domingo, 25 de agosto de 2013

Fialho de Almeida: "A Ruiva"

A RUIVA
  
A taberna do Pescada ficava mesmo em frente ao Cemitério dos Prazeres, e  era frequentada pela gente do sítio, especialmente de noite, à hora em que os cabouqueiros  e os britadores  abandonam  os  seus trabalhos  e  entram na cidade, em ruído.

Tratava-se então de levantar um muro de cantaria que fosse como a fachada opulenta  da  gélida cidade de cadáveres;  na  planura  que medeia  entre o cemitério e as terras,  o terreno  via-se  revolto;  os carros de mão  jaziam esquecidos;  os  montes de pedras miúdas e  de argamassas antigas tornavam penoso o trânsito. Na lama constante do caminho, eram profundos os sulcos que as seges  de enterro  deixavam até  à  porta  do  cemitério,  escancarada sempre, como a goela de um plesiossauro faminto.

Em anoitecendo, tudo aquilo era de uma contemplação lúgubre e misteriosa, em que se adivinhava o trabalho de milhões de larvas; o ladrar dos cães tinha um eco desolado, que tornava depois mais sinistro o silêncio; a porta fechava-se sem rumor, girando em gonzos discretos, e uma luz esmaecia na treva, no fundo dos ciprestes  e  dos túmulos,  diante  de um  santuário  deserto,  onde  o Cristo, do alto, olhava vagamente o guarda-vento.

Começavam então a  chegar à  tasca  os  guardas  encanecidos no  mester de receber enterros, graves nos seus uniformes fatídicos, os coveiros angulosos e vesgos lançando-se de si um fétido deletério; e cada um, dando boas-noites à tia Laureana, ia sentar-se à banca, no seu lugar, chupando pontas de cigarro e pedindo decilitros. Todas as noites a casa se enchia e o aspeto era sempre o mesmo.

Ao fundo,  encostada  ao balcão forrado de zinco,  a  tia  Laureana,  mulher  de grandes seios e arrecadas, que tinha a especialidade dos pastéis de bacalhau, e pernas  másculas saindo  de grosseiras saias  de  baetilha;  ao canto o  cego de chapeirão derrubado,  atitude fria,  faminta,  dolorida  e apagada,  a  rebeca  nos joelhos, a manta de riscas ao ombro, a eterna noite nas feições. O grupo dos trolhas,  junto  da  porta,  discutia  o preço das couves e o número  de ventres perfurados  com facas de ponta,  durante  a  semana.  Zé  Claudino tinha a palavra;  a  sua  autoridade indiscutível de orador  popular fazia-lhe cair dos lábios,  como um  rosário  de sons, as  palavras  graves,  indecorosas,  chulas e poéticas, em misto turbulento e inteligente.

Bêbedos extraordinários falam de tudo e descrevem parábolas no solo, com a sombra dos seus corpos embrutecidos. Dois ou três embirram com a sombra.

—  Mete-te comigo — resmungam; — cai nessa, minha tirana!

—  A velhaca  — comentam —  tem agora a  mania de  ir adiante de mim.

Esta manhã era atrás. Mas não me larga! Bêbeda!

—  Era o que me faltava! Súcia de marmanjos!

E, insistentes, aos ziguezagues:

— Persegue-me, anda, persegue-me, que levas dois butes.

— Lá isso — ouve-se outro dizer na rua —, lá isso não digo eu... Que ele  há um Deus que nos governa: é boa!

Eu entrava, cumprimentando os velhos conhecimentos.

— Ditosos olhos, estudantinho! — dizia um.

— Ó seu casaca! — fazia outro.

— Seja bem aparecido e pague-me dois dedos de marujo.

Um velho fressureiro, com o olho esgazeado de sicário experiente, tocando-me o braço com a sua mão ensanguentada, ia aconselhando baixo:

— Prove-me do branco, doutor; prove-me do branco; que é uma reinação!

Com um pastelinho, não lhe conto nada. .

Aqueles eram os meus amigos, perigosos amigos contraídos na intimidade do vício e no surdo deboche das tascas.

Sentava-me A Laureana  vinha,  sorrindo,  servir-me;  e o seu  olho  pardo, sequioso, acariciava a brancura do meu pescoço, apetecia os meus cabelos de um  louro-claro,  tons  insípidos,  sob as abas do chapéu esburacado.  O  seu hálito empestava a dez passos, trazido nas asas do seu amor quente e brutal, de uma infâmia cheia de mercancia. Ouvindo-me pedir qualquer coisa, o olhar adoçava-se-lhe como  o dessas gatas a  quem coçamos  o  crânio; e eu sentia   exalar-se dela  um  fartum de gorduras fundidas,  que me perturbava.  Nessa  noite chegou o tio Farrusco.

Era coveiro e o mais asqueroso — o da vala; aspeto repelente, perfil áspero e cortante, descarnadas as faces, as mãos aduncas e gastas, cheias de terra e de cabelos.

Sobre a  testa,  de  uma polegada  de largo,  caíam  grenhas  fermentadas;  as  orelhas desapareciam-lhe sob  a  lã  sebácea  de um  barrete cinzento;  por um rasgão da camisa, furava uma moita de cabelos hirsutos, brancos como um pé de junco seco,  nascido entre  as pedras  de um  muro  arruinado de azenha decrépita. Quase lhe ficavam pelas esquinas a que se encostava os farrapos em que embrulhava o corpo esquelético e lustroso, como de couro curtido.

Um cabouqueiro tostado, perfil adunco de coruja, bateu-lhe no ombro:

— Tio Farrusco!

O  outro tentou aprumar a  estatura  lassa  na  moleza da  embriaguez,  e resmungou:

— Que é lá isso, patego? — O seu olho envidraçado não podia fitar; os fios de baba desciam-lhe, lentos, aos cantos da boca.

— Olá! — fez o cabouqueiro — a maré encheu. — E sacudia-o.

— Mais bêbedo é você, grande cavalgadura!

Tentava caminhar; a sua sombra oscilava, amplificada na parede, como a de um antediluviano fenomenal, e quase se não compreendia bem como aquela coisa era um homem. Arrastou-se custosamente para um canto; ao passar por Zé  Claudino tomou-lhe  o copo, levou à  boca  o vinho e esteve bebendo devagar. As gotas, de um roxo sujo, caíam-lhe pelas barbas. O nó da garganta subia-lhe e descia com vagarosos movimentos de embalo no cilindro de uma bomba. Pousou o copo com ruído, com a manga da jaqueta limpou os beiços.

—  E a  filha? —  perguntaram-lhe.  "—  A Ruiva. .  O  tempo  tem estado famoso  para  doentes.  Um sol  quentinho  que é um  forno.  —  Do fundo, alguém disse para Zé Claudino:

— A Ruiva ainda é viva?

E o trolha, curioso:

— Não era essa que deitava sangue pela boca? Na tenda do Malaquias vi eu... foi pelo Santo Amaro, faz agora anos...

Mas cada um procurava informar-se:

— Uma gaja de granha encarnada, um sinalzinho de cabelos no pescoço...

O quê? Era filha daquilo? — E apontava o coveiro.

— Bem sei — diziam; — que peça! A que estava com o Nicolas das seges  d'enterro.  Contem-me  cá  quem isso era.  Bêbeda  como ratos!  Ora  esperem. Ela era também da súcia da Panasqueira. Lembras-te, Zé Claudino?

— Bons tempos — fez o interrogado do fundo da sua saudade dissoluta—,  aquela  noite no  palheiro  do Panelas.  Vinte raparigas dos  casais,  todas pimponas, vieram dormir à granja. Alta noite — piscava o olho —, alta noite.. 

— Não  ponhas  mais  na  carta.  Tosquei tudo!  Que bailões!  E  a  Ruiva também era .. 

— Uma mulher dos diabos! Enfezadita dos nervos, mas coragem que tinha diabo. Quando  ela se  deitou  ao Nicolau,  aquela  vez  pelo  Entrudo,  além  ao Quintalinho! Prega-lhe duas taponas, que nem eu sei como o não virou!

O coveiro olhava, sem compreender, um pasmo idiota na face. Na penumbra da taberna, aquele asqueroso vulto tinha uma expressão rembrandtesca e crua, que fazia medo. O deboche nunca se concentrara tanto, podia-se jurar.

— Mas, tio Farrusco, a Ruiva vai melhor, hem?

— Melhor,  melhor. .  —  gaguejou ele.  —  Esta  manhã  via-a  estar dormindo..   mais  branca!  —  Pagas cambrainha',  ó tirano?  Uma  pessoa, cos diabos, gosta de molhar a palavra. Quero lá saber!.. 

Tentava  apoiar-se  na  banca,  com as duas  mãos  trêmulas. Ouviam-no cantarolar baixo, babando-se:

Foi fazer uma caçada A serra de Montalvão!

I Aguardente.

E, com risadinhas pequenas e cruas, geladas, doidas, que produziam como o grito do estanho, aconchegou-se ao canto, para dormir, com círculos de cão vadio  que se  anicha.  Todos procuravam espicaçá-lo  com  uma  chufa. Blasfemava-se, em voz alta, uma riqueza inultrapassável de obscenidades.

— A minha filha  —  resmungou o tio Farrusco.  —  Querem saber da minha filha, da Ruiva..  Súcia de tarimbeiros!...

Foi fazer uma caçada A serra...

Ainda hoje o Nicolau, que atira à vala as reses que se abatem no hospital', me disse que a trazia ali. É boa! Se eu bem vi o saco..  e cosido que ele vinha. A Ruiva em postas! — Ria-se. Caíra tudo num silêncio álgido.

Calou-se, e depois:

— Também eu hei de morrer. Quero lá saber nada daquela grande velhaca!

— Vamos — disse eu. — Há uma coisa pior que um cão danado: é um coveiro bêbedo. — E saí.

Um dia antes, o meu escalpelo penetrara o corpo dessa perdida criatura, que veio a fornecer subsídios notáveis à minha tese inaugural.

Inquiri pormenores.  Disseram-me que o tio Farrusco fora  casado com uma vendedeira, a Marta, muito conhecida por Buenos Aires. Soube-se depois que as hortaliças que esta mulher vendia eram pelo marido plantadas no cemitério, para lá da vala e longe das vistas dos indiscretos, hortaliças que com o tempo e o belo tempero da terra adquiriam grande desenvolvimento.

Se lhas gabavam, Marta retorquia:

— Ai! bom dinheiro custam, freguesa. Vêm todas as manhãs de Odivelas, uma estopada que eu sei!.. 

E explicava que um cunhado, da quinta do senhor marquês de Borba, tinha seu vintém e um bocadinho de terra.

É no Alto de S. João que se sepultam os cadáveres do hospital; para o nosso caso, porém,  isso não importa  onde se  faziam os belos  nabos e aquelas lombardas folhudas. Caro, tudo pelas últimas, dizia pondo a sogra, os cordões  a luzir no peito.

Carolina  nasceu no  dia  da  morte da  mãe.  Até  ali,  o coveiro  vivera  sem misérias,  mas,  morta  a  mulher,  descobriu-se  donde  vinham as couves  e ninguém mais lhas comprou. Não se sabe como a pequena se criara, mas aos doze anos  era  bonita,  franzininha, o  nariz  arrebitado,  descalça  e cheia  de remendos.

E,  sem  consciência do que via,  acompanhava  o  pai  na  sinistra  ocupação  de  sepultar os mortos.  Assim crescera.  Naquela  miseranda  existência  entrara  a criar predileções. Começou a amar principalmente os mortos que paravam à porta do cemitério em ricas berlindas douradas, entre filas de gatos-pingados  lúgubres,  de tochas acesas,  e puxadas por seis parelhas cobertas  de crepes.

Visitava-os na  casa  das observações,  acocorada  a  um  canto,  com o olhar  absorto, durante as vinte e quatro horas que os caixões ali passavam abertos, e  onde  contemplava, deitados na pétrea  imobilidade derradeira, os que na  sua  vaidade egoísta,  corruptos  e miasmáticos,  iam habitar em sepulcros  de  mármore,  com figuras sentimentais na  fachada  e pomposas inscrições nas  lápides. Pode dizer-se que aprendeu a ler no cemitério, quando curiosa na sua  pobreza esfrangalhada queria saber os nomes e posições ocupadas no mundo pelos  que habitavam aquela  branca  cidade de mármores,  de que  se  julgava  rainha.

Uma  tarde,  passeando na  grande rua  que  corre ao longo  da  fachada  do  cemitério,  tinha parado a  contemplar,  no alto  de um  pedestal  glorioso,  a estátua do conde das Antas. E falava ' ainda, nos seus últimos dias, daquela enérgica figura de soldado, grande barba sobre o peito e cabeça de um vigor leonino,  a  mão  apertando o punho da  espada...  e,  desde então,  a  sua  ânsia pedia-lhe militares, que arrastam nas ruas os sabres prateados e destacam, na agitação dos  enterros,  dentre os graves  toilettes  negros  com a  alegria  embriagadora dos seus vivos rutilantes e das suas divisas sanguíneas, cor dos  desejos  insaciáveis.  Nos  seus devaneios passavam pálidas figuras de alferes,  dos que tilintam esporas no lajedo dos passeios e retorcem bigodes frisados,  contemplando as janelas, em domingos de procissão. Todos os dias visitava a  casa  das observações:  ali,  sobre bancas,  expunham-se caixões  abertos;  ela  mesma  metia nas  mãos dos mortos as  argolas de  alarme,  e tal emprego  quotidiano permitia-lhe  ver gentes de todas as castas e profissões.  Meninas ricas, filhas de milionários  e nascidas  entre veludos,  áureas  meninices  em  berços de renda, acalentadas por  amas normandas de cachos  louros,  iam ali  dormindo nos seus caixões de cetim, vítimas de tísica galopante, olhos vítreos  e face cavada, lábios brancos em listras lívidas e o gelado sorriso dos mártires,  clareando em reflexos os rostos, de uma rigidez de escultura.

Rapazes pobres, dos que ao clarão das forjas crestaram a vida, figuras secas de  famintos,  torciam nos rostos  expressões de sofrer infernal e gelavam-se  na  nudez miseranda da morte, ao lado de reverendos, com a barba bem feita, a  batina nova e grave, quebrada em pregas simétricas, finas camisas de bretanha,  tiras de folhos e sapatos de fivela, cingindo, à força de apertadas com uma fita  contra  o peito,  cruzes de marfim bento,  símbolo  de uma  fé  que nunca  os  caracterizou na vida.

E os grandes devassos, os magros adúlteros que nos foyers das óperas e nos  camarins das cantoras, nas casas de batota e nas alcovas fáceis fazem pública a  sua dissolução e desonra, vinham também, diante da pequena, exibir a última  elegância.

Carolina,  pelo número e aspeto  dos convidados  de um  enterro,  chegara  à  perfeição de fixar a posição social de qualquer defunto.

Os conselheiros reuniam graves  figuras circunspectas de velhotes de luva  preta  e grandes pés,  folgados  em botas  macias.  Os condes  faziam-se  acompanhar  dos  coches  da  casa  real,  riqueza  oxidada  e rota,  em que  se  sentiam os anos, os ratos e o óleo dos cabelos reais.

Os escritores  arrastavam figuras chupadas,  de luneta,  vastas cabeleiras polvilhadas de  caspa,  expetoração  de discursos  com  gestos amplos  e  eloquência  estrondosa.  Conhecia  o bombeiro,  o polícia,  o correio e juiz de  irmandade. E odiava quem vinha só para entrar na cova, os que embarcavam  para  o outro mundo  sem deixar,  na  gare,  alguns amigos da  infância, ou  herdeiros de guardar conveniências. Ouvia nesses momentos dizer ao pai:

— Súcia de vadios! — quando tinha de abrir cova sem receber gorjeta.

E aprendera a dizer com ele esta frase profunda:

— Até morrem pelo amor de Deus; cambada!

Havendo enterro grande,  punha  uma  garihaldi vermelha,  azeite  nos cabelos  ruivos, sapatos de duraque preto, sem tacões e chatos como linguados. Toda  risonha,  ajoelhava  na  passagem do  préstito,  movendo  os  lábios  como  quem  reza. Depois, na volta:  

— Uma esmolinha por aquela alma de Deus!

E comprava pevides, amendoim torrado e alféloa, à tia Palma, uma de capote  verde,  sem um  olho,  que vinha  vender à  porta,  num tabuleiro velho,  secas  gulodices de arraial. O que a abalava era aquela vida na casa das observações.

Olhava já sem terror os cadáveres, como se fossem pessoas adormecidas no mesmo quarto, cada qual na sua maca de estalagem. Os homens, sobretudo.

Alguns eram ainda novos, louros, pálidos e bem-feitos; alguns, ricos, tinham a pele fina, de um contacto cetinoso e bom.

Nas  horas  de calor,  de Verão,  quando  sob os ciprestes os empregados  do cemitério dormiam, ia devagarinho, sem ser pressentida, à casa dos depósitos, escolhia os cadáveres dos moços, dos belos, se os havia, e como um pequeno vampiro sequioso entreabria as mortalhas, despregando com uma navalhinha as  camisas;  metia  a  mão  devagarinho pelo peito, metia,  escorregando-a  ao longo das carnes, beliscando-as levemente, com prazer; o olhar dilatava-se-lhe, havia  na  sua  face uma  mancha  de excitação,  mordia  os  lábios,  exaltada;  e, palpando, estudando,  compreendendo e adivinhando,  ficava absorta,  um pouco curvada sobre os corpos, o hálito ardente, uma palpitação larga e cheia de ímpeto.  A  sua  imaginação rasgava  as  névoas indecisas que,  diante  da inteligente maldade, a sua inexperiência despregava como uma máscara casta e límpida  cheia  de placidez.  Estas explorações fizeram-na  muito cedo mulher, preparando-a  a  compreender mistérios  e umas  meias frases  que  ouvia  aos gatos-pingados, se passavam por ela. Às vezes, eram rapazes de quinze a vinte anos que jaziam.

Carolina em os vendo exaltava-se, todos os nervos se lhe distendiam na ânsia de um desejo que jamais formulara.

Duma vez tinha beijado sôfrega uma cara, com balbuciações aflitas, ardendo em pecado, como uma alma de réprobo.

Não conhecera mãe, nunca uma boa mulher a beijara e o coveiro não reprimia diante da filha as suas expansões brutais. Entregue a si própria, chamuscada por carícias pérfidas de homens entregues à rota corrente da sua bestialidade, fizera-se  nisto.  Havia  no entanto dentro  dela, ainda,  uma  coisa  ideal  e inexplicável,  certa  virgindade infantil:  de  noite  rezava!  Vinham-lhe  tristezas íntimas,  a  insônia  triturava-lhe  por vezes a  saúde  como  num almofariz de bronze. Sem saber porquê, era desgraçada. Desejaria ser como uma pequena que vira  um  dia  costurando à  porta  de uma carvoaria, com uma rosa nas tranças.  Mas,  de súbito,  alguma  coisa  a  arremessava  à  lembrança condenada dos homens adormecidos na  casa  das observações,  e via-os surgir das suas mortalhas alinhavadas, sorrindo, com vida; estendiam os braços a procurá-la; roídos de vermes, muitos vinham, como na dança do Roberto, roçar-lhe pelos quadris os membros esquálidos e podres.

E estonteada, fitando  no  vácuo aquela  visão candente,  miserável  nos  seus quinze anos, sentava-se,  extenuada  e languescida,  à  sombra  dos  ciprestes anosos e dos túmulos soberbos, com a cabeça aos baques, revolta a alma por criminosas comoções. Era já noite, muitas vezes, quando ia só para casa, fora do cemitério.  O  pai ficava  embrulhado num cobertor com um  gorro  de lã preta,  por cujos rasgões lhe furavam os cabelos;  deitava-se no côncavo  de  algum  velho túmulo vazio; se  caía  geada,  erguia  a  tampa  de  um  jazigo de família para ir estender-se nas gavetas, entre caixões de chumbo.

Já estava acostumado àquela folia, e depois, assim, não dormia as manhãs na cama,  e podia  começar cedo o trabalho,  regando  logo de madrugada  os canteiros  dos  túmulos  das famílias que lhe pagavam esse trabalho,  varrendo dos pedestais as folhas secas que o vento despregava dos ramos, e alta noite, com passadas lentas  e lúgubres,  nas trágicas encruzilhadas dos  ciprestes, reanimando ou acendendo,  com o rolo metido nos dedos,  as lâmpadas extintas pelas lufadas do nordeste.

Nem uma vez se lembrou de Carolina que ficava de noite, na cidade, separada dele,  a  sua  filha,  entregue à  leviandade dos  seus quinze e aos  furores de coração  de um  aprendiz de marceneiro  que a  perseguia, preso  de maus instintos.  Carolina  era  branca, delicada  e nervosa;  o seu sangue tinha originalidades singulares, inquietações de luta e o furor da aventura, e do seu seio dimanava essa ânsia ardente de que se fazem os gozos, ansiava como uma sede antiga.

Dormiam numa casita  arruinada  e miseranda,  oculta  no  fundo  de um  pátio sem luz de lampião,  para  onde abriam as janelas de tabuinhas de casas suspeitas, em que marinheiros tocavam guitarra.

A história  das suas exaltações enraizava  também,  como uma  hera,  naquelas  más  janelas,  pelas noites escuras de  Verão,  quando, encostada  ao peitoril da janela,  escutava  altercações,  descantes  e  venalidades,  na  confidência  de carroceiros.

Nestas disputas Carolina entrevia uma coisa, que se apoderava rapidamente do  seu organismo,  enroscando-se-lhe  no  corpo como serpente  com frio,  amarrotando e poluindo no amplexo alguma, ainda que pouca, dessa adorável  modéstia que é o tesouro das mulheres honestas.

Viam-na  de manhã,  quando saía,  dar bons-dias à  vizinhança e sorrir às   pecadoras mendigas, que nas tabernas jantavam gravanzos por qualquer  pataco, ter com elas palestras. Desassombradamente olhava para os homens, tinha desdéns para uma ordem de gente e criara predileções pelos louros; nos seus trapos  escolhia  sempre  cores  que dessem na  vista;  e,  calculista,  com o olho febril, arquitetava aventuras: seria de noite, uma chuva miúda peneirar-se-ia do alto, sobre as calçadas; fugiria embrulhada no xalito com um louro...

Hem?

Da janela da sua mansarda, empinada sobre um banco de pinho, podia ver o que se passava na alcova de um pobre bordel carairo. Apagava a luz para não ser vista,  subia  ao banco,  encostada  à  janela;  e ali,  durante  horas,  passava  a espreitar o que fazia  a  vizinhança. Cenas equívocas desenrolavam-se  por lá.

Era tão curioso! A nudez impura dos contactos fazia-lhe regurgitar de dentro  uma seiva cuja plenitude a estonteava. Era a febre do sangue inficionado pelos microzimas do vício e o desejo de cadela nubente que uma força espicaça de  irritantes curiosidades e terrores deliciosos. Aquilo vinha-lhe às ondas, como a  babuge das praias contra fraguedos solitários.

Coroas de padres esverdeados mostravam-se à luz de candeeiros de petróleo;  no  espelhinho dos toucadores  das cômodas refletiam-se  grupos  sombrios, estranhas fantasias das encarnações de Vixnu. E alguém, dedilhando guitarras, entoava  com voz  rouca  fados  rasteiros do  conde de Vimioso  e  da  Severa, entre exalações  de aguardente.  E tiniam  garrafas,  sentia-se  o  cheiro  das sardinhas  assadas.  Toasts desbragados expluíam claramente.  As vozes  das  mulheres guinchavam. Alguém rolava pelo sobrado e rimas de pratos caíam,  com estrondo,  em migalhas,  no  meio  de pragas de raios  de uma  vez, tresloucada, descera à rua. Domingos de Inverno. A noite lôbrega alonga-se.

Alguém gritava — «Jornal da Noite», traz; a lista de Espanha!

O frio penetrava as carnes. Carolina tremia, lábios secos, uma aflição enorme  subindo-lhe  do estômago.  Não sabia  para  onde  ir.  Quereria  as  coisas mais  violentas, amplexos de ferro, beijos de lava, o vasto oceano de um amor sem  fim e sem felicidade.

Mas o aprendiz de marceneiro,  um  rapaz atlético  e sanguíneo,  apetites  excêntricos, saía da oficina, dava com ela, aproximava-se com uma piada...

Carolina recuava, humilhada e cheia de vergonha. E, sem uma palavra deitava a correr para a mansarda, subia a escada sem parar, fechava-se por dentro, e  atirando-se para cima do leito desatava a soluçar sem remédio a desconsolação  daquela vida, que flutuava sem linha de conduta.

O candeeiro apagava-se no alongamento da noite. Das torres da Estrela uma  badalada caía sobre a cidade adormecida, a vibração enorme alongava-se num círculo infinito...

E,  no  silêncio da  mansarda,  Carolina  abria os  olhos  com um  terror em que  dançavam fantasmas sardônicos com a cara do aprendiz.

Era a tarde da nossa Senhora dos Prazeres. O tempo serenara, o céu não tinha  nuvens  e no azul espiritualizado os voos brancos  dos  pombos  davam  uma  inocência casta ao ambiente. Havia arraial nessa tarde. A procissão, saída da  igreja  de Santos,  por entre farrapos  de bandeiras  e verdores de buxo,  devia  entrar na  capela do cemitério, à noitinha, no  meio de foguetes e aromas do  peixe frito, cuidadosamente consumido pela fome do povoléu curioso.

Na esplanada que vai terminar à porta dos Prazeres, as pequenas barracas de  lona  enchiam-se  de grupos;  filhas de  saias engomadas,  olheiras fundas,  com  fadistas  de calças esticadas sobre alpargatas de linho.  As mulheres  gordas,  lenço  vermelho,  os  grossos  braços nus,  refogavam mexilhão,  vermelhas de  calor; em torno os soldados passavam, de chibata, rostos vulgares e bestiais,  dilatados  em risos  enormes; e,  abanando-se,  diziam  brutezas às pequenas  ovarinas sujas. Na confusão dos grupos os garotos sujos, vivamente alegres,  corriam relanceando olhares famintos  sobre os  bolos secos das vendedeiras  ambulantes,  e de passagem  pediam cinco réis.  Aqui e além  viam-se  sobre a  relva,  petiscando,  famílias de operários,  pequenas louras e limpas,  tipos  de  costureiras futuras,  traços  finos, cismadores  e delicados.  Os vadios  esqueléticos,  de  calções  em frangalhos, apregoavam  água.  No ar  os  ruídos  multíplices abafavam-se uns aos outros, e das contínuas pulsações resultantes  elevava-se  um  ruído  uniforme e indistinto,  como de  ebulição  longínqua.  Os  municipais da patrulha iam atravessando devagar, nos seus cavalos negros, e os capacetes esguios, de cuja crista jorrava a branca cabeleira dos penachos de linho,  salpicavam de originalidade e  paisagem.  Eram  um  enlevo.  As criadas olhavam-nos suspirando. O ruído crescia. O sol mergulhava com uma pompa escarlate no silêncio do rio, e o poente inflamado era de uma amplidão sem balizas.  Dentro  do  cemitério o mesmo  movimento  de quem  ia  e vinha.

Pessoas fornidas de  carnes,  esposas espessas de oleiros,  capelistas de  chapelinho, laços  escandalosos  e sombrinha, liam, soletrando,  as inscrições  tumulares.  Admirava-se  o mármore,  as fachadas.  Os pequenos,  vagarosos,  colhiam alfazema  e sardinheiras.  Alguns olhavam através  das  rótulas,  o  interior dos jazigos, a ver quem tinha berloques de contas e figuras bordadas  de lã  em molduras ricas.  Alguns ferreiros de mãos  calosas descansavam na  borda  dos  pedestais,  tasquinhando as suas  merendas;  muitos bebiam pelas  garrafas, fazendo saúde aos compadres. E todo o mundo ria a sua pândega, a  fazer arraial com grossas bobages cruas de taberna e de oficina. As mulheres,  de vestidos de merino, com folhos, mantas de lã com borlas caídas atrás, xale  bem dobrado no  braço,  olhavam pasmadas.  Os fragmentos  das palestras, apanhados de passagem,  eram  os  mais  originais e contrastantes.  Veteranos  procuravam o túmulo do conde das Antas. Explicavam os emblemas, a atitude  fera da estátua.

— Portugal velho! — comentavam. — Ele e o Saldanha!...

E familiares, um clarão purpúreo na face:

— O nosso velho! — diziam. — No dezanove de Maio. .  

E outros queriam ver o túmulo do Palmela. Uma velha de Aveiro ouvira dizer  na terra que era obra famosa. Alguém explicava as riquezas do duque, as suas  quintas, dois contos diários de rendimento; a duquesa era bonita, e um pouco  gorda; ele tinha sido da Marinha. De resto, boas pessoas e fidalgos da gema;  pela Semana Santa pediam na Sé para os pobres e sustentavam asilos. E iam  semeando o chão de  espinhas  de peixe,  de cascas de laranja,  e  os  ares de  rumores  de palestra. Mas estrondeavam foguetes.  Uma  filarmónica  sentia-se   ao longe. Corriam. Era a procissão. À frente um marceneiro espadaúdo trazia  o pendão, pomposo na sua capa de seda vermelha. Virgens de branco, rosas  na  cabeça, tipos de  gaiatos disfarçados  em saias, vinham gravemente,  acertando o passo. E sobre as cabeças um andor de pau dourado e pequeno  trazia  a  imagem,  cheia  de  flores de papel.  Carolina  com a  garibaldi melhor,  uma  rede  de contas  nos  cabelos ruivos,  fora  também à  festa.  O  coveiro  embebedava-se em casa do Pescada, com a barba feita, o seu carão anguloso e miserável, inerte sob as abas de um chapéu de Braga. Carolina vestira-se logo  de manhã,  toda brunida,  botas de duraque sem tacões,  brincos  de vidro  prateado,  arzinho alegre,  o  branco  apetite  da  sua  carne  anêmica,  feminil  e  ébil.  E fora  ao cemitério  espairecer um  bocado,  com um  farnel no  lenço, laranjas, duas queijadinhas da tia Palma.

A senhora  Marcelina,  que fora  ama  do padre Anselmo e agora  arranjava  criadas e consertava cadeiras, tinha prometido a Carolina ir lá ter com ela mais a mulata, que saíra do hospital havia uma semana e lhe estava devendo coisa de quatro moedas. A Marcelina morava no pátio também, no primeiro andar, tinha arranjos de casa e barbicas pela cara, sua meia dúzia de lenços, um rico cordão de ouro com medalha e uma Senhora das Dores com olhos de vidro,  mesmo viva, a olhar para uma pessoa.

E falava-se:  que havia  papéis,  uma  panela  de dinheiro  no  quintal,  ricos  manteletes  nas cômodas,  que tinham pertencido à  irmã  do padre Anselmo.  Marcelina  era uma  pessoa  baixa  e  vagarosa,  aspeto  redondo  e roxo de hemorroida,  feridas na  perna  emplastada, anéis pelos dedos e o vozeirão de um  quartel-mestre saindo do capote  d'alcoviteira.  A sua  história  apoiava  o enredo principal no governo civil, no hospital e na Rua das Atafonas. De resto encontrara  o padre Anselmo capelão  da  Guia  e tomara-lhe  amizade.  Boa pessoa,  o padre Anselmo,  amigo  do seu amigo,  boas manhãs  na  cama,  de Inverno, beberricava-lhe um quase-nada, ratão, pregando belas peças; manhã cedo, ela ainda na cama, e vinha ele da missa, descobria-a zás, uma palmada. E morrera. Tudo quanto é bom acaba. A gente fala, fala. . um dia chega. E dava  suspiros.  Carolina  conhecia-a.  Mal  luzia  o  buraco,  já  a  senhora  Marcelina  corria a vidraça e vinha, de coifa branca, espanejar o peitoril. Tinha um sorriso agradável;  um  dente  trôpego,  único e esquecido,  esverdinhava-lhe na  boca  desmobilidada;  as barbicas  hirsutas recordavam uma  gata  mansinha que  se  corcova,  elétrica,  sob as festas do dono.  Era-lhe demais a  mais muito  obrigada. .. De rastos que eu ande, dizia, de rastos que eu ande, não lhe pago  as obrigações que lhe devo. Quando estivera doente, com tosse e muita febre,  ninguém dizia que ela  escapava,  a  senhora  Marcelina  vinha  dar-lhe  caldos  e  fazer meia junto do seu leito de proletária. Havia dois anos. Mas não se davam  muito;  a  Marcelina  era  mais das outras  em  frente,  falava  com elas de janela  para  janela,  grossos  risos e pesadas graças.  E ratona,  então,  como nunca se  vira.  O  que sabia  de  frades,  e  do poeta  Bocage!..   Era arrebentar  de riso,  senhores.  Além disso  andava  sempre ocupada  na  vida,  uma  azáfama,  xale traçado e sapato d'ourelo, a massa dos seios papuda e molemente batida por  mais de  meio século,  arrotos estrondosos..   Saíam de casa  dela  pessoas lúgubres. de uma vez a polícia fora ali. Enfim, falavam-se coisas, ela sabia de  facadas, e Carolina ouvia dizer isto — arranja pequenas a velhos. E no fundo  da sua alma branca e suscetível experimentara horror. Na tarde anterior a filha  do coveiro recolhera com ares de dia, a Marcelina estava à janela; falaram-se,  como estava, como não estava, o pai como ia e que ela ia vivendo com o seu  padecimento  de entranha, amargos  de boca,  uma  canseira, uma canseira;  mesmo mortinha de todo! Tinha posto bismas de confortativo que era muito  bom, andava  agora  tomando poses  caras com a  fortuna, mas o fastio era  grande, aflições por dentro..  O pior eram as noites, contava todas as horas. E  depois as pulgas. Ai!, dizia, quem tem mazela, tudo lhe dá nela. Que é feito,  que é feito?  Não havia  olhos  que a  lograssem. De resto  amava  as criaturas  sérias como Carolina; nunca fora de tricas, louvado Deus. E arrotava. Tinha  almoçado uma açordinha, com o seu ovo; tudo lhe fazia mal. — É caruncho,  é caruncho, comentava. E convidara Carolina a entrar, descansar um pouco,   tinha rosas no quintal, uma franga preta que já punha ovos, manto novo na  Senhora das Dores — minha rica mãe do céu!

Carolina  subiu,  beijocaram-se,  ricas  filhas  para  um  lado,  abraço  para  outro. Carolina sentia-se contente, uma quietação plena, chocada pela sinceridade da  outra. A senhora Marcelina olhava para ela de face. E largou daí a nada  este  dito:

— Há  de  ser um  peixão!  —  E piscava o  olho  pardo com ares  de  entendedora. Andaram vendo o quintal; Marcelina fazia-lhe um ramilhete de  rosas. Dali a nada veio a mulata, encostada às paredes, uma cuia enorme de  postiços e fundas olheiras, olhos de carneiro mal morto, um cheiro a cigarro e  a cânfora.

Mas foi-se logo encostar.  Com o tempo húmido,  tinha  dores do diabo nos ossos.  Desejaria  morrer já  —  raio de vida!  Carolina  dizia-lhe  palavras  comovidas; que aquilo não havia de ser nada, em o tempo limpado já a coisa  era outra, que tivesse paciência, coitadinha que tivesse paciência. E a mulata  arrastava-se,  com  um  sorriso em  que havia  alta  percentagem de amargura,  aspeto  chato e esmagado, como  saco  vazio  de roupa velha.  E  o  seu  crânio  pequenino de estúpida, de grande bestiaga, tinha a calva depressão idiota de  uma  cabaça  oca. Quando ficaram sós,  a  senhora  Marcelina,  abaixando um  pouco a voz, disse à filha do coveiro:

— Tenho uma coisita para lhe dizer, seu interesse.

— Sim? — fez Carolina.

— Não é coisa nenhuma má, não senhor. O seu ao seu dono!

— O que é então?

—  Não se zanga, não?

— Por que havia de zangar-me? Mas diga.

— Há aí um rapazola que dá um cavacão pela menina. Um cavacão, cos  diabos; um cavacão!

Carolina  teve  um  sobressalto.  O  coeficiente  das suas orgulhosas alegrias traduziu-se num sorriso.

— Está a gozar — disse.

— Palavrinha, é coisa séria. Ele falou-me nisso.

— Para quê? — disse ela, trémula, penetrada.

— Ora! Namoricos; não sabe como as coisas são? Rapaziadas. Todos nós  temos disso. Enfim, falar não ofende.

Carolina  estava  pálida,  sentia-se  vagamente  num deleite,  curiosa e cheia de  excitações.

A senhora Marcelina, de olhos no chão, mordia o lábio inferior, como quem reflete.

— Com que então — disse Marcelina, — gosta?

— Hi!...

E, passado um momento:

— Um rapaz com umas casas, forte, loiraço e bom trabalhador. Hem? Sua  sonsinha... Hem?

E, insinuando-se, velha toupeira:

— Tendo juízo, minha riquinha, é uma mina. Nada de cair antes de tempo,  percebes?

Carolina estava rubra, com palpitações doidas.

— E quem é? Como se chama?

— Isso queria você saber, isso queria você saber!

— Não, sério, diga. — E, mais resoluta: — Há de dizer!

— Aqui,  em  frente  do beco, há  uma  loja  de marceneiro.  Sabe.  A do  Ferreira, um de óculos.

— Ah! — fez Carolina. — Já sei.

— Há um oficial, o João, bonitote, muito claro. É esse.  

— É esse então? Pois senhores...

— Um belo moço! É vê-lo além na loja, a camisa arregaçada; que braços, hem!

Carolina  adivinhava-o,  sentindo-o na  sua  imaginação com um vigor de  pintura.

— E depois? — disse ela.  

— E ele pediu-me que arranjasse a coisa, que lhe falasse; tinha vergonha de  vir ele mesmo... Ganha seis tostões, vive só; bom rapaz no fundo.

— E o meu pai?

— Ora!  Nem o adivinha.  Vive sempre lá  em  cascos  de  rolhas. Quer lá  saber. . É vinho e deixa andar.

— Nem sei, nem sei...

— Isso,  o resto arranja-se.  Amanhã há  festa  nos  Prazeres,  percebes? Ele  vai por ali. Tu vais comigo. Entendam-se lá como quiserem. Gostas dele?  

— Sei lá, sei lá! Não é feio...

— Entendo. Amanhã vamos ao arraial. O dia deve estar bonito.

— Olhe, vou de manhã. Lá a espero de tarde.

— Vá feito. Valeu. Faço os meus arranjos e vou depois.

—  Adeusinho, adeusinho.

Desceu a escada. No portal gritou para cima:

— E obrigada por tudo, obrigadinha por tudo.

Não dormiu toda a noite. Uma turbulência de ideias desencontradas agitava-a. Havia dentro dela alguma coisa explosiva que rebentava, que se dilatava com um volume maior que o do seu cérebro e do seu coração.

Tinha  projetos, predileções,  vaidades.  Iria comer petisqueiras de truz na frescura  dos  retiros,  sob parreiras verdes, enquanto,  na  encosta,  lavadeiras batem roupa. Teria vestidos azuis, de merino, ricos lenços de seda com ramos, uma sombrinha e anéis, alguma coisa como uma opulência.

A tia Palma não a reconheceria tão liró, feita uma rainha de Nantes, com botas  de biqueira. E mirava-se no espelho, embevecida, desvanecimento pelintra, a  admiração de si mesma. Surpreendia-se a murmurar baixinho. — O meu João.  

O meu João está na oficina. O jantar do meu João. Em o meu João vindo. O meu João saiu. — E orgulhava-se: ter um homem, ter um amigo...

Diriam dela as vizinhas — a que está com o João na oficina, uma ruiva.  —  Via-se  aos domingos  no  passeio da  Estrela  com ele,  em roda  de coreto,  fazendo volutas por entre os soldados de Caçadores, vestido de merino azul,  de  folho,  arregaçado  atrás,  a  saia  branca, um  lenço nas mãos suadas e  gravatinha encarnada, de borlas. E dali a um ano, quem sabe, broche de ouro,  de moeda!  Os pequenos é que tinham  de  ser o diabo,  ranhosos,  cheios  de  birras, cuecas vestidas, cuecas amareladas, de rastos, fazendo galos nas testas.  Deixá-los! Também as outras se aguentavam: ora! Mas um loiro, um loiro; que  bom! Sempre tinha  dito —  Deus não me mate sem um  loiro.  Às vezes,  ao  acordar,  na  moleza  lassa  do corpo tépido  e aconchegado, espreguiçava-se  pensando:

— Ai! um loiro...

E lembrava  as primeiras linhas  do pescoço do  aprendiz,  linhas fortes  e  firmemente contornadas,  tons  rosa  no  sanguíneo da  epiderme,  pequeninas  espirais de cabelinhos louros, de um macio quente e provocante. E depois a  sua  imaginação,  no delírio,  na  incoerência,  prolongava  nitidamente  essas  linhas, harmonizando-as, moldando-as, curvas suaves e veludíneas, cheias de  saúde, aqueles brancos braços hercúleos e sem um pêlo, que lhe via na oficina,  um  peito amplo, cheio e poderoso, em que se sentissem vagas ondulações  viris de seios, altas pernas nervosas, esculturais, direitas. E diante dela surgia  aquele corpo  lutador,  de atleta,  grandes traços magistrais e simples,  de um  pureza de academia. E penetrava-se da cor da pele, fresca e clara, sob que se  sentiam correr ímpetos de sangue rico, jovem, virginal, fremente. Tomá-lo-ia  pelos ombros, redondos como os de uma estátua, e erguida nos bicos dos pés,  como era baixa, dar-lhe-ia pequenos beijos furiosos na boca, sorvendo o seu hálito,  estrangulando-lhe  os arquejos,  dominando-o e confundindo a  sua  na  alma dele.

Seria assim eternamente, sem nunca se fatigar, e no alongamento das noites de Inverno, como  grandes coroas que  se rezam,  deixariam  cair as horas no silêncio.

No turbilhão  dos  seus devaneios sucediam-se  rápidas as  cenas,  vibrantes  como kolpodes que tumultuam na fermentação. Quereria a vida das vizinhas,  agitações  constantes da  negociação dos corpos,  que transformam a  vida  em sonho ou quimera. Via saias de goma arrastando, botinas vermelhas de roseta  e tacão alto,  os  altos penteados característicos.  As  caras angulosas com  manchas vinolentas sorriam para ela, deitando línguas negras de fora.

E sem explicar porquê,  como um  ritmo original,  ouvia  as  pancadas de uma enxada  na  terra  do  cemitério. Gelava-se.  —  Era  o  pai que  estava  abrindo  sepulturas!  No  fundo  sentia-se infeliz e flutuante numa grande  incoerência. Agitada  como estava,  o sono fugia-lhe,  e  as  ideias,  desviando-se  pouco  a  pouco do primeiro intuito, marchavam já, como raios que se refrangem, pelo  vasto plaino das recordações. Pensava na vida do cemitério, o amor medonho  dos cadáveres,  em cuja  gélida  intimidade vivera  tanto,  abrindo mortalhas e  erguendo tampas de caixões. Na sua sinceridade confessava-se horrível, cheia  de afinidades com a  hiena. Nunca  mais iria  exaltar-se  perante homens sem  vida. Que infâmia! Agora tinha o seu João, carnes brancas, de semideus. Era  feliz  então,  sentindo na  alma  aquela  irisação de paz que a  perfumava  toda  como num banho voluptuoso. Ser amada por aquele forte, apertada e vencida  nos seus braços esculturais, parecia-lhe uma ventura, um milagre, alguma coisa  como  um  sonho febril.  Dar-se-ia plenamente  e sem reservas,  com uma  abundância  louca  de contactos,  frenética  e  possuída  de um  alto  desejo  de o possuir. A sua vida condensava-se-lhe, colorizada numa recordação deliciosa,  sem compreender no deleite a saciedade, a inanição, o desprezo de si mesma por fim. No fundo do espelhinho estanhado, a sua figura iluminada pela vela de sebo tinha uma curva nítida e delicada. Sorriu-se para mostrar os dentes, pequeninos  e miúdos,  de gatazinha branca. E dilatou-se  num vasto contentamento  interior:  era  bela,  de uma  compleição tenuíssima  e nervosa, toda feita de anemias. Com a mão torceu de leve, sobre a cara, uns cabelinhos ruivos,  foi desabotoando,  pouco  a  pouco,  o corpete..   O  seio era  branco, assim descoberto,  estreito  e apetitoso como uma  miniatura,  mas  incapaz  de amamentar um  filho. Todas as linhas  harmoniosas do busto,  de fragilidade suave,  pareciam  moldadas num espartilho e realizavam uma  elegância  moderna,  boa  para  ensaiar figurinos  nos  ateliers  da  Maria Cecília.  Ia  desabotoando: uma saia caiu, outra e outra, e a camisa envolveu-a, como uma  túnica  que se desaperta.  Era  magra  e branca.  Na harmonia  dos  quadris,  na  expansão geral das proeminências,  exalava-se  a  idealidade das organizações virginais. Trivial e pequena como era, excitava assim mesmo. E ela mesmo se devorava  com o olhar, examinando,  ensaiando atitudes,  cheia  daquela  forte figura do aprendiz de marceneiro. Na tarde do dia seguinte deviam encontrar-se, à noitinha, quando os pássaros se amam no mistério das ramarias; o que iria suceder? Sentiria a sua respiração ardente, com um cheiro a decilitros de Torres, queimar-lhe a  face.  Falariam embevecidos  e  frementes,  cheios  da mesma  ideia  profana,  olhando em torno, receosos  de quem passasse.  Ele piscar-lhe-ia o olho maganamente; entender-se-iam, e, como na membrana de um fonógrafo, na sua alma vinham arfar todas as vibrações daquela loucura de prazer, em que palpitaria no dia seguinte. Que farta estava daquela pobreza, comer açordas com alho,  andar  feita  chineleira,  aí como  um  diabo,  com as saias todas rotas! Raio de vida! Ao menos, em ele sendo o seu João, a coisa ia melhor.  E depois...  uma pessoa  não sabe para  o que está  guardada  neste  mundo. A tia Marcelina conhecia uma que fora peixeira, pé descalço por essas  ruas,  a  vender carapaus,  um  fedor  a  peixum de seiscentos diabos,  e agora  estava  uma  opiniosa com um  fidalgo,  num  primeiro andar,  ricas  cortinas de  rendas nas janelas. Podia bem ser que nem sempre estivesse com o João  —  que ele era bom rapaz, coitado, mas diz que de sete em sete anos mudam as naturezas,  salvo seja.  A variedade atraía-a.  A Marcelina  tinha-lhe  falado nos  padres como  bons patrões,  unhas muito limpas,  sua  palma  benta  pelo  Domingo de  Ramos,  cotos  de cera  pelas  Endoenças,  bom  lugar na  capela-mor, onde se podia estar refestelada a ouvir a música do lausperene. E certos  particulares, nos priores principalmente, um respeito, belos lençóis de linho,  almocinhos que era um regalo,  nunca  recolhiam tarde,  muito limpos  e pés  lavados  todos  os  dias.  Divagava  pelos  braços dos  desembargadores,  dos  soldados e dos marujos ingleses. Conhecia uma da esquina, a Polónia, que até  tinha inscrições; todos os seis meses ia receber seu milho, que lhe pagava o  governo, ou que raio era.

Outra,  a  Libânia,  um  diabo  bexigoso,  tinha dinheiro  a  razão de juros,  seu  grilhão com medalha, anel de luzeiro. E fulana e sicrana, que tinham do seu  umas casitas, seu estanco, nunca tinham ido ao Desterro, viviam à barba longa  e andavam gordas.  Assim como  assim,  era  boa  vida;  deixem lá  falar.  Para  pessoa pobre não havia outra. Que ser séria era bem. bom falado, mas o resto,  tudo patacoada.  Havia  tolos  que davam vestidos,  ricos xales  de caxemira,  pagavam  a  ceia,  sua  noite ao Price —  os  babosos!  Depois não se  cansa  a  gente. Quem tinha juízo, sempre ia bem. Havia tal que era mesmo pelo beiço.  E citava exemplos. A prostituição desenhava-se-lhe como a solução natural no  problema da vida de uma rapariga pobre, que todas amam, umas mais, outras  menos. E a sua ardência aligeirava-lhe as dificuldades. Pão, pão; queijo, queijo  —  que ela  não era lá  de meias-medidas.  E  deixou cair a  camisa. Entrou  a lavar-se  com pequeninos  estremecimentos  de frio;  os  cabelos ruivos  desnastravam-se-lhe pelas espáduas, embaraçando-a;  chapinava  na  água com  ruído, rápidos movimentos cheios de graça, como frémitos de diapasão.

Ouviu chorar de repente,  na  calada  noturna,  um  sino,  de uma  tristeza  de  morte.  E depois houve ruído na  rua,  os candeeiros mostravam-se  pelas  janelas;  um  grupo de  tochas,  sinistro e  lento,  passou no  meio  de  pessoas  descobertas. Era Nosso Pai, a alguém que estava agonizado. Carolina viu.  

E pôs-se a  recordar a  vida do  pai,  pelo cemitério àquela  hora,  gelado no silêncio  noctâmbulo,  enquanto os mochos  deixam  cair notas  agudas,  sinistramente  escarninhas.  Ele estava  talvez  dormindo nos seus farrapos, no  coração  de um  velho túmulo  profanado,  entre caixões  esquecidos. Ou perseguido pela insónia — talvez não tivesse ido ao Pescada — pensava nela  porventura, na sua solicitude de pai, porque também têm coração os coveiros,  mercê de Deus! E ela, sua filha, pensava em abandoná-lo, em fazer-se servir  como uma isca de fígado aos cocheiros e aos trabalhadores, com redução de  preços! Roçava então pela miséria do coveiro a sua piedade como uma asa de  gaivota, e pensava: — Pobre velho!

Vinham-lhe subitâneas ternuras, vibrações  de lágrimas íntimas,  uma  desconsolação patética de tudo quanto a cercava. A ideia de morrer aparecia-lhe difusamente,  envolta numa fotosfera  de sofrimentos.  Lembravam-lhe irmãs de caridade, jovens e pálidas, um rosário na cinta, o negror do hábito amortalhando corpos de virgens maceradas. E longas penitências no mármore  das clausuras,  entre  açoutes  de martírio,  ao rumor dos  confiteor.  Ia  arrepender-se, pedir perdão...

Mas o corpo do aprendiz aparecia-lhe numa tentação hilariante, branco, moço, potente e triunfador! Esmaecia, como um vago luar que empalidece.

A Marcelina apareceu à  tarde,  depois  da  procissão,  afogueada,  cheia  de  esfalfamentos;  que arrebentava se a  não deixassem sentar um  bocadinho,  e  que ia  muito  mal; a  noite passada  não tinha  podido pregar olho; tudo eram  bonecages diante dela, uma confusão, uma algazarra de meter medo. E estava  ainda  com febre —  dava  o pulso —que vissem,  que vissem.  ..   Nunca  fora  esmorecida, louvado Deus, lá isso não; que até pela febre-amarela. . ai! nem se  queria lembrar. Águas passadas... Tinha ido ao banco do hospital, explicado o  que sentia,  e  desconfiava  que aquilo  era  coisa  de  um rapazote  novo,  que  parecia ainda estudante, torcera a venta, e ela bem vira... ai! tomara já morrer;  que andar uma criatura a penar por esse mundo e depois marchar da mesma  maneira..   ora!..   que  lhe faltava!  Antes ir de uma  vez.  E que Deus lhe  perdoasse, que Deus lhe perdoasse!..  — Carolina sorria-se compassiva e cheia  de interesse, tinha ternuras pelintras, roçava o seu rostinho branco pelo queixo  barbado da inculcadeira, chamando-lhe Li-Li com voz de criança amuada. Ia  caindo a  tarde.  O  sol  mergulhava no mar,  acharoando de tons metálicos e  cúpricos as nuvens do ocidente,  em gradações insensíveis,  de uma  grande  riqueza de pinturas. Por entre túmulos, os ciprestes antigos erguiam-se como  sentinelas imóveis,  armadas  de capacetes  pontiagudos.  Fora,  as guitarras  rumorejavam fadinhos tristes,  do  Calcinhas e  do João Brandão;  um  trolha  cantava rouquejando,' com voz expetorada:

Habitantes deste lugar Se m'alegra ó coração...

E vozes de garotos apregoavam — vai água ou não vai água! — no meio do  vasto rumor de quem saía.

— Sabes — segredou a Marcelina ao ouvido da pequena — que ele vem  ao anoitecer? Teve hoje de trabalhar na oficina; sempre são seis tostões... Está  mesmo  parvo, pelo  beiço.  Demais  uma  criancinha —  dezoito anos  ainda  a  fazer  pela  Santa  Maria!  Podes fazer dele gato-sapato.  —  E depois  de um  silêncio:

— O que aquilo quer é roupa branca, jantarinho às horas, festinhas e deixa  andar.  Vocês não sabem do mundo;  ainda  ontem largaram os  cueiros.  O  primeiro  que nos regala  é o único asseado e de quem toda a  vida se  tem  saudades. Que os mais — tudo gajões que a pregam na menina-do-olho!...

E que visse, que estudasse a coisa: quando se tem na mão o pássaro, é que se não deve  deixá-lo  fugir.  E rindo,  dilatada  numa hilaridade  de velhaca,  de rameira  bêbeda,  mãos  nos quadris,  roncava,  afetando  lubricidades:  —  Ai!. . Tivesse ela os seus vinte, e quem o lograva era ela. Só aquelas carnes, em que se podia lamber mel.  — E, sordidamente mordida de apetites, agarrava-se a Carolina, fazia-lhe cócegas, dizendo-lhe muitas vezes:

— Ricas filhas, ricas filhas!

E rolavam ambas pelos sepulcros rasos, rindo soltamente, com um prazer de  barregãs.

Dali a  pouco chegou  o João.  Trazia  a  blusa  de riscado vestida  debaixo do  jaquetão, e os cabelos crescidos e encarniçados, cheios de aparas de casquinha. Era  quase  imberbe  ainda,  branco e sanguíneo,  de uma  compleição hercúlea,  em que se  adivinhava  a  seiva  fértil e jamais  esbanjada  dos  corpos  encouraçados na própria virilidade, e no trabalho absorvidos até à idade dos  loucos amores de bordel. O seu tipo era de criança e pressentia-se o fadista  mais tarde, amanhã mesmo.  

— Ora graças — comentou a Marcelina — graças que nos aparece! Uma  coisa  assim!  Fazer esperar esta  menina! —  e recriminava-o,  enchia-o de  censuras:  que para  o futuro  queríamos  homem mais  aquele;  que quem esperava  desesperava;  era uma  verdade!  Mas nada  daquilo era  morte de  homem, louvado Deus! — E fazia as apresentações. — Carolina, não to dizia  eu? Um rapagão capaz de arrombar o Castelo; e que lindo, mesmo de regalo!  —  Mencionava  pormenores,  nunca  tinha tido uma  doença, benza-o Deus,  nunca  tomara  remédios  de botica, nem sequer uma  purga.  E que mãos de  prata! Fazia cadeiras de polimento como o primeiro; um armário, que acabara  pelo  S.  Pedro,  tinha sido  vendido  a  um  homem de fora  —  tinha  aquela  de  francês, uma fala a modos esquisita — por belos mel réis. E mais coisas ainda  que se não diziam.

O  João,  inchado, meio confuso,  sorria, dizendo com inflexões variadas —  Homessa!  Homessa!. .  E,  aquecido,  trescalando a  carrascão,  a  perna  bem  desenhada na calça de boca de sino, cambada um pouco para dentro e afeita  às escovinhas,  chapéu arremessado  com um  piparote para  a  nuca, fitava  Carolina, mordendo-a com os olhos e resmungando:

—  Deixe falar, deixe falar, que isto sabe-a toda.  

A Marcelina declarou que estava com a telha, uma alegria mesmo lá dentro, e dizia:  —  Viva  a  borga!  em estrépito.  E,  tomando Carolina  pela  cintura  e  agarrando o braço do aprendiz para aproximá-los:

— E que canta você cá da pequena, seu petiz? Olhe que nem mandada vir  de encomenda.  E  então esta  carinha,  que parece  de seda..   Maganão!  Bem  sabia  que a  não merecia, um  chichisbeco  daqueles!  ai!  mas  queria  ser  generosa. E que tratasse de a estimar, melhor que o pai a tinha estimado; que  a queria ver uma senhorita toda de fitas a voar e casibeques de pano fino, pelo  Inverno; conhecia casadinhos que era mesmo uma gracinha, mais unidinhos e  mais guapos que era uma providência. E que fossem assim toda a sua vida. —  Ambos eles sorriam, corados.

Nos  seus olhos  húmidos,  em cujas íris de inquietadas fibrilhas havia  um  contrair de comoções refreadas, luzia a cáustica lascívia do desejo incendido.

Carolina sentia um quebrantamento fundi-la toda; era do calor, da fadiga da  tarde,  talvez  da  contemplação do sítio. E a  sua  alma  perdia-se  em grandes  esquecimentos;  alongava  o  olhar de encontro  às vastidões do céu e  da  paisagem, como se toda ela se expandisse naquela área sem termo, alada no  vago de  uma  impressão  que até ali  não soubera  formular.  Viu-o preguiçosamente estendido na pedra branca de um túmulo. Era numa das ruas  afastadas.  Naquela  posição de madraço,  a  vigorosa  expansão do  seu corpo  ressaltava  em linhas magníficas,  de animal contente e são,  que descansa.  Tinha-lhe caído o chapéu, e deitada para trás, nas duas mãos sobrepostas, a  cabeça parecia-lhe esbatida no fulvo dos cabelos, que à luz poente faziam um  desenho de juba. Via-se-lhe o tronco oscilando, a camisa tufada por baixo do  colete, uma das pernas fletida sobre o coxa e a outra estiraçada, com bestial  franqueza para diante. Carolina devorava-o: era assim que ela sonhara o outro,  nos seus delírios histéricos de virgem reclamando direitos de mulher fecunda  em noites  de entrecortada  alucinação.  E via-o deslocar-se  aos círculos por  diante dos olhos, sentindo um tremor de mãos e frialdade mortal nas pontas  dos dedos. pelo seu lado, o João fitava-a com fúrias de novilho que desperta.

E, velhacamente, um riso nervoso nos cantos da boca, piscava-lhe os olhos,  desafiando.

A noite tombara das encostas, pelo céu, e uma sineta batida pelo guarda do  cemitério mandava sair. Barras de nuvens tranquilas estendiam-se ao oriente,  aspetos  esbatidos,  de  vaga  melancolia  contemplativa.  A lua,  de  um  branco  baço flutuava  como uma  boia  de cristofle,  e tristes raios quiméricos  mal  podiam coar-se pelos galhos corpulentos dos ciprestes antigos.

Via-se  pouco pelas ruas  do cemitério;  na  ventana  da  capela  um  mocho  narrava, sarcástico, em notas vibrantes, legendários terrores; um vento passava  vagaroso,  como  vigia  de arraial adormecido,  varrendo o pó das brancas  sepulturas glaciais. A Marcelina ergueu-se para pôr o xale rico e ia andando.  

Carolina  ergueu-se para  segui-la. Mas João  agarrou-a  pela cinta e,  com  voz  alterada, quase gutural, dizia-lhe, atraindo-a si, corpo a corpo:  

— Olha lá, espera, olha lá.

Erguera  um  pouco o  busto,  e com inabalável teimosia  puxava  as saias da  rapariga.

— Esteja quieto, podem ver. Mau!  

Ele porém não a escutava.  

— Não te vais daqui, não te hás de ir daqui — murmurava-lhe ao ouvido.  

Todo o seu esforço era para apanhar-lhe a cara; tinha a respiração sifilante, e  um tumulto de sangue turgescera-lhe as cordoveias do pescoço.  

— E o beijo que me deves, o beijo que me deves? Dá-mo!  

Tinha-a agarrado pelas costas, metendo-lhe as mãos por debaixo dos braços, e  com uma  força  cruel conservava-a  apertada  sobre o peito,  enquanto  lhe  premia !:Os seios crespos e redondos, de mulher inviolada. Carolina tentava  embalde arrancar-se ao amplexo. Conservava os olhos cerrados, um bater de  narinas, a  boca  escarlate como  a  ferida  de  um  fruto tórrido, palpitações.  E  dizia:

— Mau! Olhe que eu chamo, olhe que eu grito!  

E, num tom choroso:

— Ora isto, ora isto!

Ele não dizia palavra; apertava-a na cinta uivando com fome, e beliscando-a na redondeza dos quadris e na curva marmórea das espáduas. A sua exaltação  crescia,  e lutava  a  seno,  .  com  arrancos de besta  na  quadra  fatal do  cio. E, erguendo de repente o braço,  forçou-a  a  voltar a  cabeça para  trás,  despenteando-a um pouco na frente.

— Mau! — dizia ela. — Rasgar não vale!

Olhava-o com os seus olhos velados, que tinham uma condensação de amor  voluptuoso,  essa  expressão parada  e lúbrica  que nasce  dos espasmos  profundos e desolantes.

O João dobrou-a vigorosamente, como se quisera partir-lhe os ossos.  

— Cala-te, cala-te! — dizia-lhe.

Os seus olhos  ressaltavam, havia  um  arrepio de fibrilhas nos ângulos das  órbitas e sentia-se o estertor da sua respiração estrangulada. Então, curvando-se  sobre ela, com os  seus lábios ardentes  sorveu-lhe  a  boca  palpitante,  e furioso tirou-lhe  o lenço para  meter-lhe as mãos no seio.  Ao contacto das epidermes  a  descarga  dos  fluidos  deu um  frémito de corpos, e Carolina esticando os braços atirou-lhe as duas mãos aos ombros, murmurando:

— Oh, matas-me...

E,  como na  corrente  múrmura  de  um  rio  que vai fugindo, entregou-se-lhe toda,  sonhando com  esses fiordes serenos e brancos das regiões onde os  êxtases,  como  as noites,  duram meses,  sempre  iluminados  por  um  íris de  aurora polar.  

João agarrou na rapariga ao colo, como a uma criança, foi pela rua adiante ao encontro da  Marcelina,  que não estranhou  se  houvesse demorado.  O  João  dava-lhe quatro  pintos de comissão;  era  para  comprar aviamentos  para  um  vestido de fazenda, azuloio, que tinha ganho quando fora do alferes Sarmento.  Andava  precisada  de botinas;  as dos domingos,  de polimento,  tinham uma  fendazinha no joanete e via-se a meia. Não podia ir a parte nenhuma que se  não envergonhasse.  Falara nisso  ao João,  mas  ele  enfadava-se.  Já  lhe tinha dado para  umas camisas  e para  a ajuda de  uma  medalha, e certas miudezas,  lenços de seda, um casaco de pano, bordado a trancinha, que tinha comprado  à Francisca adela, com jeito no olho, um pouco gaga. E a sua tagarelice, mal  apanhou quem a escutasse, entrou a estafar a paciência alheia, de comentários  nunca  levados  ao fim, historietas afogadas no  prólogo e logo  preferidas  a  outras não menos interessantes.  

— Ai, filhos, que se vai fazendo noite, negro tudo como breu. — A mulata  devia estar em cuidado já. E não comprara os carapaus para o bichaninho, o  Pimpão, eram mais de sete horas! Não tinha sustância no estômago, mas havia  sua  vontadinha de comer.  Tivera  fressura  para  o jantar,  umas ervilhazinhas  com presunto  que as  podiam comer  os  anjos.  Mas a  fruta  cara;  a  hortaliça estava  para  a  gente  rica.  E então as mulheres  da  venda pelas portas,  uma  pouca-vergonha! Quarteirão de laranjas, dois tostões! Nunca se vira tal nesse  mundo de Cristo. E com a guerra, dizia, é com a guerra. E que andavam os  papéis cheios dessas coisas,  mais  de duas  mil pessoas mortas cada  dia  na  Estranja,  a  tiro. E que Deus  nos  livrasse,  que Deus  nos  livrasse,  cá  de  levantamentos. Quando fora pela revolta do quatro, ainda os dois não eram  nascidos, tinham corrido rios de sangue, gente fugida por esses campos, até os  santos  andaram numa  alhada.  O  nosso  Senhor nos perdoe pelas  suas cinco  chagas! E persignava-se, dando beijos na unha do polegar, com ruído. Saíram  do cemitério. Carolina não dizia nada, apertava o braço do aprendiz. A velha  estava  mesmo  a  cair,  e queixava-se.  Estavam-lhe  lá  por dentro  a  remoer,  a  remoer;  a  modos  que coisa  assim de bicha. Tinha  tomado as  pevides de  abóbora  —  nada  de resultado! Ai,  mas ia mesmo mortinha;  e que fossem  enxugar uma pinga com uma iscazinha sem elas..  Já não estava em idade de  folias,  bem lho  estava  dizendo aquele  esfalfamento.  E os  seus intestinos  roncavam, ameaçadores. Tinha sina de morrer cedo; então!... Toda a sua gente  murchava ainda nova. O seu pai, um homenzarrão com a um raio, tinha saído  bom, com uma capa de briche novinha, para casa do regedor, e à noitinha dá-lhe a febre-amarela, e agora o vereis a vomitar... mandaram chamar o médico  Cansado —  parecia-lhe  que o estava  a  ver  —,  luvas de casimira,  um  caixa-d'óculos corcovado,  barbicas loiras,  arrastando  de uma  perna..   —  Receitou para ali umas berundangas, ela foi à botica, noite fechada. Enterros por cada canto,  padres  a  cantarem responsos.  Nem ela  sabia  dizer bem. Quando  chegou a casa, a mãe estava num berreiro: — Ai, meu homem da minha alma!  Ai, meu rico amor do meu coração!. . E escarapelava-se pelos cantos em saias  de estamenha, sapateando as grossas solas cardadas pelo sobrado. A sua mãe  fora  lavadeira  da  infanta, muito estimada  das açafatas  e aios;  levava  e  trazia  segredinhos, bilhetinhos, do Ramalhão para a Bemposta e da Bemposta para o  Ramalhão. Chamavam-lhe a Angelca; um cabo da guarda apaixonara-se pelos  seus belos olhos e cantava-lhe modinhas. Mas ela, esperta que tinha raio!  —  moita carrasco! de uma vez, numa devesa, dois ganhões atiram-se a ela. Mas  ena, pai!. . se vocês querem ver o que era dar lambada, com os serões; andava  tudo numa dobadoura, quando veio gente que apaziguou a faina. Quando não,  era mulher capaz de dar cabo deles. E havia de se ralar muito. Enfim, filhos,  enfim era de faca na perna — resumia com pompa, cheia de vaidade.

— Manda Nosso Senhor os bons à sua santa vista, que dos maus nem quer  saber o diabo. Uma tarde a minha mãe apareceu com tosse, tossinha de gato  engasgado,  dores  pela  espinhela, calafrios..   veio-lhe uma  pulmonia  da  fortuna. . pulmonia foi ela que a raspou até hoje. Foi em quinta-feira de Corpo  de Deus, moravam aí para as bandas da Sé, numa barraquinha velha; todo o  dia a música a tocar; tropa para: lá e para cá; a pretalhada tá — ti — ti — tá; tá  —  ti —  ti —  tá;  tá  tara  tá!  Gentalha  de pagode,  o rei,  os  ministros,  a procissão, o S. Jorge; e a mãe para ali amortalhada em chita velha, à espera do  padre, para ir para debaixo da terra. Nem um coto de cera, nem uma fita, nem  um véu de escumilha. As bilhardeiras das fidalgonas, enquanto a Angelca pôde  servir-lhes de alcoviteira, fizeram-lhe festa, sim senhor. Mas quando fechou o  olho —  diabo que te  carregue!  São uma  coisa  que eu cá  sei,  aquelas peças.  Não é lá dizermos, andam na berzundela um dia ou outro, mas sempre, sem  nunca parar.

— E cheia de reticências procurava incitar o interesse. Baixava a voz, com  uma  confidência  obscena  em que figuravam infantas de capote e lenço,  passeando pelo Campo de Sant'Ana com o Chico Belas, charuto na boca, uma  gazua no cinto do vestido e viva a reinação..  E fulana e fulana que aí estão casadas com sicrano e sicrano, sonsinhas de uma figa, já se não lembravam de  quando escreviam cartas  a  este e àquele,  para  que viessem às tantas horas..   sempre se viam coisas neste mundo! Uma lástima, filhos, uma lástima! E que  havia sécia que era mesmo para ali, para quem queria ver, na cocheira com os  trintanários.  Conhecia boa  meia  dúzia  dessas tipas;  algumas eram damas dó  paço. E que o mundo era todo assim. Mas o que a raivava era quererem ser  grandes santarronas, que nem quebram um prato, e no cabo deitavam abaixo  a  cantareira!  Iam passando diante do Pescada  A casa  estava  cheia  de gente;  rumores  de guitarras  bordavam  finos arabescos sonoros  de fados corridos;  vinha lá de dentro um burburinho de gente avinhada; o fumo dos cachimbos  azulava  o ambiente,  empestando,  e grossos  risos estalavam brutais  entre  histórias alegres do arraial, e largas digestões de mexilhão e pimentos. Via-se a  tia  Laureana,  papuda  e quente,  encostada  ao balcão,  entre  bojos  de garrafas  pretas e tabuleiros de queijos frescos. Um aguadeiro deitava ao longe o pregão monótono;  para  o  interior  da  cidade,  rumores  de carruagens  amorteciam  gradualmente  na  morna  sonolência  quebrada  da  hora.  O  João lembrou que  fossem comer alguma coisa. E mais aberto com as mulheres contava os seus  apetites e as suas valentias; de uma vez tinha tosado um gajo, na Perna de Pau;  já  aquilo chuchou cascudos!...  E vai,  quando mal se  descuida,  o outro tinha  passado as palhetas.

Era  agora  de  uma  sociedade  Esperança  e  Harmonia;  tinha alugado casa  na  Rua dos Quelhas e tratavam de arranjar filarmónica; ele tocava pratos. Havia  um  barbeiro na  Rua  das Trinas, o Lopes,  que fazia  comédias,  galegos  que  namoravam as sopeiras e cantavam versos da sua terra: era reinadio! Ele fazia  de polícia,  tinha comprado  uns  bigodes  de crepe..   E dizia  as suas boas  intenções —em que se havia uma pessoa de entreter; andar para aí perdido de  bêbedo?  Assim sempre era  mais decente.  E  que ela, Carolina,  havia de ir às  comédias; não era verdade? Para o Verão queriam dar bailes campestres numa  horta,  com  balões de  cores.  Iam entrar no Pescada,  mas Carolina  puxou a  manga do aprendiz, pediu que não fossem para ali; tinha lá o pai, se ele visse,  santo Deus,  era capaz de fazer alguma.  —  Aquilo,  juntava  Marcelina,  em  estando pingado,  era  o diabo  mais  ruim da  cristandade.  E,  prudente,   aconselhava  o Manei  do  Altinho;  ia ali  gente  mais  pacata,  havia quartos  particulares,  seus reposteiros de chita,  um  rico cozinheiro,  e,  enquanto ao  sumo, era por conta do lavrador, sem confeição. Uva e 'mais nada! resumia.  

Carolina sorria benevolente, sem dizer nada. Entraram no Manei do Altinho,  para um quarto. O João bateu com ostentação de ricaço na mesa, perguntou  às mulheres o que queriam; a Marcelina apetecera um bifezinho. Carolina não  tinha vontade e o João quis salada de camarões. E rindo, todo corado, olhava  para a pequena, abanando a cabeça, dizia vagamente para achar pelestra:  

— Com que sim senhor,  com  que sim senhor!  —  E confidencialmente,  inclinado para Carolina:

— Não come mesmo nada, mesmo nada?

— Mesmo nada — dizia ela sorrindo, embevecida nele.

— Nem tanto  como  isto?  —  E mostrava a  ponteira  da  bengala.  —  Homessa! Olhe que entisica.

Piscava o olho. Riam baixo.

— Velhaco! — segredava ela, vermelha, tocando-lhe a face.  

— Pois há de comer, há de comer por força!

E, lentamente:

— E camarões, para abrir o apetite.

O  olhar do aprendiz  penetrava  nela  como um  estilete.  Miravam-se  com  curiosidade petulante,  adivinhando-se.  O  olhar dela  afogava-se  num langor  amoroso e húmido, de uma simpatia impura. O João chegou-se mais e com  voz quase impercetível:

— Hoje, lá para a tarde, vou, sim? — disse ele.

— Hoje não — disse ela.

— Porquê? Que tem?

— A vizinhança deita-se altas horas. É gente má, percebe? Podia falar-se, o meu pai sabia. . Hoje não. Depois.

— Mas se  eu não posso,  vê? —  suplicou o  João,  com voz  piegas de criança. — Então? .. 

— E tímido, uma doçura insistente na boca:

— Vou, sim? Não pode recusar. É má!

Carolina  deixava-se penetrar daquela imploração toda incendida  de amor  desonesto. E sem resolução:

— Pois sim, pois sim — disse ela —, mas às duas horas, ouça bem, às duas horas, quando não houver luz nas janelas, das tais.

A Marcelina, um pouco afastada, tinha adormecido.

O rapaz chegou com a ceia. Carolina gostava mesmo muito dos camarões. E bebia, toda palreira já.

Ao outro dia o aprendiz apareceu mais tarde na loja, tresnoitado e cheio de fadiga.  Era  a  primeira  vez que  ele faltava  aos seus  deveres  e o patrão, o Ferreira, velho direito  e tostado, fisionomia  vulgarmente  honesta,  nada  lhe disse. O João era destes filhos que os pais, viciosos e desleixados, abandonam pequenos a uma vadiagem perigosa. Aos dez anos meteram-lhe umas cautelas na mão. De manhã cedo, ainda escuro, ia descalço e cheio de lama às redações comprar os jornais do dia, numa pasta sebenta, que encontrara numa escada. E, caminho dos bairros distantes e ainda adormecidos, sob a luz vacilante dos  lampiões, lá ia apregoando o Diário de Notícias e o Popular que saiu agora a dez réis.  Gastava  assim a  manhã. Algumas  vezes,  pequenino e todo roto, a carne  suja  transida  do frio,  deixava-se  dormir nas escadas,  com  a  pasta  por travesseiro. E esquecia-se, no sono, da venda dos Populares. Recolhia a casa carregado, com os jornais intactos; davam-lhe tareias monumentais, com uma corda molhada, nos rins. de uma ocasião perdeu as cautelas, pôs-se a chorar  na rua, cheio de medo. Quem passava queria saber o que era; ele, soluçante,  dizia a sua desgraça, estorcendo as mãos. Alguns davam dez réis. Mulheres de  ricos vestidos de cauda compadeciam-se: — Coitadinho, coitadinho...  — As  crianças olhavam-no comovidas, esmolando-o. Um velho alto, barba toda, de  bengalão, ao passar disse azedamente:

— Parece  impossível  que a  polícia  consinta este  desaforo  numa  cidade  civilizada! — E ele envenenava o seu ânimo numa aflição profunda, expressa  em lágrimas sem remédio. Ninguém tinha achado as cautelas; ia passando cada  vez  menos gente,  menos gente;  perguntava  a  todos,  uns riam-se,  outros  diziam que não!  Alguns nem respondiam:  todos iam  andando!  As lojas  fechavam:  uma  tristeza  parda  fazia-se  na  rua,  obscura  e fria.  Os pianos  choravam nas salas medíocres  dos  terceiros andares,  velhas romanzas de  Bellini  e Weber,  em desafinação  sentimental,  e,  através  das  janelas unidas,  vozes de meninas líricas  diziam em italiano barbaresco afetos candentes  de  heroínas tísicas, com gestos cavos e baladas entorpecedores, cheias de pecado  e ofensas à moral pública. Ele sentia, no meio da felicidade dos outros, pesar-lhe a sua miséria, como um globo de chumbo do pesa-mundos.

Era bonito e loiro; os cabelos crescidos, anelados, revoltos e cheios de terra,  davam-lhe um doçura tranquila e casta, cheia de encanto e inocência, o ar de  um leãozinho amamentado num viveiro. Tinha nos olhos um azul-escuro de  safira, de uma profundeza de Bambino, no fundo dos quais se sentia dormir a  sua  almazinha  angélica,  sofredora  e cristalizada,  como  uma  fina  joia, desconhecida e brilhante. Não conseguira fazer com as esmolas nem metade  do custo das cautelas; todo o mundo era feliz e sorria; muitos gastavam em  ninharias,  em bonecos  e em fitas,  um  dinheiro  louco.  Só ele  não tinha  ninguém que lhe  desse  o quartinho  dos  seus bilhetes perdidos.  Mas um  homem vinha envolto no seu casaco de Inverno; ele chorava! Encheu-se de  valentia e chegou-se ao transeunte:

— Meu rico senhor — começou ele —, eu tinha umas cautelas, que o meu  pai me tinha dado para vender. E vai, ali na Calçada dos Caldas, perdi-as, meu  rico senhor. Se eu não levar o quartinho, o meu pai é capaz de me enforcar,  meu rico senhor. Tenha compaixão...  

— Passa fora, gatuno! O que tu querias nesse espinhaço bem sei eu.  

Ele recuou aterrado, convulso.  

E varado por aquela violência ficou soluçando no meio da rua solitária.

Se fosse  para  casa,  o pai,  um  pedreiro  incorrigível  e bêbedo,  tinha-lhe  preparada a corda, num alguidar cheio de água. Lembrava-se que a mãe, triste  criatura  amarela,  resignada, loira  e cheia  de  privações, eia meiga  para  ele e  clemente,  ocultando-lhe  as  faltas,  vestindo-lhe  a  nudez  com os seus  trapos,  contemplando-o em  certas noites com  um  amor,  uma  tristeza  e uma  suavidade toda. feita de sacrifícios, de dores e apreensões. Essa pobre mulher  imploraria de joelhos o seu perdão, quebrando nas suas costelas as pancadas  que o pedreiro atirasse ao filho,  calada  e paciente,  de uma  humildade  evangélica e de uma vileza sublime! E uma ideia cortava-lhe de repente este  referver  de recordações,  de vacilações,  de receios —  se  ele  não  fosse para  casa? A tunda adiar-se-ia para o dia seguinte com acumulação de juros; a mãe,  tão mesquinha e tão boa, pagaria por ele, levando puxões de cabelos, picadas  de alfinetes, socos pelo vazio e pimenta pela boca, que o pedreiro, em estando  com ela, era um dragão em casa. A vizinhança às vezes apitava; ele quebrava  vidros, dizia impropérios, atirava-se à patrulha, à dentada, como um danado.  Era no Inverno, altas horas. Começou a chover, a chover. O vento, encanado  pelas ruas, ao longo das altas casas, agitava os lampiões com estalidos secos.  Dois ou três coupés passaram a toda a força. Um deles levava crianças e era  tirado a quatro. Era o rei que voltava de S. Carlos, com a família. João ficou  parado, a seguir aqueles trens opulentos, de gente que podia perder cautelas  sem levar tareias,  e sem passar noites  fora  de casa,  com medo  das cordas  molhadas.  Ser rei  era  para  ele muito mais  que ser Deus;  e fantasiava  uma  existência  inaudita  e  fenomenal,  se  fosse  rei.  Teria  camisas de chita,  de  quadradinhos,  camisolinhas de flanela,  boas botas de Inverno,  um  relógio,  cadeia  com pingentes,  mais  cara  ainda  que  a  do vizinho Maurício  —  o da  tenda de S. João da Praça. E dir-lhe-iam:

— Vossa  real majestade senhor rei,  vossa  real  majestade..   E ele  daria  a  mão  a  beijar,  com um grande anel,  melhor  que o do senhor  Parreira,  o  comissário de polícia do seu bairro. E ajoelharia diante dele, repetindo:  

— Vossa real majestade, vossa real majestade...

E marcharia  à  frente  dos esquadrões de lanceiros  cheio  de medalhas,  uma  banda,  de bigodes  retorcidos  e tirando o chapéu armado ao povo,  no meio  dos hinos das bandas marciais, ou então na procissão de S. Jorge, de manto e  debaixo  do pálio, iria  descoberto,  acertando o  passo,  com  ares  majestáticos.  As beiras dos telhados deixavam cair as suas lágrimas  monótonas  com  um  ruído metódico e gelado. No céu escuro e forrado por igual, nuvens brancas,  como  de algodão fofo,  esbarravam,  acossadas pela  nortada.  Os passeios  desertos, nus de transeuntes, ofereciam à claridade triste do gás o seu esguio e  pálido espinhaço,  que recordava  o  de um  peixe antigo,  dos que se  fazem  admirar em esqueleto, fossilizados, nos museus. Recortavam vagamente no ar  os tetos negros a sua dentadura de pentes partidos; nas fachadas imbecis, que  os  reflexos  mosqueavam de um  livor  doentio,  cortadas por  filas  escuras de  janelas toscas, as tabuletas faziam nódoas de luto, ensanguentadas por letreiros  vermelhos,  de modistas e de armazéns  de fazendas.  Ao fundo da  rua,  num  terceiro  andar,  uma  parteira  tinha uma  lanterna  rubra,  de aviso.  Dois  gatos  seguiam  ao longo das  paredes, miando a  sua paixão nervosa  e excêntrica. E  por sobre a  cidade  os  aguaceiros esfarrapavam-se  lentamente  na  sua  caminhada fatal, fazendo nos confins dos edifícios afastados, longes indecisos  e lúgubres,  linhas frias de mausoléus —  um  abandono  do campo-santo,  desconsolado e fatídico. João pôs-se a andar vagarosamente, cabeça baixa, as  mãos remexendo o forro  das algibeiras,  transido do ar da  madrugada.  Não  tinha senão um pensamento — não ir para casa. O mais, que lhe importava? 

Mas sentia-se cansado e triste, como quem vai partir para um país ignorado,  dos Brasis. Sentiu uma coisa dura no bolso das calças: não se lembrava do que  seria. Tirou para fora: era um vidro cheio de facetas, uma rolha de garrafa que  encontrara  na  rua.  Com a  curiosidade natural  de  crianças,  aplicou o olho a  uma  das faces  e pôs-se  a  mirar a  luz  de um candeeiro,  através do poliedro.  Experimentou deslumbramentos.

A luz multiplicava-se  no  seio do cristal em centos de imagens  fulgentes  e  irisadas,  vívidas numa  saturação de amarelo-pálido.  E o cristal dilatava-se  como uma arcaria fantástica em mil sentidos opostos, onde cintilas cruzavam  as suas linhas  coriscantes,  com uma  abundância  embriagadora.  João nunca  olhara coisa assim: era como um mundo de diamante e de luz, salas desertas e  imensas,  iluminadas como  para  um  sarau. A sua alma,  como  uma borboleta  fascinada, ia, em lufadas de gozo, penetrar essa vasta habitação principesca e  oriental feita do que há mais puro e mais comovente: a luz, a alegria, a glória... Novamente apeteceu ser rei e viver naquele palácio, num trono. Tinha fome,  desde pela manhã não comia, as pernas vergavam-lhe.  

Encostou-se ao umbral de uma porta, olhando sempre os seus salões mágicos  vestidos de tapeçarias iriantes, em que a luz incidia polvilhada em átomos de  glória. Mas a fadiga oprimia-o. Curvou os joelhos na pedra húmida de chuva,  absorto na  luz. Os olhos carregados de chumbo,  cerravam-se.  Mas abria-os devagarinho, para  mirar.  E sem sentir,  uma  tranquilidade emoliente  nos  membros, adormeceu.

De manhã  acordou,  admirado  de haver dormido fora  de casa  e surpreso  mesmo da proeza heroica que o expunha às cóleras do pai intratável. Corria um  arzinho cortante  que esburacava  a  névoa do rio e  dava  comoções  fantásticas às nuvens  húmidas do ar.  Uma  parte  da  cidade envolvia-se em  grandes vapores translúcidos, em que se perdiam as torres das freguesias. No  macadame  gasto  e  revolvido,  rugosidades  de lama  cinzenta  faziam  hieroglíficos  intermináveis,  gastos  por  vezes  na  profundeza  dos sulcos  dos  carros  e no remoinho de pegadas dos  vendilhões descalços.  Começavam a  passar carroças de hortaliças para o mercado. Jumentos tristes e felpudos, de  uma resignação cristã, seguiam lentamente, carregados de roupa. Uma leiteira  forte,  vestida de  azul,  grossas botas  de cano,  conduzia as suas vacas  meigas  emagrecidas, todas malhadas de branco, com velhos cobertores no dorso, e as  grandes tetas, pendentes e cheias, batendo nas pernas. em frente, no chafariz,  os  aguadeiros enfileiravam os  barris  vermelhos,  cintados de negro,  a  fazer  carreira; e todos sujos, aparvoados, de uma ingenuidade sórdida, chalravam a  sua galegagem brutesca. No entanto, as janelas fechadas dos prédios tinham  uma passibilidade sonolenta e morna; as águas-furtadas, agudas e revestidas de  telhas escarlates,  recortavam, acima  das platibandas pardas,  vagas  triangulações idiotas.  Nas  altas varandas  corridas dos  quartos  andares,  arbustos  raquíticos e  estiolados  pela  tristeza  dos vasos e pela  humidade  sulfídrica  da  atmosfera  debruçavam pelos buracos  da  gradaria,  para  a  rua,  tristes flores esmaiadas, velhas corolas de uma 'Sentimentalidade doente; pelas   janelas, trepadeiras ressequidas enroscavam-se em caniçados, bordando jardins  suspensos de amanuenses  medíocres.  O  dia  aclarava-se  no  côncavo da  abóbada.  A espaços,  no  bocejo  das vaporizações longínquas acossadas do  vento, esmaltava-se  o  azul  lavado e fino,  de uma  grande paz  comovente.  E   sentia-se despertar a população. Os moços de padeiro enfarinhados e tiritando  de frio,  passavam com os  cestos,  a  correr;  um  sino  afastado dava  matinas  numa toada  cheia  de melancolia. João ergueu-se,  com espreguiçamento,  quebrado da friagem da escada. O que se teria passado; para onde iria agora; o  que seria dele sozinho, por aí?...

A verdade é que não estava para aturar o bêbedo do pai: isto é que era! Com a  venda dos  jornais e das cautelas sempre ganharia  para  comer.  Podia  dormir  nas escadas. Às vezes tinha venda de ganhar dois tostões; havia dias de menos  também: era conforme calhava. E, contando pelos dedos, punha-se a calcular:  — um pão, um pataco, e chega para todo o dia; dez réis de caldo; um vintém  de sardinhas; dois decilitros... ao todo, gastava seu tostão. O mais era para fato  e extravagâncias cá  da  pessoa....  Afinal era uma  bela  vida.  Melhor  que um  padre de missa! afirmava. E seria livre, costado sem pancadaria, indo' às hortas  quando tivesse  vontade —  que uma  pessoa  não pode  andar sempre no trabalho; lá chega um dia... E, repetindo frases que ouvia ao pai, para a sim  mesmo  parecer homem,  lembrava-se  irritado das brutalidades do pedreiro.  Bem sabia que ele era seu pai e lhe podia bater por ser mais velho; mas as suas  costelas não eram nenhum fole de ferreiro. Alto lá! Era de mais, também! E  que ele era muito bom, sim senhor, mas em lhe fazendo chegar a mostarda ao  nariz — está quieto! Mas a sua mãe, aquela pobre mulher palidamente mártir,  tão  sofredora  e tão resignada,  que seria  dela,  sem o filho?  Como poderia a  pobre criatura, de uma fragilidade triste, suportar as brutalidades do marido?  E lembrava  o  seu perfil  engelhado e  seco  de privações,  os  seus olhos  amortecidos de dores  antigas e o seu peito  esfacelado de tosses,  côncavo e  velho, de que ele pendera pequenino, guloso de mama e envolto em mantilhas  frescas.  Quantas alucinações  rasgavam,  havia  tantos  anos,  a  alma  dessa obscura  macilenta, dessa  escrava  de um  canalha  convicto?..   E,  como uma  chama  cantante,  palpitava-lhe  dentro  aquele amor honesto e cheio de  castidade infantil, cor-de-rosa. de uma vez estivera doente com sinapismos nas  pernas,  um  febrão desabalado;  e em delírio descobria-se  no  leito,  cheio de  agonias, vendo dançar  no teto  os  Populares e  os garotos  do  seu  conhecimento. E em torno da enxerga, na penumbra do quarto abafadiço, de  cada  vez que lhe vinham momentos  lúcidos,  descobria  o rosto  ansiado  da  mãe, batido de vigília e escavado de lágrimas, de uma expressão que fazia dó.  Todas essas lembranças atiravam a sua pequena alma a uma tristeza em que o  seu  coração se sentia boiar, como num lago ácido e corrosivo. Deixar a mãe,  aparecia-lhe  como  um pecado funesto  e impenitente,  dos que fazem. bailar  Satanás.  —  Nem os brutinhos, dizia,  nem  os  brutinhos fazem  tal.  E sem  resolução, ruminando a sua incoerência estúpida, com as mãos nos bolsos das  calças em frangalhos, foi comprar os jornais do dia. A luz alastrava-se pelo céu  e, no oriente, lavado de nuvens agora, os feixes, no morno sol, riscavam nas  fachadas poliedros amarelos e emolientes, de um agasalho caridoso e bom.  

Nesse dia,  acabada a  venda, foi a  casa. Encontrou  uma  janela  fechada e  a  porta unida; uma grande quietação flutuava nos quartos. Entrou de manso: o  gato dormia sobre a cômoda, ao lado do oratório; em torno quebravam-se, na  meia-luz do recinto, formas hirtas de velhos móveis mutilados, cadeiras sem  palhinha, mesas sem gavetas, esqueletos de baús escancarados e vazios, com o  forro  em tiras.  Viu a  mãe  caída  sobre um  colchão,  respirando alto.  Na  chaminé não  havia  lume,  nem louça;  o cesto,  vazio de pão,  abandonava-se  sobre o poial de tijolos. O João percorreu devagarinho os quartos. No saguão  e sobre o peito da janela, um vaso de salsa esverdeada; mais alto, uma cana,  uma  camisa  velha  estava  a  enxugar com as mangas pendentes,  como num  desalento miserável; um chinelo húmido e proscrito sorria como um queixo  sem dentes, à borda da saijeta, e tudo aquilo soluçava um desconforto triste,  como a nudez de uma tumba. O pedreiro não estava em casa — ainda bem! O  João chegou-se à mãe.

— Mãe! —' Ela gemeu alguma coisa confusa, mas a sua cabeça caiu, outra  vez, numa prostração desolante. Enrolava a cabeça num xale; um sulco negro  descia-lhe da  testa  à  face,  inflamada  e ardente.  O  lábio escorria  sangue,  rasgado por alguma pancada. O João descobriu docemente a cabeça da pobre  mulher, procurava com beijos dizer a sua pena. E, em súplicas balbuciadas, de  aflição sincera,  dizia  que lhe  perdoasse,  contava  as asperidões  da  noite  anterior, as suas misérias, a perda das cautelas entre gente indiferente e cínica,  que lhe chamava vadio.

— Triste de quem é pobre, lamentava ele, triste de quem é pobre! Com as  mangas da blusa limpava as lágrimas, e vibrante, numa solicitude amorável e leal,  toda  feita  de grandes dedicações,  inquiria  a  história  dos  golpes que  rasgavam  a  cara  da  mãe.  Ela  mal podia  falar. Tinha  esperado pelo filho até  fora de horas: quando o pedreiro recolheu, não havia ceia  — pão e água! E  entrou logo a barafustar, a dizer insolências; que andava a trabalhar como um  mouro para aquela grande bêbeda, que havia de fazer um dia alguma de rachar  pedras.  De resto  tanto lhe dava  ir para  a  costa  d'África  como ficar no Limoeiro  Novo;  em toda a  parte se  ganha pão,  com seiscentos  diabos!  Ela  queria  convencê-lo,  prestava-lhe  contas da  semana;  pouco recebera  da  féria,  ele bem o sabia; como era possível tornar o pouco em muito? E esboçava róis:  tanto de pão, tanto de arroz, pano para uns remendos, conserto das botas... O  marido nem deu palavra; cambaleante, tocado de vinho saiu. Ela quis retê-lo,  que se fosse deitar, que não fizesse distúrbios, pelo amor de Deus, por tudo  quanto tinha de mais sagrado!... Mas cortou-lhe a palavra uma bofetada crua  que a  derribou, com um  gemido.  Atravessou a  rua,  desceu à  taberna.  Das  bancas gordurosas saudavam-no como a  uma pessoa  íntima  e querida.  Ela,  coitadinha, chorava atrás da janela, enquanto, na parede do fundo, a lamparina  do oratório, posta atrás de uma cesta, enchia de sombra o papel desbotado,  cheio de manchas escuras e fatídicas.

À uma hora viu entrar o marido, chapéu à banda, a tosca fisionomia viciosa,  com ângulos de vértices sinistros  sombriamente  cortados  em  sombra,  os  olhos  absortos,  fixos  num pasmo selvagem, feramente  imbecil  —  como a  encarnação do crime! Ela cosia-se com a sombra, sustendo a respiração. A rua  estava  dormente,  a  vizinhança recolhida;  viam-se  passar os  gatos de escada  para escada, num silêncio lúgubre e frio. O pedreiro agarrou numa cadeira e  esmigalhou-a  com estrépito,  no meio de  pragas.  E,  não tendo resposta,  agarrou no oratório. Os mártires mutilados e cheios de fitas, os seus rostos de  pau pintado cheios de inchações vermelhas,,  caíam com uma  resignação  bíblica no meio da casa. Ela então saiu da sua sombra discreta e disse-lhe com  os dentes estralejando de medo:

— Manuel, anda deitar-te, homem. Tem hoje paciência, amanhã se fará o que queiras.

O pedreiro cresceu contra a pobre, com um pé de cadeira quebrado na mão;  agarrou-a pelas goelas com uma força de salteador, e torcendo-a, rangendo a  queixada, ébrio da sua ferocidade surda, descarregou-lhe pancadas furibundas  nas costas, na cabeça, contra o peito. E ergueu-a inerte, como morta, para a  lançar no chão moída de pancadaria. No entanto, a vizinhança acordava pelo  rebuliço; apitos soaram na rua; duas mulheres em saias brancas gritavam — ó da  guarda!  —  e polícias,  arquejantes  da  corrida,  enfiaram  pela  casa  com os  chanfalhos em riste.  O  pedreiro queria lutar,  esbracejava  furiosamente  entre  os pulsos cabeludos dos agentes, blasfemando. Pelos grupos, uma velha suja, olho de  coruja,  andava  tomando  informações, de uns  para  outros, com  lamentos de  uma  piedade  desenxabida.  Tinha-se  alastrado  na  rua  o  burburinho.  Alguém  trazia  arnica para as contusões da prove. Uma rapariga  aconselhava cerveja preta, coisa de quatro dedos, que não havia nada melhor  para maçadas de arrocho. E vários narravam casos de pancadaria com pessoas  tesas,  que desarmavam a  patrulha  com três  tabefes. O  pedreiro,  amarrado   entre dois polícias, passou entre as mulheres curiosas, no meio de pragas. E  explicavam-se as feridas da mártile: havia uma na cara com a dois dedos, e já aquilo vertia sangue!..  Uma rapariga trigueira, de uma prenhez disforme, tinha  suas  desconfianças que havia  costela  partida.  Outros  gesticulavam, tentando  elucidar,  com  figuras  e arremedos,  a  narração  que iam  fazendo  de  como  a  gente era cá por dentro. Mas ouvia-se a voz da patrulha que descia a rua.

— Nada de juntamentos aqui! Nada de juntamentos aqui! — E cada um  foi para a sua banda, dando boas-noites. A triste espancada nem dava acordo  de si.  Corridas as  primeiras  curas das feridas, cada  um  foi dormir  descansadamente e ninguém se lembrou de chamar o médico.

Sem o filho, sem uma pessoa que velasse por ela, a triste mulher revolvia-se  nas enxergas, às escuras, em gemidos de dor e desvairamentos de febre.

E como de costume a  manhã rompeu dali  a  cinco horas,  anunciando uma  terça-feira de Inverno.

O  dia  correu  no  meio de tristezas carregadas.  A casa  emergia  num torpor  abafado. Na  rua  dois  ou três  pequenitos  brincavam,  seminus,  com lama.  O  João andava de uma banda para a outra, sem poder sossegar. Desde as onze  horas que a  mãe perdera  o tino e mergulhara  no  delírio.  Sentia-se  sepultar  num horror sem limites, como se fora um ponto suspenso no centro de uma  grande esfera vazia, inerte, sem fim, em que eternamente se gira e embalde se  chora,  sem eco.  Fora,  de  mansinho  e descalço,  cheio de uma ternura  lacrimosa, chamar por ela,  dar-lhe  água:  a  sua  pele seca,  de um contacto  áspero, ardia de febre intensa. Os olhos, de um azul apagado, escancaravam-se  num pasmo doloroso;  um  sulco parvo distendia-lhe  a  boca,  seca e fétida;  a  respiração cortada, longa, lenta e difícil, soava por toda a casa, com um ruído  de serra. O  João parara  então em frente  da  cama,  absorto e  diluído em  pressentimentos trágicos. A alcova era estreita e nua, de teto muito baixo, toda  pespontada de moscas. Uma cruz negra pendia à cabeceira, com uma palma  seca,  ao través. Num canto,  um  caixote  cheio  de ferramentas manchava  cruamente as faces retangulares do recinto. Umas saias esfiadas pendiam num  cabide,  com um  capote  verde,  e em torno,  moscas aos  magotes,  zumbiam  famintas, como quem se aborrece da ociosidade. Dali a nada entrou a senhora  Joaquina, a vizinha do lugar. Trazia um caldo, duas maçãs, cobertas com um  guardanapo.  E,  curvada  para  a  doente,  perguntava  como tinha passado  a  noite, mas calou-se logo, empalidecendo, com a xícara na mão.

O  olhar do João colava-se  nela  como um  borracho  sob  a  asa  da  mãe,  um  terror ululante penetrava-o,  com profundeza  gélida e cheia de alucinação.  A  senhora Joaquina olhou para o pequeno e disse isto:

— A  coisa  está  mal!  —  E sem uma  palavra ergueu-se e saiu.  Ele  ficou  pregado na parede, sem resolução: ouvia os baques do coração convulso, mas  não pensava  nada,  não se  lembrava  de nada;  ficara  para  ali,  como  se o  atirassem. E media as palavras no ouvido:  

— A coisa. . está mal! O que seria? — Tentava fazer um supremo esforço,  queria  por  força  voltar à  sua  disposição habitual,  respirar livre,  mover-se  elasticamente,  marchar firme,  com os  seus rijos  pés  plebeus,  mas  experimentava  uma  coisa,  inexplicável  talvez:  era  como  se o  seu corpo se  alongasse muito numa faixa elástica, e lhe tivessem esmagado a cabeça entre  lâminas de ferro, depois de o  haverem adormecido com cloral,  em grande  dose. E no fundo do seu peito dobravam, como num enterro, aquelas quatro  palavras lúgubres:  

— A coisa está mal!  — Os seus olhos erravam pelo  teto, pelo cabide de  que pendia  o capote  em contornos  de mortalha,  amplas dobras de um  funerário abandono. E,  casualmente,  desceram contra  as  roupas  da  doente,  que arfava ao tiquetaque da respiração. O dia estava triste e forrado de burel;  ouvia-se cair a  chuva  nas telhas,  com um  compasso  monótono e fino.  À  alcova  mal  chegavam franjas pardas e  mal  definidas de luz; que não  conseguiam contornar as  coisas e,  em triângulos  colossais,  amontoavam  penumbras ondulantes de um pavor febril.  No ânimo do João também  enormes cenários de trevas desciam, e, o bélico de bronze, o infortúnio como  o aniquilava sem apelo.  A sua  imaginação viva  e de uma  excitabilidade  supersticiosa  e audaz fazia  surgir,  como no alvo de  um  fantascópio,  grupos  nubívagos de defuntos e velhas histórias diabólicas de enforcados que ouvira  às vizinhas:  e tudo eram olhos pela  parede,  pelas enxergas e pelo chão,  na  sombra, na treva, na incerta claridade da porta, que o fitavam escancarados,  com uma  teimosia  agoureira  e uma  surpresa  cobiçosa.  E parecia-lhe que  alguém o ia  a  tomar  pelo gasnete,  que velhas sardónicas,  cheias  de  feitiços,  afiavam estiletes para  o rasgarem,  e um  papão de  grandes barbas revoltas,  capuz  profundo  de  asceta,  levantava  sobre  ele os braços,  prenhes de  maldições e  castigos.  Os seus ouvidos  ressoavam interiormente  numa  vibração confusa  de arqueus;  sentia  as fontes baterem com uma onda de  sangue convulsionado,  e  todo o seu desejo  era fugir dali  e correr para  fora;  mas tinha medo de voltar-se; o silêncio gelava-o, como de cripta secular, em  que se tropeça em ossadas de cavaleiros, e se abrem caixões de veludo preto,  ao gemer estranho do  órgão. Pela  tarde adiante  a vizinha chegou,  com uma  garrafa,  mostarda,  lençóis lavados.  E pôs-se a  fazer sinapismos,  esfregações,  toda repartida em desvelos  amigos.  Ao lado,  o João,  imóvel,  abria  os  seus  ingénuos  olhos azuis,  uma  admiração tosca  e vagamente  reconhecida.  A  Joaquina  ajeitava  as roupas,  desembaraçada,  mangas de lã  vermelha  e  um  lenço de ramos sobre os seios murchos, como frutos sorvados. E dizia:

— Isto é lá cama, nem a minha avó!

E alto:

— Vocês não têm um  quarto com janela? Mudava-se  para  lá  a  cama,  sempre há mais ar.

— Há, ao pé da cozinha. É o meu.  

Foram ambos  ver.  Era  um  casinholo  arruído.  Quase no teto,  uma  fresta  piramidal  e profunda,  sem vidros,  dava  uma claridade amarela:  ouviam-se  ratazanas roer o forro, familiarmente.  

A vizinha resmungou:  

— Pior a emenda que o soneto!  — E com um ar distraído:  — Doenças  destas, ou bem tratadas ou então...

As últimas palavras fizeram calefrios na espinha do rapaz. A Joaquina corria-lhe a  mão pelos cabelos,  com ternura  de mãe.  E olhava-o esquecida,  uma  tristeza contemplativa cheia de pressentimentos e emoções. Uma lágrima caiu  na  mão do rapaz. Ele então quis olhar firme, com a coragem de um homem,  mas alguma coisa estrangulou-o, e deixou escapar um soluço...

Quando  acabou de chorar,  a  Joaquina tinha-o no colo,  dava-lhe beijos,  dizendo-lhe consolações banais e cheias de mimo. E dali a nada:  

— Olha, filho, se ela pudesse tratar-se no hospital.

Ele ficou aflito, todo desconsolado:  

—  Mas ficava aqui só. Não a via nunca — objetou.  

—  Qual! Aos domingos dão licença para visitar as enfermarias, lá isso dão.  — E explicava: havia muita caridade, boas roupas, tudo de linho, e quanto a  médicos... a mestrança... upa!  

O  João,  com as pernas apoiadas na  parede,  a  cabeça  no avental  da  vizinha,  resistia tremendo. Cortava-lhe a resolução, como uma lâmina frígida, esta ideia  excêntrica e rubra:  

— Se ela morresse...

Tinha  os  olhos  cheios  de lágrimas  limpidamente angélicas e uma  palidez  definhada retocava  de um  mimo  casto a  graça  correta  do seu rostinho  ingénuo.  Por  mais esforços que fizesse deixava-se ir vencendo por  um  quebramento pesado de fatalidades lívidas. A Joaquina fazia também grande  esforço querendo parecer forte, exteriormente alegre, e a cada passo o seu ar  tranquilo e descuidoso obscurecia-se  de angústias,  que o seu coração de  burguesa bolsava em golfadas. E dizia como para si:

— Mandei chamar o médico  para  ver  a  minha vizinha.  Se ela  for  de  parecer que vá para o hospital, agarramos nela e toca! O meu homem é muito  dos enfermeiros. Um deles, o Bento, é afilhado; o Zeferino é até compadre de  águas  bentas.  Ia  bem  recomendada,  não  tem dúvida.  Lá  isso..   Tratada  que  nem uma princesa, olá! — E circunvagando a vista pelos andrajos do quarto:  

— Que nesta pocilga, meu rico, até morrem os que têm saúde. Nem sei como  vocês aqui viviam e lidavam. — Cuspia de nojo, e ressentida:  

— Aí Tudo por  causa  daquele  negro daquele  bêbedo. Deus me  não  castigue, pela sua misericórdia!

Ao anoitecer,  a  doente,  empacotada  numa  maca,  foi  aos  ombros  de quatro  galegos para o hospital. Era um cortejo doloroso. As mulheres chegavam às  portas,  arregaçadas,  no  meio  de filhos  descalços.  Algumas  diziam —  coitadinha!...  de uma  janela, a  costureira  explicava  o caso para  o segundo  andar,  e duas ou três  tinham lágrimas  e  torciam os  aventais,  lamentando as  coisas deste mundo. A maca era velha e rangente; o vento da noite erguia a  espaços o oleado carcomido e aparecia então na caixa do leito o corpo imóvel  e morto da velha, coberta com o capote, indecisamente esboçado. Ia atrás o  João, descoberto e aflito, triste na sua pobreza descalça e órfã, como um cão  fiel  que esqueceram.  A Joaquina,  parada  à  porta,  chorava.  Uma  ovarina  passou,  inquiriu do  pranto.  A  outra  mostrou-lhe  com  o dedo  a  maca,  que  desaparecia no cotovelo da rua, e disse:

— Aquela  já  cá  não volta.  —  Escurecera  de todo.  Um homem de blusa  acendia os lampiões.

No hospital,  a,  maca  pousou.  Dois moços vieram para  expulsar o pequeno,  que queria ficar com a mãe. Sozinho, abandonado e partido de soluços, foi-se  acocorar numa  porta;  ficava  diante,  com uma grandeza  sepulcral, a  parede  branca do edifício, glacial e esburacada de janelas, onde uma luz vaga, mortiça,  esmorecia. Junto da  porta  a  sentinela  girava,  e no  pátio,  através das grades,  figuras  de apóstolos  enfileiravam a  sua  majestade de pedra  junto  da  parede,  em pedestais  geométricos e frios.  Ali estava  a  mãe!  O  que iriam  fazer dela?  Nunca entrara na enfermaria: como seria? E figurava camas de palha cheias de  podridão,  em que se  estorcem corpos  de  galegos  e mulheres  tísicas,  numa  promiscuidade canalha. Sentia sufocações no peito: nem podia chorar! E a rua,  no  entanto,  sonora  de passadas de transeuntes,  operários que  recolhiam,  garotos felizes  que vadiavam gritando,  oferecia  aspetos  alegres  e cenas de  vidas bem alimentadas no quente aconchego dos ménages probos e robustos  de labor. Uma saudade lacerante entrou no coração do garoto; e, como nunca,  encarou a sua vida miserável. Quando entrou em casa teve medo: uma solidão  mortal na cozinha, as ratazanas tripudiando no saguão; abandono, pobreza em  tudo.  E seria  assim sempre!  O  pai na  prisão.  A velha  no  hospital.  Que  desgraça, que desgraça a sua!..

No dia seguinte era preciso comer. Por conselho da vizinha foi vender jornais,  para não perder os fregueses. Ao meio-dia foi saber da mãe. Expulsaram-no de novo,  com uma  vara.  Perdeu a  vontade  de comer,  voltou para  casa  aniquilado, amarelo e vazio.

— Se ela  morreu! —  dizia.  .   E pavores  imensos,  soturnos fantasmas de  umas transparência mágica, surgiam-lhe de noite aos portais, gemendo credos  de monges, e mostrando dentuças formidolosas. Uma tarde estava no lugar da  Joaquina, com os pequenos. Entravam uns e outros a beber vinho: ao balcão  um  grupo  conversava,  entre  a  fumarada  dos  cachimbos. À  voz  da  vizinha  gritou:  

— João!  

Ele foi. A Joaquina disse:  

— D'amanhã  em diante,  hás de  levar o Notícias  a  este senhor. —  Apontava um velho seco, olho morto, ar veterano, de blusa azul.

O João olhou timidamente.  

— Pois sim, meu senhor, pois sim — disse ele. — Seja pelo amor de Deus.  Em que rua é, meu senhor?

— Não é rua — fez o homem. — Tu entras pela porta do carro, percebes?  É no Hospital de S. José! Vais por ali dentro, percebes? Tudo por ali fora. Há  umas grades, entendes? Vais por ali adiante e vês uma casa baixa, entendes?  Tem uns degraus:  é aí.  A porta está  aberta  para  quem quer.  Renda  barata,  entendes? — Ria-se, um riso enorme, adunco, de carnívoro.

Os mais tinham gestos comprovativos. Um até disse isto:  

— Livra-te de lá morares, rapaz.  

O João não percebia nada. Como era no hospital, observou:  

— É onde está a mãe?  

O velho tossiu cavamente.  

— Talvez já fosse minha inquilina, percebes? Mas entram e saem muitas,  nem reparo.  

— Sim, sim — fez o outro.  

O homem juntou:  

— Lá, os semestres têm vinte e quatro horas entendes? —  

Tornaram a rir-se. O que era velho tinha dentes aguçados e negros de cárie:  quando ria, esgares  de grotesco bárbaro repuxavam-lhe  as maçãs do rosto  tostado, de ídolo.  Os  anos tinham-lhe polvilhado os cabelos, hirsutos como  juncos secos.  

No outro dia  mal amanheceu, o pequeno  entrou  a  porta  do carro', subiu a  rampa, encostado à Escola. No terreiro parou para orientar-se. A porta parava  um estranho carro negro, linhas de cofre, todo crivado de buracos, lúgubre e  frio como um caixão. Sobre a tampa havia uma urna esculpida, meio coberta  com um pano e toscamente executada. Um homem sentava-se na almofada; tinha o seu capote azul, o seu chapéu de oleado e a cara vulgar dos caleceiros  nem maus nem bons,  imbecilmente honrados.  Outros dois,  em  mangas de  camisa, traziam fardos  de dentro,  feitos de serapilheiras esburacadas,  mendigas. O João mal reparou naquilo: tinha visto a casa baixa ao fundo da  rampa gradeada: era ali que lhe mandavam deixar o Notícias. Foi lá. O velho  estava  em mangas  de  camisa  almoçando café,  à  entrada.  Era  um corredor  estreito para onde abriam óculos de vidro de pequenos compartimentos claros  e cheios de ar; a luz crua da manhã caía do alto, pelas vidraças abertas. Ao fim  do corredor, um altar negro frisado de douraduras saía da parede, e em cima  um Cristo de pau, entre velas intactas e cheias de moscas mortas, estendia os  braços cilíndricos, dourados a casquinha.  

Um arame escuro, de algum timbre distante, riscava a brancura do teto e unia  outros  arames  convergidos de cada  compartimento,  como  uma  espinha  de  peixe. Oxidada e velha, uma lâmpada de latão caía de cima com a sua luz inútil  na claridade diurna. Tudo aquilo era de um  aspeto lúgubre e frio através de  que se  sonhavam infortúnios  e alucinamentos.  O  João esteve a  mirar tudo:  estaria ali a mãe? Era o hospital — devia estar. E via o velho ensopar em café  grandes pedaços de pão; olhava...

— Aqui está o jornal — disse. E ficou-se. Tinha ganas de perguntar pela  mãe;  acanhava-se.  Ao  fundo,  a  lâmpada  pendia, como  num nicho.  O  altar  negro  e frisado  de ouro lembrava  uma  capela  de jazigo.  Tirou o barrete,  reverente:

— Ó meu senhor..   

— Que é? — fez o velho. E tasquinhando: — É o Notícias, hem? Aposto  que traz o caso da sopeira dos Calafates!

— Ó meu senhor, isto aqui é igreja?  

—  É hospital: tu não vês?  

— É hospital...

E a medo, uma ansiedade íntima:  

— A minha mãe está aí, está, meu senhor?  

Tremiam-lhe os lábios, e conhecia-se a dolorida expansão de um amor de ave,  implume e doce, que descobriu amparo. O velho olhou-o com ironia, depois  teve dó, um dó alarve, quase insolente.  

— Procura-a se queres — respondeu.  

E o seu dedo escuro e cheio de nós  apontava  os óculos dos  pequenos  cubículos,  abertos sobre o corredor.  O  garoto entrou a  medo,  como  numa  igreja: como era baixo, não chegava aos vidros. Havia um banco: agarrou nele,  assentou-o junto da primeira porta, subiu corajosamente com a pasta debaixo  do braço. Esteve a olhar, a olhar.

— É um homem — disse ele. 

O guarda parara de comer; na dilatação da sua pupila poder-se-ia adivinhar a  alegria surpresa de quem vai pregar uma boa peça.  

— É um homem, é — concordou.  

— Dorme, coitadinho. — E, penalizado: — Tão magro!..  Tem filhos, meu  senhor, tem?

O velho não respondeu. A esse tempo, já o pequeno tinha o banco ao pé da  segunda porta e subia.

— É uma velha — notou ele. — Olhe, meu senhor, está a rir. Cada olho!  

— Ri-se de ti talvez — comentou o guarda. E para o afastar do óculo: —  Está doida; sai daí.

O João detinha-se muito pálido e nervoso, pressentindo alguma coisa horrível.  E não podia descer.  

— Mas ela não mexe! — Tremia de medo. — Meu senhor!  

— O que é? ...  

— Aqui é o hospital? . . Diga, é o hospital?  

— Pois o que há de ser? Não vês as camas, os doentes.  

O João hesitava, agitado.

Não  disse  nada, desceu devagar,  com a  cabeça  pendida  numa absorção  angustiosa. Pôs o banco ao pé do terceiro óculo; subiu.  

— É a mãe! — Tinha os últimos alentos na voz; uma revolta de amores,  desconfianças e luto, impulsionara agora de súbito nessa organização inerme  uma desusada atividade, quase uma audácia. Saltou para o chão, arremessando  ó banco.  Ia  abrir  a  porta.  O  guarda  correu para  ele,  deu-lhe um encontrão  brutal! — Eh rapaz!. . Diabo! — Segurava o fecho, olhando.

— Pelo amor de Deus, pelo amor de Deus! — implorava o pequeno — É a mãe, é a minha. Deixe-me ir falar-lhe, deixe, meu senhor.  

E de mãos postas:  

—  Pela sua saúde, por alma dos seus defuntos!  — E com um desespero  explosivo: — Ora isto! ora isto! — Levava os punhos cerrados aos olhos; um  choro dilacerante  abalava-o. Tomou as  mãos  do  guarda:  —  Só  pedir-lhe  a  bênção, meu senhor; vou-me logo embora, vou-me logo embora!  

Essa alma dura do velho verteu compaixão.  

— Mas não podes,  não  tenho ordem,  percebes? —  E  dava  razões:  ela  estava com cáusticos, com uns emplastros na espinha: tinha acabado de tomar  o remédio; era um banho forte, que fazia dormir. E que bem tinha visto pelo  óculo, pois não era verdade? Não lhe tinha visto os olhos fechados? Era sono,  está claro!  E que,  se  queria  vê-la  boa,  não a  fosse agora  acordar,  a  pobre  velhota. — Percebes?  

— Amanhã  vens tu  aqui,  entendes?,  de manhãzinha  cedo,  e talvez já  ela  esteja capaz de te ver; entendes? Pois isto é que é.

Ele, de cabeça baixa, refletia.  

— Vossemecê  não me  engana,  não? Sou  um  pobre de Cristo,  vivo  dos  jornais; não vê? — E apresentava a pasta. O guarda compadecia-se.  

— Não engano, homem: para que te havia de enganar? E boa!  

Armava no rosto uma sinceridade benévola e rudemente ingénua. O João saía  vagaroso.  

— Então amanhã, meu senhor. Adeus. Seja por alma de quem lá tem.  

Ao fundo dos degraus deteve-se para voltar a cabeça. E ficou-se a murmurar  pensativo:  

— Mas quando uma pessoa está doente, não apanha ar. Ali têm as janelas  escancaradas.  —  Ia  devagar,  embebido,  com os  jornais na  pasta.  —  Eles  sempre são cirurgiões — disse —, entendem mais que um qualquer. — E a  espaços:  —  Então amanhã. Hei  de  lhe  contar que  estou muito obrigado à  vizinha; nem que fosse minha mãe. — E chegou à rua, ergueu o pregão. Todo  o mundo era feliz e sorria. Ninguém reparava nele.

Disseram-lhe depois que a mãe morrera, e a sua vida mudou. Nunca mais foi  visto  no sítio  nem tornou a  levar ao velho  o  Notícias,  todas  as manhãs.  Dormia nas escadas, de manhã vendia os jornais, o resto do dia passava-o nas  ruas, sentado pelos bancos das praças, dormitando canalhamente ao sol. E a  suavidade de  gênio,  a  doçura  "implume  dos seus  olhos derivaram  numa  rispidez, numa malícia de garoto.  

Entre os da sua idade começou a ter predomínio; era o das partidas subtis, o  que comandava  as troças que  o bando fazia  aos velhos,  o que ia  gritar nas  escadas, o que armava intrigas, desenvolvia contendas, e nos magotes repartia  socos e pontapés, no meio da grita e das risadas dos taberneiros. Durante dois  anos viveu esta boémia das ruas, tripudiando no meio ínfimo a sua turbulência  e a sua alegria. Às vezes tinha fome: ia pedir nas ruas escuras, com o  barrete  na mão, a quem passava. E o seu coração sofria todos os maus modos e todas  as humilhações,  sem  rebeldia.  Nesta  senda  privou com  os incorrigíveis,  conheceu os  mendigos,  os  gatunos  e  as velhas de capote verde,  sem meias,  que esmolam  nos  adros  das igrejas,  em lamentações  dolorosas.  Uma  vez a  polícia entrou numa casa de malta, na véspera de uma parada, e varreu quanto  lá achou para a prisão. Os pequenos foram metidos na Casa da Correção e os  gatunos no Limoeiro,  por  contas  antigas. Sentiu duramente  o  cárcere,  e  sinceramente chorou a vadiagem dos antigos dias, em que o seu pé vivo, forte  e ágil,  pisara  livremente  as ruas em corridas  ruidosas,  em pândegas  de boa  marca. Na reclusão, os seus dias medidos por ocupações sujeitas a uma tabela  e a  um  horário  foram enlutados  no tédio  e no sentimento  da  própria  inutilidade:  levantava-se  antes de nascer o sol com os demais companheiros  estremunhados,  tiritando do frio que ao longo dos corredores se  esfuziava  cantando; um sino batia horas acima das abóbadas, e o eco ondulava de cela  em cela, como o soluço de uma alma penitente, a quem não perdoam; pelas  profundas janelas do antigo convento, pedaços de céu faziam manchas lúcidas  de espiritualização inefável,  em que o olhar dos  pupilos se dilatava  com  grandes  tristezas de oprimidos.  Caminhavam formados  dois a  dois para  a  capela, à oração da manhã. Depois cada um ia para a sua oficina, ou para a  aula  de estudo.  Os rudes  prefeitos  passavam lúgubres,  lívidos  e cheios  de  consumpção, e os seus olhos ferozes corriam sobre as cabeças humildes dos  rapazes,  curvados sobre os livros  ou sobre os  trabalhos de oficina. Aos domingos ouviam missa;  uma  charanga  tocava  no  pátio e os  jornais  convidavam o público a  ir ver o colégio,  louvando os desvelos do diretor e proclamando os resultados da instituição beneficente. Ali tomou ele próprio,  aprendendo a  ter asseio,  correção  e aprumo;  aos  dezoito anos o Ferreira  tomou-o para  aprendiz;  era  uma  pessoa  cheia  de  si  própria,  estatura  avantajada,  completamente  formada,  que  passara  incorruptível  no meio  viciado do hospício, resistindo aos vícios mórbidos e fatais da caserna, e salvo,  numa palavra, da ociosidade e do desprezo de si mesmo.  

Resolveram encontrar-se,  o João e  Carolina, todas as  noites, à  hora  em que  fechava a oficina; iriam passear, falando dos seus negócios sem temer ditinhos  da vizinhança. Ele instara vivamente para que se ligassem; era assim melhor,  não sofriam tanto as saudades da ausência e estariam à vontade; e se a coisa  tinha que ser, que fosse quanto antes. Carolina lutava um pouco; todos os seus  cuidados  eram o pai;  quando ele chegasse  a  casa  e os  visse,  que diria? E  suplicante,  uma  meiguice infantil,  obrigava  João a  ceder,  com  pequeninas  carícias voluptuosas e finas. As noites eram frias e escuras, orvalhadas no alto  de cintilações de estrelas, arquipélagos de luz num Pacífico lôbrego e sem fim.  Reuniam-se  a  uma  certa  hora  no Largo  da  Estrela, e  de braço dado,  estreitamente unidos, com declarações pelintras empoladas de palanfrório sem  nexo,  diziam um  ao outro o seu amor eterno,  citando cantigas,  pequenos  versos  de manjerico, procurando a  sombra,  desviando-se das zonas claras  projetadas  pelos  lampiões,  como  proscritos  cônscios  da  sua  culpa.  De  ordinário vinham por S. Pedro de Alcântara, S. Roque, até ao Chiado. Àquela  hora as ruas atulhavam-se de gente abafada em capotes felpudos, carruagens  cheias de mulheres melancólicas; um largo ruído emergia da luz, da vida e da  enorme respiração  da  cidade,  espapando-se nos  ares  num tom  indistinto e  abafado.  À  porta  da  Havanesa  um  forte  grupo  enchia  o  asfalto;  caras em  sombra saíam das golas altas; de todos os lados partiam rumores de palestras  que,  apanhadas de relance,  davam a  diversidade mais curiosa  e frisante;  marialvas pálidos e bonitos,  altas pernas  apertadas em calças  prenhes de  joelheiras,  chupavam  cigarros  em grupo, provocando as costureiras que  recolhiam dos armazéns;  militares  secos,  sonoros de  esporas,  uma  curva  de  espinha, discutiam às esquinas. À porta da Casa Singer, destacando em sombra  a crua luz irradiante do lustre, um cónego forte e barbeado, envolvia-se na sua  capa,  baixo  perfil  de  javardo  estupidamente grave. De  um  lado e  outro,  a  fileira de transeuntes seguia, gente de todas as castas, mulheres embuçadas em  mantas,  rapazes débeis  e palreiros,  velhos  dilettanti  da  ópera  que faziam  a  digestão com charutos fortes;  ao trote  de grandes  parelhas,  as famílias iam  para S. Carlos, recostadas nos cochins dos coupés; e Carolina, invejosa da vida  que não vivia  e da  opulência  que a  deslumbrava,  ia  picando as cenas de  comentários amargos,  um  vago rancor  de proletária. O  João murmurava de  vez em quando:  

— Isto  é o tom, isto  é o tom! —  Gente  pasmada parava  em frente das  vitrines  do  Seixas,  admirando oleografias,  porcelanas,  pequenas esculturas  suíças.  em frente  quase,  no  Elie Bernard,  as amas de toucas de renda  apartavam  polichinelos,  pequenas arcas  de Noé,  para  frescas crianças  de  banqueiros,  aconchegadas de arminhos e louramente  ideais.  No  Leonel,  as  senhoras de cauda  princesse,  perfis  orgulhosos  de marquesas, palidamente  altivas,  viam cetins  da  estação,  fortes veludos de pregas elétricas,  opulência  cara. Sentia-se apregoar o Jornal da Noite. Divas de mantilha, marmóreas de  riz, elegâncias de figurino, vendiam-se a quem passava com pequenas tosses e  psts!  Eles  atravessavam a  multidão,  isolados no  ruído como estrangeiros.  A  Rua  Nova  do Carmo tinha  menos  gente,  menos  luz.  No  fundo do  Margotteau, uma  luz soturna  agonizava  sobre estofos amontoados,  pilhas  e  coxins,  bancas  de jogo marchetadas e brilhos  de  lustres,  pendentes do  teto. Sobre o Rossio caía  a  cúpula  tenebrosa  da  noite,  como  um assombro  legendário;  em D.  Maria, acima  da  arcada,  pontinhos de gás escreviam  espetáculo;  em  torno da  praça rolavam os  trens;  soldados  risonhos  saracoteavam-se  na  penumbra  entre os  grupos de  velhos  celibatários;  o  Martinho  estava  cheio de estudantes e literatos;  e contratadores  de senhas,  cauteleiros e americanos  em marcha faziam  um  ruído infernal e contíguo, o  tohu-bohu das capitais  exaltadas  pela nevrose  da  noite.  Eles  iam  seguindo  vagarosamente. Fechavam as lojas. Chegavam de ordinário a casa muito tarde.  A vizinhança dormia. No relógio da Estrela badalavam quartos, som lúgubre.  Passavam a  noite amando-se,  jurando a  si  mesmos fidelidades  eternas  e  amores fenomenais, enquanto a vela de sebo posta a um canto, deitava clarões  amarelos e um cheiro sufocante de morrão.  

Afinal o João fez conduzir para casa da rapariga o seu baú, os seus arranjos. A vizinhança  falou do escândalo,  nunca  se  vira  uma  pouca-vergonha  assim,  o  mundo estava perdido.

Muitos diziam:  

— Já a comadre bebe! Mas deixa que o pai saberá...

Só a Marcelina achou natural.

— Cada qual governa-se — sentenciava ela.

Os primeiros  dias correram-lhe distraidamente,  nas espiras  de um  amor  canino e desonesto.

O João aparecia tarde na oficina, cheio de sono e de fadiga. E sofria as meias  palavras do Ferreira, a sua grosseira rabugice de velho rigorista, via-o atirar as  coisas com mau modo,  girar  nervosamente  por  entre  os bancos de  trabalho  com o olhar relampejante através  dos óculos.  Para  o aprendiz,  o melhor  tempo era o recolher do trabalho, ao cair da noite: ia quase a correr para casa,  subia a escada a quatro e quatro; Carolina estava de ordinário costurando, com  um  casibeque de lã,  lenço na  cabeça,  a  face de uma  palidez transparente  e  doce. Ele tomava-lhe delicadamente a cabeça, com as duas mãos; beijavam-se  com uma sofreguidão provocante, e toda ela vergava languidamente no peito  do aprendiz, sonhando as divagações mais sublimes. Nunca saíam, senão noite  feita.  Diante  de uma  mulher,  o João experimentava  um  aconchego tépido,  delicioso: com ela, a sua força, a sua forma vigorosa e superior, acobardava-se,  quebrantava-se,  caía: era  então dos sentidos.  Não se  lembrava  de olhar em  torno  de si,  no desleixo da  casa,  nua,  repartida  em compartimento  baixos e  retangulares,  sem luz e esfolados nas ombreiras,  com laivos  de oca  barbarescos no rodapé. Pelas paredes encostavam-se móveis antigos e coxos;  leitos de ferro,  de varais  tortos,  tinham colchões  estripados e cobertores  de  uma  farrapice sórdida;  em volta  nem um  objeto  limpo e cuidado,  nem uma  cor alegre e rutilante, em que a vista pascesse uma satisfação honesta; todas as  formas duras e cruas das coisas tinham  um  desleixo antigo,  de anos,  e  desmantelavam-se  como bem lhe parecia.  Pelos  aspetos,  via-se  a  história de  Carolina,  a  sua  orfandade,  as ausências do  coveiro na  desolação das  covas,  como  um  desterrado.  Na cozinha,  a  chaminé  derruía  lambida da  fumarada,  cheia  de terra  e tijolos partidos,  abrindo como uma  goela  calcinada  e  pulverulenta.  Teias de aranha,  espessas e  papudas,  faziam prateleiras aos  cantos.  Num poial húmido e cheio de covas,  rimas de pratos sujos,  de  almoços antigos,  estavam para  ali  de semanas;  sobre o peito da  janela, uma  palmatória de barro tinha  um  coto  de sebo;  a  miséria  enrodilhava-se pelas  coisas, numa frialdade canalha e vilíssima, em que se acusava uma existência sem destino,  sem direção,  sem o exemplo  da  outra.  Nenhum  móvel  no seu lugar,  o lavatório vazio,  uma  bacia  numa  cadeira,  saias enxovalhadas nos  ferros dos leitos e o gato lambendo-se sobre um xaile. E à medida que passava  o tempo e os dois conviviam, Carolina que, no começo, por pudor, fora um  pouco cuidadosa, entrou em entregar tudo ao acaso, para ali, ao deixa-te estar  que estás bem. Enquanto só, era ela quem lavava a sua roupa, de mês a mês.  Quando o João se ligou com ela,  foi impossível  continuar aquilo.  Eram  precisas camisas engomadas, roupas, lenços brancos, quem costurasse, quem  cuidasse com amor, sem fadiga, sem mal-estar, todos os pormenores do lar de  todas  as pequenas necessidades  do trajo.  Carolina  nunca  engomara.  Foi  perguntar à  Marcelina  como  era.  A velha deu  explicações:  que  se  molhava  primeiro a" roupa em goma fervida, com um trapinho, e depois se punha a  enxugar muito bem, a enxugar..  Carolina lavou corajosamente as camisas do aprendiz, mas não ficaram brancas — que birra! E, resignada, aqueceu o ferro,  pôs em prática quanto ouvira  da  velha;  mas  o ferro  tostou-lhe  o  pano  deixando uma  nódoa  escura  e fumegante;  ela  ficou toda  desconsolada,  lacrimosa, temendo ralhos, quando o João viesse. Fazia um mês que se tinham  visto no arraial. E Carolina, refletindo, comparava os dias à medida que eles se  distanciavam do primeiro:  as  coisas não são algumas vezes o que parecem;  nem tudo o que luz é ouro — lá diz o rifão. Era verdade! E entristecia-se. O  jantar foi  menos animado que os anteriores.  O  João não tinha  vontade,  era  sempre a mesma coisa. . E em conversa disse os seus pratos mais prediletos, em que havia mexilhão, cabeça de porco, refogados. Ela estranhou a palavra.  

— Refogado! — disse sem perceber bem. Olhava o teto. — Refogado!  

— Sim, não sabes? — fez ele admirado daquela ignorância. E pôs-se a dar  explicações, a dizer como era. E dali a pouco:  

— Em coisas de cozinha, a modos que sei mais que tu. — E sem mudar  de tom:  —  Diabo!  Que te ensinaram então! —  Carolina  ressentiu-se  um pouco.  Estiveram distraídos  nessa  noite;  queriam  ambos disfarçar, ter  excessos, exuberâncias, brincadeiras, pequenas ternuras piegas, mas de repente  esqueciam-se e paravam, sem saber porquê, absorvidos. Ele perguntava-lhe:  

— Em que estás pensando?  

Carolina  encolhia  impercetivelmente  os  ombros,  um  meio  sorriso  sem  expressão.

— Nada. — E ao acaso: — No meu pai. Porque perguntas? — Estiveram  assim .  Viam-se os seus esforços para  entabularem palestra  e parecer como  nos  outros dias, mas  um  tédio  e uma  contemplação íntimas dominava-os,  atraiçoando-os.  

— Amanhã  é domingo —  observou Carolina. E com admiração:  —  Já  amanhã é domingo, hem?  

— É verdade — perguntou ele —, tenho roupa?  

Carolina sentiu-se empalidecer. Balbuciou:  

— Tens.  —  O  seu desejo  seria  aventurar uma explicação,  dizer o que  sucedera, afiançar a sua boa vontade, pedir perdão da sua simpleza selvagem,  mas  que vergonha!...  Qualquer  rapariga  engomava,  varria,  sabia  cozinhar,  manter limpas  as coisas,  brancas as  ombreiras, sadias de  traça  as roupas  guardadas nas gavetas e nos baús: e só ela, a burra, nada sabia, aquele grande  cavalão! Tomou coragem!  

— Olha..  — disse, e ficou-se; sentia-se palpitar.  

— Que é?  

Na calada a asma do gato resfolegava.  

— É que eu. .  — curvava a cabeça com a vista obscurecida de lágrimas. O  João ergueu-lhe  a  cabeça  com a  mão,  tomando-a  pelo queixo,  com carinho quase.

— Que diabo tens tu, filha? Então! Que diabo quer dizer essa aquela! — E sem obter resposta:  —  Se tens alguma coisa,  Carolina...  —  E  comovido,  admirado: — Mas ofendeste-te do que eu disse há pouco? Nem reparei, foi  sem tenção de te magoar. — Beijava-a repetidamente, procurando chamá-la a  uma tranquilidade conciliadora e a uma justa apreciação de palavras.

— Não vês que te amo tanto, hem? Não vês? Uma pessoa, às vezes, nem  repara nas coisas que diz; vês tu?

Ela abafava soluços, com o lenço.

— Não é nada, não é nada: isto é do meu gênio a modos tristonho — dizia  ela —; que eu bem sei que não sirvo para nada, bem me conheço. Para que  serve um diabo assim?..  Nada sei fazer, nunca tive quem me ensinasse, pela  minha desgraça! Até nem roupa...

O João acudiu logo:  

— Se não está  arranjada  é o mesmo;  lá  isso  não tem dúvida;  não nos  havemos de ralar por tão pouco. Ora! Manda-se à engomadeira; alguma vez aprenderás. — E enxugava-lhe as lágrimas. — Sua tola! Agora a choramingar.  — E dava-lhe pequeninos beijos, abraços amigos, dispensando-lhe solicitudes  paternais.  

— Vale  lá a pena!  —  resumia.  — Não sabes, acabou-se.  Ninguém nasce  sabendo, isso é velho. Ninguém te ensinou...  não tens culpa; é boa!...

Mas no seu ânimo encrespara-se um mau humor que o ralava, e uma irritação  sem alvo fazia-o passear com rapidez, acentuando as passadas no solo. Não  saiu no domingo,  ficou à  janela  fumando.  Via  passar na  rua grupos todos  asseados,  mulheres vermelhas e fortes,  cheias de saúde e de alegria.  E sem  querer punha-se a compará-las com Carolina, tão linfática, tão desleixada e tão  pouco limpa. Homens iam de charuto, fumegando com pompa, bengala, suas  botas engraxadas, camisa muito branca.  

E ele não tivera camisa lavada, nem gosto para dar o seu giro às hortas ou ao passeio.  

E molestado,  roído,  retirou-se  para  dentro,  foi estender-se  ao comprido  na  cama.  

— Ai! — suspirou. — A gente sempre faz cada uma! — E ficou-se imóvel,  refletindo,  com saudades  dos  tempos em que era  livre  e  tinha  camisas  lustrosas, todas brancas, cheirando frescamente a sabão.  

Pouco a pouco o aprendiz pôs-se a reparar em tudo, na casa, nos objetos de  uso,  na  cozinha, nas lavagens.  Carolina  não tinha  nenhum  desses  instintos  delicados  e espontaneamente  artísticos,  que  são a  revelação da  mulher;  nos  seus menores labores era de uma  incorreção tosca e de uma rotinice escura.  Não  varria  a  casa,  ou varria-a  mal;  nenhum método, nenhuma  paciência,  nenhum amor  em  conservar as  coisas.  O  João mandara  para  casa  uma  cômoda, cadeiras, um pequeno espelho, duas jarras de louça azul, e ele mesmo  tinha  disposto  tudo, esfregado  o  solo,  as  portas,  consertado as  bancas  e  o  leito, nas horas vagas. Mas dias depois o pó cobria tudo, havia sinais das mãos  gordurentas de Carolina  nos puxadores  das gavetas;  a  cama  estava  sempre  desmanchada, com o sinal dos corpos. Ele perguntou-lhe uma vez:  

— Que fazes tu, quando eu vou para a oficina?  

— Costuro alguma coisa, durmo. É tão triste!...

— Mas, filha, deves arranjar a casa..  — aventurou ele.  

Carolina ficou-se. A sua natureza preguiçosa, habituada aos ócios, quebrava-se  de fraquezas, bocejos e espreguiçamentos, só de lembrar-se do trabalho que  tinha a fazer. Às vezes lutava, fazia uma grande atividade, mexendo por um  canto e por outro, mas vinha a fadiga, o aborrecimento: atirava-se para cima  dos colchões.

— Se eu não posso!...

O  aprendiz dera-lhe vestidos  novos,  uma  pequena  capa  de xadrez,  mantas,  roupa  de patente  com abertos.  E tudo andava  pendurado pelas portas,  à  poeira e aos encontrões, desmazeladamente. Passava horas penteando os seus  cabelos  ruivos,  anelados e finos  de lustro macio e espessura  abundante,  fantasiando penteados,  ensaiando laços,  cuias  arrebitadas, vaidadezinhas  de criança.  Outras vezes  amanhecia  preocupada,  taciturna,  nervosa,  salivando  pelos  cantos;  fazia  o almoço  muito cedo.  O  João ainda  ficava  às vezes  na  cama; ela ia devagarinho olhá-lo; aproximava-se curiosa, absorta no vulto do  aprendiz que arfava sob as roupas mornas. E cheia de vertigens, de subitâneas  paixões  que rebentavam do seu temperamento  em espirais  de desejos,  lançava-se a ele, abraçando-o como doida, fazendo as protestações mais vivas  e os  amuos mais doces,  tentando vendar-se sob uma  face nova,  inventando  mesmo ardores, manias e excêntricos frenesis inexplicáveis. No meio de tudo  isto, e afora estes arrulhos, o seu desarranjo era o mesmo; não lhe passava pela  cabeça  que cativaria  o seu homem tornando-lhe o  lar alegre,  limpo,  fresco,  fazendo luzir a boa ordem, a boa administração e o decoro nos mais simples pormenores da  residência. Fora  do pecado  mortal,  não tinha préstimo, nem  imaginação, nem propósito.  

E neste meio o seu corpo desenvolvera-se um pouco; os seios ampliaram-se   numa curva  graciosa,  de contorno  quase  casto;  e esmaltado  de palidez  mórbida,  lasciva  e um  pouco cismadora,  o seu rosto era  doce,  de uma  harmonia  dolente,  como certas pinturas  de virgens mártires que oram em   atitudes pias, no fundo das capelas da arte gótica.

Um dia o João achou-a fétida, cheirando a saias velhas; nunca mais lhe saiu  esta ideia da mente; entrou a achá-la esquelética e cansada; ao deitar-se fazia  um  esforço para  não parecer saciado, mas  os  seus beijos  eram  frios,  convencionais, espaçados. Ela reclamava, cobrindo-o da sua paixão como de  um  cáustico,  querendo reapoderar-se  de um  amor  que lhe  sentia  fugir  e  padecendo,  embalde,  ciúmes  de todo o mundo.  E começou a  desconfiar,  a  seguir o João à  oficina, a  furtar-lhe  as voltas.  Nas  menores palavras que ele  dizia  encontrava  dois  sentidos,  o aparente  e o oculto,  que parecia  envolver  sempre um sarcasmo, uma ameaça, um insulto. Foi uma luta tremenda; a sós  falava  alto,  altercava consigo mesma,  dizia  pragas,  arquitetando  projetos  de  vingança e planos de sedução.

Havia  horas em que  a  sua  vontade  era  morrer,  tomar qualquer corrosivo, precipitar-se  da  muralha  de  S.  Pedro de Alcântara;  outras vezes  estalava  de  aflições, contorcia-se em desvairamentos supremos, querendo chorar, soluçar,  pôr em evidência  a  sua sorte.  Quando ele  vinha,  afetava  rosto sereno, uma  certa despreocupação feliz; mas a sua gana era apertar-lhes as goelas, para que  outra  o não gozasse.  Enquanto o João comia, ela,  encostada  à  porta  da  cozinha punha-se  a  fitá-lo do  fundo  da  sua  paixão danada,  cheia  de ideias  trágicas. Uma noite agarrou-o pela cintura, os olhos envidraçados:  

— Tinha  mesmo vontade de te  matar!  —  disse,  sôfrega.  O  João riu-se olhando-a; mas ficou logo todo sério, abrasado naquela ânsia, e uma corrente  galvânica percorria-o, nascida no olhar dela, sequioso e feroz, cheio de gula e  de fel.  

Vieram  então as pequenas especulações, as pequenas ciladas sujeitas  todas a  um plano geral de má índole, de reserva e de ciúme — da parte de Carolina.  Umas vezes  era  o jantar que não estava  pronto a  horas,  outras reclamava  bugigangas de adorno, fitinhas, meias de riscas escarlates.

O  João satisfazia  tudo,  ouvia  tudo,  mas era-lhe indiferente  esta  ou aquela deliberação; tudo achava capaz, assisado, justo.

Já  não era  o mesmo.  Emagrecera  nas faces e andava  pálido,  com os  olhos  fundos  de cansaço. Tinha  agora  para  mirar  as mulheres  uma  atenção  persistente, uma fixidez de olhar que as percorria todas, desde os cabelos até  aos pés.  E muitas  vezes  na  rua  voltava-se para  trás,  seguindo  as  que lhe  passavam perto.  As suas  predileções  eram todas para  as  roliças,  e sentia  furores pelas trigueiras,  em cujo  lábio  superior via  ensombrar-se a  penugenzinha de um  boço,  donativo de  vivacidade de temperamento e  escandecências do sangue.

— Mulher que se sinta nas mãos ! — notava ele rudemente.  

Esta transição demarcava o homem feito e precocemente liberto das últimas  infantilidades, homem com características de apetite, frenesis e vacilações de  caráter.  

A cara emborbulhara-se-lhe de barba, tinha-lhe engrossado a voz e acentuava-se um cunho imperioso no seu modo de dizer.

Na oficina, quando  de manhã  aparecia  em algum daqueles desalentos  profundos, nascidos da desordem das noites, os colegas riam-se, cobrindo-o de chufas e apoquentando-o com perguntinhas velhacas.  Do seu banco, o  Ferreira  não dava  palavra,  mas de vez em  quando  saía-lhe um  canto nasal, espaçado por  grandes silêncios,  que era  a  sua  fórmula  de raiva  brusca,  recalcada por sessenta anos de prudência. Os íntimos porém queriam da boca  do João saber por força como tinha sido, se adormecera tarde e se a lua-de-mel continuava. Entre risadas apupavam-no dos bancos de trabalho:  

— É o mês dos gatos, não admira — diziam.  

Ele dava cavaco em ouvindo estes dichotes. Ficara mal com os dois ou três  mais  atrevidos,  jurando que faria alguma ainda. O  seu gênio  concentrava-se  num silêncio reflexivo,  quase  triste. Era  muito  exato  às  horas  de  trabalho, pacientíssimo aos ralhos da rapariga, vivia pouco em casa, recolhia tarde. Ela  uma vez observou-lhe:

— Tu já não és o mesmo rapaz, João!  

— Aí vens com tolices — disse ele.  

Carolina  invadia-se  de um  terror desconhecido,  toda  entregue a  uma  desconsolação.  

Uma tarde a Marcelina apareceu:  

— Adeus, filha, adeus. — E notando a cômoda, as cadeiras: — Viva! Isto  é que é! isto é que é..  Viu-se tafularia maior? — E mirando Carolina:  

— Que senhoraça, que senhoraça!  Toda  no chefe.  A sua  espiguilha  no  casibeque, sua cruz ao pescoço!. . Ai! quem tem homem não sabe o que tem.  Vejam como tudo está mudado. — E baixo: — Quanto custou cada metro?  —  Apalpava  a  fazenda  do vestido,  esfregando-a,  estudando a  espessura.  E  expluiu logo em narrativas, que a mulata tornara para o hospital, e morrera! —  Minhas ricas quatro moedas,  que fiquei  a  ver  navios.  —  E azorragando os  caloteiros abria  a  caixa  de tartaruga,  tomava  rapé  com os  dedos em leque,  sorvendo com grande delícia, o olhar piedoso.

— Como te vais dando com ele? — inquiriu passado tempo.

— Bem; então como? É muito bom rapaz, lá isso sempre o direi.

— Bom gênio, hem?

— Bom gênio...  —  E  vencendo uma  repugnância,  afetando  grande  franqueza  para  com a  velhona:  —  Olhe,  todos  nós  temos  as nossas  coisas, percebe?  

— Está visto, está visto. Que bom só Deus.

Fizeram um  silêncio  beato.  A Marcelina  desconfiava  já  que tinha  havido  mocada. Interrogou cheia de curiosidade:

— Mas houve alguma coisa?  

— Não. O que havia de haver? Hoje em dia, uma mulher precisa saber de  tudo. Eu confesso a verdade: de engomados não sei. Quem é pobre não usa  certas coisas.

— Nisso foi eu sempre com a primeira. Não é por me gabar. Que engomo  encanudados  ainda hoje,  como poucas.  —  E explícita:  —  E que é uma  das  coisas mais custosas de fazer, o engomado!. . Só o polimento!...

— É verdade, é verdade — dizia Carolina.

— Mas o quê? Ele disse alguma piada por isso?  

— Estranhou. Ele nunca  se zanga.  —  Armava  no  rosto  uma  soberania  indomável. — Zangar-se? Oh!. .. tenho-o aqui fechado — e estendia o punho — mas...

— Ora diz a verdade: tu queres contar-me alguma. Cos diabos! Bem sabes  como  eu sou.  Fala  à  vontade.  Se  eu te puder  valer...  prás  amigas estou às  ardes.  

— Olhe, é verdade. O João, nos primeiros dias, eram excessos que nem eu  sei.  Andávamos sempre aos  abraços,  às festinhas,  nunca  nos separávamos.  Mas há uns dias que o vejo apoquentado, metido consigo; come e vai-se com  Deus; hoje não gostou do jantar; passa as noites fora, recolhe-se altas horas; a  minha desgraça!

A velha pasmava.  


—  Pois olha,  fartou-se cedo,  o melro.  Então será  de má boca? Mas não  desconfias de nada? Não lhe deste tu motivo?

—  Que eu saiba não. Talvez se aborreça por eu não saber bem governar a casa. Sempre disse: nunca Deus me dará fortuna em coisa nenhuma!  

A Marcelina refletia. E dali a pouco:  

— Queres tu  experimentar  as cartas?  A ver o que dizem.  —  Carolina  estremeceu.  

—  Credo! Tenho medo. — E mais baixo: — Dizem que aparece o diabo!...  

Ficaram caladas. E depois.  

— A mim ninguém me  tira  da  cabeça  que o João anda  de olho  com  alguma gaja!

Puseram-se a falar no tempo. Marcelina ergueu-se para sair.  

— Se ele  te não  quiser,  filha,  não  morrerás de fome por  isso.  Graças  a  Deus, enquanto  houver  homens,  qualquer mulher se  governa.  Tive muito  disso, tive. Ai!. . Tomara-me nesse tempo!  

Desceu a escada. À porta observou, piscando maganamente o olho:  

— Não  fui das que gozei  menos,  não.  Que  até condes  beijaram  este  palminho de cara. Ai! Bom tempo! — E serviçal: — eu indagarei, eu indagarei  a coisa.  

A rapariga  não dormiu nessa  noite.  Ergueu-se  ainda lusco-fusco,  cabeça  pesada,  uma  fadiga enorme nos ombros.  Sentia  que a  sua  vida  oscilava na  notícia  que a  Marcelina  trouxesse,  como  num fulcro de aço uma  agulha  magnética. Ao meio-dia, de feito, a velha voltou, olho arregalado, agilidade de  alcoviteira no andar, rebolando-se, com as barbicas assanhadas.

— Sabes tu, sabes tu? Vai todas as noites ao Moinho de Vento palestrar  com uma sirigaita do primeiro andar, mesmo à esquina do pátio, por cima da  loja de louça. Está ali horas ao relento, a tomar gargarejos: só uma carga de  pau!

— Por isso ele vem tarde!...

— Vejam as habilidades do Santo Antoninho de quinta, hem? Aí está para  que ele se  empenhou tanto comigo,  para  chegar à  tua  fala;  vês  tu? —  Atafulhava  as ventas  de simonte.  Carolina  ficara  morta de surpresa, de  terrores, e desesperação.

— A minha desgraça! — repetia. — A minha desgraça!...  

— Quem me contou tudo foi a Matildes, uma que engoma para fora; eu  estava mesmo parvinha de todo, nem o queria crer, vê tu lá. A gente vê caras,  não vê corações:  é certo.  E para  mais  é  todo amigalhaço do irmão  da  dita  pessoa; andam sempre de súcia, grandes chalaças, sim senhor; franquezas de  tabaco;  para  onde  quer que vão,  vá  de vinhaça,  comes  e bebes,  com toda a  grandeza! Ai! hoje presentemente, minha rica, nem uma criatura sabe para o  que está guardada. Algum dia, em acontecendo uma destas, parece que até ia  tudo raso. Havia justiças, muita obediência; então com quem brincavam eles?

Hoje...   Eu até fiquei  sem vontade  de comer;  tarrenego!  e depois veio-me a dor. — Dava um estalo com a língua. — Mas deixa estar que to cantarei.  

Carolina nem ouvia.  

— E agora? —  disse  ela com  um  gemido,  atirando-se com  uma  grande  angústia sobre os colchões, miserável na sua deceção.

A Marcelina tentava fazê-la sentar, compondo um rosto compungido. E dizia a espaços:

—Ó  filha,  pelo amor  de Deus!  Isso não é agora  morte de homem. Há  muitos  modos  de governo.  Estávamos  servidas  se  fôssemos agora  a  morrer  por todos os malandros que se raspam, em nos apanhando.  

E, como achando o modo de tudo resolver, enquanto a outra chorava:  

— Olha, podes-te empregar na fábrica, dois tostões por dia: leva-se lanche.  — E muito baixo: — Para quem quer reinar, nada melhor. — Piscava o olho:  — Percebes, percebes? — E desenvolvia projetos, propunha expedientes.  

— Encontras logo arranjo; nas fábricas então é como passastes. Conheço  lá  muitas  que andam  ali  mais estimadas,  que eu sei;  elas bem vestidas,  bem  doiradas, arranjo de seu, ali o jantarinho de carne todos os dias...  

— Gente  sem vergonha!  —  comentou Carolina, com voz  cantada  pelo  pranto.

— Ora,  histórias,  filha, histórias!  —  E sentenciosa:  —  Que  nisto de  vergonha, cada qual toma da que gosta. Em se evitando falas do povo, deixa  andar. Dois dias que a gente anda por cá. . — E generalizando a doutrina que  pregara: — Se vamos assim, então não há ninguém de vergonha no mundo.  — Carolina abanava a cabeça. A velha, com ademanes de mestra, cuspia-lhe  no ânimo a sua piedade de estafermo.  

— Ainda estás muito verde, minha rica! — dizia.  

Caíram em silêncio.  Às vezes  soluços fundos estrangulavam a  garganta  da  rapariga?

— E eu que cri em tudo! — lamentava ela.  

— E não querer ver? Eu iria pôr a mão nos livros sagrados.  

Mão me salve, se julguei que sucederia isto. — E com voz cantada: — Vamos  nós agora ver o fio da meada. Como diabo sairá ele desta?  

— Como sairá? Casando com a outra. Vejam como. Lá tem o irmão que a  defenda. Só eu não tive quem me aconselhasse.— E desfazia-se num choro  íntimo, dizendo a sua infelicidade. — Morre quem faz falta, só Deus me não  chama pra si..

Havia  tempo que homens  altercavam na  rua,  entre sons de guitarra.  De  repente,  uma  voz  avinhada disse  um  fado  choroso,  em que se  despediam  almas e se  davam facadas,  em  verso.  Rameiras de grandes caudas de goma  riam com estrépito,  dizendo doçuras roucas,  de uma  vadiagem canalha.  Carolina gemera:  

— Ai vida, vida! Só aquelas nunca estão tristes!  

A velha tinha-se erguido, interessada na algazarra da rua, curiosa de espreitar a  pândega como um antigo comensal expulso. A voz dizia:  

Pobres donzelas honradas.  

Quanto de vós tenho dó!...

Carolina, de cabeça um pouco erguida, tinha ficado a escutar; toda a gente ria  quando ela chorava!..  Em que coração acharia interesse? — E via de pé a sua  desdita  envolta  em fumos  negros, olhá-la  cheia  de rancor  inquebrantável.  Queria  recordar-se da  sua  meninice,  como quem se  refugia,  mas  diante dela  desfilavam recordações lúgubres, surgiam grupos de mortos, filas de ciprestes,  um coveiro encanecido que erguia a enxada, cantando.  

Não tinha a menor ideia do que fosse ter mãe ou ter amigos. No seu contacto  com a gente, entrevira apenas o tenebroso fundo da bestialidade que referve  em cada  homem,  com um  fragor  de luxúria  cruel.  Vivera  sempre  em   si  própria, sem a reminiscência de uma carinho que alma piedosa lhe houvesse  prodigalizado.  Quantos  beijos  deixara  roubar aos moços do  cemitério  e  quantas palavras tinha merecido aos gatos-pingados, todas vinham ervadas da  mesma ideia e o mesmo intento. E assim crescera naquela incultura de espírito  sem guia,  sentindo dentro  avigorentar-se-lhe apenas uma  tendência  —  a  de  cadela  fértil,  que vai  entregar-se.  Através  da  sensação rudemente  nascida  olhara o mundo, esfaimada e torpe como se fora um verme descomunal das  sepulturas, incapaz, pelos desolados cenários que tinha contemplado nos seus  dias de criança,  de  dar acesso na  sua  alma  às multíplices  emoções e  suscetibilidades histéricas, que fazem da mulher o precioso recetor das coisas mais subtis que a língua não exprime e os olhos mal sabem formular.  

Tinha-se  dado ao  primeiro  que chegara,  e  sem receios  de  pudor.  Fora  a  Marcelina  a  causa  de  tudo.  Para  que lhe  viera  contar de padres babosos  e  varinas amancebadas?  

E detida,  cônscia  de um  desalento mortal,  sentia  na penumbra  os  olhos  de  Marcelina caídos sobre a sua cabeça com um brilho fatídico. Fora, riam com  estrépito no  meio de disputas sórdidas.  A velha  tomou-lhe  a  mão,  aproximaram-se ambas da janela.  

— Queres um conselho mesmo cá de dentro, queres?

— Que é? — fez a rapariga.  

A outra estendeu o braço na  direção das janelas de tabuinhas, e o-seu dedo  engelhado apontou as cabeças de altos penteados que destacavam com relevo  negro no tom vermelho dos quartos iluminados da casa caraira.

— Olha — disse ela. E com gesto de quem se impõe, de quem se mete por  uma pessoa dentro: — Lembra-te do que te digo hoje. — A sua voz insistia,  escolhendo os tons persuasivos, doces, sinceros, e ao mesmo tempo as suas  palavras discretas, ditas no fundo de um segredo, vinham com uma intenção  pérfida, cheia de depravação. Carolina ficou hirta perante aquelas insinuações,  olhando com os seus  olhos cheios  de febre a  cara  franzida,  esperta,  dessa  megera que dominara o seu destino impelindo-a na perdição e apontando-lhe  como um fim lógico, consequente e feliz. Grandes desvairamentos pulavam-lhe no crânio, exagerando-lhe os sons, tornando-lhe as figuras sarcásticas e as  sombras lúgubres. E  as fontes pulavam-lhe,  como  molas premidas  que reagem;  e o seu espírito  dilacerado de aflições saturava-se de alguma  coisa  estranha, como o indiferentismo ou a idiotice.  

Nessa  noite o João entrou a  desoras;  cambaleava de bêbedo,  cantarolando  todo cheio de terra, como quem tivesse caído pelas ruas, à porta das tabernas.  Ela  viu-o chegar sem  se  mostrar surpresa,  como quem esperava  mais.  Mas  disse, ao meter-se na cama, estas palavras sem nexo:  

— A fábrica...

E com um movimento impercetível de lábios:  

— O colégio...  

E ficou a pensar, imóvel, com os olhos fitos na luz.

Estas duas palavras representaram dali  em  diante  o seu destino, guiaram-na  por um caminho espinhoso que sonhara ridente, em horas de contemplação e  plenitude.

Ao João era  manifesto o tédio  daquela  vida e o mal-estar daquela  união.  Pouco a pouco, com transições insensíveis, as palavras dele adquiriam notas  ásperas, grandes frenesis inesperados, uma taciturnidade crescente, moedora e  constante. Ela experimentava pelo seu turno uma altivez ferida e rebelde de  mulher espezinhada e  esquecida por  outra;  em certos  dias estrangulava  de  raivas surdas,  em que  resfolegava,  a  espaços,  a  ânsia  de humilhar,  infamar,  perder alguém;  fazia  árias estrondosas  pela  casa  fora,  garganteando  pelintramente como no teatro; mas a noite vinha gradual; ficava logo invadida mortalmente de  uma  grande tristeza, de uma  inexplicável  passibilidade  indiferente ao estímulo,  dominada  de pressentimentos  e arquitetando  toda  trêmula  futuros famintos,  esfarrapados  e enfermos.  Não passava  uma  tarde  sem ver  a  Marcelina;  juntas parolavam durante horas, desenrolando  planos  misteriosos  e discutindo futuros.  A velha  revelava  pormenores  do ofício, as  subtilezas de que lançam  mãos certas mulheres,  o segredo  de provocar,  chamar,  sorrir, andar na  rua, mostrar as  riquezas  do busto,  conservar  a face rosada,  mesmo depois de uma  noite de orgia. Carolina  reagia  com  monossílabos apenas, a  esta  insinuação torpe;  mas abandonada  pelo João,  a  falar a verdade, que faria? Foi assim que ela determinou entrar na fábrica, em  Alcântara. O João não opôs resistência; via o meio de afastar aquela rapariga  importuna que o estorvava nos seus projetos, nos seus namoros. Ia todas as  manhãs muito cedo, com o seu passo miúdo e rápido, saracoteada e risonha,  com a  sua  manta  de  borlas,  uma  capa  de  escocês verde,  saia  de folhos,  o  lanche num cabazinho da  Ilha.  No  caminho  encontrava  as companheiras,  moças alegres e desembaraçadas,  cheias  de risos,  largando  chalaças de  mordacidade equívoca. E iam todas por ali fora. Os merceeiros dirigiam-lhes  afagos pérfidos, apupavam-nas os galegos sujos, os estudantes e os soldados.  Que pândega! Respondiam a tudo com grandes risadas bêbedas. Uma então, a  Jerónima, trigueira, a face picada de bexigas, até dava encontrões nos polícias,  piscando os olhos: e  todas  se divertiam a  valer.  À entrada  da  fábrica, os  operários davam-lhes abraços, com grande intimidade; tratavam-se todos por  tu, como uma algazarra incorrigível, até que o fiscal, de barba branca, o seu  casacão amarelo, um cachimbo preto de nogueira, abria as portas da oficina.  No corredor,  os  operários dividiam-se  em turmas;  uns iam para  o  empalamento dos cigarros; outros iam picar o tabaco; alguns cortavam rótulos  para as caixas de charutos. Se o burburinho crescia em torno das longas mesas  de trabalho, o fiscal erguia a voz:  

— Nada de algazarra!  Parece que estamos nalguma feira!  —  E todos  falavam baixo,  contando histórias pagãs de gente  sem  vergonha,  de uma  sordidez de viela. Sem grande esforço Carolina aceitou estes hábitos que se lhe  afiguravam de uma naturalidade legítima, tão sincera e tão cômoda. Afeiçoara-se à Jerônima, participando das suas opiniões, dos seus ditos, da sua fama. Ao  escurecer o fiscal dizia, dando uma grande palmada na mesa:  

— Seja  louvado Nosso  Senhor Jesus Cristo!  —  E todos largavam o  trabalho,  tomavam os seus chapéus,  os seus xales,  os seus capotes;  na  escuridão do corredor estalavam beijos,  pares canalhas escorregavam nas  escadas, havia gritos e a chusma em tumulto, numa desordem vadia, atulhava  rapidamente  o pátio,  combinando ceias,  encontros,  relações  impuras.  Foi a  vida melhor  que  Carolina  viveu. Aquela  grande liberdade  infiltrara-lhe  uma  alegria  espontânea,  uma grande destreza,  um  vigor  manifesto.  Ganhava  dinheiro, além disso; caída nas graças do fiscal, obtinha sempre uma féria bem  favorecida,  sua  gorjeta  para  alfinetes.  Teve  a  partir daqui,  pelo  menos,  uma  dúzia  de amantes,  amantes  de uma  semana, de um  dia,  preferidos à  noite,  esquecidos no dia  seguinte,  e concorrendo todos  para  a  sustentação  de um  luxo  que  pouco  a  pouco  se  ia manifestando em  Carolina. Um domingo  apareceu em casa da alcoviteira, toda penteada à moda, com um chapelinho de  fitas verdes,  um  casaco  bordado de  contas,  meia  de  riscas,  leque...  A velha discutia com duas raparigas o preço de um vestido de fazenda, que mostrava  com largos elogios.  

— É um ovo por um real, minha rica — dizia. — Um vestido como novo!  

— Mas seis mil réis é muito bom dinheiro, santinha!

— Pois olhem que da  peça  é o triplo do custo.  Agora  façam lá  o  que  quiserem. — E voltada para Carolina:

— Viva  o luxo! Viv'ò luxo! Vais observando que eu tinha razão  no que  dizia. — E com insistência: — Tendo tino não há coisa melhor, meu anjo. —  E baixo, tomando-a de parte: — E ele?  

Carolina encolheu os ombros desdenhosa, um ar de desprezo. A velha disse-lhe ao ouvido:  

— Quem paga a renda da casa?  

— Meu pai. Há dois meses que o não vejo, por tal sinal.  

— Pois filha,  se  o João não te serve para  nada,  que  se  ponha  ao  fresco, quanto antes. Primeiro teu governo.

— Sim, sim — disse ela pensativa.  

E, dirigida pela alcoviteira, começou a viver só.  

Desde esse dia,  as  aventuras vieram-lhe por centenas.  Conheceu todas as  espécies  de homens a  quem se  impingia  às horas,  por baixo  preço.  As  gengivas tinham-se-lhe descarnado,  pintava  os  beiços  com carmim e para  o  giro da noite cobria-se toda de pó-de-arroz. Forçava-a a profissão a peque-nos sacrifícios, no intento de agradar aos que a buscavam. Comprimia os pés em  sapatinhos altos, golpeados no peito para deixar ver a meia de cores.

Apertava a cintura e os flancos com espartilhos que a estrangulavam em duas  metades,  deixando-lhe o tórax  afunilado  e hirto,  o fígado opresso e  a  respiração entrecortada. À hora dos teatros, quando nas ruas da cidade baixa  fervilha inquieta a multidão dos que digerem, e giram buscando par os velhos  viciosos  e os  rapazes definhados,  ela  descia  do seu bairro obreiro mais  Jerónima, paramentadas ambas de arrebiques pelintras — à pingadeira, como  lhe  chamavam.  Tinham horror  à  polícia,  procuravam as sombras da  rua  chegadas uma à outra, e olhando quem ia com o riso postiço das rameiras de  profissão.  A espaços,  automaticamente quase,  segredavam aos  homens  amabilidades sórdidas desenrolando toda a gíria do oficio.  

E ao pararem para apertar as mãos dos cocheiros e dos trolhas circunvagavam  a vista de um modo inquieto a ver se — andava algum.

As noites assim passeadas até desoras fatigavam-nas de morte. De manhã nem  se podiam mexer, uma paralisia de músculos, as articulações endurecidas, um  travor na boca saburrosa, das más digestões desordenadas. Sucedia por vezes  amanhecer-lhes pelas escadas no outro extremo da cidade, ou nas hospedeiras  de má  nota  onde  vão anichar-se as últimas escoriações  da  torpeza.  Expulsavam-nas então com o nojo que nasce da saciedade, escada abaixo, sem  lhes pagarem muitas vezes.

Se retrucavam, era sempre a mesma ameaça que as ia fazer calar — a polícia e  o livrete. Aquelas duas palavras punham-lhes baques nas fontes, suores de rins  e um calafrio mortal pelo dorso.  

Na rua,  os dichotes  dos  vendilhões e dos  galegos  cuspiam-lhes  na  face  obscenidades de tremer.  Riam-se,  retrucando algumas vezes.  Mas a  humilhação  era  frisante e seguiam sempre  sob o  terror  da  chacota  ou  da  prisão. A indolência de Carolina era agora mais refinada que nunca, deixou de  ir à fábrica, passava os dias na enxerga da pocilga, dormitando.  

E  de uma  vez  teve fome,  sábado por sinal.  Contraíra  já  os últimos  vícios  suplementares da  devassidão,  fumava,  bebia,  e nas tavernas,  em estando  bêbeda,  punha-se  a  dizer com voz  rouca  fados ignóbeis,  no meio  dos  cocheiros excitados e ao som dorido da guitarra.

Os velhos apeteciam-na de preferência, pelo seu ar moço e pelos seus cabelos  ruivos.  Havia um  coronel reformado  que  lhe  dava  dinheiro  para  sapatos  catitas. Era um velho gordo, de óculos, todo grave na sua sobrecasaca preta.  Gostava  delas  bem  calçadinhas,  meia  esticada,  e começava  sempre pelo pé,  acariciando-o de diminutivos ternos.

Era o seu melhor amigo, aquele senhor tolerante, e de uma vez desaparecera.  Vieram os maus dias então, a polícia vigiava as casas de má nota, e prendera a  Jerônima uma noite...

Carolina lembrou-se de voltar à fábrica. Sentia-se doente, fatigada daquela vida  de acaso que lhe  não  tinha  dado senão fomes,  maus tratos  e terrores.  Mas  encontrou já ocupado o lugar que deixara na oficina. Quando descia ao pátio,  deu com o fiscal, que se pôs a olhar para ela muito tempo. E dali a nada lhe  disse, voltando a cabeça:

— Como você anda já...  

Aquela  comiseração afligiu-a  cruelmente,  e  chorou todo o dia, mirando no  espelho a cara chupada e amarela, onde entre círculos roxos luziam dois olhos  febris.  Dias depois,  a  polícia,  que a  espreitava,  conseguiu surpreendê-la  em  flagrante,  é dali a  nada  era  inscrita  no livro  de cinco  mil  nomes,  uma  das  glórias, já hoje, desta florescente cidade que passa os seus dias enchendo de  moeda  falsa  os Brasis,  e servindo óleo  de  bacalhau ao melhor de cem mil  tuberculosos.  

Datam daqui todos os episódios da existência que teve o seu epílogo há três  dias, numa  das camas da  enfermeira  de Santa  Ana,  no Desterro.  Foi o tio  Farrusco  quem cobriu de terra,  sem comoção nem saudade,  o corpo,  espedaçado pelo seu escalpelo,  da  rapariga  corroída de podridões  sinistras,  abandonada do berço ao túmulo, e pasto unicamente de desejos infames e de  desvairamentos vis. Tenho sobre a minha banca neste momento a sua caveira  fria,   limpa  de películas e cartilagens,  branca  e escarninha, cujas maxilas  escancaram diante de  mim, numa  careta  trágica,  a  sua  concavidade cheia  de  sombra.  Este despojo inerte,  rendilhado  e esponjoso pelos  estragos  do  hidrargírio,  embalde interroga  a  meditação  que me  abisma,  sobre as causas  prováveis da grande desmoralização atual.


1878.  


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Fialho de Almeida - Contos (1881)

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