sábado, 24 de agosto de 2013

João Simões Lopes Neto: "Trezentas Onças"

TREZENTAS ONÇAS

Eu tropeava, nesse tempo. Duma feita que viajava de escoteiro, com a guaiaca empanzinada de  onças  de  ouro,  vim  varar  aqui  neste  mesmo  passo,  por  me  ficar  mais  perto  da  estância  da  Coronilha, onde devia pousar.

Parece que foi ontem!. . Era por fevereiro; eu vinha abombado da troteada.

Olhe, ali, na restinga, à sombra daquela mesma reboleira de mato, que está nos vendo, na  beira do passo, desencilhei; e estendido nos pelegos, a cabeça no lombilho, com o chapéu sobre os  olhos, fiz uma sesteada morruda.

Despertando, ouvindo o ruído manso da água tão limpa e tão fresca rolando sobre o pedregulho,  tive ganas de me banhar; até para quebrar a lombeira… e fui-me à água que nem capincho!

Debaixo  da  barranca  havia  um  fundão  onde  mergulhei  umas  quantas  vezes;  e  sempre  puxei  umas braçadas, poucas, porque não tinha cancha para um bom nado.

E solito e no silêncio, tornei a vestir-me, encilhei o zaino e montei.

Daquela vereda andei como três léguas, chegando à estância cedo ainda, obra assim de braça e meia de sol.

Ah!…esqueci  de  dizer-lhe  que  andava  comigo  um  cachorrinho  brasino,  um  cusco  mui esperto e boa vigia. Era das crianças, mas às vezes dava-me para acompanhar-me, e depois de sair a porteira, nem por nada fazia cara-volta, a não ser comigo. E nas viagens dormia sempre ao meu lado, sobre a ponta da carona, na cabeceira dos arreios.

Por sinal que uma noite...

Mas isto é outra cousa; vamos ao caso.

Durante a troteada bem reparei que volta e meia o cusco parava-se na estrada e latia e corria pra  trás, e olhava-me, olhava-me, e latia de novo e troteava um pouco sobre o rastro; — parecia que o  bichinho  estava  me  chamando!...  Mas  como  eu  ia,  ele  tornava  a  alcançar-me,  para  dai  a  pouco  recomeçar.

 Pois,  amigo!  Não  lhe  conto  nada!  Quando  botei  o  pé  em  terra  na  ramada  da  estância,  ao  tempo que dava as — boas-tardes! — ao dono da casa, agüentei um tirão seco no coração... não senti  na cintura o peso da guaiaca!

Tinha perdido trezentas onças de ouro que levava, para pagamento de gados que ia levantar.

E logo passou-me pelos olhos um clarão de cegar, depois uns coriscos tirante a roxo... depois  tudo me ficou cinzento, para escuro. .

Eu  era  mui  pobre  —  e  ainda  hoje,  é  como  vancê  sabe...;  estava  começando  a  vida,  e  o  dinheiro era do meu patrão, um charqueador, sujeito de contas mui limpas e brabo como uma manga  de pedras...

Assim, de meio assombrado me fui repondo quando ouvi que indagavam:

Então patrício? está doente?

Obrigado! Não senhor, respondi, não é doença; é que sucedeu-me uma desgraça: perdi uma  dinheirama do meu patrão...

A la fresca!.. 

É verdade... antes morresse, que isto! Que vai ele pensar agora de mim!...

É uma dos diabos, é...; mas não se acoquine, homem!

Nisto  o  cusco  brasino  deu  uns  pulos  ao  focinho  do  cavalo,  como  querendo  lambê-lo,  e  logo  correu para a estrada, aos latidos. E olhava-me, e vinha e ia, e tornava a latir...
  
Ah!... E num repente lembrei-me bem de tudo.

Parecia que estava vendo o lugar da sesteada, o banho, a arrumação das roupas nuns galhos de sarandi, e, em cima de uma pedra, a guaiaca e por cima dela o cinto das armas, e até uma ponta de cigarro de que tirei uma última tragada, antes de entrar na água, e que deixei espetada num espinho, ainda  fumegando,  soltando  uma  fitinha  de  fumaça  azul,  que  subia,  fininha  e  direita,  no  ar  sem vento...; tudo, vi tudo.

Estava lá, na beirada do passo, a guaiaca. E o remédio era um só: tocar a meia rédea, antes que outros andantes passassem.

Num  vu  estava  a  cavalo;  e  mal  isto,  o  cachorrinho  pegou  a  retouçar,  numa  alegria,  ganindo   — Deus me perdoe! — que até parecia fala.

E dei de rédea, dobrando o cotovelo do cercado.

Ali logo frenteei com uma comitiva de tropeiros, com grande cavalhada por diante, e que por  certo  vinha  tomar  pouso  na  estância.  Na  cruzada  nos  tocamos  todos  na  aba  do  sombreiro;  uns  quantos vinham de balandrau enfiado. Sempre me deu uma coraçonada para fazer umas perguntas...  mas engoli a língua.

Amaguei o corpo e penicando de esporas, toquei a galope largo.

O cachorrinho ia ganiçando, ao lado, na sombra do cavalo, já mui comprida.

A estrada estendia-se deserta; à esquerda os campos desdobravam-se a perder de vista, serenos,  verdes,  clareados  pela  luz  macia  do  sol  morrente,  manchados  de  pontas  de  gado  que  iam  se  arrolhando  nos  paradouros  da  noite;  à  direita,  o  sol,  muito  baixo,  vermelho-dourado,  entrando  em  massa de nuvens de beiradas luminosas.

Nos atoleiros, secos, nem um quero-quero: uma que outra perdiz, sorrateira, piava de manso por  entre  os  pastos  maduros;  e  longe,  entre  o  resto  da  luz  que  fugia  de  um  lado  e  a  noite  que  vinha,  peneirada,  do  outro,  alvejava  a  brancura  de  um  joão-grande,  voando,  sereno,  quase  sem  mover  as  asas, como numa despedida triste, em que a gente também não sacode os braços...

Foi caindo uma aragem fresca; e um silêncio grande, em tudo.

O zaino era um pingaço de lei; e o cachorrinho, agora sossegado, meio de banda, de língua de  fora  e  de  rabo  em  pé,  troteava  miúdo  e  ligeiro  dentro  da  polvadeira  rasteira  que  as  patas  do  flete  levantavam.

E entrou o sol; ficou nas alturas um clarão afogueado, como de incêndio num pajonal; depois o  lusco-fusco; depois; cerrou a noite escura; depois, no céu, só estrelas..., só estrelas...

O zaino atirava o freio e gemia no compasso do galope, comendo caminho. Bem por cima da  minha  cabeça  as  Três-Marias  tão  bonitas,  tão  vivas,  tão  alinhadas,  pareciam  me  acompanhar...,  lembrei-me  dos  meus  filhinhos,  que  as estavam  vendo,  talvez;  lembrei-me  da  minha  mãe,  de meu  pai, que também as viram, quando eram crianças e que já as conheceram pelo seu nome de Marias, as  Três-Marias.    Amigo!  Vancê  é  moço,  passa  a  sua  vida  rindo...;  Deus  o  conserve!…,  sem  saber  nunca como é pesada a tristeza dos campos quando o coração pena!.. 

Há que tempos eu não chorava!... Pois me vieram lágrimas..., devagarinho, como gateando,  subiram... tremiam sobre as pestanas, luziam um tempinho... e ainda quentes, no arranco do galope lá  caíam elas na polvadeira da estrada, como um pingo d’água perdido, que nem mosca nem formiga  daria com ele!...
  
Por entre as minhas lágrimas, como um sol cortando um chuvisqueiro, passou-me na lembrança a toada dum verso lá dos meus pagos:

Quem canta refresca a alma,
Cantar adoça o sofrer;
Quem canta zomba da morte:
Cantar ajuda a viver!...

Mas que cantar, podia eu!. .

O  zaino  respirou  forte  e  sentou,  trocando  a  orelha,  farejando  no  escuro:  o  bagual  tinha  reconhecido o lugar, estava no passo.

Senti o cachorrinho respirando, como assoleado. Apeei-me.

Não bulia uma folha; o silêncio, nas sombras do arvoredo, metia respeito... que medo, não, que  não entra em peito de gaúcho.

Embaixo, o rumor da água pipocando sobre o pedregulho; vaga-lumes retouçando no escuro.

Desci,  dei  com  o  lugar  onde  havia  estado;  tenteei  os  galhos  do  sarandi;  achei  a  pedra  onde  tinha  posto a guaiaca e as armas; corri as mãos por todos os lados, mais pra lá, mais pra cá...; nada! nada!...

Então, senti frio dentro da alma…, o meu patrão ia dizer que eu o havia roubado!... roubado!...  Pois então eu ia lá perder as onças!... Qual! Ladrão, ladrão, é que era!...

E logo uma tenção ruim entrou-me nos miolos: eu devia matar-me, para não sofrer a vergonha  daquela suposição.

É; era o que eu devia fazer: matar-me... e já, aqui mesmo!

Tirei a pistola do cinto; armei-lhe o gatilho..., benzi-me, e encostei no ouvido o cano, grosso e  frio, carregado de bala...

Ah! patrício! Deus existe!...

No refilão daquele tormento, olhei para diante e vi... as Três-Marias luzindo na água... o cusco  encarapitado na pedra, ao meu lado, estava me lambendo a mão... e logo, logo, o zaino relinchou lá  em cima, na barranca do riacho, ao mesmíssimo tempo que a cantoria alegre de um grilo retinia ali  perto, num oco de pau!...

Patrício!  não  me  avexo  duma  heresia;  mas  era  Deus  que  estava  no  luzimento  daquelas    estrelas, era ele que mandava aqueles bichos brutos arredarem de mim a má tenção...

O  cachorrinho  tão  fiel  lembrou-me  a  amizade  da  minha  gente;  o  meu  cavalo  lembrou-me  a  liberdade, o trabalho, e aquele grilo cantador trouxe a esperança...

Eh-pucha! patrício, eu sou mui rude... a gente vê caras, não vê corações...; pois o meu, dentro  do peito, naquela hora, estava como um espinilho ao sol, num descampado, no pino do meio-dia: era  luz de Deus por todos os lados!...

E já todo no meu sossego de homem, meti a pistola no cinto. Fechei um baio, bati o isqueiro e comecei a pitar.

E  fui  pensando.  Tinha,  por  minha  culpa,  exclusivamente  por  minha  culpa,  tinha  perdido  as  trezentas onças, uma fortuna para mim. Não sabia como explicar o sucedido, comigo, acostumado a  bem  cuidar  das  cousas.  Agora...  era  vender  o  campito,  a  ponta  de  gado  manso  tirando  umas  leiteiras para as crianças e a junta dos jaguanés lavradores — vender a tropilha dos colorados… e  pronto! Isso havia de chegar, folgado; e caso mermasse a conta..., enfim, havia se ver o jeito a dar..   Porém matar-se um homem, assim no mais... e chefe de família... isso, não!

E  d’espacito  vim  subindo  a  barranca;  assim  que  me  sentiu  o  zaino  escarceou,  mastigando  o  freio.

Desmaneei-o, apresilhei o cabresto; o pingo agarrou a volta e eu montei, aliviado.

O cusco escaramuçou, contente; a trote e galope voltei para a estância. 

Ao dobrar a esquina do cercado enxerguei luz na casa; a cachorrada saiu logo, acuando. O zaino  relinchou alegremente, sentindo os companheiros; do potreiro outros relinchos vieram.

Apeei-me no galpão, arrumei as garras e soltei o pingo, que se rebolcou, com ganas.

Então  fui  para  dentro:  na  porta  dei  o  Louvado  seja  Jesu-Cristo;  boa-noite!  e  entrei,  e comigo, rente o cusco. Na sala do estancieiro havia uns quatro paisanos; era a comitiva que chegava  quando eu saía; corria o amargo.

Em cima da mesa a chaleira, e ao lado dela, enroscada, como uma jararaca na ressolana, estava  a minha guaiaca, barriguda, por certo com as trezentas onças, dentro.

Louvado seja Jesu-Cristo, patrício! Boa-noite! Entonces, que tal le foi de susto?...

E houve uma risada grande de gente boa.


Eu  também  fiquei-me  rindo,  olhando  para  a  guaiaca e  para  o  guaipeva,  arrolhadito aos  meus  pés...

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Nota:
João Simões Lopes Neto: "Contos Gauchescos" (1912)

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