a gente se fala, toda a
gente ri, salta na areia, corre em bandos para o mar, e forma de mãos dadas uma
larga linha... em que as ondas são os atiradores!
Ai,
começam as pompas da função e os triunfos da coragem! Quanto mais mergulhos,
mais glórias!... Ao retirar do mar, não se ouve pelas barracas senão a pergunta
pérfida:
—
Quantos mergulhos tomou?
— Três!
— Que
covarde!
— Sete!
— Que
valente!
— Doze!
—Que
herói!
Duas
horas depois, as barracas desarmam-se; e sobre aquela areia em que mil pés
delicados se agitaram, estendem-se canastras, e canastras, celhas e celhas com
o peixe que os pescadores conduzem. Ë ali mesmo o mercado, e à hora em que
expira o império dos banhistas principia o reinado das corvinas e das
fataças!...
Até o
cair da tarde, a praia toma o aspecto comercial, e a população inquieta-se
apenas com o preço do carapau. Uma coisa há de notável nesta singularíssima
indústria. £ que ali, ao contrário de todas as terras e de todas as coisas
deste mundo, é a raridade o que deprecia o gênero. Quando há mais peixe é que
ele é mais caro. Isto parece um absurdo, mas justifica-se com a melhor lógica.
Os almocreves e os peixeiros em havendo abundância de peixe, compram-no para o
conduzirem nas canastras, ou para o embarcarem nos varinos e virem vendê-lo nas
terras em que ele escasseia: daqui resulta que a Nazaré, quanto mais peixe há,
menos peixe tem!...
Enquanto
o sol não começa a despedir-se da vila, dizendo- lhe adeus das cumiadas dos
montes, é impossível encontrar a sociedade. As damas estão enxugando os
cabelos, e os homens lendo ou jogando. Digo lendo ou jogando — isto é: se está
um homem só, lê; se estão mais de um, jogam: na Nazaré o jogo é mais que um
entretimento, uma paixão, ou um vício, é uma necessidade: é a jogar que se
conversa, que se bebe.., que se receita, que se tomam remédios, que se vive, e
que se morre!...
Eu tinha
a felicidade de ter sempre o tempo entretido... e entretido demais às vezes,
porque nem podia escrever! O meu quarto era um foco de divertimentos, e um
camarote perpétuo das funções mais variadas. Se eu não fosse um escritor
só.brio, dos que têm escrúpulo de estenderem os assuntos como se fossem de
guta-perca, podia excelentemente, só daquele meu quarto, escrever um volume!
Ele era
tão bom ou tão mau, tão divertido, tão animado, tão recreativo, ou tão pouco...
que, ao terceiro dia, achei que estava gozando de mais, e disse-lhe adeus!...
Era uma
casa no sítio, casa grande, espaçosa
e de bom quartel, que acomodava no seu seio em diversas câmaras os seguintes
interlocutores: uma companhia dramática, com todos os seus atores, atrizes,
cenógrafo, maquinista, ponto, bilheteiro, etc. Felizmente, os porteiros eram
eles mesmos, senão mais gente havia!... Três toureiros, um neto e os seus
moços; uma companhia de arlequins completa: palhaço, dançarino de corda, duas
damas, e por sinal feissimas! Dois homens de forças para as lutas árabes, três
meninos para os recreios do trapézio, e um gracioso
para fazer de prospecto, e explicar as belezas do divertimento aos campônios;
um anão, que se mostrava por dois patacos; sua mulher; um prestidigitador; um
velho que não tinha cara de ter profissão; e uma velha que tinha a profissão de
já não ter cara, o que a deixava viajar sem susto!...
Neste
céu aberto encontrei-me eu! Sem poder dormir, nem ler, nem escrever, nem estar!
tanto era o motim, a algazarra, a balbúrdia infinita deste curioso pandemonium!
A janela
do meu quarto dava para a praça dos arlequins. Desde que rompia a aurora, não
se fazia senão tocar tambor para reunir o auditório. Armava-se um tablado à
porta, e um dos Mimos encetava uma palestra ao povo, que maravilhava os
lapônios por mil flores de verbosidade.
—
Entrem’, rapazes! Entrem se querem ver o que nunca viram, nem tornam a ver na sua
vida! Se eu lhes fosse a dizer tudo que aqui se faz, não chegava o dia para
lhes acabar a história. Nós temos trabalhado sempre a 16 vinténs, para outra
casta de gente que vocês não são: hoje, porém, queremos que vejam de tudo, e
pusemos isto a pataco, para não morrerem sem nos terem admirado! Vá! Vá! E’
entrar, rapaziada! Pataco por cabeça! quem não tiver cabeça... não paga
nada!...
E depois
era um alvoroço! Um estrondo! Uma assuada! Uma verdadeira sedição contra a
tranqüilidade de um pobre- diabo morigerado. Quando os arlequins davam
intervalo, principiava o anão a tocar trombeta para chamar o seu público: ou os
capinhas a exercitarem-se no quarto com um colega que fazia de touro, em
correrias tumultuosas e infernais! Era absolutamente impossível viver ali, para
ter o purgatório na Nazaré!
O anão
era um ginasta sofrível e um caçador exaltado. Estava todas as madrugadas à
janela em cima de um banco, a fazer guerra aos pardais: uma vez esqueceu-se de
se encarapitar, e, em lugar de matar um pássaro, matou um porco que ia
passando!... Entretinha as noites a jogar o dominó: e tive a fortuna de lhe ser
apresentado para fazermos uma partida. Eu sou o pior jogador que há no mundo, e
nunca compreendi bem a bisca: todavia não quis desprezar esta ocasião de fazer
uma coisa que dez minutos antes eu julgaria impossível que me acontecesse! No
decurso da minha vida, tinha-me lembrado de mil eventualidades raras, que
talvez me esperassem — vir a ser conselheiro, tornam-se marujo para poder
viajar, morrer hidrópico, etc., etc.! De que viria a jogar o dominó com um
anão, é que nunca me tinha lembrado! E joguei!...
Os
arlequins em vez de me divertirem entristeciam-me. Alguns tinham uma barraca
armada na praça, que lhes servia de camarim durante função, e de casa no resto do
tempo. A sua única propriedade era aquela barraca e um burro, que viajava com
eles, acarretando as bagagens, corpetes de veludinho, tangas, um arame bambo,
um fato branco de guisos e uma caixa com giz para o palhaço. Tudo que possuem
na terra é isto: nada mais têm, nada mais virão a ter. E riem sempre, e vivem
de fazer rir! Comem; bebem vinho quando o podem comprar, quando o não há, bebem
água e ar! E’ uma coisa santa, ao menos, que Deus nos dê ar sem o comprarmos!
Quando
montei a cavalo, para partir, encontrei-os; iam a pé com uma trouxa cada um,
por terem piedade do burrinho, que lhe custava a poder consigo. Há uma coisa
ainda pior do que ser arlequim... é ser burro de arlequim!...
A
estrada vinha ‘cheia de círios e de povo.
Ao
chegarmos à l3arquinha paramos novamente segundo o estilo, voltamo-nos para
trás, descobrimo-nos saudosos, e os arrieiros disseram reverentemente:
“Lá fica
a Senhora de Nazaré!...”
---
Nota:
Júlio
César Machado: “Contos ao Luar”, publicados originalmente em 1861, extraídos da
edição de 1974, da Editora Três, da Coleção “Obras Imortais da nossa
Literatura”
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