sábado, 24 de agosto de 2013

João Simões Lopes Neto: "No Manantial"

NO MANANTIAL

Está vendo aquele umbu, lá embaixo, à direita do coxilhão?

Pois ali é a tapera do Mariano. Nunca vi pêssegos mais bonitos que os que amadurecem naquele abandono; ainda hoje os marmeleiros carregam, que é uma temeridade!

Mais  para  baixo,  como  umas  três  quadras,  há  uns  olhos-d’água,  minando  as  pedras,  e  logo  adiante uns coqueiros; depois pega um cordão de araçazeiros.

Diziam os antigos que ali encostado havia um lagoão mui fundo onde até jacaré se criava.

Eu, desde guri conheci o lagoão já tapado pelos capins, mas o lugar sempre respeitado como um  tremedal  perigoso:  até  contavam  de  um  mascate  que  aí  atolou-se  e  sumiu-se  com  duas  mulas  cargueiras e canastras e tudo...

Mais de uma rês magra ajudei a tirar de lá; iam à grama verde e atolavam-se logo, até a papada.

Só cruzam ali por cima as perdizes e algum cusco leviano.

Com certeza que as raízes do pasto e dos aguapés foram trançando uma enrediça fechada, e o barro  e  as  folhas  mortas  foram-se  amontoando  e,  pouco  a  pouco,  capeando,  fazendo  a  tampa  do sumidouro.

E depois nunca deram desgoto  na ponta do lagoão, porque, se dessem, a água corria e não se formaria o mundéu…

Mas, onde quero chegar: vou mostrar-lhe, lá, bem no meio do manantial, uma cousa que vancê nunca pensou ver; é uma roseira, e sempre carregada de rosas...

Gente vivente não apanha as flores porque quem plantou a roseira foi um defunto... e era até agouro um cristão enfeitar-se com uma rosa daquelas!...

Mas, mesmo ninguém poderia lá chegar; o manantial defende a roseira baguala: mal um firma o pé na beirada, tudo aquilo treme e bufa e borbulha...

Uns  carreteiros  que  acamparam  na tapera  do  Mariano  contaram  que  pela  volta  da  meia-noite viram sobre o manantial duas almas, uma, vestida de branco, outra, de mais escuro.., e ouviram uma  voz que chorava um choro mui suspirado e outra que soltava barbaridades...

Mas como era longe e eles estavam de cabelos em pé... pois nem os cachorros acuavam, só uivavam... uivavam... não puderam dar uma relação mais clara do caso.

E o lugar ficou mal-assombrado.

Mas, onde quero chegar: foi assim, como lhe vou contar. Estes campos eram meio sem dono, era uma pampa aberta, sem estrada nem divisa; apenas os trilhos do gado cruzando-se entre aguadas e querências.

A gadaria, não se pode dizer que era alçada: quase toda orelhana, isso sim.

Mas vivia-se bem, carne gorda sobrava, e potrada linda isso era ao cair do laço.

O Mariano apareceu aqui, diz que vindo de Cima da Sena, corrido dos bugres; uns, porque lhe  morrera  a  mulher  da  bexiga  preta,  outros  ainda,  à  boca  pequena,  que  não  era  por  santo  que  ele mudara de cancha.

Mas fosse como fosse, chegou e arranchou-se.

Trazia para o brigadeiro Machado uma carta que devia ser de gente pesada, porque o brigadeiro tratou-o muito bem e decerto foi com o seu consentimento que ele aboletou-se aqui nos pagos.

Tocava uma carreta de tolda, uma ponta de gado manso e uma quadrilha de ruanos.

De gente, ele, duas velhuscas, uma menina, uns pretos, campeiros e uma negra mina, chamada mãe Tanásia.

A menina era filha dele; das velhas uma era a avó da criança, e a outra, irmã dessa, vinha a ser tia-avó. Ele dava-se por genro da velha, mas não era: havia suspendido com a moça da casa, e depois nunca se proporcionou ocasião de padre para fazer-se o casamento, e o tempo foi passando até que a defunta  morreu,  ficando  a  inocente  nesse  paganismo  de  não  ser  filha  de  casal  legítimo...  por sacramento. Mas davam-se bem, todos.

O paisano era trabalhador e entendido nas cousas; desde o torrão para os ranchos, e quinchar, madeiras,  cercados,  lavouras,  tudo  passou  pelas  suas  mãos.  E  tanto  falquejava  um  linhote  como semeava uma quarta de trigo, e já capava um touro como amanonsiava um bagual.

Quando  Maria  Altina  era  a  menina,  a  filha  dele  andava  nos  dezasseis  anos,  este
arranchamento era um paraíso: o arvoredo todo crescido e dando; lavouras, criação miúda, de tudo era uma fartura; havia galpões, eira, currais, tafona.

O Mariano e as duas velhas traziam nas palminhas a pequena. Ela era o ai-jesus! de todos, até dos negros.

Duma feita que a família foi ao povo, para um terço de muita fama que se rezou na casa do brigadeiro Machado, a Maria Altina fez um fachadão entre a moçada; mas de todos ela tomou-se de camote com um tal André, que era furriel e gauchito teso. Não entro nisto mais pelo miúdo porque não vale a pena de falar nestes chicos pleitos de namoriscos e milongagens de crianças.

Mas segue-se é que na despedida da volta o furriel André deu-lhe uma rosa colorada, com um pé de palmo....  e ela atravessou a flor no seu chapéu de palha, ali no mais, com toda a inocência, à vista de todos.

Cá pra mim havia algum conchavo entre o brigadeiro e o Mariano, porque naquele soflagrante da flor os dois piscaram os olhos um para o outro e riram-se à sorrelfa por debaixo do bigode.

Ah!...  o  furriel  era  afilhado  e  ordenança  do  galão-largo...  e  até  diziam  mais  alguma  cousa… Vancê entende!...

A comitiva nessa noite pousou no caminho, e a menina deu jeito e arrumou a rosa numa botija com água, para não murchar.

De manhãzita, marcharam; e de chegada em casa, o primeiro cuidado da pécora foi cortar a rosa bem rente do cachimbo e plantar o galho numa terra peneirada e fresquinha.

E tais cuidados deu-lhe que a planta pegou, botando raízes firmes e espigando ramos e folhas; e quando vieram os primeiros botões, ela apanhou-os, fez um ramo todo cheiroso, amarrou-o com a fita dos cabelos e foi prendê-lo no pé da cruz dum Nosso Senhor que estava na frente do oratório.., como quem dá uma prenda, a modo de pagamento de promessa feita!.. 

Nesse entrementes cousa arranjada pelo brigadeiro o furriel pousou em casa do Mariano, de  passagem  para  um  destacamento  onde  ia  levar  ofícios.  Foi  um  alegrão  para  todos,  mas  para  a Maria Altina, nem se fala!...

Vancê pense... A paisaninha só teve alma e vida e coração para o moço... ele também estava entregue, de rédea no chão.

Aquela visita trazia água no bico... era o trato de casamento.

Depois  que  o  furriel  se  foi  as  velhas  pegaram  a  fazer  rendas  de  bilro  e  outros  preparos  do aprontamento da noiva.

A roseira estava em todo o viço: recendia que era um gosto e bordava de vermelho o caniçado da horta, que se via desde longe.

Mas, perto da pomba andava rondando o gavião.

Na Restinguinha, obra de um quarto de légua pra lá do Mariano, morava um tal Chico Triste, que tinha filhos como rato, e o mais velho era já homem feito.

Este, que pro caso chamava-se Chicão, andava mui enrabichado pela Maria Altina.

Ele era um bruto, que só olhava, só queria a Maria Altina de carne e osso. Do mais não se lhe dava; não queria saber se a menina era vergonhosa, ou trabalhadeira ou prendada.

Ele  só  olhava-me  para  as  ancas,  e  os  seios,  e  para  a  grossura  dos  braços;  era,  mal comparando, como um pastor no faro de uma guincha.. 

A rapariga tinha-lhe quase tanto medo como raiva. Uma vez ele pediu-lhe uma muda da roseira, e ela, sem negar, para não fazer desfeita, disse-lhe que tirasse o que quisesse.

Mas eu quero é dada pela senhora!...

Ah! não!…: Tire o senhor mesmo, a seu gosto...

Não dá?... pois qualquer dia pico a facão toda essa porcaria!...

E levantou-se e saiu, todo apotrado.

Outras vezes trazia-lhe de presente ovos de perdiz. ou ninhadas de mulitas, que ela criava com paciência e logo que podiam manter-se, largava para o campo. Uma ocasião trouxe-lhe um veadinho; ela soltou-o; uns gatos viscachas, soltou-os também.

O  Chicão  que  não  via nunca  os  seus  presentes,  soube  do caso, e,  por  despique,  apanhou  uns quantos filhotes de avestruz, e a tirões arrancou-lhes ainda vivos, criatura! as pernas e as asas, e assim  arrebentados  e  estrebuchando,  mandou-os  à  Maria  Altina;..   a  pobre  desatou  num  pranto  de choro, ao ver a malvadez daquele judeu...

Assim estavam as cousas quando o furriel passou e logo depois correu a nova do casamento.

O  Chicão  espumou  de  raiva...  Levava  os  cavalos  a  sofrenaços,  os  cachorros  a  arreador,  os irmãos a manotaços e até a mãe, com respostas duras.

Só respeitava o pai, o velho Chico, e assim mesmo porque este tinha marca na paleta, mas não era tambeiro.. 

No  dia  véspera  da  barbaridade,  houve  na  casa  do  Chico  Triste  um  batizado  feito  por  um padre missioneiro que ia de caminho; a gente do Mariano foi convidada. Nessa noite comeram doces, tocaram viola, cantaram e até dançaram uma tirana e o anu.

Aí o Chicão cargoseou muito a Maria Altina.

A jantarola e o resto do festo iam ser no dia seguinte que foi o do caso.

Vancê acredita?... Nesta manhã, desde cedo, os pica-paus choraram muito nas tronqueiras do curral e nos palanques... e até furando no oitão da casa;... mais de um cachorro cavoucou o chão, embaixo das carretas;… e a Maria Altina achou no quarto, entre a parede e a cabeceira da cama, uma borboleta preta, das grandes, que ninguém tinha visto entrar...

Sol nado o Mariano e uma das velhas foram para o riste, para dar um ajutório. Os campeiros, como de costume, para os seus serviços, uns de campo, outros lenhar.

Na casa só ficaram, para irem mais tarde, a Maria Altina e a outra velha, que era a avó; e para as duas, debaixo do umbu, dois mancarrões encilhados.

Ficou também a negra mina, que viu tudo e foi quem fez o conto.

A  avó  estava  na  cozinha  frigindo  uns  beijus  e  a  Maria  Altina  na  varanda,  apenas  em  saia, arrematava um timãozinho novo.

Na  cabeça,  como  gostava,  trazia  uma  rosa  fresca,  e  que  ficava-lhe  sempre  a  preceito  no negrume da cabeleira. E garganteava umas coplas que tinha aprendido na véspera, quando dançava a tirana e se divertia. Umas coplas que eram assim… e me lembro, porque quem as botou para uma outra foi mesmo este seu criado Matias!...

Quem canta pra tu ouvires
Devia morrer cantando...
Pois quando daqui saíres,
Do cantor vais te olvidando;

E, pode ser que morrendo,
Dele então tu te lembrasses:
Se visses outro defunto,
Ou se outra vez tu dançasses...

Minha voz no teu ouvido,
Soluçaria de dor,
Não por deixar a vid…

E nem acabou o verso, porque estourou na cozinha um esconjuro e logo a voz da avó, sumida e arroucada,  gritando  bandido!  bandido!  e  depois  um  gemido  ansiado,  uns  ais…  e  um  baque surdo...

De pé, com o timãozinho numa mão e a agulha na outra, pálida como a cal da parede, o coração parado, Maria Altina pregada no chão, de puro medo, ouviu... ouviu…, e aí no mais entrou e veio a ela o Chicão..., o Chicão, entende vancê? com uns olhos de bicho acuado, e um bafo de fogo, na boca...

E como chegou, atropelou-a, agarrou-a, apertou-a, abraçando-a pela cintura, metendo a perna entre  as  dela,  forcejando  por  derrubá-la,  respirando  duro,  furioso,  desembestado...  mais  mordendo que beijando o pescoço amorenado... e garboso...

A rapariga gritou, empurrando-o num desespero, arranhando-lhe a cara, ladeando o corpo... por fim atacou-lhe os dentes num braço.

Ele urrou com a dor e largou-a um momento; ela aproveitou o alce e disparou.. , ele quis pegá-la de novo, mas no mover-se enredou as esporas no timãozinho que caíra, e testavilhou maneado…

A  pobre,  ao  passar  pela  cozinha  viu  a  avó  estendida,  com  as  roupas  enrodilhadas,  a  cabeça branca numa sangueira... e então desatinada, num pavor, correu para o umbu e foi o quanto pulou a cavalo e já tocou, a toda, coxilha abaixo!...

Mas,  logo,  logo,  mesmo  sem  se  voltar,  sentiu-se  quase  alcançada  pelo  Chicão,  que  também montara e se lhe vinha em perseguição...

E os dois, à que te pego! à que te largo! se despencaram por aquele lançante, em direitura ao manantial! E, ou por querer atalhar, ou porque perdesse a cabeça ou nem se lembrasse do perigo, a Maria Altina encostou o rebenque no matungo, que, do lance que trazia costa abaixo, se foi, feito, ao tremendal, onde se afundou até as orelhas e começou a patalear, num desespero!…

A  campeirinha  varejada  no  arranco,  sumiu-se  logo  na  fervura  preta  do  lodaçal  remexido  a patadas!... E como rastro, ficou em cima, boiando, a rosa do penteado.

E da mesma carreira, o cavalo do Chicão, que também vinha tocado à espora e relho, cbapulhou no  pantanal,  um  pouco  atrás  do  outro,  cousa  de  braça  e  meia...  e  ali  ficou,  o  corpo  todo  sumido, procurando agüentar as ventas, as orelhas fora da água.

O Chicão, agora deslombando-se em esforços para sair da enrascada, não podia, porque bem sentia as esporas enleadas nas raízes  e os cabrestilhos eram fortes…. e parecia-lhe que tinha um pé quebrado por uma patada do cavalo, que se despedaçava aos arrancos, sentindo-se chupado para o fundo...

Depois desse estropício, tudo ficou como estava: tudo no sossego, o sol subindo sempre, nuvens brancas  correndo  no  céu,  passarinhos  cruzando  para  um  lado  e  outro…  os  galos  cantando  lá  em cima… uns latidos, muito longe… pios de perdiz… algum inhé de sapo ali perto…

Parecia que nada se havia dado: se não fosse a rosa colorada boiando, lá, e o Chicão atolado até o peito, mais pra cá.

O cavalo dele, com a cabeça alinhada, mal podia agüentar fora da água o focinho e ressolhava, o  pobre,  puxando  a  respiração  em  assobios  grossos,  e  o  dono,  todo  salpicado  de  barro,  suava  em cordas, cada vez mais ansiado, não podendo desprender-se das malditas esporas, que o sujeitavam em  cima  do  bagual,  que  ia  se  afundando…  afundando…  afundando…  E  a  cada  sacudida  feita naquele reduto todo o manantial bufava e borbulhava…

Com pouco mais o Chicão desceu ainda, atolado até os sovacos; o cavalo já se não via e nem bulia, sufocado e morto, pesando entregue no mole do tremedal…

E as esporas… as malditas esporas, nem nada!…

Obrigado  pela  postura  em  que  estava,  ele  olhava  para  o  buraco  que  tinha  engolido  a  Maria Altina: sobre a água barrenta, escura, nadavam folhas secas, capins pisoteados, gravetos... e no meio deles, limpa e fresca, boiava a rosa que se soltara dos cabelos da cobiçada no momento em que ela entrava pela morte a dentro, dentro do lodaçal...

E o tempo foi passando, a tranqüito, sem pressa nem vagar.

Vancê lembra-se? ...

Como  eu  disse,  havia  ficado  em  casa,  além  das  brancas,  a  tia  mina,  −  a  mãe  Tanásia  −  que, quando  sentiu  a  desgraceira,  ganhou  no  paiol,  escondendo-se  e  daí  pode  bombear  alguma  cousa.

Quando viu as criaturas montarem e tocarem como caça e caçador a mãe Tanásia saiu da toca e voltou à cozinha, dando com a nhanhã… morta, e logo viu que a sinhazinha fugira. E pensou em ir  ao  Chico Triste, avisar  o  Mariano.  O  mais perto  era  ir  pelos  olhos-d’água,  acima  do  manantial;   desceu o caminho; costeou pelas pedras e quando dobrava a estradinha frenteou com o Chicão...

A mãe Tanásia ficou estatelada…, e daí a pedaço em que olhou só, sem pensar nada foi
que a coitada falou.

— Eh! eh!… siô moço!… que é que suncê fez!...

E o desalmado gritou-lhe:

Vai, bruaca velha, vai contar!...

— Ah! ah!... Deus perdoe!...

E foi andando, estradinha afora, lomba acima, apurando o passo, um pouco renga.

Nesse meio tempo também chegavam à casa os campeiros; era hora de comer; repararam que só estava amarrado um cavalo; a casa aberta, silenciosa; um espiou pela janela da cozinha…, e gritou pelos outros, benzendo-se. .

Lá  estava  a  senhora,  com  a  cabeça  arrebentada  a  olho  de  machado…,  O  fogo  apagado,  a  banha coalhada, os beijus frios…, e mui a seu gosto, de papo para o ar, dormindo na saia da morta, uma gata brasina e a sua ninhada.

Chamaram pela mãe Tanásia... gritaram.... procuraram... e nada! Um deles, mais alarife, propôs que fugissem... que era melhor ser carambola do que ser estaqueado... que por certo iam acusá-los daquela maldade,

Porém outro mais precatado disse:

— Cala a boca, parceiro... Vamos é avisar sinhô velho...

E ficando uns de guarda, tocaram-se os outros, a meia rédea, para o Triste, onde, fulos de medo, desovaram a novidade,

Que canhonaço, amigo! A gentama toda se alvorotou ; o que era de mulheres abriu num alarido, o que era homem apresilhou as armas, e já se saiu, muitos de em pêlo, cobrindo a marca dos fletes, o Mariano na frente, como um louco.

Eu  estava  nessa  arrancada.  Chegamos  como  um  pé-de-vento  e  conforme  boleamos  a  perna, vimos o mesmo que os negros contavam. E da Maria Altina, nada; da mãe Tanásia, nada. Apenas no chão  da  varanda  novelos  desparramados,  a  mesa  arredada,  o  timãozinho  novo  com  um  rasgão grande...

Nisto, um aspa-torta, gaúcho mui andado no mundo e mitrado, puxou-me pela manga da japona e disse-me entre dentes:

O Chicão repontava a rapariga;… ele não estava em casa, nem veio conosco; ela não está….. Patrício... que lhe parece?…

Hom!... respondi eu, e fiquei-me com aquele zunido de varejeira no ouvido...

Mas  o  paisano  tinha  o  estômago  frio  e  foi  passando  língua;. .  daí  a  pouco  todos  faziam  as mesmas contas, até que um, mais golpeado, disse-o claro, ao Mariano!

O  homem  relanceou  os  olhos  a  ver  talvez  se  descobria  o  Chicão...  depois  teve  a  modo  uns engulhos e depois ficou como entecado...

Pensaria  mesmo  que  a  filha  tinha  fugido  com  o  querendão?...  Quem  sabe  lá!...  Que  o  rapaz rondava,  isso  ele  e  todos  sabiam  e  que  ela  não  fazia  caso  do  derretimento,  isso  também  se  sabia: agora, como dum momento para o outro os dois se tinham combinado, isso é que era!...

Mas ao mesmo tempo perguntava-se — quem matou a velha e por quê?...

E quando estávamos neste balanço ouvimos então a gritaria das mulheres, que tinham vindo de a pé, encontrando no caminho a mãe Tanásia.

Em  antes  de  chegarem,  já  os  cuscos,  ponteiros,  tinham  começado  a  acuar,  por  debaixo  dos araçazeiros;  as  crianças,  curiosas  e  mais  ligeiras,  tinham  corrido  pensando  ser  algum  bicho…  e recuaram assustadas, fazendo cara-volta, umas chorando, outras sem fala, apenas apontando para o manantial...

E quando a ranchada das damas chegou perto e viu… viu o Chicão atolado; o Chicão atolado, e logo adiante, no barro revolvido, a rosa cobrada boiando; a rosa boiando, porque a moça estava no fundo, afogada, porque... porque... por causa do Chicão?... por medo dele, que queria abusar dela?... quando as senhoras-donas, todas caladas, viram aquele condenado, e uma, mais animosa, gritou-lhe —  cachorro  desavergonhado!  —foi  que  a  mãe  dele,  jungindo  as  lágrimas  para  não  saltarem, perguntou:

— Chicão, meu filho, que é isto?...

— Atolado…. as esporas;… um laço!...

— Filho!... que desgraça! E a Maria Altina?...

— Aí!… embaixo da rosa. .

Foi neste ponto que rompeu o alarido, os choros, os chamados que ouvimos lá em cima, nas
casas, e descemos logo. O Mariano vinha com os olhos raiados de sangue e batendo os dentes, como porco queixada...

E quando paramos todos e vimos o jeito daquele rufião maldito, ainda um lembrou, alto:

— Vamos laçar o homem, e puxar cá pra fora!...

O Mariano porém, gritou:

— Espera!... e voltando-se para o atolado, indagou:

— Por que mataste a velha?...

Não!

— Viste a Maria Altina?

— Não!

— Que esburacado é esse, aí na tua frente?

— Não sei!

— E aquela rosa... também não sabes?...

— Pois sei, sim! É dela... e a velha, também, fui eu..  e agora?...

— Vou rebentar-te a cabeça...

— Arrebenta! Se não fosse as esporas!...

Então o Mariano sacou a pistola do cinto e trovejou... e errou! Secundou o tiro e a bala quebrou o ombro do Chicão, que deu um urro e estorceu-se todo; quis firmar-se, porém o braço são afundava-se no barro, acamando os capins já machucados; com esses tirões e  arrancos o manantial todo tremia e bufava, borbulhando.. 

O Mariano amartilhou a outra pistola; o Chicão berrou de lá:

— Mata! Eu não pude!. . mas o furriel também não há-de!...

Mas  nisto  a  mãe  dele  abraçou-se  nos  joelhos  do  Mariano,  e  o  padre  missioneiro  levantou  a cruzinha do rosário, meteu o Nosso Senhor Crucificado na boca do cano da pistola. . e o Mariano foi baixando o braço... baixando, e calado varejou a arma para o lameiro...; mas de repente, como um parelheiro  largado  de  tronco,  saltou  pra  diante  e  de  vereda  atirou-se  no  manantial...  e  meio  de  pé, meio  de  gatinhas,  caindo,  bracejando,  afundando-se,  surdindo,  todo  ele  numa  plasta  de  barro reluzente, alcançou o Chicão, e — por certo — firmando-se no corpo do cavalo morto, botou-se ao desgraçado,  com  as  duas  mãos  escorrendo  lodo  apertou-lhe  o  gasganete…  e  foi  calcando, espremendo,  empurrando  para  trás…,  para  trás..   até  que  num    vá!    aqueles  abraçados escorregaram, cortou o ar uma perna, um pé do Chicão, — livre da espora — e tudo sumiu-se na fervura que gorgolejou logo por cima!...

Imagine  vancê,  aquilo  passando-se  ali  pertinho  a  meio  laço  de  distância  e  ninguém  podendo remediar…

Houve só uma palavra em todas as bocas; Jesus, Senhor!...

O manantial borbulhava por todas as costuras... Se fosse água limpa... Credo!.. 

D’espacito... d’espacito... o missionário foi estendendo o braço, como esperando que as almas subissem... depois riscou uma cruz larga, na claridade do dia; e ajoelhando-se na beira daquela cova balofa, de três defuntos de razão de morrer tão diferente e de morte tão a mesma, começou a rezar.

E logo no derredor a gentama também se foi arrodilhando... e todos com os olhos firmados no manantial,  e  todos  de  mãos  postas,  todos  empeçaram  um  —  Salve-Rainha  —  que  foi  alteando  e subindo no descampado, tão penaroso, tão sentido, tão do coração, que até parece que amansou os próprios bichos, porque, entrementes, nem um cachorro latiu, nem passarinho piou, nem cavalo se mexeu!...

Nas paradas da reza só se ouvia os soluços da mãe do Chicão e um leve guasqueio do vento nas talas dos jerivás.

Acabada  a  devoção  e  marchando  como  uma  procissão,  fomos  para  a  casa  levando  a  outra velhinha,  a  irmã  da  que  lá  estava,  de  cabeça  esmigalhada.  Velamos  o  corpo  e  na  manhã  seguinte fizemos-lhe o enterro, também lá embaixo, na costa do manantial.

O missioneiro benzeu, e então fincamos uma cruz morruda, de cambará, para vigia às almas dos quatro mortos.

Depois, cada qual tomou seu rumo.

Anos  depois  passei  por  aqui:  cortava  a  alma  olhar  para  o  arranchamento.  Os  negros  tinham tomado a alforria por sua mão, e se foram a la cria!... Ficaram as duas mulheres, a mãe Tanásia e a sua senhora velha, que, por caridade, o brigadeiro Machado mandou buscar pra casa dele.

O arranchamento ficou abandonado; e foi chovendo dentro; desabou um canto de parede; caiu uma  porta,  os  cachorros  gaudérios  já  dormiam  lá  dentro.  Debaixo  dos  caibros  havia  ninhos  de morcegos e no copiar pousavam as corujas; os ventos derrubaram os galpões, os andantes queimaram as  cercas,  o  gado  fez  paradeiro  na  quinta.  O  arranchamento  alegre  e  farto  foi  desaparecendo…  o feitio da mão de gente foi-se gastando, tudo foi minguando; as carquejas e as embiras invadiram; o gravatá  lastrou;  só  o  umbu  foi  guapeando,  mas  abichornado,  como  viúvo  que  se  deu  bem  em casado...; foi ficando tapera... a tapera... que é sempre um lugar tristonho onde parece que a gente vê gente que nunca viu… onde parece que até as árvores perguntam a quem chega: — onde está quem me plantou?... onde está quem me plantou?...

Olhe! Veja vancê: ali embaixo... hem? ‘Stá vendo?. . aqueles coqueiros, o matinho de araçás?

Pois é ali o manantial, que virou sepultura naquele dia brabo em que desde manhã tanto agouro apareceu, de desgraça: os pica-paus chorando... os cachorros cavoucando..  a bruxa preta entrada sem ninguém ver...

Sempre dói na alma, mexer nestas lembranças. E há quem não acredite!...

A cruz… onde já foi!... mas a roseira baguala, lá está! Roseira que nasceu do talo da rosa que ficou boiando no lodaçal no dia daquele cardume de estropícios…

Vancê está vendo bem, agora?

Pois é... coloreando, sempre! Até parece que as raízes, lá no fundo do manantial, estão ainda bebendo sangue vivo no coração da Maria Altina...

Vancê  quer,  paramos  um  nadinha.  Com  isto  damos  um  alcezito  aos  mancarrões,  e  eu..  desaperto o coração!…

Ah! saudade!... Parece que ainda vejo a minha morena, quando no rancho do Chico Triste botei-me os versos...

Minha voz no teu ouvido
Fez seu ninho pra canta...

— Diabo!... parece que tenho areia nos olhos... e um pé-de-amigo na goela... — Ah! saudade!...

É uma amargura tão doce, patrãozinho!...

Saudade é dor que não dói,
Doce ventura cruel,
É talho que fecha em falso,
É veneno e sabe a mel...

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Nota:
João Simões Lopes Neto: "Contos Gauchescos" (1912)

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