domingo, 18 de agosto de 2013

Coelho Neto: "Away!"

AWAY! 

Michelet compara os dias a pontes que, uma vez atravessadas, abatem desaparecendo no abismo do tempo. Ninguém retrocede — a Fatalidade lá está para cortar a retirada. Não há exemplo de um só  homem que tenha, da velhice embranquecida e  gelada, recuado aos claros dias da mocidade. Mal passamos a ponte, sem que ouçamos o  fragor da queda, sentimo-la aluir-se, vêmo-la  desaparecer no vértice fundo, onde pululam  milhões de vidas.

Do outro lado os mais fortes deixam pegadas  eternas, os semeadores deixam germens esparsos  que darão aos vindouros sombra e fruto, os tristes  deixam lagrimas que formam nateiros fecundos,  mas nenhum regressa áquela barranca adorada cuja  paisagem, á distancia, esbatida na saudade, como  que se torna mais fagueira, porque ninguém vê os  curtos e agudos espinhos nem os calhaus afiados, mas a massa de verdura imponente, a sempre  viçosa e admirável natureza e a estrada lisa e brana,  ora larga, ora augusta, entre penhas alcandoradas ou  frescos vergéis floridos.

Indo, em tumulto alegre, acenando com palmas e  flores, vão as crianças através da ponte. Que lhes  importa que alua aquela passagem que as conduz ao  futuro? Não voltam os olhos porque não têm  saudades,  correm ansiosas,  aligeirando cada vez mais  os passos porque entendem que a felicidade está além,  no brumal distante e lá vão! Mas acompanhai o  velhinho e vê-lo-eis voltar-se, a todo o instante,  diminuindo os passos, porque um minuto que avança  na manhã apressa o esplendor, um segundo que passa  no crepúsculo leva á desesperança. A ascensão é lenta,  o mergulho é instantâneo.

Para os que agora entram na vida o tempo é  festivo. Ano novo! Ano novo! Ai! dos que  caminham carregados de anos! Para esses os novos  dias serão um fardo pesadíssimo que ainda mais os  curvará na estrada.

Lá vão eles tardigrados, arquejando, com os  corações transbordantes e os olhos marejados.  Quantos abismos vencidos e, no fundo deles,  quantos  sonhos,  quanta ventura,   quanta ilusão perdida.

Quis Deus nascer nos últimos dias do ano como  para tornar a sua creche um diversório bendito onde  as almas repousem e tomem o viático da esperança  com que se alentem na Terra.

E ali, na gruta paupérrima, entre o jumento e o boi, sobre a palha olorante que Jesus se exibe.

Chegam-se todos os crentes ao tugúrio, ourem os  cantos angélicos, escutam a égloga dos pastores e  contemplam a Santa Família que rodeia o  predestinado Mártir. Os mais aflitos sentem-se  alivia-os na suave companhia e recobram a  coragem para a jornada fatal. Enquanto adoram o  Infante esquecem os tormentos e pensam na redenção futura, no prêmio magnífico que lhes  está reservado no céu e, retomando o cajado, lá vão  contentes, ao longo da estrada luminosa.

Ano Novo! Que veremos nós além da ponte de  S. Silvestre? Chegarão todos á outra margem?  Quantos se abismarão com a trilha oscilante?! Que  desapareçam! o Tempo não se fatiga e, para os que  chegam, lança novas passagens e logo as retira como  o soldado do castelo recolhia a levadiça á entrada do ultimo falcoeiro e do ultimo montaraz, quando o  senhor tornava, com estrondo de charamelas e ladrar  de matilhas, das montarias que fizera com a gente nobre do seu solar.

Nem todos atravessarão a ponte que nos vai ligar  ao ano próximo, mas para que a vida continue,  basta que passe um casal, como o que saiu do  Paraíso no dia do pecado e esse, entretido com o  amor, nem dará pelo silencio propicio, nem se  lembrará da mortalha que ficou atrás. O melhor é seguirmos despreocupadamente —  não imitemos a mulher de Ló. A ponte é frágil,  Deus assim a fez para que não retrocedêssemos e  pudéssemos conhecer todos os bens, e todos os  males da vida.

Se nos fosse dado permanecer num mesmo sitio,  á sombra aceitosa da mesma arvore redolente e frutífera, com um claro arroio para nossa sede  serpeando á volta do nosso descanso, ficaríamos  satisfeitos com essa  sossegada e doce existência?   não!  Havíamos  de  querer   avançar e falaríamos com a  mesma ânsia com que falou o astuto Ulisses  desligando-se dos encantos de Ogígia e das seduções de  Calipso á medida que ia prendendo, com fortes pregos  de bronze, os grossos troncos de cedro e de teca da sua  jangada:

“Oh! Deusa, não te escandalizes! mas ainda que  não existissem, para me levar, nem filho, nem esposa,  nem reino, eu afrontaria alegremente os mares e a ira  dos Deuses! Porque, na verdade, oh Deusa muito  ilustre, o meu coração saciado já não suporta esta  paz, esta doçura e esta beleza imortal. Considera, oh  Deusa, que em oito anos nunca vi a folhagem destas  arvores amarelecer e cair. Nunca  este  céu rutilante  se  carregou  de nuvens escuras; nem tive o  contentamento de estender, bem abrigado, as mãos ao  doce lume, enquanto a borrasca grossa batesse nos  montes... Deusa, há oito anos que não olho para  uma sepultura, não posso mais com esta serenidade  sublime! Toda a minha alma arde no desejo do que se  deforma e se suja e se espedaça e se corrompe. Oh!  Deusa imortal, eu morro com saudades da     morte”!

Não é essa, em verdade, uma perfeita e saliente  representação da eterna e insaciável curiosidade do  Homem que nem com o Bem se contenta e vai  caminho do Mistério só para ver “algo nuevo”  como o navegador? Se isso ó próprio da condição  humana, vamos ao nosso destino de curiosos, mas vamos contentes, cantando e rindo, como os  companheiros de Tailefer, em Hastings.

Deixemos que o abismo atroe com o rolar dos  destroços da ponte atravessada — ó o nosso passado que  rola, é o dia de ontem que lá fica e que nunca mais  avistaremos. Deixemo-lo no abismo e vamos para o  amanhã, para a linda e refulgente ponte de cristal que  reluz ao sol entre as duas margens — a do que foi e a do  que vai ser.

Que há nos longes? nevoas; e dentro das nevoas? a  gloria, talvez, talvez... Que importa! vamos ver “algo  nuevo”!


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Nota:
Coelho Neto: “A Pico de Pena” (1904), da Colecção Revivendo, N.° 4, publicado pela Lello & Irmão Editores, edição de 1925.
Advertência:
Alguns termos inseridos neste conto apresentam sentido obscuro ou são resultados de erros no processo de digitalização da obra. Assim, caso possa contribuir para o esclarecimento de algumas dessas dificuldades ortográficas, entre em contato conosco, no e-mail: iba@ibamendes.com

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