AWAY!
Michelet compara os dias a pontes que, uma vez
atravessadas, abatem desaparecendo no abismo do tempo. Ninguém retrocede — a
Fatalidade lá está para cortar a retirada. Não há exemplo de um só homem que tenha, da velhice embranquecida e gelada, recuado aos claros dias da mocidade. Mal
passamos a ponte, sem que ouçamos o fragor
da queda, sentimo-la aluir-se, vêmo-la desaparecer
no vértice fundo, onde pululam milhões
de vidas.
Do outro lado os mais fortes deixam pegadas eternas, os semeadores deixam germens esparsos
que darão aos vindouros sombra e fruto,
os tristes deixam lagrimas que formam
nateiros fecundos, mas nenhum regressa
áquela barranca adorada cuja paisagem, á
distancia, esbatida na saudade, como que
se torna mais fagueira, porque ninguém vê os curtos e agudos espinhos nem os calhaus afiados,
mas a massa de verdura imponente, a sempre viçosa e admirável natureza e a estrada lisa e
brana, ora larga, ora augusta, entre
penhas alcandoradas ou frescos vergéis
floridos.
Indo, em tumulto alegre, acenando com palmas e flores, vão as crianças através da ponte. Que
lhes importa que alua aquela passagem
que as conduz ao futuro? Não voltam os
olhos porque não têm saudades, correm ansiosas, aligeirando cada vez mais os passos porque entendem que a felicidade
está além, no brumal distante e lá vão!
Mas acompanhai o velhinho e vê-lo-eis
voltar-se, a todo o instante, diminuindo
os passos, porque um minuto que avança na
manhã apressa o esplendor, um segundo que passa no crepúsculo leva á desesperança. A ascensão
é lenta, o mergulho é instantâneo.
Para os que agora entram na vida o tempo é festivo. Ano novo! Ano novo! Ai! dos que caminham carregados de anos! Para esses os
novos dias serão um fardo pesadíssimo
que ainda mais os curvará na estrada.
Lá vão eles tardigrados, arquejando, com os corações transbordantes e os olhos marejados. Quantos abismos vencidos e, no fundo deles, quantos
sonhos, quanta ventura, quanta ilusão perdida.
Quis Deus nascer nos últimos dias do ano como para tornar a sua creche um diversório bendito
onde as almas repousem e tomem o viático
da esperança com que se alentem na
Terra.
E ali, na gruta paupérrima, entre o jumento e o boi, sobre
a palha olorante que Jesus se exibe.
Chegam-se todos os crentes ao tugúrio, ourem os cantos angélicos, escutam a égloga dos
pastores e contemplam a Santa Família
que rodeia o predestinado Mártir. Os
mais aflitos sentem-se alivia-os na
suave companhia e recobram a coragem
para a jornada fatal. Enquanto adoram o Infante
esquecem os tormentos e pensam na redenção futura, no prêmio magnífico que lhes
está reservado no céu e, retomando o
cajado, lá vão contentes, ao longo da
estrada luminosa.
Ano Novo! Que veremos nós além da ponte de S. Silvestre? Chegarão todos á outra margem? Quantos se abismarão com a trilha oscilante?!
Que desapareçam! o Tempo não se fatiga
e, para os que chegam, lança novas
passagens e logo as retira como o
soldado do castelo recolhia a levadiça á entrada do ultimo falcoeiro e do ultimo
montaraz, quando o senhor tornava, com
estrondo de charamelas e ladrar de
matilhas, das montarias que fizera com a gente nobre do seu solar.
Nem todos atravessarão a ponte que nos vai ligar ao ano próximo, mas para que a vida continue, basta que passe um casal, como o que saiu do Paraíso no dia do pecado e esse, entretido com
o amor, nem dará pelo silencio propicio,
nem se lembrará da mortalha que ficou
atrás. O melhor é seguirmos despreocupadamente — não imitemos a mulher de Ló. A ponte é frágil,
Deus assim a fez para que não
retrocedêssemos e pudéssemos conhecer
todos os bens, e todos os males da vida.
Se nos fosse dado permanecer num mesmo sitio, á sombra aceitosa da mesma arvore redolente e frutífera,
com um claro arroio para nossa sede serpeando
á volta do nosso descanso, ficaríamos satisfeitos
com essa sossegada e doce existência? não! Havíamos de
querer avançar e falaríamos com
a mesma ânsia com que falou o astuto Ulisses
desligando-se dos encantos de Ogígia e
das seduções de Calipso á medida que ia
prendendo, com fortes pregos de bronze,
os grossos troncos de cedro e de teca da sua jangada:
“Oh! Deusa, não te escandalizes! mas ainda que não existissem, para me levar, nem filho, nem
esposa, nem reino, eu afrontaria
alegremente os mares e a ira dos Deuses!
Porque, na verdade, oh Deusa muito ilustre,
o meu coração saciado já não suporta esta paz, esta doçura e esta beleza imortal.
Considera, oh Deusa, que em oito anos
nunca vi a folhagem destas arvores amarelecer
e cair. Nunca este céu rutilante
se carregou de nuvens escuras; nem tive o contentamento de estender, bem abrigado, as
mãos ao doce lume, enquanto a borrasca
grossa batesse nos montes... Deusa, há
oito anos que não olho para uma
sepultura, não posso mais com esta serenidade sublime! Toda a minha alma arde no desejo do
que se deforma e se suja e se espedaça e
se corrompe. Oh! Deusa imortal, eu morro
com saudades da morte”!
Não é essa, em verdade, uma perfeita e saliente representação da eterna e insaciável
curiosidade do Homem que nem com o Bem
se contenta e vai caminho do Mistério só
para ver “algo nuevo” como o navegador?
Se isso ó próprio da condição humana,
vamos ao nosso destino de curiosos, mas vamos contentes, cantando e rindo, como
os companheiros de Tailefer, em
Hastings.
Deixemos que o abismo atroe com o rolar dos destroços da ponte atravessada — ó o nosso
passado que rola, é o dia de ontem que
lá fica e que nunca mais avistaremos.
Deixemo-lo no abismo e vamos para o amanhã,
para a linda e refulgente ponte de cristal que reluz ao sol entre as duas margens — a do que
foi e a do que vai ser.
Que há nos longes? nevoas; e dentro das nevoas? a gloria, talvez, talvez... Que importa!
vamos ver “algo nuevo”!
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Nota:
Coelho Neto: “A Pico de Pena” (1904), da Colecção Revivendo, N.° 4, publicado pela Lello & Irmão Editores, edição de 1925.
Advertência:
Alguns termos inseridos neste conto apresentam sentido obscuro ou são resultados de erros no processo de digitalização da obra. Assim, caso possa contribuir para o esclarecimento de algumas dessas dificuldades ortográficas, entre em contato conosco, no e-mail: iba@ibamendes.com
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