sábado, 24 de agosto de 2013

João Simões Lopes Neto: "Batendo Orelha!…"

BATENDO ORELHA!…
  
Nasceu o potrilho, lindo e gordo, filho de égua boa leiteira, crioula de campo de lei.

 O guri era mimoso, dormindo em cama limpa e comendo em mesa farta.

Já  de  sobreano  fizeram  uma  recolhida  grande,  sentaram-lhe  uns  pealos,  apertaram-no  pelas  orelhas e pela cola e a marca em brasa chiou-lhe na picanha.

Andaria  nos  oito  anos  quando  meteram-lhe  nas  mãos  a  cartilha  das  letras  e  o  mestre-régio começou a indicar-lhe as unhas, de palmatoadas.

O potrilho couceou, na marca. O menino meteu fios de cabelo nos olhos da santa-luzia...

Em potranco acompanhava a manada e retouçava com as potrancas, sem mal nenhum.

O  rapazinho  rezava  o  terço  e  brincava  de  esconder  com  as  meninas…  o  que  custou-lhe  uma sapeca de vara de marmeleiro.

Quando o potrilho foi-se enfeitando para repontar, o pastor velho meteu-lhe os cascos e mais, a dente, botou-o campo fora: fosse rufiar lá longe!...

O gurizote, já taludo, quis passar-se de mais com uma prima...; o tio deu-lhe um chá-de-casca-de-vaca, que saiu cinza e fedeu a rato!...

O  potro  andava  corrido,  farejando...  Mas  nem  uma  petiça  arrastadeira  d’água  e  poronguda, achou, para consolo da vida. Té que o caparam.

O mocito, que era pimpão, foi mandado incorporar. Sentaram-lhe a farda no lombo.

Mal  sarou  da  ferida  o  potro  foi  pegado:  corcoveou,  berrou;  quebraram-lhe  a  boca  a  tirões, dividiram-lhe a barriga com a cincha; quis planchar-se, e lanharam-lhe as virilhas a rebenque e as paletas a roseta de espora. Tiraram-lhe as cócegas... Ficou redomão.

O recruta marcou passo, horas, pra aprender; entrou na forma; agüentou descomposturas; deu umas  bofetadas  num  cabo  e  gurniu  solitária  e  guarda  dobrada,  por  quinze  dias.  Cortaram-lhe  os cabelos à escovinha e ficou apontado. Era o faxineiro do esquadrão.

Houve uns apuros de precisão… O rocim foi vendido em lote, para o regimento.

Tocou  a  reunir:  era  uma  ordem  de  marcha,  urgente.  O  faxineiro  recebeu  lança,  espadão  e tercerola.

Quando a cavalhada chegou o primeiro serviço dos sargentos foi assinalar os novos; era simples e ligeiro: um talho de faca na orelha, rachando-a. Bagual assim, virava reiúno.

Quando tocou o bota-sela, o faxineiro estava na porteira, de buçal na mão, esperando a vez. O laçador laçava, chamava a praça e esta enfrenava... e cada um roia o osso que lhe tocava.

— Chê! Enfrena!...

Foi o reiúno que caiu pro recruta.

Aí se juntaram os dois parecidos, o bicho e o homem. E a sorte levou os dois, de parceria, pelo tempo adiante. Curtiram fome, juntos, cada um, do seu comer, E sede. E frio. E cansaço, mataduras e manqueiras;  cheiros  de  pólvora  e  respingos  de  sangue,  barulho  de  músicas,  tronar  grosso  e pipoquear, nas guerrilhas.

E  de  saúde,  assim,  assim...  Um  teve  sarnagem,  o  outro  apanhou  muquiranas;  se  um  batia  a mutuca, o outro caçava as pulgas.

Quando, no verão, o reiúno pelechava, também o faxineiro deixava de sofrer dores de dentes. Passados anos o mancarrão já nem engordava mais, e todo ovado estava. O fiscal do regimento, sem uma palavra de — Deus te pague — mandou vendê-lo em leilão, como um cisco da estrebaria. Um carroceiro comprou-o, por patacão e meio, com as ferraduras.

Passados anos o praça aquele teve baixa, por incapaz, com o bofe em petição de miséria; e saiu da fileira sem mais família e sem saber oficio. Saiu com cinco patacas, de resto do soldo, e sem o capote. Foi então ser carregador de esquina.

O reiúno apanhava do carroceiro, como boi ladrão!

O carregador levava dos fregueses descompostura, de criar bicho!

O reiúno deu em empacar.

O carregador pegou a traguear.

O carroceiro um dia, furioso, meteu o cabo do relho entre as orelhas do empacador e... matou-o.

A policia uma noite prendeu o borrachão, que resistiu, entonado; apanhou estouros… e foi para o hospital, golfando sangue; e esticou o molambo.

O engraçado é que há gente que se julga muito superior aos reiúnos; e sabe lá quanto reiúno inveja a sorte da gente...


---
Nota:
João Simões Lopes Neto: "Contos Gauchescos" (1912) 

Nenhum comentário:

Postar um comentário