NO MANANTIAL
Está vendo aquele umbu, lá
embaixo, à direita do coxilhão?
Pois ali é a tapera do Mariano.
Nunca vi pêssegos mais bonitos que os que amadurecem naquele abandono; ainda
hoje os marmeleiros carregam, que é uma temeridade!
Mais para
baixo, como umas
três quadras, há
uns olhos-d’água, minando
as pedras, e logo
adiante uns coqueiros; depois pega um
cordão de araçazeiros.
Diziam os antigos que ali
encostado havia um lagoão mui fundo onde até jacaré se criava.
Eu, desde guri conheci o lagoão
já tapado pelos capins, mas o lugar sempre respeitado como um tremedal
perigoso: até contavam
de um mascate
que aí atolou-se
e sumiu-se com
duas mulas cargueiras e canastras e tudo...
Mais de uma rês magra ajudei a
tirar de lá; iam à grama verde e atolavam-se logo, até a papada.
Só cruzam ali por cima as
perdizes e algum cusco leviano.
Com certeza que as raízes do
pasto e dos aguapés foram trançando uma enrediça fechada, e o barro e
as folhas mortas
foram-se amontoando e,
pouco a pouco,
capeando, fazendo a
tampa do sumidouro.
E depois nunca deram desgoto na ponta do lagoão, porque, se dessem, a água
corria e não se formaria o mundéu…
Mas, onde quero chegar: vou
mostrar-lhe, lá, bem no meio do manantial, uma cousa que vancê nunca pensou
ver; é uma roseira, e sempre carregada de rosas...
Gente vivente não apanha as
flores porque quem plantou a roseira foi um defunto... e era até agouro um
cristão enfeitar-se com uma rosa daquelas!...
Mas, mesmo ninguém poderia lá
chegar; o manantial defende a roseira baguala: mal um firma o pé na beirada, tudo aquilo treme
e bufa e borbulha...
Uns carreteiros
que acamparam na tapera
do Mariano contaram
que pela volta
da meia-noite viram sobre o
manantial duas almas, uma, vestida de branco, outra, de mais escuro.., e
ouviram uma voz que chorava um choro mui
suspirado e outra que soltava barbaridades...
Mas como era longe e eles estavam
de cabelos em pé... pois nem os cachorros acuavam, só uivavam... uivavam... não
puderam dar uma relação mais clara do caso.
E o lugar ficou mal-assombrado.
Mas, onde quero chegar: foi
assim, como lhe vou contar. Estes campos eram meio sem dono, era uma pampa
aberta, sem estrada nem divisa; apenas os trilhos do gado cruzando-se entre
aguadas e querências.
A gadaria, não se pode dizer que
era alçada: quase toda orelhana, isso sim.
Mas vivia-se bem, carne gorda
sobrava, e potrada linda isso era ao cair do laço.
O Mariano apareceu aqui, diz que
vindo de Cima da Sena, corrido dos bugres; uns, porque lhe morrera
a mulher da
bexiga preta, outros
ainda, à boca
pequena, que não
era por santo
que ele mudara de cancha.
Mas fosse como fosse, chegou e
arranchou-se.
Trazia para o brigadeiro Machado
uma carta que devia ser de gente pesada, porque o brigadeiro tratou-o muito bem
e decerto foi com o seu consentimento que ele aboletou-se aqui nos pagos.
Tocava uma carreta de tolda, uma
ponta de gado manso e uma quadrilha de ruanos.
De gente, ele, duas velhuscas,
uma menina, uns pretos, campeiros e uma negra mina, chamada mãe Tanásia.
A menina era filha dele; das
velhas uma era a avó da criança, e a outra, irmã dessa, vinha a ser tia-avó.
Ele dava-se por genro da velha, mas não era: havia suspendido com a moça da
casa, e depois nunca se proporcionou ocasião de padre para fazer-se o
casamento, e o tempo foi passando até que a defunta morreu,
ficando a inocente
nesse paganismo de
não ser filha
de casal legítimo...
por sacramento. Mas davam-se bem, todos.
O paisano era trabalhador e
entendido nas cousas; desde o torrão para os ranchos, e quinchar,
madeiras, cercados, lavouras,
tudo passou pelas
suas mãos. E
tanto falquejava um
linhote como semeava uma quarta
de trigo, e já capava um touro como amanonsiava um bagual.
Quando Maria
Altina era a
menina, a filha
dele andava nos
dezasseis anos, este
arranchamento era um paraíso: o
arvoredo todo crescido e dando; lavouras, criação miúda, de tudo era uma
fartura; havia galpões, eira, currais, tafona.
O Mariano e as duas velhas
traziam nas palminhas a pequena. Ela era o ai-jesus! de todos, até dos negros.
Duma feita que a família foi ao
povo, para um terço de muita fama que se rezou na casa do brigadeiro Machado, a
Maria Altina fez um fachadão entre a moçada; mas de todos ela tomou-se de
camote com um tal André, que era furriel e gauchito teso. Não entro nisto mais
pelo miúdo porque não vale a pena de falar nestes chicos pleitos de namoriscos
e milongagens de crianças.
Mas segue-se é que na despedida
da volta o furriel André deu-lhe uma rosa colorada, com um pé de palmo.... e ela atravessou a flor no seu chapéu de
palha, ali no mais, com toda a inocência, à vista de todos.
Cá pra mim havia algum conchavo
entre o brigadeiro e o Mariano, porque naquele soflagrante da flor os dois
piscaram os olhos um para o outro e riram-se à sorrelfa por debaixo do bigode.
Ah!... o
furriel era afilhado
e ordenança do
galão-largo... e até
diziam mais alguma
cousa… Vancê entende!...
A comitiva nessa noite pousou no
caminho, e a menina deu jeito e arrumou a rosa numa botija com água, para não
murchar.
De manhãzita, marcharam; e de
chegada em casa, o primeiro cuidado da pécora foi cortar a rosa bem rente do
cachimbo e plantar o galho numa terra peneirada e fresquinha.
E tais cuidados deu-lhe que a
planta pegou, botando raízes firmes e espigando ramos e folhas; e quando vieram
os primeiros botões, ela apanhou-os, fez um ramo todo cheiroso, amarrou-o com a
fita dos cabelos e foi prendê-lo no pé da cruz dum Nosso Senhor que estava na
frente do oratório.., como quem dá uma prenda, a modo de pagamento de promessa
feita!..
Nesse entrementes cousa arranjada
pelo brigadeiro o furriel pousou em casa do Mariano, de passagem
para um destacamento
onde ia levar
ofícios. Foi um
alegrão para todos,
mas para a Maria Altina, nem se fala!...
Vancê pense... A paisaninha só
teve alma e vida e coração para o moço... ele também estava entregue, de rédea
no chão.
Aquela visita trazia água no
bico... era o trato de casamento.
Depois que
o furriel se
foi as velhas
pegaram a fazer
rendas de bilro
e outros preparos
do aprontamento da noiva.
A roseira estava em todo o viço:
recendia que era um gosto e bordava de vermelho o caniçado da horta, que se via
desde longe.
Mas, perto da pomba andava
rondando o gavião.
Na Restinguinha, obra de um
quarto de légua pra lá do Mariano, morava um tal Chico Triste, que tinha filhos
como rato, e o mais velho era já homem feito.
Este, que pro caso chamava-se
Chicão, andava mui enrabichado pela Maria Altina.
Ele era um bruto, que só olhava,
só queria a Maria Altina de carne e osso. Do mais não se lhe dava; não queria
saber se a menina era vergonhosa, ou trabalhadeira ou prendada.
Ele só
olhava-me para as
ancas, e os
seios, e para a grossura
dos braços; era,
mal comparando, como um pastor no faro de uma guincha..
A rapariga tinha-lhe quase tanto
medo como raiva. Uma vez ele pediu-lhe uma muda da roseira, e ela, sem negar,
para não fazer desfeita, disse-lhe que tirasse o que quisesse.
Mas eu quero é dada pela
senhora!...
Ah! não!…: Tire o senhor mesmo, a
seu gosto...
Não dá?... pois qualquer dia pico
a facão toda essa porcaria!...
E levantou-se e saiu, todo
apotrado.
Outras vezes trazia-lhe de
presente ovos de perdiz. ou ninhadas de mulitas, que ela criava com paciência e
logo que podiam manter-se, largava para o campo. Uma ocasião trouxe-lhe um
veadinho; ela soltou-o; uns gatos viscachas, soltou-os também.
O
Chicão que não
via nunca os seus
presentes, soube do caso, e,
por despique, apanhou
uns quantos filhotes de avestruz, e a tirões arrancou-lhes ainda vivos,
criatura! as pernas e as asas, e assim
arrebentados e estrebuchando, mandou-os
à Maria Altina;..
a pobre desatou
num pranto de choro, ao ver a malvadez daquele judeu...
Assim estavam as cousas quando o
furriel passou e logo depois correu a nova do casamento.
O
Chicão espumou de
raiva... Levava os cavalos a
sofrenaços, os cachorros
a arreador, os irmãos a manotaços e até a mãe, com
respostas duras.
Só respeitava o pai, o velho
Chico, e assim mesmo porque este tinha marca na paleta, mas não era tambeiro..
No dia
véspera da barbaridade, houve
na casa do
Chico Triste um
batizado feito por um
padre missioneiro que ia de caminho; a gente do Mariano foi convidada. Nessa
noite comeram doces, tocaram viola, cantaram e até dançaram uma tirana e o anu.
Aí o Chicão cargoseou muito a Maria
Altina.
A jantarola e o resto do festo
iam ser no dia seguinte que foi o do caso.
Vancê acredita?... Nesta manhã,
desde cedo, os pica-paus choraram muito nas tronqueiras do curral e nos
palanques... e até furando no oitão da casa;... mais de um cachorro cavoucou o
chão, embaixo das carretas;… e a Maria Altina achou no quarto, entre a parede e
a cabeceira da cama, uma borboleta preta, das grandes, que ninguém tinha visto
entrar...
Sol nado o Mariano e uma das
velhas foram para o riste, para dar um ajutório. Os campeiros, como de costume,
para os seus serviços, uns de campo, outros lenhar.
Na casa só ficaram, para irem
mais tarde, a Maria Altina e a outra velha, que era a avó; e para as duas,
debaixo do umbu, dois mancarrões encilhados.
Ficou também a negra mina, que
viu tudo e foi quem fez o conto.
A
avó estava na
cozinha frigindo uns
beijus e a
Maria Altina na
varanda, apenas em
saia, arrematava um timãozinho novo.
Na cabeça,
como gostava, trazia
uma rosa fresca,
e que ficava-lhe
sempre a preceito
no negrume da cabeleira. E garganteava umas coplas que tinha aprendido
na véspera, quando dançava a tirana e se divertia. Umas coplas que eram assim…
e me lembro, porque quem as botou para uma outra foi mesmo este seu criado
Matias!...
Quem canta pra tu ouvires
Devia morrer cantando...
Pois quando daqui saíres,
Do cantor vais te olvidando;
E, pode ser que morrendo,
Dele então tu te lembrasses:
Se visses outro defunto,
Ou se outra vez tu dançasses...
Minha voz no teu ouvido,
Soluçaria de dor,
Não por deixar a vid…
E nem acabou o verso, porque
estourou na cozinha um esconjuro e logo a voz da avó, sumida e arroucada, gritando
bandido! bandido! e
depois um gemido
ansiado, uns ais…
e um baque surdo...
De pé, com o timãozinho numa mão
e a agulha na outra, pálida como a cal da parede, o coração parado, Maria
Altina pregada no chão, de puro medo, ouviu... ouviu…, e aí no mais entrou e
veio a ela o Chicão..., o Chicão, entende vancê? com uns olhos de bicho acuado,
e um bafo de fogo, na boca...
E como chegou, atropelou-a,
agarrou-a, apertou-a, abraçando-a pela cintura, metendo a perna entre as
dela, forcejando por
derrubá-la, respirando duro,
furioso, desembestado... mais
mordendo que beijando o pescoço amorenado... e garboso...
A rapariga gritou, empurrando-o
num desespero, arranhando-lhe a cara, ladeando o corpo... por fim atacou-lhe os
dentes num braço.
Ele urrou com a dor e largou-a um
momento; ela aproveitou o alce e disparou.. , ele quis pegá-la de novo, mas no
mover-se enredou as esporas no timãozinho que caíra, e testavilhou maneado…
A
pobre, ao passar
pela cozinha viu
a avó estendida,
com as roupas
enrodilhadas, a cabeça branca numa sangueira... e então
desatinada, num pavor, correu para o umbu e foi o quanto pulou a cavalo e já
tocou, a toda, coxilha abaixo!...
Mas, logo,
logo, mesmo sem se voltar,
sentiu-se quase alcançada
pelo Chicão, que
também montara e se lhe vinha em perseguição...
E os dois, à que te pego! à que
te largo! se despencaram por aquele lançante, em direitura ao manantial! E, ou
por querer atalhar, ou porque perdesse a cabeça ou nem se lembrasse do perigo,
a Maria Altina encostou o rebenque no matungo, que, do lance que trazia costa
abaixo, se foi, feito, ao tremendal, onde se afundou até as orelhas e começou a
patalear, num desespero!…
A
campeirinha varejada no
arranco, sumiu-se logo
na fervura preta
do lodaçal remexido
a patadas!... E como rastro, ficou em cima, boiando, a rosa do penteado.
E da mesma carreira, o cavalo do
Chicão, que também vinha tocado à espora e relho, cbapulhou no pantanal,
um pouco atrás
do outro, cousa
de braça e
meia... e ali
ficou, o corpo
todo sumido, procurando agüentar
as ventas, as orelhas fora da água.
O Chicão, agora deslombando-se em
esforços para sair da enrascada, não podia, porque bem sentia as esporas
enleadas nas raízes e os cabrestilhos
eram fortes…. e parecia-lhe que tinha um pé quebrado por uma patada do cavalo,
que se despedaçava aos arrancos, sentindo-se chupado para o fundo...
Depois desse estropício, tudo
ficou como estava: tudo no sossego, o sol subindo sempre, nuvens brancas correndo
no céu, passarinhos
cruzando para um
lado e outro… os
galos cantando lá em
cima… uns latidos, muito longe… pios de perdiz… algum inhé de sapo ali perto…
Parecia que nada se havia dado:
se não fosse a rosa colorada boiando, lá, e o Chicão atolado até o peito, mais
pra cá.
O cavalo dele, com a cabeça
alinhada, mal podia agüentar fora da água o focinho e ressolhava, o pobre,
puxando a respiração
em assobios grossos,
e o dono,
todo salpicado de
barro, suava em cordas, cada vez mais ansiado, não podendo
desprender-se das malditas esporas, que o sujeitavam em cima
do bagual, que ia se
afundando… afundando… afundando…
E a cada
sacudida feita naquele reduto
todo o manantial bufava e borbulhava…
Com pouco mais o Chicão desceu
ainda, atolado até os sovacos; o cavalo já se não via e nem bulia, sufocado e
morto, pesando entregue no mole do tremedal…
E as esporas… as malditas
esporas, nem nada!…
Obrigado pela
postura em que
estava, ele olhava
para o buraco
que tinha engolido
a Maria Altina: sobre a água
barrenta, escura, nadavam folhas secas, capins pisoteados, gravetos... e no
meio deles, limpa e fresca, boiava a rosa que se soltara dos cabelos da
cobiçada no momento em que ela entrava pela morte a dentro, dentro do
lodaçal...
E o tempo foi passando, a
tranqüito, sem pressa nem vagar.
Vancê lembra-se? ...
Como eu
disse, havia ficado
em casa, além
das brancas, a
tia mina, −
a mãe Tanásia
− que, quando sentiu
a desgraceira, ganhou
no paiol, escondendo-se
e daí pode
bombear alguma cousa.
Quando viu as criaturas montarem
e tocarem como caça e caçador a mãe Tanásia saiu da toca e voltou à cozinha,
dando com a nhanhã… morta, e logo viu que a sinhazinha fugira. E pensou em
ir ao
Chico Triste, avisar o Mariano.
O mais perto era
ir pelos olhos-d’água,
acima do manantial;
desceu o caminho; costeou pelas pedras e quando dobrava a estradinha
frenteou com o Chicão...
A mãe Tanásia ficou estatelada…,
e daí a pedaço em que olhou só, sem pensar nada foi
que a coitada falou.
— Eh! eh!… siô moço!… que é que
suncê fez!...
E o desalmado gritou-lhe:
Vai, bruaca velha, vai contar!...
— Ah! ah!... Deus perdoe!...
E foi andando, estradinha afora,
lomba acima, apurando o passo, um pouco renga.
Nesse meio tempo também chegavam
à casa os campeiros; era hora de comer; repararam que só estava amarrado um
cavalo; a casa aberta, silenciosa; um espiou pela janela da cozinha…, e gritou
pelos outros, benzendo-se. .
Lá estava
a senhora, com
a cabeça arrebentada
a olho de machado…,
O fogo apagado,
a banha coalhada, os beijus
frios…, e mui a seu gosto, de papo para o ar, dormindo na saia da morta, uma
gata brasina e a sua ninhada.
Chamaram pela mãe Tanásia...
gritaram.... procuraram... e nada! Um deles, mais alarife, propôs que
fugissem... que era melhor ser carambola do que ser estaqueado... que por certo
iam acusá-los daquela maldade,
Porém outro mais precatado disse:
— Cala a boca, parceiro... Vamos
é avisar sinhô velho...
E ficando uns de guarda,
tocaram-se os outros, a meia rédea, para o Triste, onde, fulos de medo,
desovaram a novidade,
Que canhonaço, amigo! A gentama
toda se alvorotou ; o que era de mulheres abriu num alarido, o que era homem
apresilhou as armas, e já se saiu, muitos de em pêlo, cobrindo a marca dos
fletes, o Mariano na frente, como um louco.
Eu estava
nessa arrancada. Chegamos
como um pé-de-vento
e conforme boleamos
a perna, vimos o mesmo que os
negros contavam. E da Maria Altina, nada; da mãe Tanásia, nada. Apenas no chão da
varanda novelos desparramados, a
mesa arredada, o
timãozinho novo com
um rasgão grande...
Nisto, um aspa-torta, gaúcho mui
andado no mundo e mitrado, puxou-me pela manga da japona e disse-me entre
dentes:
O Chicão repontava a rapariga;…
ele não estava em casa, nem veio conosco; ela não está….. Patrício... que lhe
parece?…
Hom!... respondi eu, e fiquei-me
com aquele zunido de varejeira no ouvido...
Mas o
paisano tinha o
estômago frio e
foi passando língua;. .
daí a pouco
todos faziam as mesmas contas, até que um, mais golpeado,
disse-o claro, ao Mariano!
O
homem relanceou os
olhos a ver
talvez se descobria
o Chicão... depois
teve a modo
uns engulhos e depois ficou como entecado...
Pensaria mesmo
que a filha
tinha fugido com
o querendão?... Quem
sabe lá!... Que
o rapaz rondava, isso
ele e todos
sabiam e que
ela não fazia
caso do derretimento,
isso também se
sabia: agora, como dum momento para o outro os dois se tinham combinado,
isso é que era!...
Mas ao mesmo tempo perguntava-se
— quem matou a velha e por quê?...
E quando estávamos neste balanço
ouvimos então a gritaria das mulheres, que tinham vindo de a pé, encontrando no
caminho a mãe Tanásia.
Em antes
de chegarem, já
os cuscos, ponteiros,
tinham começado a
acuar, por debaixo
dos araçazeiros; as crianças,
curiosas e mais
ligeiras, tinham corrido
pensando ser algum
bicho… e recuaram assustadas,
fazendo cara-volta, umas chorando, outras sem fala, apenas apontando para o
manantial...
E quando a ranchada das damas
chegou perto e viu… viu o Chicão atolado; o Chicão atolado, e logo adiante, no
barro revolvido, a rosa cobrada boiando; a rosa boiando, porque a moça estava
no fundo, afogada, porque... porque... por causa do Chicão?... por medo dele,
que queria abusar dela?... quando as senhoras-donas, todas caladas, viram
aquele condenado, e uma, mais animosa, gritou-lhe — cachorro
desavergonhado! —foi que
a mãe dele,
jungindo as lágrimas
para não saltarem, perguntou:
— Chicão, meu filho, que é
isto?...
— Atolado…. as esporas;… um
laço!...
— Filho!... que desgraça! E a
Maria Altina?...
— Aí!… embaixo da rosa. .
Foi neste ponto que rompeu o
alarido, os choros, os chamados que ouvimos lá em cima, nas
casas, e descemos logo. O Mariano
vinha com os olhos raiados de sangue e batendo os dentes, como porco
queixada...
E quando paramos todos e vimos o
jeito daquele rufião maldito, ainda um lembrou, alto:
— Vamos laçar o homem, e puxar cá
pra fora!...
O Mariano porém, gritou:
— Espera!... e voltando-se para o
atolado, indagou:
— Por que mataste a velha?...
Não!
— Viste a Maria Altina?
— Não!
— Que esburacado é esse, aí na
tua frente?
— Não sei!
— E aquela rosa... também não
sabes?...
— Pois sei, sim! É dela... e a
velha, também, fui eu.. e agora?...
— Vou rebentar-te a cabeça...
— Arrebenta! Se não fosse as
esporas!...
Então o Mariano sacou a pistola
do cinto e trovejou... e errou! Secundou o tiro e a bala quebrou o ombro do
Chicão, que deu um urro e estorceu-se todo; quis firmar-se, porém o braço são
afundava-se no barro, acamando os capins já machucados; com esses tirões e arrancos o manantial todo tremia e bufava,
borbulhando..
O Mariano amartilhou a outra
pistola; o Chicão berrou de lá:
— Mata! Eu não pude!. . mas o
furriel também não há-de!...
Mas nisto
a mãe dele
abraçou-se nos joelhos
do Mariano, e
o padre missioneiro
levantou a cruzinha do rosário,
meteu o Nosso Senhor Crucificado na boca do cano da pistola. . e o Mariano foi
baixando o braço... baixando, e calado varejou a arma para o lameiro...; mas de
repente, como um parelheiro largado de
tronco, saltou pra
diante e de
vereda atirou-se no
manantial... e meio
de pé, meio de
gatinhas, caindo, bracejando,
afundando-se, surdindo, todo
ele numa plasta
de barro reluzente, alcançou o
Chicão, e — por certo — firmando-se no corpo do cavalo morto, botou-se ao desgraçado, com
as duas mãos
escorrendo lodo apertou-lhe
o gasganete… e
foi calcando, espremendo, empurrando
para trás…, para
trás.. até que
num — vá!
— aqueles abraçados escorregaram, cortou o ar uma
perna, um pé do Chicão, — livre da espora — e tudo sumiu-se na fervura que
gorgolejou logo por cima!...
Imagine vancê,
aquilo passando-se ali
pertinho a meio
laço de distância
e ninguém podendo remediar…
Houve só uma palavra em todas as
bocas; Jesus, Senhor!...
O manantial borbulhava por todas
as costuras... Se fosse água limpa... Credo!..
D’espacito... d’espacito... o
missionário foi estendendo o braço, como esperando que as almas subissem...
depois riscou uma cruz larga, na claridade do dia; e ajoelhando-se na beira
daquela cova balofa, de três defuntos de razão de morrer tão diferente e de
morte tão a mesma, começou a rezar.
E logo no derredor a gentama
também se foi arrodilhando... e todos com os olhos firmados no manantial, e
todos de mãos
postas, todos empeçaram
um — Salve-Rainha
— que foi
alteando e subindo no descampado,
tão penaroso, tão sentido, tão do coração, que até parece que amansou os
próprios bichos, porque, entrementes, nem um cachorro latiu, nem passarinho
piou, nem cavalo se mexeu!...
Nas paradas da reza só se ouvia
os soluços da mãe do Chicão e um leve guasqueio do vento nas talas dos jerivás.
Acabada a
devoção e marchando
como uma procissão,
fomos para a
casa levando a
outra velhinha, a irmã
da que lá
estava, de cabeça
esmigalhada. Velamos o
corpo e na
manhã seguinte fizemos-lhe o
enterro, também lá embaixo, na costa do manantial.
O missioneiro benzeu, e então
fincamos uma cruz morruda, de cambará, para vigia às almas dos quatro mortos.
Depois, cada qual tomou seu rumo.
Anos depois
passei por aqui:
cortava a alma
olhar para o
arranchamento. Os negros
tinham tomado a alforria por sua mão, e se foram a la cria!... Ficaram
as duas mulheres, a mãe Tanásia e a sua senhora velha, que, por caridade, o
brigadeiro Machado mandou buscar pra casa dele.
O arranchamento ficou abandonado;
e foi chovendo dentro; desabou um canto de parede; caiu uma porta,
os cachorros gaudérios
já dormiam lá
dentro. Debaixo dos
caibros havia ninhos
de morcegos e no copiar pousavam as corujas; os ventos derrubaram os
galpões, os andantes queimaram as
cercas, o gado
fez paradeiro na
quinta. O arranchamento
alegre e farto
foi desaparecendo… o feitio da mão de gente foi-se gastando,
tudo foi minguando; as carquejas e as embiras invadiram; o gravatá lastrou;
só o umbu
foi guapeando, mas
abichornado, como viúvo
que se deu
bem em casado...; foi ficando
tapera... a tapera... que é sempre um lugar tristonho onde parece que a gente
vê gente que nunca viu… onde parece que até as árvores perguntam a quem chega:
— onde está quem me plantou?... onde está quem me plantou?...
Olhe! Veja vancê: ali embaixo... hem? ‘Stá
vendo?. . aqueles coqueiros, o matinho de araçás?
Pois é ali o manantial, que virou
sepultura naquele dia brabo em que desde manhã tanto agouro apareceu, de
desgraça: os pica-paus chorando... os cachorros cavoucando.. a bruxa preta entrada sem ninguém ver...
Sempre dói na alma, mexer nestas
lembranças. E há quem não acredite!...
A cruz… onde já foi!... mas a
roseira baguala, lá está! Roseira que nasceu do talo da rosa que ficou boiando
no lodaçal no dia daquele cardume de estropícios…
Vancê está vendo bem, agora?
Pois é... coloreando, sempre! Até
parece que as raízes, lá no fundo do manantial, estão ainda bebendo sangue vivo
no coração da Maria Altina...
Vancê quer,
paramos um nadinha.
Com isto damos
um alcezito aos
mancarrões, e eu..
desaperto o coração!…
Ah! saudade!... Parece que ainda
vejo a minha morena, quando no rancho do Chico Triste botei-me os versos...
Minha voz no teu ouvido
Fez seu ninho pra canta...
— Diabo!... parece que tenho
areia nos olhos... e um pé-de-amigo na goela... — Ah! saudade!...
É uma amargura tão doce,
patrãozinho!...
Saudade é dor que não dói,
Doce ventura cruel,
É talho que fecha em falso,
É veneno e sabe a mel...
---Nota:
João Simões Lopes Neto: "Contos Gauchescos" (1912)
---Nota:
João Simões Lopes Neto: "Contos Gauchescos" (1912)
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