sábado, 24 de agosto de 2013

João Simões Lopes Neto: "O Negro Bonifácio"

O NEGRO BONIFÁCIO

Se o negro era maleva? Cruz! Era um condenado!... mas, taura, isso era, também!  

Quando houve a carreira grande, do picaço do major Terêncio e o tordilho do Nadico (filho do Antunes gordo, um que era rengo), quando houve a carreira, digo, foi que o negro mostrou mesmo  pra o que prestava...; mas foi caipora.

Escuite.

A  Tudinha  era  a  chinoca  mais  candongueira  que  havia  por  aqueles  pagos.  Um  cajetilha  da  cidade duma vez que a viu botou-lhe uns versos mui lindos — pro caso — que tinha um que dizia que ela era uma

 “....................................... ....... chinoca airosa,
Lindaça como o sol, fresca como uma rosa!...

E o sujeito quis retouçar, porém ela negou-lhe o estribo, porque já trazia mais de quatro  pelo  beiço, que eram dali, da querência, e aquele tal dos versos era teatino.. 

Alta e delgada, parecia assim um jerivá ainda novinho, quando balança a copa verde tocada de  leve  por  um  vento  pouco,  da  tarde.  Tinha  os  pés  pequenos  e  as  mãos  mui  bem  torneadas;  cabelo  cacheado, as sobrancelhas finas, nariz alinhado.

Mas o rebenqueador, o rebenqueador..., eram os olhos!...

Os olhos da Tudinha eram assim a modo olhos de veado-virá, assustado: pretos, grandes, com  luz dentro, tímidos e ao mesmo tempo haraganos... pareciam olhos que estavam sempre ouvindo.., ouvindo mais, que vendo...

Face cor de pêssego maduro; os dentes brancos e lustrosos como dente de cachorro novo; e os lábios  da  morocha  deviam  ser  macios  como  treval,  doces  como  mirim,  frescos  como  polpa  de  guabiju...

E apesar de arisca, era foliona e embuçalava um cristão, pelo só falar, tão cativo...

No mais, buenaça, sem entono; e tinha de que, porque corria à boca pequena que ela era filha do  capitão Pereirinha, estancieiro, que só ali, nos Guarás, tinha mais de não sei quantas léguas de campo  de lei, povoado, O certo é que o posto em que ela morava com a mãe, a sia Fermina, era um mimo;  tinha de um tudo: lavoura, boa cacimba, um rodeíto manso; e a Tudinha tinha cavalo amilhado, só do  andar dela, e alguma prata nos preparos.

Parecenças, isso, tinha, e não pouco, com a gente do capitão.. 

O velho, às vezes, ia por lá, sestear, tomar um chimarrão... 

Pois para a carreira essa, tinha acudido um povaréu imenso.

 E  ela  veio,  também,  com  a  velha.  Velha,  é  um  dizer,  porque  a  sia  Fermina  ainda  fazia  um fachadão...

E deu o caso que os quatro embeiçados também vieram, e um, o mais de todos, era o Nadico.

E sem ninguém esperar, também apareceu o negro Bonifácio.

É assim que o diabo as arma...

Escuite.

O negro não vinha por ela, não; antes mais por farrear, jogar e beber: ele era um perdidaço pela  cachaça e pelo truco e pela taba.

E  bem  montado,  vinha,  num  bagual  lobuno  rabicano,  de  machinhos  altos,  peito  de  pomba  e  orelhas finas, de tesoura; mui bem tosado a meio cogotilho, e de cola atada, em três tranças, bem  alto, onde canta o galo!...

E na garupa, mui refestelada, trazia uma chirua, com ar de querendona...

Eta! negro pachola!

De  chapéu  de  aba  larga,  botado  no  cocuruto  da  cabeça  e  preso  num  barbicacho  de  borlas morrudas, passado pelo nariz; no pescoço um lenço colorado, com o nó republicano; na cintura um  tirador de couro de lontra debruado de tafetá azul e mais cheio de cortados do que manchas tem um  boi salino!

E na cintura, atravessado com entono, um facão de três palmos, de conta.                  

Na pabulagem, andava sozinho: quando falava, era alto e grosso e sem olhar para ninguém.

Era um governo, o negro!

Ora  bem;  depois  de  se  mostrar  um  pouco,  o  negro  apeou  a  chirua  e  já  meio  entropigaitado  começou a pastorejar a Tudinha... e tirando-se dos seus cuidados encostou o cavalo rente no dela e aí  no mais, sem um Deus te salve! sacudiu-lhe um envite para uma paradita na carreira grande. A piguancha relanceou os seus olhos de veado assustado e não se deu por achada; ele repetiu o convite  da  aposta  e  ela  então depois  explicou  de  puro  medo  aceitou,  devendo  ganhar  uma  libra  de  doces, se ganhasse o tordilho. O tordilho era o do Nadico.

Ficou fechado o trato.

O negro era ginetaço!  deu de rédea no lobuno, que virou direito, nos dois pés, e já lhe
cravou as chilenas, grandes como um pires, e saiu escaramuçando, meio ladeado!

Os quatro brancos se olharam… o Nadico estava esverdeado, como defunto passado...

A Tudinha pegou logo a caturritar, e a cousa foi passando, como esquecida.

Mas, quê!... o negro estava jurado...

Escuite.

 Entraram na cancha os parelheiros, todos dois pisando na ponta do casco, mui bem compostos e  lindos, de se lavar com um bochecho d’água.

 Fizeram as partidas; largaram; correram: ganhou, de fiador, o do Nadico, o tordilho.

Depois rompeu um vozerio, a gente desparramou-se, parecia um formigueiro desmanchado; as  parcerias se juntaram, uns pagavam, outros questionavam.... mas tudo se foi arreglando em ordem,  porque ninguém foi capaz de apontar mau jogo.

 E foi-se tomar um vinho que os donos da carreira ofereceram, como gaúchos de alma grande, principalmente o major Terêncio, que era o perdedor.

 E a Tudinha lá foi, de charola.

No  barulho  das  saúdes  e  das  caçoadas,  quando  todos  se  divertiam,  foi  que  apareceu  aquele  negro excomungado, para aguar o pagode. Esbarrou o cavalo na frente do boliche; trazia na mão um  lenço de sequilhos, que estendeu a Tudinha: havia perdido, pagava...

 A  morocha  parou  em  meio  um  riso  que  estava  rindo  e  firmou  nele  uns  olhos  atravessados,  esquisitos, olhos como pra gente que já os conhecesse.., e como sentiu que o caso estava malparado,  para evitar o desaguisado, disse:

Faz favor de entregar à mamãe, sim?!. .

 O negro arreganhou os beiços, mostrando as canjicas, num pouco caso e repostou:

Ora, misturada!..., eu sou teu negro, de cambão!..  mas não piá da china velha! Toma!

 E estendeu-lhe o braço, oferecendo o atado dos doces.

 Aqui, o Nadico manoteou e no soflagrante sopesou a trouxinha e sampou com ela na  cara do  muçum.

Amigo! Virge’ nossa senhora!

 Num pensamento o negro boleou a perna, descascou o facão e se veio!...

 O lobuno refugou, bufando.


 Que peleia mais linda!

Vinte ferros faiscaram; era o Nadico, eram os outros namorados da Tudinha e eram outros que tinham contas a ajustar com aquele tição atrevido.

Perto do negro Bonifácio, sentado sobre um barril, sem ter nada que ver no angu, estava um paisano  tocando  viola:  o  negro   pra  fazer  boca,  o  malvado!   largou-lhe  um  revés,  tão  bem  puxado, que atorou os dedos do coitado e o encordoamento e afundou o tampo do estrumento!...

Fechou o salseiro.

O Nadico mandou a adaga e atravessou a pelanca do pescoço do negro, roçando na veia artéria;  o major tocou-lhe fogo, de pistola, indo a bala, de refilão, lanhar-lhe uma perna.., o ventana quadrava  o corpo, e rebatia os talhos e pontaços que lhe meneavam sem pena.

 E calado, estava; só se via no carão preto o branco dos olhos, fuzilando...

Ai!...

Foi um grito doido da Tudinha... e já se viu o Nadico testavilhar e cair, aberto na barriga, com a  buchada de fora, golfando sangue!...

 No meio do silêncio que se fez, o negro ainda gritou:

Come agora os meus sobejos!…

 Depois, roncou, tal e qual como um porco acuado... e então, foi uma cousa bárbara!...

 Em quatro paletadas, desmunhecando uns, cortando outros, esgaravatando outros, enquanto o diabo  esfrega  o  olho,  o  chão  ficou  estivado  de  gente  estropiada,  espirrando  a  sangueira  naquele  reduto.

É  verdade  também  que  ele  estava  todo  esfuracado:  a  cara,  os  braços,  a  camisa,  o  tirador,  as  pernas, tinham mais lanhos que a picanha de um reiúno empacador: mas não quebrava o corincho, o  trabuzana!

 Aquilo seria por obra dalguma oração forte, que ele tinha, cosida no corpo.

 A esse tempo, era tudo um alarido pelo acampamento; de todos os lados chovia gente no lugar  da briga.

A Tudinha, agarrada ao Nadico, com a cabeça pousando-lhe no colo, beijando-lhe ela os olhos  embaciados e a boca já morrente, ali, naquela hora braba, à vista de todo o mundo e dos outros seus  namorados, que se esvaíam, sem um consolo nem das suas mãos nem das puas lágrimas, a Tudinha  mostrava mesmo que o seu camote preferido era aquele, que primeiro desfeiteou e cortou o negro,  por causa dela...

Foi então que um gaúcho gadelhudo, mui alto, canhoto, desprendeu da cintura as boleadeiras e  fê-las  roncar  por  cima  da  cabeça…  e  quando  ia  a  soltá-las,  zunindo,  com  força  pra  rebentar  as  costelas dum boi manso, e que o negro estava cocando o tiro, de facão pronto pra cortar as sogas...  nesse mesmo momento e instante a velha Fermina entrou na roda, e ligeira como um gato, varejou no  Bonifácio  uma  chocolateira  de  água  fervendo,  que  trazia  na  mão,  do  chimarrão  que  estava  chupando.. 

O  negro  urrou  como  um  touro  na  capa...;  a  rumo  no  mais  avançou  o  braço,  e  fincou  e  suspendeu,  levantou  a  velha,  estorcendo-se,  atravessada  no  facão  até  o  esse...;  ao  mesmo  tempo,  mandado por pulso de homem um bolaço cantou-lhe no tampo da cabeça e logo outro, no costilhar, e  o negro caiu, como boi desnucado, de boca aberta, a língua pontuda, mexendo em tremura uma perna, onde a roseta da chilena Unia, miúdo...

Patrício, escuite!

 Vi  então  o  que  é  uma  mulher  rabiosa...:  não  há  maneia  nem  buçal  que  sujeite:  é  pior  que homem!...

 A  Tudinha  já  não  chorava,  não;  entre  o  Nadico,  morto,  e  a  velha  Fermina  estrebuchando,  a  morocha  mais  linda  que  tenho  visto,  saltou  em  cima  do  Bonifácio,  tirou-lhe  da  mão  sem  força  o  facão e vazou os olhos do negro, retalhou-lhe a cara, de ponta e de corte... e por fim, espumando e  rindo-se, desatinada  bonita, sempre!   ajoelhou-se ao lado do corpo e pegando o facão como  quem finca uma estaca, tateou no negro sobre a bexiga, pra baixo um pouco  vancê compreende?...  e uma, duas, dez, vinte, cinqüenta vezes cravou o ferro afiado, como quem espicaça uma cruzeira  numa toca. . como quem quer estraçalhar uma causa nojenta... como quem quer reduzir a miangos  uma prenda que foi querida e na hora é odiada!. .

 Em  roda,  a  gauchada  mirava,  de  sobrancelhas  rugadas,  porém  quieta:  ninguém  apadrinhou  o  defunto.

Nisto um sujeito que vinha a meia rédea sofrenou o cavalo quase em cima da gente: era o juiz  de paz.

 Mais tarde vim a saber que o negro Bonifácio fora o primeiro a... a amanonsiar a Tudinha; que  ao  depois  tomara  novos  amores  com  outra  fulana,  uma  piguancha  de  cara  chata,  beiçuda;  e  que  naquele dia, para se mostrar, trouxera na garupa a novata, às carreiras, só de pirraça, para encanzinar,  para tourear a Tudinha, que bem viu, e que apesar dos arrastados de asa daquela moçada e sobretudo  do Nadico, que já a convidara para se acolherar com ele, sentira-se picada, agoniada da desfeita que  só ela e o negro entendiam bem...; por isso é que ela ficou como cobra que perdeu o veneno...

Escuite.

Até hoje me intriga, isto: como uma morena, tão linda, entregou-se a um negro, tão feio?. .

 Seria de medo, por ele ser mau?... Seria por bobice de inocente?... Por ele ser forçudo e ela,  franzina?... Seria por...

Que, de qualquer forma, ela vingou-se, isso, vingou-se...; mas o resto que ela fez no corpo do negro?  Foi  como  um  perdão  pedido  ao  Nadico  ou  um  despique  tomado  da  outra,  da  piguancha  beiçuda?. .

Ah! mulheres!...

Estancieiras ou peonas, é tudo a mesma cousa. . tudo é bicho caborteiro...; a mais santinha tem  mais malícia que um sorro velho!...

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Nota:
João Simões Lopes Neto: "Contos Gauchescos" (1912)

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