sábado, 24 de agosto de 2013

João Simões Lopes Neto: "O 'Menininho' do Presépio"

O “MENININHO” DO PRESÉPIO

— Olhe! Aí está uni peão do major Vieira; jogo o pescoço se ele não traz invite pra ir lá, hoje,  festejar o Natal, na estância!...

Eu sei!... Aquele é gauchão buenaço!

Eu, se fosse o patrãozinho, ia. Ia, só pra ver o que é uma gente de devoção.

E  é  que  o  seu  major  Vieira  não  era  assim,  não;  pro  caso  que  ele,  em  moço,  até  que  era  um  virado, da gente se benzer três vezes!

O major Vieira quando era cadete haraganeava muito pela rancheria dos postos.

A estância era grande, e entre agregados e posteiros havia um povaréu; o patrão velho, pai dele, era mui esmoleiro e não gostava de, perto dele, ver ninguém com cara de fome.

Mas o diacho era que o que o velho fazia com as mãos o cadete desmanchava coos pés...

O  mocito  era  abusador,  e  mais  duma  feita  saiu  ventando  de  certos  ranchos  daqueles  pagos...

Sim,  que  um  pai  cria  uma  filha  não  é  pra  carniça  de  gaudério!..  Por  isso  é  que  já  os  antigos  inventaram o casamento.

A divisa da estância, no fundo, faz uma quebrada forte, assim como o cotovelo do meu braço;  nesta ponta aqui, onde está a minha mão, fica o Lagoão das Lontras, e mais pra cá passa a estrada  real.

Em certos tempos a gadaria pegava a costear o lagoão e andando, andando, entrava na estrada e… adeus!

Assim perdeu-se numa primavera uma ponta de novilhos que se evaporaram como sereno,.,

Foi um estafaréu, na estância, por causa disto; o patrão velho ficou buzina com o capataz, que  relaxou  os  repontes,  e  quase  mandou  lonquear  um  certo  Miguelão,  que  passava  todo  o  santo  dia  lagarteando na reserva do rancho, e de noite nunca parava em casa...

Parece que eu estou lhe enredando o rastro, mas não ‘Stou, não; vancê escuite.

É que este Miguelão não era trigo limpo; e tinha uma filha que era uma criatura boa como uma santa, morocha linda como uma princesa. E vai, o desgraçado obrigou a menina a casar-se com um  sujeito  sem  eira  nem  beira,  e  que  diziam  à  boca  pequena  que  era  parceiro  nas  velhacadas  do  Miguelão.

Era um mais que mouro, e meio corcunda, e tinha um lanho grande entre a orelha e a nuca; e  mal encarado, era.

Amigo! A quincha dos ranchos esconde tanta cousa como os telhados dos ricos!...

Marido e mulher davam assim uma idéia esquisita: vancê já reparou quando abre um cacho de flor  num  jerivá  velho,  de  casca  esbranquiçada,  cheio  de  talos  secos  pendurados  e  um  que  outro  pendão esfiapado, que já deu coquinhos?...

O  jerivá  é  uma  árv’e  tristonha,  mas  quando  bota  um  cacho  de  flor  fica  alegre,  de  enfeitada,  Aquele pendão amarelo, lá em cima, chama os olhos da gente, parece um favo de cera, de tão limpo e  dourado; chama as mandaçaias, os passarinhos, os mangangás, as joaninhas; dá cheiro que é doce; é  uma boniteza pra todos os viventes.

Assim era aquele casal: ele como o jerivá velho, ela como um cacho de flor,

Ela chamava-se nhã Velinda: e chorava muito, às vezes.

Por quê? Quem sabe lá…

Depois  daquele  sumiço  dos  novilhos,  o  cadete  Vieira  passou  a  recorrer  o  campo  por  aquelas  bandas; a bolear avestruzes por aquelas várzeas; a correr veados por aqueles meios; a caçar mulitas  naquela costa; e até numa noite de breu arranjou uma perdida —. ‘magine! mais vaqueano que sono!  — mas perdida foi que soube rumbear sobre o rancho do Miguelão...

Cousas de rapaz; que a nhã Velinda, essa, era de confiança.

Lá  porque  era  moça,  quase  uma  criança  perto  do  marido,  lá  por  isso  não  era  motivo  pra  qualquer  um  chegar-se  de  buçalete  em  mão,  como  se  faz  pra  uma  redomona,  pra  amanusear-lhe  desde a tábua do pescoço até as ancas...

Mas  o  cadete  gostava  da  moça  numa  paixão  de  verdade,  diferente  de  quantas  cavaleiradas  estava avezado a fazer.

Era uma adoração, quase um medo de ofender a querida do seu coração; perdia a voz pra falar  com ela, enredava-se nas esporas, perdia o entono de todo o seu jeito, e todo ele vivia só nos olhos  quando atentava na formosura do seu rosto.

Entrementes foi acabando o ano e já era sobre o Natal.

E  vai  a  família  do  patrão  velho  armou um  presépio  na  sala  grande  da  estância;  e ele  mesmo  mandou avisar o vizindário todo que a sia-dona convidava para se cantar um terço de festa, na noite santa.

E  veio  tudo,  velhada  e  crianças,  moçada,  namorados,  e  até  alguns  andantes,  que  estavam  de pouso, ficaram, todos, pra louvar a Deus na noite mais pequena do ano.

O cadete andava no meio do povo caçoísta, dançarino e pisa-flores, mas no que chegou a gente do Miguelão, já se foi pondo como um céu amontoado, emburrado, de dar nas vistas.

Houve jantarola e doçaria, na sombra das figueiras.

Escureceu;  a  sala  grande  estava  fechada,  e  as  moças  da  estância  lá  dentro,  preparando  as luminárias; enquanto o velho e a sia-dona pauteavam com a gente sisuda, embaixo da ramada grande, em  frente  da  casa,  a  gurizada  corria  na  pega  dos  vaga-lumes,  rodando  por  cima  dos  cachorros  ou fazendo provas de burlantins, nos cabeçalhos das canetas; do galpão vinha o zunzum da peonada; na sombra  do  campo  não  se  via  nada,  mas  de  lá  vinham  relinchos  e  mugidos,  cracrás  das  corujas  e uais!.. dos graxains.

E no ar, como uma cerração que não se via, andava o fartum dos churrascos.

Por um segredo do destino a sia-dona mandou o cadete ver se as luminárias estavam ou não prendidas;  e  vai,  o  moço,  no  entrar  a  porta,  topou  de  cara  a  cara  com  a  nhã  Velinda  que  saia, justamente para vir chamar os donos da casa; toparam-se as criaturas e miraram-se, num clarão que só elas viram...

As mãos se encontraram...  e num de-repente, num silêncio, num tirão das suas almas, na pressa e  no  lusco-fusco,  perto  da  gentama,  numa  relancina  de  corisco,  as  duas  bocas  famintas  se encontraram…e  um  beijo,  um  beijo  que  jurou  pelos  dois,  para  toda  a  vida,  um  beijo  só  derrubou todas as negaças, como uma represa de açude aluída é derrubada por uma muita descida de águas...

Vê vancê, a gente sabe falar, dizer muitas enredices adocicadas, mas às vezes a palavra nem dá pra  partir…  e  caladito  no  mais,  um  simples  beijo, largado  de  tronco,  chega  ao  laço,  folheirito,  de rebenque alçado!

Pobres!  Nesse  passo  cruzou  na  mesma  porta  o  Miguelão  e  bispou  o caso,  e  decerto  já  lo  foi xeretear ao genro, e atossicá-lo, suscitando-lhe maldades...

Mas logo escancararam as janelas e a claridade da sala alumiou o terreiro; foi um alarido de contentamento, todos se ajuntaram e a sia-dona, puxando a ponta, entrou, para principiar o rosário. E aquele  bandão  de  gente  entrou  e  foi-se  acomodando,  olhando  com  ar  de  riso  pasmado,  toda  só dizendo: o presépio! o presépio! o presépio!

Fazia a modo uma ramada no alto de uns cerritos, e fingindo grotas e sangões e umas reboleiras; havia esparramados uns “alimais” entre boizinhos e ovelhas de brinquedo e outros enfeites; e mais uns figurões mui calamistrados, de coroa, que pareciam reis, e, pro caso, um, que era negro retinto, era o mais empacholado. E perto destes, sobre a ponta do presépio, estava então a Senhora Virgem e o Senhor São José, e entre eles, acamado numas palhinhas de milhã e uns musgos e umas penugens, estava o Menininho Jesus, ruivito e rosado, nuzinho em pêlo, pro caso como uma criancinha que não tem pecado por mostrar as vergonhinhas do seu corpinho de inocente.

Todos se ajoelharam de roda, mas foi nessa ponta do presépio que a nhã Velinda ajoelhou-se; e no costado dela, como um precipício ou um encorrentado, aí amoitou-se o cadete Vieira, talvez até para dar o seu peito em resguardo dalgum perigo...

Não lhe conto nada!. . Quando pegou a cantoria do rosário e no cantante da reza a gente se foi enquartelando e emparelhando as vozes, que era uma boniteza de ouvir, por aí os olhos dela estavam como  amarrotados  no  presépio,  mas  os  olhos  dele  estavam  no  rosto  dela,  como  se  ai  estivesse  o próprio  presépio,  com  as  suas  velinhas  e  prateados  e  bichinhos  mimosos...;  era  até  um  pecado  do inferno, aquela maneira de adorar gente, ali assim, nas barbas dos santos e da Senhora Virgem e do seu Menino!...

Mas porém, lá da porta, outro olhar, raiado de sangue, estava vendo tudo; por certo que alguma loucura de cabeça atacou aquele cristão velho, porque, num soflagrante, sem um deus-te-salve! — o aflito aquele meneou os passos, derrubando gente, e logo o facão relampeou na direitura do coração de nhã Velinda!...

Houve um grito d’espanto pro mode o desaforo do desatinado.

—  Jesus!... foi o grito de todas as bocas.

Ah! patrãozinho!... Olhe que às vezes, na luz das velas bentas, se passam cousas de deixar um golpeado qualquer mais, mais aplastado que mancarão reiúno em mão de recruta...

Quando a ponta do ferro matador estava a uma mão atravessada… a quatro dedos só da carne  macia,  aí  —  credo!  louvado  seja  Deus!  —  aí  rolou  da  sua  caminha  de  milhã...  rolou  e  caiu  no boleado do seio da moça, na canhadita dos dois, caiu no regaço de nhã Velinda o Menininho Jesus, como uma defesa… e aí no regaço delicado ficou, como um dono na sua casa. .

E o facão matador sentou, tironeado... depois recuando, «minuindo”, caiu mermado, mal seguro na mão sem força, do braço sem vontade, e o cuerudo aquele deu costas e se botou porta fora e o Miguelão com ele, boquejando.

Tempos depois se soube que o mataram, num entrevero, numa bochinchada de carreiras.

Jerivá torto não dá ripa!...

Os velhos lá ouviram do cadete e de nhã Velinda o que havia, e lá arrumaram as cousas.

O que le conto é que o seu major Vieira, ainda em cadete, se casou com a nhã Velinda, e que
aquele tal Menininho Jesus ainda hoje é o figurão do oratório e é o mesmíssimo do presépio que, bá  mais de cinqüenta anos, se arma sempre na estância, no festo do Natal.

—  Não  lhe  parece  que  houve  um  milagre?  Claro!  Foi  por  causa  do  Menininho  que...  Se  o diabinho é tão milagroso!...

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Nota:
João Simões Lopes Neto: "Contos Gauchescos" (1912) 

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