O “MENININHO” DO PRESÉPIO
— Olhe! Aí está uni peão do major
Vieira; jogo o pescoço se ele não traz invite pra ir lá, hoje, festejar o Natal, na estância!...
Eu sei!... Aquele é gauchão
buenaço!
Eu, se fosse o patrãozinho, ia.
Ia, só pra ver o que é uma gente de devoção.
E
é que o
seu major Vieira
não era assim,
não; pro caso
que ele, em
moço, até que
era um virado, da gente se benzer três vezes!
O major Vieira quando era cadete
haraganeava muito pela rancheria dos postos.
A estância era grande, e entre
agregados e posteiros havia um povaréu; o patrão velho, pai dele, era mui
esmoleiro e não gostava de, perto dele, ver ninguém com cara de fome.
Mas o diacho era que o que o
velho fazia com as mãos o cadete desmanchava coos pés...
O
mocito era abusador,
e mais duma
feita saiu ventando
de certos ranchos
daqueles pagos...
Sim, que
um pai cria
uma filha não
é pra carniça
de gaudério!.. Por
isso é que
já os antigos inventaram o casamento.
A divisa da estância, no fundo,
faz uma quebrada forte, assim como o cotovelo do meu braço; nesta ponta aqui, onde está a minha mão, fica
o Lagoão das Lontras, e mais pra cá passa a estrada real.
Em certos tempos a gadaria pegava
a costear o lagoão e andando, andando, entrava na estrada e… adeus!
Assim perdeu-se numa primavera
uma ponta de novilhos que se evaporaram como sereno,.,
Foi um estafaréu, na estância,
por causa disto; o patrão velho ficou buzina com o capataz, que relaxou
os repontes, e
quase mandou lonquear
um certo Miguelão,
que passava todo
o santo dia lagarteando
na reserva do rancho, e de noite nunca parava em casa...
Parece que eu estou lhe enredando
o rastro, mas não ‘Stou, não; vancê escuite.
É que este Miguelão não era trigo
limpo; e tinha uma filha que era uma criatura boa como uma santa, morocha linda
como uma princesa. E vai, o desgraçado obrigou a menina a casar-se com um sujeito
sem eira nem
beira, e que
diziam à boca
pequena que era
parceiro nas velhacadas
do Miguelão.
Era um mais que mouro, e meio
corcunda, e tinha um lanho grande entre a orelha e a nuca; e mal encarado, era.
Amigo! A quincha dos ranchos
esconde tanta cousa como os telhados dos ricos!...
Marido e mulher davam assim uma
idéia esquisita: vancê já reparou quando abre um cacho de flor num
jerivá velho, de
casca esbranquiçada, cheio
de talos secos
pendurados e um
que outro pendão esfiapado, que já deu coquinhos?...
O
jerivá é uma
árv’e tristonha, mas
quando bota um
cacho de flor
fica alegre, de
enfeitada, Aquele pendão amarelo,
lá em cima, chama os olhos da gente, parece um favo de cera, de tão limpo e dourado; chama as mandaçaias, os passarinhos,
os mangangás, as joaninhas; dá cheiro que é doce; é uma boniteza pra todos os viventes.
Assim era aquele casal: ele como
o jerivá velho, ela como um cacho de flor,
Ela chamava-se nhã Velinda: e
chorava muito, às vezes.
Por quê? Quem sabe lá…
Depois daquele
sumiço dos novilhos,
o cadete Vieira
passou a recorrer
o campo por
aquelas bandas; a bolear
avestruzes por aquelas várzeas; a correr veados por aqueles meios; a caçar
mulitas naquela costa; e até numa noite
de breu arranjou uma perdida —. ‘magine! mais vaqueano que sono! — mas perdida foi que soube rumbear sobre o
rancho do Miguelão...
Cousas de rapaz; que a nhã
Velinda, essa, era de confiança.
Lá porque
era moça, quase
uma criança perto
do marido, lá
por isso não
era motivo pra qualquer um
chegar-se de buçalete
em mão, como
se faz pra uma redomona,
pra amanusear-lhe desde a tábua do pescoço até as ancas...
Mas o
cadete gostava da
moça numa paixão
de verdade, diferente
de quantas cavaleiradas estava avezado a fazer.
Era uma adoração, quase um medo
de ofender a querida do seu coração; perdia a voz pra falar com ela, enredava-se nas esporas, perdia o
entono de todo o seu jeito, e todo ele vivia só nos olhos quando atentava na formosura do seu rosto.
Entrementes foi acabando o ano e
já era sobre o Natal.
E
vai a família
do patrão velho
armou um presépio na
sala grande da
estância; e ele mesmo mandou
avisar o vizindário todo que a sia-dona convidava para se cantar um terço de
festa, na noite santa.
E
veio tudo, velhada
e crianças, moçada,
namorados, e até
alguns andantes, que
estavam de pouso, ficaram, todos,
pra louvar a Deus na noite mais pequena do ano.
O cadete andava no meio do povo
caçoísta, dançarino e pisa-flores, mas no que chegou a gente do Miguelão, já se
foi pondo como um céu amontoado, emburrado, de dar nas vistas.
Houve jantarola e doçaria, na
sombra das figueiras.
Escureceu; a
sala grande estava
fechada, e as
moças da estância
lá dentro, preparando
as luminárias; enquanto o velho e a sia-dona pauteavam com a gente
sisuda, embaixo da ramada grande, em
frente da casa,
a gurizada corria
na pega dos
vaga-lumes, rodando por
cima dos cachorros
ou fazendo provas de burlantins, nos cabeçalhos das canetas; do galpão
vinha o zunzum da peonada; na sombra
do campo não se via
nada, mas de
lá vinham relinchos
e mugidos, cracrás
das corujas e uais!.. dos graxains.
E no ar, como uma cerração que
não se via, andava o fartum dos churrascos.
Por um segredo do destino a
sia-dona mandou o cadete ver se as luminárias estavam ou não prendidas; e
vai, o moço,
no entrar a
porta, topou de
cara a cara
com a nhã
Velinda que saia, justamente para vir chamar os donos da
casa; toparam-se as criaturas e miraram-se, num clarão que só elas viram...
As mãos se encontraram... e num de-repente, num silêncio, num tirão das
suas almas, na pressa e no lusco-fusco,
perto da gentama,
numa relancina de
corisco, as duas
bocas famintas se encontraram…e um
beijo, um beijo
que jurou pelos
dois, para toda
a vida, um
beijo só derrubou todas as negaças, como uma represa
de açude aluída é derrubada por uma muita descida de águas...
Vê vancê, a gente sabe falar,
dizer muitas enredices adocicadas, mas às vezes a palavra nem dá pra partir…
e caladito no
mais, um simples
beijo, largado de tronco,
chega ao laço,
folheirito, de rebenque alçado!
Pobres! Nesse
passo cruzou na
mesma porta o
Miguelão e bispou
o caso, e decerto
já lo foi xeretear ao genro, e atossicá-lo,
suscitando-lhe maldades...
Mas logo escancararam as janelas
e a claridade da sala alumiou o terreiro; foi um alarido de contentamento,
todos se ajuntaram e a sia-dona, puxando a ponta, entrou, para principiar o
rosário. E aquele bandão de
gente entrou e
foi-se acomodando, olhando
com ar de
riso pasmado, toda
só dizendo: o presépio! o presépio! o presépio!
Fazia a modo uma ramada no alto
de uns cerritos, e fingindo grotas e sangões e umas reboleiras; havia
esparramados uns “alimais” entre boizinhos e ovelhas de brinquedo e outros
enfeites; e mais uns figurões mui calamistrados, de coroa, que pareciam reis,
e, pro caso, um, que era negro retinto, era o mais empacholado. E perto destes,
sobre a ponta do presépio, estava então a Senhora Virgem e o Senhor São José, e
entre eles, acamado numas palhinhas de milhã e uns musgos e umas penugens,
estava o Menininho Jesus, ruivito e rosado, nuzinho em pêlo, pro caso como uma
criancinha que não tem pecado por mostrar as vergonhinhas do seu corpinho de
inocente.
Todos se ajoelharam de roda, mas
foi nessa ponta do presépio que a nhã Velinda ajoelhou-se; e no costado dela,
como um precipício ou um encorrentado, aí amoitou-se o cadete Vieira, talvez
até para dar o seu peito em resguardo dalgum perigo...
Não lhe conto nada!. . Quando
pegou a cantoria do rosário e no cantante da reza a gente se foi enquartelando
e emparelhando as vozes, que era uma boniteza de ouvir, por aí os olhos dela
estavam como amarrotados no
presépio, mas os
olhos dele estavam
no rosto dela,
como se ai
estivesse o próprio presépio,
com as suas
velinhas e prateados
e bichinhos mimosos...;
era até um
pecado do inferno, aquela maneira
de adorar gente, ali assim, nas barbas dos santos e da Senhora Virgem e do seu
Menino!...
Mas porém, lá da porta, outro
olhar, raiado de sangue, estava vendo tudo; por certo que alguma loucura de
cabeça atacou aquele cristão velho, porque, num soflagrante, sem um
deus-te-salve! — o aflito aquele meneou os passos, derrubando gente, e logo o
facão relampeou na direitura do coração de nhã Velinda!...
Houve um grito d’espanto pro mode
o desaforo do desatinado.
—
Jesus!... foi o grito de todas as bocas.
Ah! patrãozinho!... Olhe que às
vezes, na luz das velas bentas, se passam cousas de deixar um golpeado qualquer
mais, mais aplastado que mancarão reiúno em mão de recruta...
Quando a ponta do ferro matador
estava a uma mão atravessada… a quatro dedos só da carne macia,
aí — credo!
louvado seja Deus!
— aí rolou
da sua caminha
de milhã... rolou
e caiu no boleado do seio da moça, na canhadita dos
dois, caiu no regaço de nhã Velinda o Menininho Jesus, como uma defesa… e aí no
regaço delicado ficou, como um dono na sua casa. .
E o facão matador sentou,
tironeado... depois recuando, «minuindo”, caiu mermado, mal seguro na mão sem
força, do braço sem vontade, e o cuerudo aquele deu costas e se botou porta
fora e o Miguelão com ele, boquejando.
Tempos depois se soube que o
mataram, num entrevero, numa bochinchada de carreiras.
Jerivá torto não dá ripa!...
Os velhos lá ouviram do cadete e
de nhã Velinda o que havia, e lá arrumaram as cousas.
O que le conto é que o seu major
Vieira, ainda em cadete, se casou com a nhã Velinda, e que
aquele tal Menininho Jesus ainda
hoje é o figurão do oratório e é o mesmíssimo do presépio que, bá mais de cinqüenta anos, se arma sempre na
estância, no festo do Natal.
—
Não lhe parece
que houve um
milagre? Claro! Foi
por causa do
Menininho que... Se o
diabinho é tão milagroso!...
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Nota:
João Simões Lopes Neto: "Contos Gauchescos" (1912)
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Nota:
João Simões Lopes Neto: "Contos Gauchescos" (1912)
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