A RUIVA
A taberna do Pescada ficava mesmo em frente ao Cemitério
dos Prazeres, e era frequentada pela
gente do sítio, especialmente de noite, à hora em que os cabouqueiros e os britadores abandonam
os seus trabalhos e
entram na cidade, em ruído.
Tratava-se então de levantar um muro de cantaria que
fosse como a fachada opulenta da gélida cidade de cadáveres; na
planura que medeia entre o cemitério e as terras, o terreno
via-se revolto; os carros de mão jaziam esquecidos; os
montes de pedras miúdas e de
argamassas antigas tornavam penoso o trânsito. Na lama constante do caminho,
eram profundos os sulcos que as seges de
enterro deixavam até à
porta do cemitério,
escancarada sempre, como a goela de um plesiossauro faminto.
Em anoitecendo, tudo aquilo era de uma contemplação
lúgubre e misteriosa, em que se adivinhava o trabalho de milhões de larvas; o
ladrar dos cães tinha um eco desolado, que tornava depois mais sinistro o
silêncio; a porta fechava-se sem rumor, girando em gonzos discretos, e uma luz
esmaecia na treva, no fundo dos ciprestes
e dos túmulos, diante
de um santuário deserto,
onde o Cristo, do alto, olhava
vagamente o guarda-vento.
Começavam então a
chegar à tasca os
guardas encanecidos no mester de receber enterros, graves nos seus
uniformes fatídicos, os coveiros angulosos e vesgos lançando-se de si um fétido
deletério; e cada um, dando boas-noites à tia Laureana, ia sentar-se à banca,
no seu lugar, chupando pontas de cigarro e pedindo decilitros. Todas as noites
a casa se enchia e o aspeto era sempre o mesmo.
Ao fundo,
encostada ao balcão forrado de
zinco, a
tia Laureana, mulher
de grandes seios e arrecadas, que tinha a especialidade dos pastéis de
bacalhau, e pernas másculas saindo de grosseiras saias de
baetilha; ao canto o cego de chapeirão derrubado, atitude fria,
faminta, dolorida e apagada,
a rebeca nos joelhos, a manta de riscas ao ombro, a
eterna noite nas feições. O grupo dos trolhas,
junto da porta,
discutia o preço das couves e o
número de ventres perfurados com facas de ponta, durante
a semana. Zé
Claudino tinha a palavra; a sua
autoridade indiscutível de orador
popular fazia-lhe cair dos lábios,
como um rosário de sons, as
palavras graves, indecorosas,
chulas e poéticas, em misto turbulento e inteligente.
Bêbedos extraordinários falam de tudo e descrevem
parábolas no solo, com a sombra dos seus corpos embrutecidos. Dois ou três
embirram com a sombra.
— Mete-te comigo — resmungam; — cai nessa,
minha tirana!
— A velhaca
— comentam — tem agora a mania de
ir adiante de mim.
Esta manhã era atrás. Mas não me larga! Bêbeda!
— Era o que me faltava! Súcia de marmanjos!
E, insistentes, aos ziguezagues:
— Persegue-me, anda,
persegue-me, que levas dois butes.
— Lá isso — ouve-se outro
dizer na rua —, lá isso não digo eu... Que ele há um Deus que nos governa: é boa!
Eu entrava, cumprimentando os velhos conhecimentos.
— Ditosos olhos,
estudantinho! — dizia um.
— Ó seu casaca! — fazia
outro.
— Seja bem aparecido e
pague-me dois dedos de marujo.
Um velho fressureiro, com o olho esgazeado de sicário
experiente, tocando-me o braço com a sua mão ensanguentada, ia aconselhando
baixo:
— Prove-me do branco,
doutor; prove-me do branco; que é uma reinação!
Com um pastelinho, não lhe conto nada. .
Aqueles eram os meus amigos, perigosos amigos contraídos
na intimidade do vício e no surdo deboche das tascas.
Sentava-me A Laureana
vinha, sorrindo, servir-me;
e o seu olho pardo, sequioso, acariciava a brancura do meu
pescoço, apetecia os meus cabelos de um
louro-claro, tons insípidos,
sob as abas do chapéu esburacado.
O seu hálito empestava a dez
passos, trazido nas asas do seu amor quente e brutal, de uma infâmia cheia de
mercancia. Ouvindo-me pedir qualquer coisa, o olhar adoçava-se-lhe como o dessas gatas a quem coçamos
o crânio; e eu sentia exalar-se dela um
fartum de gorduras fundidas, que
me perturbava. Nessa noite chegou o tio Farrusco.
Era coveiro e o mais asqueroso — o da vala; aspeto
repelente, perfil áspero e cortante, descarnadas as faces, as mãos aduncas e
gastas, cheias de terra e de cabelos.
Sobre a
testa, de uma polegada
de largo, caíam grenhas
fermentadas; as orelhas desapareciam-lhe sob a
lã sebácea de um
barrete cinzento; por um rasgão
da camisa, furava uma moita de cabelos hirsutos, brancos como um pé de junco
seco, nascido entre as pedras
de um muro arruinado de azenha decrépita. Quase lhe
ficavam pelas esquinas a que se encostava os farrapos em que embrulhava o corpo
esquelético e lustroso, como de couro curtido.
Um cabouqueiro tostado, perfil adunco de coruja,
bateu-lhe no ombro:
— Tio Farrusco!
O outro tentou
aprumar a estatura lassa
na moleza da embriaguez,
e resmungou:
— Que é lá isso, patego? —
O seu olho envidraçado não podia fitar; os fios de baba desciam-lhe, lentos,
aos cantos da boca.
— Olá! — fez o cabouqueiro
— a maré encheu. — E sacudia-o.
— Mais bêbedo é você,
grande cavalgadura!
Tentava caminhar; a sua sombra oscilava, amplificada na
parede, como a de um antediluviano fenomenal, e quase se não compreendia bem
como aquela coisa era um homem. Arrastou-se custosamente para um canto; ao
passar por Zé Claudino tomou-lhe o copo, levou à boca o
vinho e esteve bebendo devagar. As gotas, de um roxo sujo, caíam-lhe pelas
barbas. O nó da garganta subia-lhe e descia com vagarosos movimentos de embalo
no cilindro de uma bomba. Pousou o copo com ruído, com a manga da jaqueta
limpou os beiços.
— E a filha?
— perguntaram-lhe. "—
A Ruiva. . O tempo
tem estado famoso para doentes.
Um sol quentinho que é um
forno. — Do fundo, alguém disse para Zé Claudino:
— A Ruiva ainda é viva?
E o trolha, curioso:
— Não era essa que deitava
sangue pela boca? Na tenda do Malaquias vi eu... foi pelo Santo Amaro, faz
agora anos...
Mas cada um procurava informar-se:
— Uma gaja de granha
encarnada, um sinalzinho de cabelos no pescoço...
O quê? Era filha daquilo? —
E apontava o coveiro.
— Bem sei — diziam; — que
peça! A que estava com o Nicolas das seges d'enterro.
Contem-me cá quem isso era. Bêbeda
como ratos! Ora esperem. Ela era também da súcia da
Panasqueira. Lembras-te, Zé Claudino?
— Bons tempos — fez o
interrogado do fundo da sua saudade dissoluta—,
aquela noite no palheiro
do Panelas. Vinte raparigas
dos casais, todas pimponas, vieram dormir à granja. Alta
noite — piscava o olho —, alta noite..
— Não ponhas
mais na carta.
Tosquei tudo! Que bailões! E
a Ruiva também era ..
— Uma mulher dos diabos!
Enfezadita dos nervos, mas coragem que tinha diabo. Quando ela se
deitou ao Nicolau, aquela
vez pelo Entrudo,
além ao Quintalinho! Prega-lhe
duas taponas, que nem eu sei como o não virou!
O coveiro olhava, sem compreender, um pasmo idiota na
face. Na penumbra da taberna, aquele asqueroso vulto tinha uma expressão
rembrandtesca e crua, que fazia medo. O deboche nunca se concentrara tanto,
podia-se jurar.
— Mas, tio Farrusco, a
Ruiva vai melhor, hem?
— Melhor, melhor. .
— gaguejou ele. — Esta manhã
via-a estar dormindo.. mais
branca! — Pagas cambrainha', ó tirano?
Uma pessoa, cos diabos, gosta de
molhar a palavra. Quero lá saber!..
Tentava
apoiar-se na banca,
com as duas mãos trêmulas. Ouviam-no cantarolar baixo,
babando-se:
Foi fazer uma caçada A serra de Montalvão!
I Aguardente.
E, com risadinhas pequenas e cruas, geladas, doidas, que
produziam como o grito do estanho, aconchegou-se ao canto, para dormir, com
círculos de cão vadio que se anicha.
Todos procuravam espicaçá-lo
com uma chufa. Blasfemava-se, em voz alta, uma
riqueza inultrapassável de obscenidades.
— A minha filha —
resmungou o tio Farrusco. — Querem saber da minha filha, da Ruiva.. Súcia de tarimbeiros!...
Foi fazer uma caçada A serra...
Ainda hoje o Nicolau, que atira à vala as reses que se
abatem no hospital', me disse que a trazia ali. É boa! Se eu bem vi o
saco.. e cosido que ele vinha. A Ruiva
em postas! — Ria-se. Caíra tudo num silêncio álgido.
Calou-se, e depois:
— Também eu hei de morrer.
Quero lá saber nada daquela grande velhaca!
— Vamos — disse eu. — Há
uma coisa pior que um cão danado: é um coveiro bêbedo. — E saí.
Um dia antes, o meu escalpelo penetrara o corpo dessa
perdida criatura, que veio a fornecer subsídios notáveis à minha tese
inaugural.
Inquiri pormenores.
Disseram-me que o tio Farrusco fora
casado com uma vendedeira, a Marta, muito conhecida por Buenos Aires.
Soube-se depois que as hortaliças que esta mulher vendia eram pelo marido
plantadas no cemitério, para lá da vala e longe das vistas dos indiscretos,
hortaliças que com o tempo e o belo tempero da terra adquiriam grande
desenvolvimento.
Se lhas gabavam, Marta retorquia:
— Ai! bom dinheiro custam,
freguesa. Vêm todas as manhãs de Odivelas, uma estopada que eu sei!..
E explicava que um cunhado, da quinta do senhor marquês
de Borba, tinha seu vintém e um bocadinho de terra.
É no Alto de S. João que se sepultam os cadáveres do
hospital; para o nosso caso, porém, isso
não importa onde se faziam os belos nabos e aquelas lombardas folhudas. Caro,
tudo pelas últimas, dizia pondo a sogra, os cordões a luzir no peito.
Carolina nasceu
no dia
da morte da mãe.
Até ali, o coveiro
vivera sem misérias, mas,
morta a mulher,
descobriu-se donde vinham as couves e ninguém mais lhas comprou. Não se sabe como
a pequena se criara, mas aos doze anos
era bonita, franzininha, o nariz
arrebitado, descalça e cheia
de remendos.
E, sem consciência do que via, acompanhava
o pai na
sinistra ocupação de sepultar
os mortos. Assim crescera. Naquela
miseranda existência entrara
a criar predileções. Começou a amar principalmente os mortos que paravam
à porta do cemitério em ricas berlindas douradas, entre filas de gatos-pingados
lúgubres, de tochas acesas, e puxadas por seis parelhas cobertas de crepes.
Visitava-os na
casa das observações, acocorada
a um canto,
com o olhar absorto, durante as
vinte e quatro horas que os caixões ali passavam abertos, e onde
contemplava, deitados na pétrea
imobilidade derradeira, os que na
sua vaidade egoísta, corruptos
e miasmáticos, iam habitar em
sepulcros de mármore,
com figuras sentimentais na
fachada e pomposas inscrições nas
lápides. Pode dizer-se que aprendeu a
ler no cemitério, quando curiosa na sua pobreza
esfrangalhada queria saber os nomes e posições ocupadas no mundo pelos que habitavam aquela branca
cidade de mármores, de que se
julgava rainha.
Uma tarde, passeando na
grande rua que corre ao longo da
fachada do cemitério,
tinha parado a contemplar, no alto
de um pedestal glorioso,
a estátua do conde das Antas. E falava ' ainda, nos seus últimos dias,
daquela enérgica figura de soldado, grande barba sobre o peito e cabeça de um
vigor leonino, a mão
apertando o punho da espada... e,
desde então, a sua
ânsia pedia-lhe militares, que arrastam nas ruas os sabres prateados e
destacam, na agitação dos enterros, dentre os graves toilettes negros
com a alegria embriagadora dos seus vivos rutilantes e das
suas divisas sanguíneas, cor dos desejos insaciáveis.
Nos seus devaneios passavam
pálidas figuras de alferes, dos que
tilintam esporas no lajedo dos passeios e retorcem bigodes frisados, contemplando as janelas, em domingos de
procissão. Todos os dias visitava a casa das observações: ali,
sobre bancas, expunham-se
caixões abertos; ela mesma metia nas
mãos dos mortos as argolas
de alarme, e tal emprego quotidiano permitia-lhe ver gentes de todas as castas e
profissões. Meninas ricas, filhas de
milionários e nascidas entre veludos, áureas
meninices em berços de renda, acalentadas por amas normandas de cachos louros,
iam ali dormindo nos seus caixões
de cetim, vítimas de tísica galopante, olhos vítreos e face cavada, lábios brancos em listras
lívidas e o gelado sorriso dos mártires, clareando em reflexos os rostos, de uma
rigidez de escultura.
Rapazes pobres, dos que ao clarão das forjas crestaram a
vida, figuras secas de famintos, torciam nos rostos expressões de sofrer infernal e
gelavam-se na nudez miseranda da morte, ao lado de
reverendos, com a barba bem feita, a batina
nova e grave, quebrada em pregas simétricas, finas camisas de bretanha, tiras de folhos e sapatos de fivela, cingindo,
à força de apertadas com uma fita contra o peito,
cruzes de marfim bento,
símbolo de uma fé que
nunca os caracterizou na vida.
E os grandes devassos, os magros adúlteros que nos foyers das óperas e nos camarins das cantoras, nas casas de batota e
nas alcovas fáceis fazem pública a sua
dissolução e desonra, vinham também, diante da pequena, exibir a última elegância.
Carolina, pelo
número e aspeto dos convidados de um
enterro, chegara à perfeição
de fixar a posição social de qualquer defunto.
Os conselheiros reuniam graves figuras circunspectas de velhotes de luva preta e
grandes pés, folgados em botas
macias. Os condes faziam-se acompanhar
dos coches da
casa real, riqueza
oxidada e rota, em que
se sentiam os anos, os ratos e o
óleo dos cabelos reais.
Os escritores
arrastavam figuras chupadas, de
luneta, vastas cabeleiras polvilhadas
de caspa, expetoração
de discursos com gestos amplos
e eloquência estrondosa.
Conhecia o bombeiro, o polícia,
o correio e juiz de irmandade. E
odiava quem vinha só para entrar na cova, os que embarcavam para o
outro mundo sem deixar, na
gare, alguns amigos da infância, ou herdeiros de guardar conveniências. Ouvia
nesses momentos dizer ao pai:
— Súcia de vadios! — quando
tinha de abrir cova sem receber gorjeta.
E aprendera a dizer com ele esta frase profunda:
— Até morrem pelo amor de
Deus; cambada!
Havendo enterro grande,
punha uma garihaldi vermelha, azeite
nos cabelos ruivos, sapatos de
duraque preto, sem tacões e chatos como linguados. Toda risonha,
ajoelhava na passagem do
préstito, movendo os
lábios como quem reza.
Depois, na volta:
— Uma esmolinha por aquela
alma de Deus!
E comprava pevides, amendoim torrado e alféloa, à tia
Palma, uma de capote verde, sem um
olho, que vinha vender à
porta, num tabuleiro velho, secas gulodices
de arraial. O que a abalava era aquela vida na casa das observações.
Olhava já sem terror os cadáveres, como se fossem pessoas
adormecidas no mesmo quarto, cada qual na sua maca de estalagem. Os homens,
sobretudo.
Alguns eram ainda novos, louros, pálidos e bem-feitos;
alguns, ricos, tinham a pele fina, de um contacto cetinoso e bom.
Nas horas de calor,
de Verão, quando sob os ciprestes os empregados do cemitério dormiam, ia devagarinho, sem ser
pressentida, à casa dos depósitos, escolhia os cadáveres dos moços, dos belos,
se os havia, e como um pequeno vampiro sequioso entreabria as mortalhas,
despregando com uma navalhinha as
camisas; metia a
mão devagarinho pelo peito,
metia, escorregando-a ao longo das carnes, beliscando-as levemente,
com prazer; o olhar dilatava-se-lhe, havia
na sua face uma
mancha de excitação, mordia
os lábios, exaltada;
e, palpando, estudando,
compreendendo e adivinhando,
ficava absorta, um pouco curvada
sobre os corpos, o hálito ardente, uma palpitação larga e cheia de ímpeto. A
sua imaginação rasgava as
névoas indecisas que, diante da inteligente maldade, a sua inexperiência
despregava como uma máscara casta e límpida
cheia de placidez. Estas explorações fizeram-na muito cedo mulher, preparando-a a
compreender mistérios e umas meias frases
que ouvia aos gatos-pingados, se passavam por ela. Às
vezes, eram rapazes de quinze a vinte anos que jaziam.
Carolina em os vendo exaltava-se, todos os nervos se lhe
distendiam na ânsia de um desejo que jamais formulara.
Duma vez tinha beijado sôfrega uma cara, com balbuciações
aflitas, ardendo em pecado, como uma alma de réprobo.
Não conhecera mãe, nunca uma boa mulher a beijara e o
coveiro não reprimia diante da filha as suas expansões brutais. Entregue a si
própria, chamuscada por carícias pérfidas de homens entregues à rota corrente
da sua bestialidade, fizera-se
nisto. Havia no entanto dentro dela, ainda,
uma coisa ideal
e inexplicável, certa virgindade infantil: de
noite rezava! Vinham-lhe
tristezas íntimas, a insônia
triturava-lhe por vezes a saúde
como num almofariz de bronze. Sem
saber porquê, era desgraçada. Desejaria ser como uma pequena que vira um
dia costurando à porta
de uma carvoaria, com uma rosa nas tranças. Mas,
de súbito, alguma coisa
a arremessava à
lembrança condenada dos homens adormecidos na casa
das observações, e via-os surgir
das suas mortalhas alinhavadas, sorrindo, com vida; estendiam os braços a
procurá-la; roídos de vermes, muitos vinham, como na dança do Roberto,
roçar-lhe pelos quadris os membros esquálidos e podres.
E estonteada, fitando
no vácuo aquela visão candente, miserável
nos seus quinze anos,
sentava-se, extenuada e languescida, à
sombra dos ciprestes anosos e dos túmulos soberbos, com
a cabeça aos baques, revolta a alma por criminosas comoções. Era já noite,
muitas vezes, quando ia só para casa, fora do cemitério. O pai
ficava embrulhado num cobertor com
um gorro
de lã preta, por cujos rasgões
lhe furavam os cabelos; deitava-se no
côncavo de algum
velho túmulo vazio; se caía geada,
erguia a tampa
de um jazigo de família para ir estender-se nas
gavetas, entre caixões de chumbo.
Já estava acostumado àquela folia, e depois, assim, não
dormia as manhãs na cama, e podia começar cedo o trabalho, regando
logo de madrugada os
canteiros dos túmulos
das famílias que lhe pagavam esse trabalho, varrendo dos pedestais as folhas secas que o
vento despregava dos ramos, e alta noite, com passadas lentas e lúgubres,
nas trágicas encruzilhadas dos
ciprestes, reanimando ou acendendo,
com o rolo metido nos dedos, as
lâmpadas extintas pelas lufadas do nordeste.
Nem uma vez se lembrou de Carolina que ficava de noite,
na cidade, separada dele, a sua
filha, entregue à leviandade dos seus quinze e aos furores de coração de um
aprendiz de marceneiro que a perseguia, preso de maus instintos. Carolina
era branca, delicada e nervosa;
o seu sangue tinha originalidades singulares, inquietações de luta e o
furor da aventura, e do seu seio dimanava essa ânsia ardente de que se fazem os
gozos, ansiava como uma sede antiga.
Dormiam numa casita
arruinada e miseranda, oculta
no fundo de um
pátio sem luz de lampião,
para onde abriam as janelas de
tabuinhas de casas suspeitas, em que marinheiros tocavam guitarra.
A história das
suas exaltações enraizava também, como uma
hera, naquelas más
janelas, pelas noites escuras
de Verão, quando, encostada ao peitoril da janela, escutava
altercações, descantes e
venalidades, na confidência
de carroceiros.
Nestas disputas Carolina entrevia uma coisa, que se
apoderava rapidamente do seu
organismo, enroscando-se-lhe no
corpo como serpente com frio, amarrotando e poluindo no amplexo alguma,
ainda que pouca, dessa adorável modéstia
que é o tesouro das mulheres honestas.
Viam-na de manhã, quando saía,
dar bons-dias à vizinhança e
sorrir às pecadoras mendigas, que nas
tabernas jantavam gravanzos por qualquer pataco, ter com elas palestras.
Desassombradamente olhava para os homens, tinha desdéns para uma ordem de gente
e criara predileções pelos louros; nos seus trapos escolhia
sempre cores que dessem na
vista; e, calculista,
com o olho febril, arquitetava aventuras: seria de noite, uma chuva
miúda peneirar-se-ia do alto, sobre as calçadas; fugiria embrulhada no xalito
com um louro...
Hem?
Da janela da sua mansarda, empinada sobre um banco de
pinho, podia ver o que se passava na alcova de um pobre bordel carairo. Apagava
a luz para não ser vista, subia ao banco,
encostada à janela;
e ali, durante horas,
passava a espreitar o que
fazia a
vizinhança. Cenas equívocas desenrolavam-se por lá.
Era tão curioso! A nudez impura dos contactos fazia-lhe
regurgitar de dentro uma seiva cuja
plenitude a estonteava. Era a febre do sangue inficionado pelos microzimas do
vício e o desejo de cadela nubente que uma força espicaça de irritantes curiosidades e terrores deliciosos.
Aquilo vinha-lhe às ondas, como a babuge
das praias contra fraguedos solitários.
Coroas de padres esverdeados mostravam-se à luz de
candeeiros de petróleo; no espelhinho dos toucadores das cômodas refletiam-se grupos
sombrios, estranhas fantasias das encarnações de Vixnu. E alguém,
dedilhando guitarras, entoava com voz rouca
fados rasteiros do conde de Vimioso e
da Severa, entre exalações de aguardente. E tiniam
garrafas, sentia-se o
cheiro das sardinhas assadas.
Toasts desbragados expluíam claramente.
As vozes das mulheres guinchavam. Alguém rolava pelo
sobrado e rimas de pratos caíam, com
estrondo, em migalhas, no
meio de pragas de raios de uma
vez, tresloucada, descera à rua. Domingos de Inverno. A noite lôbrega
alonga-se.
Alguém gritava — «Jornal da Noite», traz; a lista de
Espanha!
O frio penetrava as carnes. Carolina tremia, lábios
secos, uma aflição enorme subindo-lhe do estômago.
Não sabia para onde
ir. Quereria as
coisas mais violentas, amplexos
de ferro, beijos de lava, o vasto oceano de um amor sem fim e sem felicidade.
Mas o aprendiz de marceneiro, um
rapaz atlético e sanguíneo, apetites excêntricos, saía da oficina, dava com ela,
aproximava-se com uma piada...
Carolina recuava, humilhada e cheia de vergonha. E, sem
uma palavra deitava a correr para a mansarda, subia a escada sem parar,
fechava-se por dentro, e atirando-se
para cima do leito desatava a soluçar sem remédio a desconsolação daquela vida, que flutuava sem linha de
conduta.
O candeeiro apagava-se no alongamento da noite. Das
torres da Estrela uma badalada caía
sobre a cidade adormecida, a vibração enorme alongava-se num círculo
infinito...
E, no silêncio da
mansarda, Carolina abria os
olhos com um terror em que dançavam fantasmas sardônicos com a cara do
aprendiz.
Era a tarde da nossa Senhora dos Prazeres. O tempo
serenara, o céu não tinha nuvens e no azul espiritualizado os voos
brancos dos pombos
davam uma inocência casta ao ambiente. Havia arraial
nessa tarde. A procissão, saída da igreja de Santos,
por entre farrapos de
bandeiras e verdores de buxo, devia entrar
na capela do cemitério, à noitinha,
no meio de foguetes e aromas do peixe frito, cuidadosamente consumido pela
fome do povoléu curioso.
Na esplanada que vai terminar à porta dos Prazeres, as
pequenas barracas de lona enchiam-se
de grupos; filhas de saias engomadas, olheiras fundas, com fadistas de calças esticadas sobre alpargatas de
linho. As mulheres gordas, lenço
vermelho, os grossos
braços nus, refogavam mexilhão, vermelhas de calor; em torno os soldados passavam, de
chibata, rostos vulgares e bestiais, dilatados
em risos
enormes; e, abanando-se, diziam
brutezas às pequenas ovarinas
sujas. Na confusão dos grupos os garotos sujos, vivamente alegres, corriam relanceando olhares famintos sobre os
bolos secos das vendedeiras ambulantes, e de passagem
pediam cinco réis. Aqui e
além viam-se sobre a relva,
petiscando, famílias de
operários, pequenas louras e
limpas, tipos de costureiras
futuras, traços finos, cismadores e delicados.
Os vadios esqueléticos, de
calções em frangalhos, apregoavam
água.
No ar os ruídos multíplices abafavam-se uns aos outros, e das
contínuas pulsações resultantes elevava-se um
ruído uniforme e indistinto, como de
ebulição longínqua. Os municipais
da patrulha iam atravessando devagar, nos seus cavalos negros, e os capacetes
esguios, de cuja crista jorrava a branca cabeleira dos penachos de linho, salpicavam de originalidade e paisagem.
Eram um enlevo.
As criadas olhavam-nos suspirando. O ruído crescia. O sol mergulhava com
uma pompa escarlate no silêncio do rio, e o poente inflamado era de uma
amplidão sem balizas. Dentro do
cemitério o mesmo movimento de quem
ia e vinha.
Pessoas fornidas de
carnes, esposas espessas de
oleiros, capelistas de chapelinho, laços escandalosos
e sombrinha, liam, soletrando, as
inscrições tumulares. Admirava-se
o mármore, as fachadas. Os pequenos,
vagarosos, colhiam alfazema e sardinheiras. Alguns olhavam através das
rótulas, o interior dos jazigos, a ver quem tinha
berloques de contas e figuras bordadas de
lã em molduras ricas. Alguns ferreiros de mãos calosas descansavam na borda
dos pedestais, tasquinhando as suas merendas;
muitos bebiam pelas garrafas,
fazendo saúde aos compadres. E todo o mundo ria a sua pândega, a fazer arraial com grossas bobages cruas de
taberna e de oficina. As mulheres, de
vestidos de merino, com folhos, mantas de lã com borlas caídas atrás, xale bem dobrado no
braço, olhavam pasmadas. Os fragmentos
das palestras, apanhados de passagem,
eram os mais originais e contrastantes. Veteranos procuravam o túmulo do conde das Antas.
Explicavam os emblemas, a atitude fera
da estátua.
— Portugal velho! — comentavam.
— Ele e o Saldanha!...
E familiares, um clarão purpúreo na face:
— O nosso velho! — diziam.
— No dezanove de Maio. .
E outros queriam ver o túmulo do Palmela. Uma velha de
Aveiro ouvira dizer na terra que era
obra famosa. Alguém explicava as riquezas do duque, as suas quintas, dois contos diários de rendimento; a
duquesa era bonita, e um pouco gorda;
ele tinha sido da Marinha. De resto, boas pessoas e fidalgos da gema; pela Semana Santa pediam na Sé para os pobres
e sustentavam asilos. E iam semeando o
chão de espinhas de peixe,
de cascas de laranja, e os
ares de rumores de palestra. Mas estrondeavam foguetes. Uma
filarmónica sentia-se ao longe. Corriam. Era a procissão. À frente
um marceneiro espadaúdo trazia o pendão,
pomposo na sua capa de seda vermelha. Virgens de branco, rosas na
cabeça, tipos de gaiatos
disfarçados em saias, vinham gravemente,
acertando o passo. E sobre as cabeças um
andor de pau dourado e pequeno trazia a
imagem, cheia de
flores de papel. Carolina com a
garibaldi melhor, uma rede
de contas nos cabelos ruivos, fora
também à festa. O
coveiro embebedava-se em casa do
Pescada, com a barba feita, o seu carão anguloso e miserável, inerte sob as
abas de um chapéu de Braga. Carolina vestira-se logo de manhã,
toda brunida, botas de duraque
sem tacões, brincos de vidro prateado, arzinho alegre, o
branco apetite da
sua carne anêmica,
feminil e ébil. E
fora ao cemitério espairecer um
bocado, com um farnel no
lenço, laranjas, duas queijadinhas da tia Palma.
A senhora
Marcelina, que fora ama do
padre Anselmo e agora arranjava criadas e consertava cadeiras, tinha prometido
a Carolina ir lá ter com ela mais a mulata, que saíra do hospital havia uma
semana e lhe estava devendo coisa de quatro moedas. A Marcelina morava no pátio
também, no primeiro andar, tinha arranjos de casa e barbicas pela cara, sua
meia dúzia de lenços, um rico cordão de ouro com medalha e uma Senhora das
Dores com olhos de vidro, mesmo viva, a
olhar para uma pessoa.
E falava-se: que
havia papéis, uma
panela de dinheiro no
quintal, ricos manteletes
nas cômodas, que tinham
pertencido à irmã do padre Anselmo. Marcelina
era uma pessoa baixa
e vagarosa, aspeto
redondo e roxo de
hemorroida, feridas na perna
emplastada, anéis pelos dedos e o vozeirão de um quartel-mestre saindo do capote d'alcoviteira. A sua
história apoiava o enredo principal no governo civil, no
hospital e na Rua das Atafonas. De resto encontrara o padre Anselmo capelão da
Guia e tomara-lhe amizade.
Boa pessoa, o padre Anselmo, amigo
do seu amigo, boas manhãs na
cama, de Inverno, beberricava-lhe
um quase-nada, ratão, pregando belas peças; manhã cedo, ela ainda na cama, e
vinha ele da missa, descobria-a zás, uma palmada. E morrera. Tudo quanto é bom
acaba. A gente fala, fala. . um dia chega. E dava suspiros.
Carolina conhecia-a. Mal
luzia o buraco,
já a senhora
Marcelina corria a vidraça e
vinha, de coifa branca, espanejar o peitoril. Tinha um sorriso agradável; um
dente trôpego, único e esquecido, esverdinhava-lhe na boca desmobilidada; as barbicas
hirsutas recordavam uma gata mansinha que
se corcova, elétrica,
sob as festas do dono. Era-lhe
demais a mais muito obrigada. .. De rastos que eu ande, dizia, de
rastos que eu ande, não lhe pago as
obrigações que lhe devo. Quando estivera doente, com tosse e muita febre, ninguém dizia que ela escapava,
a senhora Marcelina
vinha dar-lhe caldos
e fazer meia junto do seu leito
de proletária. Havia dois anos. Mas não se davam muito;
a Marcelina era
mais das outras em frente,
falava com elas de janela para
janela, grossos risos e pesadas graças. E ratona,
então, como nunca se vira.
O que sabia de
frades, e do poeta
Bocage!.. Era arrebentar de riso, senhores.
Além disso andava sempre ocupada na
vida, uma azáfama,
xale traçado e sapato d'ourelo, a massa dos seios papuda e molemente
batida por mais de meio século,
arrotos estrondosos.. Saíam de
casa dela pessoas lúgubres. de uma vez a polícia fora
ali. Enfim, falavam-se coisas, ela sabia de facadas, e Carolina ouvia dizer isto — arranja
pequenas a velhos. E no fundo da sua
alma branca e suscetível experimentara horror. Na tarde anterior a filha do coveiro recolhera com ares de dia, a
Marcelina estava à janela; falaram-se, como
estava, como não estava, o pai como ia e que ela ia vivendo com o seu padecimento
de entranha, amargos de
boca, uma canseira, uma canseira; mesmo mortinha de todo! Tinha posto bismas de
confortativo que era muito bom,
andava agora tomando poses
caras com a fortuna, mas o fastio
era grande, aflições por dentro.. O pior eram as noites, contava todas as
horas. E depois as pulgas. Ai!, dizia,
quem tem mazela, tudo lhe dá nela. Que é feito, que é feito?
Não havia olhos que a
lograssem. De resto amava as criaturas sérias como Carolina; nunca fora de tricas,
louvado Deus. E arrotava. Tinha almoçado
uma açordinha, com o seu ovo; tudo lhe fazia mal. — É caruncho, é caruncho, comentava. E convidara Carolina a
entrar, descansar um pouco, tinha rosas no quintal, uma franga preta que
já punha ovos, manto novo na Senhora das
Dores — minha rica mãe do céu!
Carolina
subiu, beijocaram-se, ricas
filhas para um
lado, abraço para
outro. Carolina sentia-se contente, uma quietação plena, chocada pela
sinceridade da outra. A senhora
Marcelina olhava para ela de face. E largou daí a nada este dito:
— Há de ser
um peixão! — E
piscava o olho pardo com ares de entendedora.
Andaram vendo o quintal; Marcelina fazia-lhe um ramilhete de rosas. Dali a nada veio a mulata, encostada às
paredes, uma cuia enorme de postiços e
fundas olheiras, olhos de carneiro mal morto, um cheiro a cigarro e a cânfora.
Mas foi-se logo encostar.
Com o tempo húmido, tinha dores do diabo nos ossos. Desejaria
morrer já — raio de vida!
Carolina dizia-lhe palavras comovidas; que aquilo não havia de ser nada,
em o tempo limpado já a coisa era outra,
que tivesse paciência, coitadinha que tivesse paciência. E a mulata arrastava-se,
com um sorriso em
que havia alta percentagem de amargura, aspeto
chato e esmagado, como saco vazio
de roupa velha. E o
seu crânio pequenino de estúpida, de grande bestiaga,
tinha a calva depressão idiota de uma cabaça
oca. Quando ficaram sós, a senhora
Marcelina, abaixando um pouco a voz, disse à filha do coveiro:
— Tenho uma coisita para
lhe dizer, seu interesse.
— Sim? — fez Carolina.
— Não é coisa nenhuma má,
não senhor. O seu ao seu dono!
— O que é então?
— Não se zanga, não?
— Por que havia de
zangar-me? Mas diga.
— Há aí um rapazola que dá
um cavacão pela menina. Um cavacão, cos diabos;
um cavacão!
Carolina teve um
sobressalto. O coeficiente
das suas orgulhosas alegrias traduziu-se num sorriso.
— Está a gozar — disse.
— Palavrinha, é coisa
séria. Ele falou-me nisso.
— Para quê? — disse ela,
trémula, penetrada.
— Ora! Namoricos; não sabe
como as coisas são? Rapaziadas. Todos nós temos disso. Enfim, falar não ofende.
Carolina
estava pálida, sentia-se
vagamente num deleite, curiosa e cheia de excitações.
A senhora Marcelina, de olhos no chão, mordia o lábio
inferior, como quem reflete.
— Com que então — disse
Marcelina, — gosta?
— Hi!...
E, passado um momento:
— Um rapaz com umas casas,
forte, loiraço e bom trabalhador. Hem? Sua sonsinha... Hem?
E, insinuando-se, velha toupeira:
— Tendo juízo, minha
riquinha, é uma mina. Nada de cair antes de tempo, percebes?
Carolina estava rubra, com palpitações doidas.
— E quem é? Como se chama?
— Isso queria você saber,
isso queria você saber!
— Não, sério, diga. — E,
mais resoluta: — Há de dizer!
— Aqui, em
frente do beco, há uma
loja de marceneiro. Sabe.
A do Ferreira, um de óculos.
— Ah! — fez Carolina. — Já
sei.
— Há um oficial, o João,
bonitote, muito claro. É esse.
— É esse então? Pois
senhores...
— Um belo moço! É vê-lo
além na loja, a camisa arregaçada; que braços, hem!
Carolina
adivinhava-o, sentindo-o na sua
imaginação com um vigor de pintura.
— E depois? — disse ela.
— E ele pediu-me que
arranjasse a coisa, que lhe falasse; tinha vergonha de vir ele mesmo... Ganha seis tostões, vive só;
bom rapaz no fundo.
— E o meu pai?
— Ora! Nem o adivinha. Vive sempre lá em
cascos de rolhas. Quer lá saber. . É vinho e deixa andar.
— Nem sei, nem sei...
— Isso, o resto arranja-se. Amanhã há
festa nos Prazeres,
percebes? Ele vai por ali. Tu
vais comigo. Entendam-se lá como quiserem. Gostas dele?
— Sei lá, sei lá! Não é
feio...
— Entendo. Amanhã vamos ao
arraial. O dia deve estar bonito.
— Olhe, vou de manhã. Lá a
espero de tarde.
— Vá feito. Valeu. Faço os
meus arranjos e vou depois.
— Adeusinho, adeusinho.
Desceu a escada. No portal gritou para cima:
— E obrigada por tudo,
obrigadinha por tudo.
Não dormiu toda a noite. Uma turbulência de ideias
desencontradas agitava-a. Havia dentro dela alguma coisa explosiva que
rebentava, que se dilatava com um volume maior que o do seu cérebro e do seu
coração.
Tinha projetos,
predileções, vaidades. Iria comer petisqueiras de truz na
frescura dos retiros,
sob parreiras verdes, enquanto,
na encosta, lavadeiras batem roupa. Teria vestidos azuis,
de merino, ricos lenços de seda com ramos, uma sombrinha e anéis, alguma coisa
como uma opulência.
A tia Palma não a reconheceria tão liró, feita uma rainha
de Nantes, com botas de biqueira. E
mirava-se no espelho, embevecida, desvanecimento pelintra, a admiração de si mesma. Surpreendia-se a
murmurar baixinho. — O meu João.
O meu João está na oficina. O jantar do meu João. Em o
meu João vindo. O meu João saiu. — E orgulhava-se: ter um homem, ter um
amigo...
Diriam dela as vizinhas — a que está com o João na
oficina, uma ruiva. — Via-se
aos domingos no passeio da
Estrela com ele, em roda
de coreto, fazendo volutas por
entre os soldados de Caçadores, vestido de merino azul, de folho, arregaçado
atrás, a saia
branca, um lenço nas mãos suadas
e gravatinha encarnada, de borlas. E
dali a um ano, quem sabe, broche de ouro, de moeda!
Os pequenos é que tinham de ser o diabo,
ranhosos, cheios de birras,
cuecas vestidas, cuecas amareladas, de rastos, fazendo galos nas testas. Deixá-los! Também as outras se aguentavam:
ora! Mas um loiro, um loiro; que bom!
Sempre tinha dito — Deus não me mate sem um loiro.
Às vezes, ao acordar,
na moleza lassa
do corpo tépido e aconchegado,
espreguiçava-se pensando:
— Ai! um loiro...
E lembrava as
primeiras linhas do pescoço do aprendiz,
linhas fortes e firmemente contornadas, tons
rosa no sanguíneo da
epiderme, pequeninas espirais de cabelinhos louros, de um macio
quente e provocante. E depois a sua imaginação,
no delírio, na incoerência,
prolongava nitidamente essas linhas,
harmonizando-as, moldando-as, curvas suaves e veludíneas, cheias de saúde, aqueles brancos braços hercúleos e sem
um pêlo, que lhe via na oficina, um peito amplo, cheio e poderoso, em que se
sentissem vagas ondulações viris de
seios, altas pernas nervosas, esculturais, direitas. E diante dela surgia aquele corpo
lutador, de atleta, grandes traços magistrais e simples, de um pureza
de academia. E penetrava-se da cor da pele, fresca e clara, sob que se sentiam correr ímpetos de sangue rico, jovem,
virginal, fremente. Tomá-lo-ia pelos
ombros, redondos como os de uma estátua, e erguida nos bicos dos pés, como era baixa, dar-lhe-ia pequenos beijos
furiosos na boca, sorvendo o seu hálito,
estrangulando-lhe os
arquejos, dominando-o e confundindo
a sua
na alma dele.
Seria assim eternamente, sem nunca se fatigar, e no
alongamento das noites de Inverno, como
grandes coroas que se rezam, deixariam
cair as horas no silêncio.
No turbilhão
dos seus devaneios
sucediam-se rápidas as cenas,
vibrantes como kolpodes que tumultuam
na fermentação. Quereria a vida das vizinhas, agitações
constantes da negociação dos
corpos, que transformam a vida
em sonho ou quimera. Via saias de goma arrastando, botinas vermelhas de
roseta e tacão alto, os
altos penteados característicos.
As caras angulosas com manchas vinolentas sorriam para ela, deitando
línguas negras de fora.
E sem explicar porquê,
como um ritmo original, ouvia
as pancadas de uma enxada na
terra do cemitério. Gelava-se. —
Era o pai que
estava abrindo sepulturas!
No fundo sentia-se infeliz e flutuante numa
grande incoerência. Agitada como estava,
o sono fugia-lhe, e as
ideias, desviando-se pouco
a pouco do primeiro intuito,
marchavam já, como raios que se refrangem, pelo vasto plaino das recordações. Pensava na vida
do cemitério, o amor medonho dos
cadáveres, em cuja gélida
intimidade vivera tanto, abrindo mortalhas e erguendo tampas de caixões. Na sua sinceridade
confessava-se horrível, cheia de
afinidades com a hiena. Nunca mais iria
exaltar-se perante homens sem vida. Que infâmia! Agora tinha o seu João,
carnes brancas, de semideus. Era feliz então,
sentindo na alma aquela
irisação de paz que a
perfumava toda como num banho voluptuoso. Ser amada por
aquele forte, apertada e vencida nos
seus braços esculturais, parecia-lhe uma ventura, um milagre, alguma coisa como
um sonho febril. Dar-se-ia plenamente e sem reservas, com uma abundância
louca de contactos, frenética
e possuída de um
alto desejo de o possuir. A sua vida condensava-se-lhe,
colorizada numa recordação deliciosa, sem
compreender no deleite a saciedade, a inanição, o desprezo de si mesma por fim.
No fundo do espelhinho estanhado, a sua figura iluminada pela vela de sebo
tinha uma curva nítida e delicada. Sorriu-se para mostrar os dentes,
pequeninos e miúdos, de gatazinha branca. E dilatou-se num vasto contentamento interior:
era bela, de uma
compleição tenuíssima e nervosa,
toda feita de anemias. Com a mão torceu de leve, sobre a cara, uns cabelinhos
ruivos, foi desabotoando, pouco
a pouco, o corpete..
O seio era branco, assim descoberto, estreito
e apetitoso como uma
miniatura, mas incapaz
de amamentar um filho. Todas as
linhas harmoniosas do busto, de fragilidade suave, pareciam
moldadas num espartilho e realizavam uma
elegância moderna, boa
para ensaiar figurinos nos
ateliers da Maria Cecília. Ia desabotoando:
uma saia caiu, outra e outra, e a camisa envolveu-a, como uma túnica
que se desaperta. Era magra
e branca. Na harmonia dos
quadris, na expansão geral das proeminências, exalava-se
a idealidade das organizações
virginais. Trivial e pequena como era, excitava assim mesmo. E ela mesmo se
devorava com o olhar, examinando, ensaiando atitudes, cheia
daquela forte figura do aprendiz
de marceneiro. Na tarde do dia seguinte deviam encontrar-se, à noitinha, quando
os pássaros se amam no mistério das ramarias; o que iria suceder? Sentiria a
sua respiração ardente, com um cheiro a decilitros de Torres, queimar-lhe
a face.
Falariam embevecidos e frementes,
cheios da mesma ideia
profana, olhando em torno,
receosos de quem passasse. Ele piscar-lhe-ia o olho maganamente;
entender-se-iam, e, como na membrana de um fonógrafo, na sua alma vinham arfar
todas as vibrações daquela loucura de prazer, em que palpitaria no dia
seguinte. Que farta estava daquela pobreza, comer açordas com alho, andar
feita chineleira, aí como
um diabo, com as saias todas rotas! Raio de vida! Ao
menos, em ele sendo o seu João, a coisa ia melhor. E depois...
uma pessoa não sabe para o que está
guardada neste mundo. A tia Marcelina conhecia uma que fora
peixeira, pé descalço por essas ruas, a
vender carapaus, um fedor
a peixum de seiscentos
diabos, e agora estava
uma opiniosa com um fidalgo,
num primeiro andar, ricas
cortinas de rendas nas janelas.
Podia bem ser que nem sempre estivesse com o João — que
ele era bom rapaz, coitado, mas diz que de sete em sete anos mudam as naturezas, salvo seja.
A variedade atraía-a. A
Marcelina tinha-lhe falado nos padres como
bons patrões, unhas muito
limpas, sua palma
benta pelo Domingo de
Ramos, cotos de cera
pelas Endoenças, bom
lugar na capela-mor, onde se
podia estar refestelada a ouvir a música do lausperene. E certos particulares, nos priores principalmente, um
respeito, belos lençóis de linho, almocinhos
que era um regalo, nunca recolhiam tarde, muito limpos
e pés lavados todos
os dias. Divagava
pelos braços dos desembargadores, dos soldados
e dos marujos ingleses. Conhecia uma da esquina, a Polónia, que até tinha inscrições; todos os seis meses ia
receber seu milho, que lhe pagava o governo,
ou que raio era.
Outra, a Libânia,
um diabo bexigoso,
tinha dinheiro a razão de juros, seu grilhão
com medalha, anel de luzeiro. E fulana e sicrana, que tinham do seu umas casitas, seu estanco, nunca tinham ido ao
Desterro, viviam à barba longa e andavam
gordas. Assim como assim,
era boa vida;
deixem lá falar. Para pessoa
pobre não havia outra. Que ser séria era bem. bom falado, mas o resto, tudo patacoada. Havia
tolos que davam vestidos, ricos xales
de caxemira, pagavam a
ceia, sua noite ao Price — os
babosos! Depois não se cansa
a gente. Quem tinha juízo, sempre
ia bem. Havia tal que era mesmo pelo beiço. E citava exemplos. A prostituição
desenhava-se-lhe como a solução natural no problema da vida de uma rapariga pobre, que
todas amam, umas mais, outras menos. E a
sua ardência aligeirava-lhe as dificuldades. Pão, pão; queijo, queijo — que
ela não era lá de meias-medidas. E
deixou cair a camisa. Entrou a lavar-se
com pequeninos
estremecimentos de frio; os
cabelos ruivos desnastravam-se-lhe
pelas espáduas, embaraçando-a;
chapinava na água com ruído, rápidos movimentos cheios de graça,
como frémitos de diapasão.
Ouviu chorar de repente,
na calada noturna,
um sino, de uma
tristeza de morte.
E depois houve ruído na rua, os candeeiros mostravam-se pelas janelas; um
grupo de tochas, sinistro e
lento, passou no meio
de pessoas descobertas. Era Nosso Pai, a alguém que
estava agonizado. Carolina viu.
E pôs-se a
recordar a vida do pai,
pelo cemitério àquela hora, gelado no silêncio noctâmbulo,
enquanto os mochos deixam cair notas
agudas, sinistramente escarninhas.
Ele estava talvez dormindo nos seus farrapos, no coração
de um velho túmulo profanado,
entre caixões esquecidos. Ou perseguido
pela insónia — talvez não tivesse ido ao Pescada — pensava nela porventura, na sua solicitude de pai, porque
também têm coração os coveiros, mercê de
Deus! E ela, sua filha, pensava em abandoná-lo, em fazer-se servir como uma isca de fígado aos cocheiros e aos
trabalhadores, com redução de preços!
Roçava então pela miséria do coveiro a sua piedade como uma asa de gaivota, e pensava: — Pobre velho!
Vinham-lhe subitâneas ternuras, vibrações de lágrimas íntimas, uma desconsolação
patética de tudo quanto a cercava. A ideia de morrer aparecia-lhe
difusamente, envolta numa fotosfera de sofrimentos. Lembravam-lhe irmãs de caridade, jovens e
pálidas, um rosário na cinta, o negror do hábito amortalhando corpos de virgens
maceradas. E longas penitências no mármore das clausuras,
entre açoutes de martírio,
ao rumor dos confiteor. Ia arrepender-se, pedir perdão...
Mas o corpo do aprendiz aparecia-lhe numa tentação
hilariante, branco, moço, potente e triunfador! Esmaecia, como um vago luar que
empalidece.
A Marcelina apareceu à tarde,
depois da procissão,
afogueada, cheia de esfalfamentos; que arrebentava se a não deixassem sentar um bocadinho,
e que ia muito
mal; a noite passada não tinha
podido pregar olho; tudo eram bonecages
diante dela, uma confusão, uma algazarra de meter medo. E estava ainda
com febre — dava o pulso —que vissem, que vissem.
.. Nunca fora esmorecida,
louvado Deus, lá isso não; que até pela febre-amarela. . ai! nem se queria lembrar. Águas passadas... Tinha ido ao
banco do hospital, explicado o que
sentia, e desconfiava
que aquilo era coisa
de um rapazote novo,
que parecia ainda estudante,
torcera a venta, e ela bem vira... ai! tomara já morrer; que andar uma criatura a penar por esse mundo
e depois marchar da mesma maneira.. ora!..
que lhe faltava! Antes ir de uma vez. E
que Deus lhe perdoasse, que Deus lhe
perdoasse!.. — Carolina sorria-se
compassiva e cheia de interesse, tinha
ternuras pelintras, roçava o seu rostinho branco pelo queixo barbado da inculcadeira, chamando-lhe Li-Li
com voz de criança amuada. Ia caindo
a tarde.
O sol mergulhava no mar, acharoando de tons metálicos e cúpricos as nuvens do ocidente, em gradações insensíveis, de uma
grande riqueza de pinturas. Por
entre túmulos, os ciprestes antigos erguiam-se como sentinelas imóveis, armadas
de capacetes pontiagudos. Fora,
as guitarras rumorejavam fadinhos
tristes, do Calcinhas e
do João Brandão; um trolha cantava rouquejando,' com voz expetorada:
Habitantes deste lugar Se m'alegra ó coração...
E vozes de garotos apregoavam — vai água ou não vai água!
— no meio do vasto rumor de quem saía.
— Sabes — segredou a
Marcelina ao ouvido da pequena — que ele vem ao anoitecer? Teve hoje de trabalhar na
oficina; sempre são seis tostões... Está mesmo
parvo, pelo beiço. Demais
uma criancinha — dezoito anos
ainda a fazer
pela Santa Maria!
Podes fazer dele gato-sapato. — E depois
de um silêncio:
— O que aquilo quer é roupa
branca, jantarinho às horas, festinhas e deixa andar.
Vocês não sabem do mundo;
ainda ontem largaram os cueiros.
O primeiro que nos regala é o único asseado e de quem toda a vida se
tem saudades. Que os mais — tudo
gajões que a pregam na menina-do-olho!...
E que visse, que estudasse a coisa: quando se tem na mão
o pássaro, é que se não deve
deixá-lo fugir. E rindo,
dilatada numa hilaridade de velhaca,
de rameira bêbeda, mãos
nos quadris, roncava, afetando
lubricidades: — Ai!. . Tivesse ela os seus vinte, e quem o lograva
era ela. Só aquelas carnes, em que se podia lamber mel. — E, sordidamente mordida de apetites,
agarrava-se a Carolina, fazia-lhe cócegas, dizendo-lhe muitas vezes:
— Ricas filhas, ricas
filhas!
E rolavam ambas pelos sepulcros rasos, rindo soltamente,
com um prazer de barregãs.
Dali a pouco
chegou o João. Trazia
a blusa de riscado vestida debaixo do jaquetão, e os cabelos crescidos e
encarniçados, cheios de aparas de casquinha. Era quase
imberbe ainda, branco e sanguíneo, de uma compleição hercúlea, em que se
adivinhava a seiva
fértil e jamais esbanjada dos
corpos encouraçados na própria
virilidade, e no trabalho absorvidos até à idade dos loucos amores de bordel. O seu tipo era de
criança e pressentia-se o fadista mais
tarde, amanhã mesmo.
— Ora graças — comentou a
Marcelina — graças que nos aparece! Uma coisa assim!
Fazer esperar esta menina! — e recriminava-o, enchia-o de censuras:
que para o futuro queríamos
homem mais aquele; que quem esperava desesperava;
era uma verdade! Mas nada
daquilo era morte de homem, louvado Deus! — E fazia as
apresentações. — Carolina, não to dizia eu?
Um rapagão capaz de arrombar o Castelo; e que lindo, mesmo de regalo! —
Mencionava pormenores, nunca
tinha tido uma doença, benza-o
Deus, nunca tomara
remédios de botica, nem sequer
uma purga. E que mãos de prata! Fazia cadeiras de polimento como o
primeiro; um armário, que acabara pelo S.
Pedro, tinha sido vendido
a um homem de fora
— tinha aquela
de francês, uma fala a modos
esquisita — por belos mel réis. E mais coisas ainda que se não diziam.
O João, inchado, meio confuso, sorria, dizendo com inflexões variadas — Homessa!
Homessa!. . E, aquecido,
trescalando a carrascão, a perna bem desenhada
na calça de boca de sino, cambada um pouco para dentro e afeita às escovinhas,
chapéu arremessado com um piparote para
a nuca, fitava Carolina, mordendo-a com os olhos e
resmungando:
— Deixe falar, deixe falar, que isto sabe-a toda.
A Marcelina declarou que estava com a telha, uma alegria
mesmo lá dentro, e dizia: — Viva
a borga! em estrépito.
E, tomando Carolina pela
cintura e agarrando o braço do aprendiz para
aproximá-los:
— E que canta você cá da
pequena, seu petiz? Olhe que nem mandada vir de encomenda.
E então esta carinha,
que parece de seda.. Maganão!
Bem sabia que a
não merecia, um chichisbeco daqueles!
ai! mas queria
ser generosa. E que tratasse de a
estimar, melhor que o pai a tinha estimado; que a queria ver uma senhorita toda de fitas a
voar e casibeques de pano fino, pelo Inverno;
conhecia casadinhos que era mesmo uma gracinha, mais unidinhos e mais guapos que era uma providência. E que
fossem assim toda a sua vida. — Ambos
eles sorriam, corados.
Nos seus
olhos húmidos, em cujas íris de inquietadas fibrilhas
havia um contrair de comoções refreadas, luzia a
cáustica lascívia do desejo incendido.
Carolina sentia um quebrantamento fundi-la toda; era do
calor, da fadiga da tarde, talvez
da contemplação do sítio. E
a sua
alma perdia-se em grandes esquecimentos;
alongava o olhar de encontro às vastidões do céu e da paisagem,
como se toda ela se expandisse naquela área sem termo, alada no vago de
uma impressão que até ali
não soubera formular. Viu-o preguiçosamente estendido na pedra
branca de um túmulo. Era numa das ruas afastadas. Naquela
posição de madraço, a vigorosa
expansão do seu corpo ressaltava
em linhas magníficas, de animal
contente e são, que descansa. Tinha-lhe caído o chapéu, e deitada para trás,
nas duas mãos sobrepostas, a cabeça
parecia-lhe esbatida no fulvo dos cabelos, que à luz poente faziam um desenho de juba. Via-se-lhe o tronco
oscilando, a camisa tufada por baixo do colete,
uma das pernas fletida sobre o coxa e a outra estiraçada, com bestial franqueza para diante. Carolina devorava-o:
era assim que ela sonhara o outro, nos
seus delírios histéricos de virgem reclamando direitos de mulher fecunda em noites
de entrecortada alucinação. E via-o deslocar-se aos círculos por diante dos olhos, sentindo um tremor de mãos e
frialdade mortal nas pontas dos dedos.
pelo seu lado, o João fitava-a com fúrias de novilho que desperta.
E, velhacamente, um riso nervoso nos cantos da boca,
piscava-lhe os olhos, desafiando.
A noite tombara das encostas, pelo céu, e uma sineta
batida pelo guarda do cemitério mandava
sair. Barras de nuvens tranquilas estendiam-se ao oriente, aspetos
esbatidos, de vaga
melancolia contemplativa. A lua,
de um branco baço flutuava
como uma boia de cristofle,
e tristes raios quiméricos mal podiam coar-se pelos galhos corpulentos dos
ciprestes antigos.
Via-se pouco pelas
ruas do cemitério; na
ventana da capela
um mocho narrava, sarcástico, em notas vibrantes,
legendários terrores; um vento passava vagaroso, como
vigia de arraial adormecido, varrendo o pó das brancas sepulturas glaciais. A Marcelina ergueu-se
para pôr o xale rico e ia andando.
Carolina ergueu-se
para segui-la. Mas João agarrou-a
pela cinta e, com voz alterada,
quase gutural, dizia-lhe, atraindo-a si, corpo a corpo:
— Olha lá, espera, olha lá.
Erguera um pouco o
busto, e com inabalável
teimosia puxava as saias da rapariga.
— Esteja quieto, podem ver.
Mau!
Ele porém não a escutava.
— Não te vais daqui, não te
hás de ir daqui — murmurava-lhe ao ouvido.
Todo o seu esforço era para apanhar-lhe a cara; tinha a
respiração sifilante, e um tumulto de
sangue turgescera-lhe as cordoveias do pescoço.
— E o beijo que me deves, o
beijo que me deves? Dá-mo!
Tinha-a agarrado pelas costas, metendo-lhe as mãos por
debaixo dos braços, e com uma força
cruel conservava-a apertada sobre o peito, enquanto
lhe premia !:Os seios crespos e
redondos, de mulher inviolada. Carolina tentava embalde arrancar-se ao amplexo. Conservava os
olhos cerrados, um bater de narinas,
a boca
escarlate como a ferida
de um fruto tórrido, palpitações. E dizia:
— Mau! Olhe que eu chamo,
olhe que eu grito!
E, num tom choroso:
— Ora isto, ora isto!
Ele não dizia palavra; apertava-a na cinta uivando com
fome, e beliscando-a na redondeza dos quadris e na curva marmórea das espáduas.
A sua exaltação crescia, e lutava
a seno, . com arrancos de besta na
quadra fatal do cio. E, erguendo de repente o braço, forçou-a
a voltar a cabeça para
trás, despenteando-a um pouco na
frente.
— Mau! — dizia ela. —
Rasgar não vale!
Olhava-o com os seus olhos velados, que tinham uma
condensação de amor voluptuoso, essa
expressão parada e lúbrica que nasce
dos espasmos profundos e
desolantes.
O João dobrou-a vigorosamente, como se quisera partir-lhe
os ossos.
— Cala-te, cala-te! —
dizia-lhe.
Os seus olhos
ressaltavam, havia um arrepio de fibrilhas nos ângulos das órbitas e sentia-se o estertor da sua
respiração estrangulada. Então, curvando-se
sobre ela, com os seus lábios
ardentes sorveu-lhe a
boca palpitante, e furioso tirou-lhe o lenço para
meter-lhe as mãos no seio. Ao
contacto das epidermes a descarga
dos fluidos deu um
frémito de corpos, e Carolina esticando os braços atirou-lhe as duas
mãos aos ombros, murmurando:
— Oh, matas-me...
E, como na corrente
múrmura de um
rio que vai fugindo,
entregou-se-lhe toda, sonhando com esses fiordes serenos e brancos das regiões
onde os êxtases, como
as noites, duram meses, sempre
iluminados por um
íris de aurora polar.
João agarrou na rapariga ao colo, como a uma criança, foi
pela rua adiante ao encontro da
Marcelina, que não estranhou se
houvesse demorado. O João dava-lhe
quatro pintos de comissão; era
para comprar aviamentos para
um vestido de fazenda, azuloio,
que tinha ganho quando fora do alferes Sarmento. Andava
precisada de botinas; as dos domingos, de polimento,
tinham uma fendazinha no joanete
e via-se a meia. Não podia ir a parte nenhuma que se não envergonhasse. Falara nisso
ao João, mas ele
enfadava-se. Já lhe tinha dado para umas camisas
e para a ajuda de uma
medalha, e certas miudezas, lenços
de seda, um casaco de pano, bordado a trancinha, que tinha comprado à Francisca adela, com jeito no olho, um pouco
gaga. E a sua tagarelice, mal apanhou
quem a escutasse, entrou a estafar a paciência alheia, de comentários nunca
levados ao fim, historietas
afogadas no prólogo e logo preferidas
a outras não menos interessantes.
— Ai, filhos, que se vai
fazendo noite, negro tudo como breu. — A mulata devia estar em cuidado já. E não comprara os
carapaus para o bichaninho, o Pimpão,
eram mais de sete horas! Não tinha sustância no estômago, mas havia sua
vontadinha de comer. Tivera fressura
para o jantar, umas ervilhazinhas com presunto
que as podiam comer os
anjos. Mas a fruta
cara; a hortaliça estava para
a gente rica.
E então as mulheres da venda pelas portas, uma pouca-vergonha!
Quarteirão de laranjas, dois tostões! Nunca se vira tal nesse mundo de Cristo. E com a guerra, dizia, é com
a guerra. E que andavam os papéis cheios
dessas coisas, mais de duas
mil pessoas mortas cada dia na Estranja, a
tiro. E que Deus nos livrasse,
que Deus nos livrasse,
cá de levantamentos. Quando fora pela revolta do
quatro, ainda os dois não eram nascidos,
tinham corrido rios de sangue, gente fugida por esses campos, até os santos
andaram numa alhada. O
nosso Senhor nos perdoe pelas suas cinco chagas! E persignava-se, dando beijos na unha
do polegar, com ruído. Saíram do
cemitério. Carolina não dizia nada, apertava o braço do aprendiz. A velha estava
mesmo a cair,
e queixava-se. Estavam-lhe lá por
dentro a
remoer, a remoer;
a modos que coisa
assim de bicha. Tinha tomado as pevides de abóbora
— nada de resultado! Ai, mas ia mesmo mortinha; e que fossem enxugar uma pinga com uma iscazinha sem
elas.. Já não estava em idade de folias,
bem lho estava dizendo aquele esfalfamento.
E os seus intestinos roncavam, ameaçadores. Tinha sina de morrer
cedo; então!... Toda a sua gente murchava
ainda nova. O seu pai, um homenzarrão com a um raio, tinha saído bom, com uma capa de briche novinha, para casa
do regedor, e à noitinha dá-lhe a febre-amarela, e agora o vereis a vomitar...
mandaram chamar o médico Cansado — parecia-lhe
que o estava a ver —, luvas de casimira, um
caixa-d'óculos corcovado,
barbicas loiras, arrastando de uma
perna.. — Receitou para ali umas berundangas, ela foi à
botica, noite fechada. Enterros por cada canto,
padres a cantarem responsos. Nem ela
sabia dizer bem. Quando chegou a casa, a mãe estava num berreiro: —
Ai, meu homem da minha alma! Ai, meu
rico amor do meu coração!. . E escarapelava-se pelos cantos em saias de estamenha, sapateando as grossas solas
cardadas pelo sobrado. A sua mãe fora lavadeira
da infanta, muito estimada das açafatas
e aios; levava e
trazia segredinhos, bilhetinhos,
do Ramalhão para a Bemposta e da Bemposta para o Ramalhão. Chamavam-lhe a Angelca; um cabo da
guarda apaixonara-se pelos seus belos
olhos e cantava-lhe modinhas. Mas ela, esperta que tinha raio! — moita
carrasco! de uma vez, numa devesa, dois ganhões atiram-se a ela. Mas ena, pai!. . se vocês querem ver o que era dar
lambada, com os serões; andava tudo numa
dobadoura, quando veio gente que apaziguou a faina. Quando não, era mulher capaz de dar cabo deles. E havia de
se ralar muito. Enfim, filhos, enfim era
de faca na perna — resumia com pompa, cheia de vaidade.
— Manda Nosso Senhor os
bons à sua santa vista, que dos maus nem quer saber o diabo. Uma tarde a minha mãe apareceu
com tosse, tossinha de gato engasgado, dores
pela espinhela, calafrios.. veio-lhe uma
pulmonia da fortuna. . pulmonia foi ela que a raspou até
hoje. Foi em quinta-feira de Corpo de
Deus, moravam aí para as bandas da Sé, numa barraquinha velha; todo o dia a música a tocar; tropa para: lá e para
cá; a pretalhada tá — ti — ti — tá; tá — ti —
ti — tá; tá
tara tá! Gentalha
de pagode, o rei, os
ministros, a procissão, o S.
Jorge; e a mãe para ali amortalhada em chita velha, à espera do padre, para ir para debaixo da terra. Nem um
coto de cera, nem uma fita, nem um véu
de escumilha. As bilhardeiras das fidalgonas, enquanto a Angelca pôde servir-lhes de alcoviteira, fizeram-lhe festa,
sim senhor. Mas quando fechou o olho
— diabo que te carregue!
São uma coisa que eu cá
sei, aquelas peças. Não é lá dizermos, andam na berzundela um dia
ou outro, mas sempre, sem nunca parar.
— E cheia de reticências
procurava incitar o interesse. Baixava a voz, com uma
confidência obscena em que figuravam infantas de capote e lenço, passeando pelo Campo de Sant'Ana com o Chico
Belas, charuto na boca, uma gazua no
cinto do vestido e viva a reinação.. E
fulana e fulana que aí estão casadas com sicrano e sicrano, sonsinhas de uma
figa, já se não lembravam de quando
escreviam cartas a este e àquele, para
que viessem às tantas horas.. sempre se viam coisas neste mundo! Uma
lástima, filhos, uma lástima! E que havia
sécia que era mesmo para ali, para quem queria ver, na cocheira com os trintanários.
Conhecia boa meia dúzia
dessas tipas; algumas eram damas
dó paço. E que o mundo era todo assim.
Mas o que a raivava era quererem ser grandes
santarronas, que nem quebram um prato, e no cabo deitavam abaixo a
cantareira! Iam passando diante
do Pescada A casa estava
cheia de gente; rumores
de guitarras bordavam finos arabescos sonoros de fados corridos; vinha lá de dentro um burburinho de gente
avinhada; o fumo dos cachimbos azulava o ambiente,
empestando, e grossos risos estalavam brutais entre histórias
alegres do arraial, e largas digestões de mexilhão e pimentos. Via-se a tia
Laureana, papuda e quente,
encostada ao balcão, entre
bojos de garrafas pretas e tabuleiros de queijos frescos. Um aguadeiro
deitava ao longe o pregão monótono;
para o interior
da cidade, rumores
de carruagens amorteciam gradualmente
na morna sonolência
quebrada da hora.
O João lembrou que fossem comer alguma coisa. E mais aberto com
as mulheres contava os seus apetites e
as suas valentias; de uma vez tinha tosado um gajo, na Perna de Pau; já
aquilo chuchou cascudos!... E
vai, quando mal se descuida,
o outro tinha passado as
palhetas.
Era agora de
uma sociedade Esperança
e Harmonia; tinha alugado casa na Rua
dos Quelhas e tratavam de arranjar filarmónica; ele tocava pratos. Havia um
barbeiro na Rua das Trinas, o Lopes, que fazia
comédias, galegos que namoravam
as sopeiras e cantavam versos da sua terra: era reinadio! Ele fazia de polícia,
tinha comprado uns bigodes
de crepe.. E dizia as suas boas intenções —em que se havia uma pessoa de
entreter; andar para aí perdido de bêbedo? Assim sempre era mais decente.
E que ela, Carolina, havia de ir às comédias; não era verdade? Para o Verão
queriam dar bailes campestres numa horta, com
balões de cores. Iam entrar no Pescada, mas Carolina
puxou a manga do aprendiz, pediu
que não fossem para ali; tinha lá o pai, se ele visse, santo Deus,
era capaz de fazer alguma. — Aquilo,
juntava Marcelina, em estando
pingado, era o diabo
mais ruim da cristandade.
E, prudente, aconselhava
o Manei do Altinho;
ia ali gente mais
pacata, havia quartos particulares,
seus reposteiros de chita,
um rico cozinheiro, e,
enquanto ao sumo, era por conta
do lavrador, sem confeição. Uva e 'mais nada! resumia.
Carolina sorria benevolente, sem dizer nada. Entraram no
Manei do Altinho, para um quarto. O João
bateu com ostentação de ricaço na mesa, perguntou às mulheres o que queriam; a Marcelina
apetecera um bifezinho. Carolina não tinha
vontade e o João quis salada de camarões. E rindo, todo corado, olhava para a pequena, abanando a cabeça, dizia
vagamente para achar pelestra:
— Com que sim senhor, com que
sim senhor! — E confidencialmente, inclinado para Carolina:
— Não come mesmo nada,
mesmo nada?
— Mesmo nada — dizia ela
sorrindo, embevecida nele.
— Nem tanto como
isto? — E mostrava a
ponteira da bengala.
— Homessa! Olhe que entisica.
Piscava o olho. Riam baixo.
— Velhaco! — segredava ela,
vermelha, tocando-lhe a face.
— Pois há de comer, há de
comer por força!
E, lentamente:
— E camarões, para abrir o
apetite.
O olhar do
aprendiz penetrava nela
como um estilete. Miravam-se
com curiosidade petulante, adivinhando-se. O
olhar dela afogava-se num langor amoroso e húmido, de uma simpatia impura. O
João chegou-se mais e com voz quase
impercetível:
— Hoje, lá para a tarde,
vou, sim? — disse ele.
— Hoje não — disse ela.
— Porquê? Que tem?
— A vizinhança deita-se
altas horas. É gente má, percebe? Podia falar-se, o meu pai sabia. . Hoje não.
Depois.
— Mas se eu não posso,
vê? — suplicou o João,
com voz piegas de criança. —
Então? ..
— E tímido, uma doçura
insistente na boca:
— Vou, sim? Não pode
recusar. É má!
Carolina
deixava-se penetrar daquela imploração toda incendida de amor desonesto. E sem resolução:
— Pois sim, pois sim —
disse ela —, mas às duas horas, ouça bem, às duas horas, quando não houver luz
nas janelas, das tais.
A Marcelina, um pouco afastada, tinha adormecido.
O rapaz chegou com a ceia. Carolina gostava mesmo muito
dos camarões. E bebia, toda palreira já.
Ao outro dia o aprendiz apareceu mais tarde na loja,
tresnoitado e cheio de fadiga. Era a
primeira vez que ele faltava
aos seus deveres e o patrão, o Ferreira, velho direito e tostado, fisionomia vulgarmente
honesta, nada lhe disse. O João era destes filhos que os
pais, viciosos e desleixados, abandonam pequenos a uma vadiagem perigosa. Aos
dez anos meteram-lhe umas cautelas na mão. De manhã cedo, ainda escuro, ia
descalço e cheio de lama às redações comprar os jornais do dia, numa pasta
sebenta, que encontrara numa escada. E, caminho dos bairros distantes e ainda
adormecidos, sob a luz vacilante dos lampiões,
lá ia apregoando o Diário de Notícias e o Popular que saiu agora a dez
réis. Gastava assim a
manhã. Algumas vezes, pequenino e todo roto, a carne suja
transida do frio, deixava-se
dormir nas escadas, com a
pasta por travesseiro. E
esquecia-se, no sono, da venda dos Populares. Recolhia a casa carregado, com os
jornais intactos; davam-lhe tareias monumentais, com uma corda molhada, nos
rins. de uma ocasião perdeu as cautelas, pôs-se a chorar na rua, cheio de medo. Quem passava queria
saber o que era; ele, soluçante, dizia a
sua desgraça, estorcendo as mãos. Alguns davam dez réis. Mulheres de ricos vestidos de cauda compadeciam-se: —
Coitadinho, coitadinho... — As crianças olhavam-no comovidas, esmolando-o. Um
velho alto, barba toda, de bengalão, ao
passar disse azedamente:
— Parece impossível
que a polícia consinta este
desaforo numa cidade civilizada! — E ele envenenava o seu ânimo
numa aflição profunda, expressa em
lágrimas sem remédio. Ninguém tinha achado as cautelas; ia passando cada vez
menos gente, menos gente; perguntava
a todos, uns riam-se,
outros diziam que não! Alguns nem respondiam: todos iam
andando! As lojas fechavam:
uma tristeza parda
fazia-se na rua,
obscura e fria. Os pianos choravam nas salas medíocres dos
terceiros andares, velhas
romanzas de Bellini e Weber,
em desafinação sentimental, e,
através das janelas unidas, vozes de meninas líricas diziam em italiano barbaresco afetos
candentes de heroínas tísicas, com gestos cavos e baladas
entorpecedores, cheias de pecado e
ofensas à moral pública. Ele sentia, no meio da felicidade dos outros,
pesar-lhe a sua miséria, como um globo de chumbo do pesa-mundos.
Era bonito e loiro; os cabelos crescidos, anelados,
revoltos e cheios de terra, davam-lhe um
doçura tranquila e casta, cheia de encanto e inocência, o ar de um leãozinho amamentado num viveiro. Tinha nos
olhos um azul-escuro de safira, de uma
profundeza de Bambino, no fundo dos quais se sentia dormir a sua
almazinha angélica, sofredora
e cristalizada, como uma
fina joia, desconhecida e
brilhante. Não conseguira fazer com as esmolas nem metade do custo das cautelas; todo o mundo era feliz
e sorria; muitos gastavam em ninharias, em bonecos
e em fitas, um dinheiro
louco. Só ele não tinha ninguém que lhe desse
o quartinho dos seus bilhetes perdidos. Mas um homem vinha envolto no seu casaco de Inverno;
ele chorava! Encheu-se de valentia e
chegou-se ao transeunte:
— Meu rico senhor — começou
ele —, eu tinha umas cautelas, que o meu pai me tinha dado para vender. E vai, ali na
Calçada dos Caldas, perdi-as, meu rico
senhor. Se eu não levar o quartinho, o meu pai é capaz de me enforcar, meu rico senhor. Tenha compaixão...
— Passa fora, gatuno! O que
tu querias nesse espinhaço bem sei eu.
Ele recuou aterrado, convulso.
E varado por aquela violência ficou soluçando no meio da
rua solitária.
Se fosse para casa,
o pai, um pedreiro
incorrigível e bêbedo, tinha-lhe preparada a corda, num alguidar cheio de água.
Lembrava-se que a mãe, triste criatura amarela,
resignada, loira e cheia de
privações, eia meiga para ele e clemente, ocultando-lhe
as faltas, vestindo-lhe
a nudez com os seus
trapos, contemplando-o em certas noites com um
amor, uma tristeza
e uma suavidade toda. feita de
sacrifícios, de dores e apreensões. Essa pobre mulher imploraria de joelhos o seu perdão, quebrando
nas suas costelas as pancadas que o
pedreiro atirasse ao filho, calada e paciente,
de uma humildade evangélica e de uma vileza sublime! E uma
ideia cortava-lhe de repente este referver de recordações, de vacilações, de receios —
se ele não
fosse para casa? A tunda
adiar-se-ia para o dia seguinte com acumulação de juros; a mãe, tão mesquinha e tão boa, pagaria por ele,
levando puxões de cabelos, picadas de
alfinetes, socos pelo vazio e pimenta pela boca, que o pedreiro, em estando com ela, era um dragão em casa. A vizinhança às
vezes apitava; ele quebrava vidros,
dizia impropérios, atirava-se à patrulha, à dentada, como um danado. Era no Inverno, altas horas. Começou a chover,
a chover. O vento, encanado pelas ruas,
ao longo das altas casas, agitava os lampiões com estalidos secos. Dois ou três coupés passaram a toda a força.
Um deles levava crianças e era tirado a
quatro. Era o rei que voltava de S. Carlos, com a família. João ficou parado, a seguir aqueles trens opulentos, de
gente que podia perder cautelas sem
levar tareias, e sem passar noites fora
de casa, com medo das cordas molhadas.
Ser rei era para
ele muito mais que ser Deus; e fantasiava
uma existência inaudita
e fenomenal, se
fosse rei. Teria
camisas de chita, de quadradinhos,
camisolinhas de flanela, boas
botas de Inverno, um relógio, cadeia
com pingentes, mais cara
ainda que a do
vizinho Maurício — o da tenda
de S. João da Praça. E dir-lhe-iam:
— Vossa real majestade senhor rei, vossa
real majestade.. E ele
daria a mão
a beijar, com um grande anel, melhor
que o do senhor Parreira, o comissário
de polícia do seu bairro. E ajoelharia diante dele, repetindo:
— Vossa real majestade,
vossa real majestade...
E marcharia à frente
dos esquadrões de lanceiros
cheio de medalhas, uma banda, de bigodes
retorcidos e tirando o chapéu
armado ao povo, no meio dos hinos das bandas marciais, ou então na
procissão de S. Jorge, de manto e debaixo do pálio, iria descoberto,
acertando o passo, com
ares majestáticos. As beiras dos telhados deixavam cair as suas
lágrimas monótonas com um
ruído metódico e gelado. No céu escuro e
forrado por igual, nuvens brancas, como de algodão fofo, esbarravam,
acossadas pela nortada. Os passeios desertos, nus de transeuntes, ofereciam à
claridade triste do gás o seu esguio e pálido
espinhaço, que recordava o de
um peixe antigo, dos que se
fazem admirar em esqueleto,
fossilizados, nos museus. Recortavam vagamente no ar os tetos negros a sua dentadura de pentes
partidos; nas fachadas imbecis, que os reflexos
mosqueavam de um livor doentio,
cortadas por filas escuras de janelas toscas, as tabuletas faziam nódoas de
luto, ensanguentadas por letreiros vermelhos, de modistas e de armazéns de fazendas.
Ao fundo da rua, num terceiro andar,
uma parteira tinha uma
lanterna rubra, de aviso.
Dois gatos seguiam
ao longo das paredes, miando
a sua paixão nervosa e excêntrica. E por sobre a
cidade os aguaceiros esfarrapavam-se lentamente
na sua caminhada fatal, fazendo nos confins dos
edifícios afastados, longes indecisos e
lúgubres, linhas frias de mausoléus
— um
abandono do campo-santo, desconsolado e fatídico. João pôs-se a andar
vagarosamente, cabeça baixa, as mãos
remexendo o forro das algibeiras, transido do ar da madrugada.
Não tinha senão um pensamento —
não ir para casa. O mais, que lhe importava?
Mas sentia-se cansado e triste, como quem vai partir para
um país ignorado, dos Brasis. Sentiu uma
coisa dura no bolso das calças: não se lembrava do que seria. Tirou para fora: era um vidro cheio de
facetas, uma rolha de garrafa que encontrara na
rua. Com a curiosidade natural de
crianças, aplicou o olho a uma das
faces e pôs-se a
mirar a luz de um candeeiro, através do poliedro. Experimentou deslumbramentos.
A luz multiplicava-se
no seio do cristal em centos de
imagens fulgentes e irisadas, vívidas numa
saturação de amarelo-pálido. E o
cristal dilatava-se como uma arcaria
fantástica em mil sentidos opostos, onde cintilas cruzavam as suas linhas
coriscantes, com uma abundância
embriagadora. João nunca olhara coisa assim: era como um mundo de
diamante e de luz, salas desertas e imensas, iluminadas como para
um sarau. A sua alma, como
uma borboleta fascinada, ia, em
lufadas de gozo, penetrar essa vasta habitação principesca e oriental feita do que há mais puro e mais
comovente: a luz, a alegria, a glória... Novamente apeteceu ser rei e viver
naquele palácio, num trono. Tinha fome, desde
pela manhã não comia, as pernas vergavam-lhe.
Encostou-se ao umbral de uma porta, olhando sempre os
seus salões mágicos vestidos de
tapeçarias iriantes, em que a luz incidia polvilhada em átomos de glória. Mas a fadiga oprimia-o. Curvou os
joelhos na pedra húmida de chuva, absorto
na luz. Os olhos carregados de
chumbo, cerravam-se. Mas abria-os devagarinho, para mirar.
E sem sentir, uma tranquilidade emoliente nos membros,
adormeceu.
De manhã
acordou, admirado de haver dormido fora de casa
e surpreso mesmo da proeza
heroica que o expunha às cóleras do pai intratável. Corria um arzinho cortante que esburacava a
névoa do rio e dava comoções fantásticas às nuvens húmidas do ar. Uma
parte da cidade envolvia-se em grandes vapores translúcidos, em que se
perdiam as torres das freguesias. No macadame gasto
e revolvido, rugosidades
de lama cinzenta faziam hieroglíficos
intermináveis, gastos por
vezes na profundeza
dos sulcos dos carros
e no remoinho de pegadas dos
vendilhões descalços. Começavam a
passar carroças de hortaliças para o
mercado. Jumentos tristes e felpudos, de uma resignação cristã, seguiam lentamente,
carregados de roupa. Uma leiteira forte, vestida de
azul, grossas botas de cano,
conduzia as suas vacas meigas emagrecidas, todas malhadas de branco, com
velhos cobertores no dorso, e as grandes
tetas, pendentes e cheias, batendo nas pernas. em frente, no chafariz, os
aguadeiros enfileiravam os
barris vermelhos, cintados de negro, a
fazer carreira; e todos sujos,
aparvoados, de uma ingenuidade sórdida, chalravam a sua galegagem brutesca. No entanto, as janelas
fechadas dos prédios tinham uma
passibilidade sonolenta e morna; as águas-furtadas, agudas e revestidas de telhas escarlates, recortavam, acima das platibandas pardas, vagas triangulações
idiotas. Nas altas varandas corridas dos
quartos andares, arbustos
raquíticos e estiolados pela
tristeza dos vasos e pela humidade sulfídrica
da atmosfera debruçavam pelos buracos da
gradaria, para a rua,
tristes flores esmaiadas, velhas corolas
de uma 'Sentimentalidade doente; pelas janelas,
trepadeiras ressequidas enroscavam-se em caniçados, bordando jardins suspensos de amanuenses medíocres.
O dia aclarava-se
no côncavo da abóbada.
A espaços, no bocejo
das vaporizações longínquas acossadas do vento, esmaltava-se o
azul lavado e fino, de uma
grande paz comovente. E sentia-se
despertar a população. Os moços de padeiro enfarinhados e tiritando de frio,
passavam com os cestos, a
correr; um sino
afastado dava matinas numa toada
cheia de melancolia. João
ergueu-se, com espreguiçamento, quebrado da friagem da escada. O que se teria
passado; para onde iria agora; o que seria
dele sozinho, por aí?...
A verdade é que não estava para aturar o bêbedo do pai:
isto é que era! Com a venda dos jornais e das cautelas sempre ganharia para
comer. Podia dormir nas escadas. Às vezes tinha venda de ganhar
dois tostões; havia dias de menos também:
era conforme calhava. E, contando pelos dedos, punha-se a calcular: — um pão, um pataco, e chega para todo o dia;
dez réis de caldo; um vintém de
sardinhas; dois decilitros... ao todo, gastava seu tostão. O mais era para fato
e extravagâncias cá da
pessoa.... Afinal era uma bela
vida. Melhor que um padre de missa! afirmava. E seria livre,
costado sem pancadaria, indo' às hortas quando
tivesse vontade — que uma
pessoa não pode andar sempre no trabalho; lá chega um dia...
E, repetindo frases que ouvia ao pai, para a sim mesmo
parecer homem, lembrava-se irritado das brutalidades do pedreiro. Bem sabia que ele era seu pai e lhe podia
bater por ser mais velho; mas as suas costelas
não eram nenhum fole de ferreiro. Alto lá! Era de mais, também! E que ele era muito bom, sim senhor, mas em lhe
fazendo chegar a mostarda ao nariz —
está quieto! Mas a sua mãe, aquela pobre mulher palidamente mártir, tão
sofredora e tão resignada, que seria
dela, sem o filho? Como poderia a pobre criatura, de uma fragilidade triste,
suportar as brutalidades do marido? E
lembrava o seu perfil
engelhado e seco de privações,
os seus olhos amortecidos de dores antigas e o seu peito esfacelado de tosses, côncavo e velho, de que ele pendera pequenino, guloso de
mama e envolto em mantilhas frescas. Quantas alucinações rasgavam,
havia tantos anos,
a alma dessa obscura
macilenta, dessa escrava de um
canalha convicto?.. E,
como uma chama cantante,
palpitava-lhe dentro aquele amor honesto e cheio de castidade infantil, cor-de-rosa. de uma vez
estivera doente com sinapismos nas pernas, um
febrão desabalado; e em delírio
descobria-se no leito,
cheio de agonias, vendo
dançar no teto os
Populares e os garotos do seu
conhecimento. E em torno da enxerga, na
penumbra do quarto abafadiço, de cada vez que lhe vinham momentos lúcidos,
descobria o rosto ansiado
da mãe, batido de vigília e
escavado de lágrimas, de uma expressão que fazia dó. Todas essas lembranças atiravam a sua pequena
alma a uma tristeza em que o seu coração se sentia boiar, como num lago ácido e
corrosivo. Deixar a mãe, aparecia-lhe como
um pecado funesto e
impenitente, dos que fazem. bailar Satanás.
— Nem os brutinhos, dizia, nem
os brutinhos fazem tal. E
sem resolução, ruminando a sua
incoerência estúpida, com as mãos nos bolsos das calças em frangalhos, foi comprar os jornais
do dia. A luz alastrava-se pelo céu e,
no oriente, lavado de nuvens agora, os feixes, no morno sol, riscavam nas fachadas poliedros amarelos e emolientes, de
um agasalho caridoso e bom.
Nesse dia, acabada
a venda, foi a casa. Encontrou uma
janela fechada e a porta
unida; uma grande quietação flutuava nos quartos. Entrou de manso: o gato dormia sobre a cômoda, ao lado do
oratório; em torno quebravam-se, na meia-luz
do recinto, formas hirtas de velhos móveis mutilados, cadeiras sem palhinha, mesas sem gavetas, esqueletos de
baús escancarados e vazios, com o forro em tiras.
Viu a mãe caída
sobre um colchão, respirando alto. Na chaminé
não havia lume,
nem louça; o cesto, vazio de pão,
abandonava-se sobre o poial de
tijolos. O João percorreu devagarinho os quartos. No saguão e sobre o peito da janela, um vaso de salsa
esverdeada; mais alto, uma cana, uma camisa
velha estava a
enxugar com as mangas pendentes,
como num desalento miserável; um
chinelo húmido e proscrito sorria como um queixo sem dentes, à borda da saijeta, e tudo aquilo
soluçava um desconforto triste, como a
nudez de uma tumba. O pedreiro não estava em casa — ainda bem! O João chegou-se à mãe.
— Mãe! —' Ela gemeu alguma
coisa confusa, mas a sua cabeça caiu, outra vez, numa prostração desolante. Enrolava a
cabeça num xale; um sulco negro descia-lhe
da testa
à face, inflamada
e ardente. O lábio escorria sangue, rasgado por alguma pancada. O João descobriu
docemente a cabeça da pobre mulher,
procurava com beijos dizer a sua pena. E, em súplicas balbuciadas, de aflição sincera, dizia
que lhe perdoasse, contava
as asperidões da noite anterior,
as suas misérias, a perda das cautelas entre gente indiferente e cínica, que lhe chamava vadio.
— Triste de quem é pobre,
lamentava ele, triste de quem é pobre! Com as mangas da blusa limpava as lágrimas, e
vibrante, numa solicitude amorável e leal,
toda feita de grandes dedicações, inquiria
a história dos
golpes que rasgavam a
cara da mãe.
Ela mal podia falar. Tinha
esperado pelo filho até fora de
horas: quando o pedreiro recolheu, não havia ceia — pão e água! E entrou logo a barafustar, a dizer insolências;
que andava a trabalhar como um mouro
para aquela grande bêbeda, que havia de fazer um dia alguma de rachar pedras.
De resto tanto lhe dava ir para
a costa d'África
como ficar no Limoeiro Novo; em toda a
parte se ganha pão, com seiscentos diabos!
Ela queria convencê-lo,
prestava-lhe contas da semana;
pouco recebera da féria, ele bem o sabia; como era possível tornar o
pouco em muito? E esboçava róis: tanto
de pão, tanto de arroz, pano para uns remendos, conserto das botas... O marido nem deu palavra; cambaleante, tocado de
vinho saiu. Ela quis retê-lo, que se
fosse deitar, que não fizesse distúrbios, pelo amor de Deus, por tudo quanto tinha de mais sagrado!... Mas
cortou-lhe a palavra uma bofetada crua que
a derribou, com um gemido.
Atravessou a rua, desceu à
taberna. Das bancas gordurosas saudavam-no como a uma pessoa
íntima e querida. Ela, coitadinha,
chorava atrás da janela, enquanto, na parede do fundo, a lamparina do oratório, posta atrás de uma cesta, enchia
de sombra o papel desbotado, cheio de
manchas escuras e fatídicas.
À uma hora viu entrar o marido, chapéu à banda, a tosca
fisionomia viciosa, com ângulos de vértices
sinistros sombriamente cortados
em sombra, os olhos absortos,
fixos num pasmo selvagem,
feramente imbecil — como
a encarnação do crime! Ela cosia-se com
a sombra, sustendo a respiração. A rua estava dormente,
a vizinhança recolhida; viam-se
passar os gatos de escada para escada, num silêncio lúgubre e frio. O
pedreiro agarrou numa cadeira e esmigalhou-a com estrépito, no meio de
pragas. E, não tendo resposta, agarrou no oratório. Os mártires mutilados e
cheios de fitas, os seus rostos de pau
pintado cheios de inchações vermelhas,,
caíam com uma resignação bíblica no meio da casa. Ela então saiu da sua
sombra discreta e disse-lhe com os
dentes estralejando de medo:
— Manuel, anda deitar-te,
homem. Tem hoje paciência, amanhã se fará o que queiras.
O pedreiro cresceu contra a pobre, com um pé de cadeira
quebrado na mão; agarrou-a pelas goelas
com uma força de salteador, e torcendo-a, rangendo a queixada, ébrio da sua ferocidade surda,
descarregou-lhe pancadas furibundas nas
costas, na cabeça, contra o peito. E ergueu-a inerte, como morta, para a lançar no chão moída de pancadaria. No
entanto, a vizinhança acordava pelo rebuliço;
apitos soaram na rua; duas mulheres em saias brancas gritavam — ó da guarda!
— e polícias, arquejantes
da corrida, enfiaram
pela casa com os chanfalhos em riste. O
pedreiro queria lutar,
esbracejava furiosamente entre os
pulsos cabeludos dos agentes, blasfemando. Pelos grupos, uma velha suja, olho
de coruja, andava
tomando informações, de uns para
outros, com lamentos de uma
piedade desenxabida. Tinha-se
alastrado na rua o burburinho.
Alguém trazia arnica para as contusões da prove. Uma
rapariga aconselhava cerveja preta,
coisa de quatro dedos, que não havia nada melhor para maçadas de arrocho. E vários narravam
casos de pancadaria com pessoas tesas, que desarmavam a patrulha
com três tabefes. O pedreiro,
amarrado entre dois polícias,
passou entre as mulheres curiosas, no meio de pragas. E explicavam-se as feridas da mártile: havia uma
na cara com a dois dedos, e já aquilo vertia sangue!.. Uma rapariga trigueira, de uma prenhez
disforme, tinha suas desconfianças que havia costela
partida. Outros gesticulavam, tentando elucidar,
com figuras e arremedos,
a narração que iam
fazendo de como a
gente era cá por dentro. Mas ouvia-se a
voz da patrulha que descia a rua.
— Nada de juntamentos aqui!
Nada de juntamentos aqui! — E cada um foi
para a sua banda, dando boas-noites. A triste espancada nem dava acordo de si.
Corridas as primeiras curas das feridas, cada um foi
dormir descansadamente e ninguém se
lembrou de chamar o médico.
Sem o filho, sem uma pessoa que velasse por ela, a triste
mulher revolvia-se nas enxergas, às escuras,
em gemidos de dor e desvairamentos de febre.
E como de costume a
manhã rompeu dali a cinco horas,
anunciando uma terça-feira de
Inverno.
O dia correu
no meio de tristezas
carregadas. A casa emergia
num torpor abafado. Na rua
dois ou três pequenitos
brincavam, seminus, com lama.
O João andava de uma banda para a
outra, sem poder sossegar. Desde as onze horas que a
mãe perdera o tino e
mergulhara no delírio.
Sentia-se sepultar num horror sem limites, como se fora um ponto
suspenso no centro de uma grande esfera
vazia, inerte, sem fim, em que eternamente se gira e embalde se chora,
sem eco. Fora, de
mansinho e descalço, cheio de uma ternura lacrimosa, chamar por ela, dar-lhe
água: a sua
pele seca, de um contacto áspero, ardia de febre intensa. Os olhos, de
um azul apagado, escancaravam-se num
pasmo doloroso; um sulco parvo distendia-lhe a
boca, seca e fétida; a respiração
cortada, longa, lenta e difícil, soava por toda a casa, com um ruído de serra. O
João parara então em frente da
cama, absorto e diluído em pressentimentos trágicos. A alcova era
estreita e nua, de teto muito baixo, toda pespontada de moscas. Uma cruz negra pendia à
cabeceira, com uma palma seca, ao través. Num canto, um
caixote cheio de ferramentas manchava cruamente as faces retangulares do recinto.
Umas saias esfiadas pendiam num cabide, com um
capote verde, e em torno,
moscas aos magotes, zumbiam famintas, como quem se aborrece da ociosidade.
Dali a nada entrou a senhora Joaquina, a
vizinha do lugar. Trazia um caldo, duas maçãs, cobertas com um guardanapo.
E, curvada para
a doente, perguntava
como tinha passado a noite, mas calou-se logo, empalidecendo, com a
xícara na mão.
O olhar do João colava-se nela
como um borracho sob a asa
da mãe, um terror
ululante penetrava-o, com
profundeza gélida e cheia de
alucinação. A senhora Joaquina olhou para o pequeno e disse
isto:
— A coisa
está mal! — E
sem uma palavra ergueu-se e saiu. Ele
ficou pregado na parede, sem
resolução: ouvia os baques do coração convulso, mas não pensava
nada, não se lembrava
de nada; ficara para
ali, como se o atirassem.
E media as palavras no ouvido:
— A coisa. . está mal! O
que seria? — Tentava fazer um supremo esforço, queria
por força voltar à
sua disposição habitual, respirar livre, mover-se elasticamente,
marchar firme, com os seus rijos
pés plebeus, mas experimentava uma
coisa, inexplicável talvez:
era como se o
seu corpo se alongasse muito numa
faixa elástica, e lhe tivessem esmagado a cabeça entre lâminas de ferro, depois de o haverem adormecido com cloral, em grande dose. E no fundo do seu peito dobravam, como
num enterro, aquelas quatro palavras
lúgubres:
— A coisa está mal! — Os seus olhos erravam pelo teto, pelo cabide de que pendia
o capote em contornos de mortalha,
amplas dobras de um funerário
abandono. E, casualmente, desceram contra as
roupas da doente, que arfava ao tiquetaque da respiração. O dia
estava triste e forrado de burel; ouvia-se
cair a chuva nas telhas,
com um compasso monótono e fino. À alcova mal
chegavam franjas pardas e
mal definidas de luz; que não conseguiam contornar as coisas e,
em triângulos colossais, amontoavam penumbras ondulantes de um pavor febril. No ânimo do João também enormes cenários de trevas desciam, e, o
bélico de bronze, o infortúnio como o
aniquilava sem apelo. A sua imaginação viva e de uma
excitabilidade supersticiosa e audaz fazia
surgir, como no alvo de um
fantascópio, grupos nubívagos de defuntos e velhas histórias
diabólicas de enforcados que ouvira às
vizinhas: e tudo eram olhos pela parede,
pelas enxergas e pelo chão, na sombra, na treva, na incerta claridade da
porta, que o fitavam escancarados, com
uma teimosia agoureira
e uma surpresa cobiçosa.
E parecia-lhe que alguém o
ia a
tomar pelo gasnete, que velhas sardónicas, cheias
de feitiços, afiavam estiletes para o rasgarem,
e um papão de grandes barbas revoltas, capuz
profundo de asceta,
levantava sobre ele os braços, prenhes de maldições e
castigos. Os seus ouvidos ressoavam interiormente numa vibração
confusa de arqueus; sentia
as fontes baterem com uma onda de sangue convulsionado, e todo
o seu desejo era fugir dali e correr para
fora; mas tinha medo de
voltar-se; o silêncio gelava-o, como de cripta secular, em que se tropeça em ossadas de cavaleiros, e se
abrem caixões de veludo preto, ao gemer
estranho do órgão. Pela tarde adiante
a vizinha chegou, com uma garrafa,
mostarda, lençóis lavados. E pôs-se a
fazer sinapismos, esfregações, toda repartida em desvelos amigos.
Ao lado, o João, imóvel,
abria os seus ingénuos olhos azuis,
uma admiração tosca e vagamente
reconhecida. A Joaquina
ajeitava as roupas, desembaraçada, mangas de lã
vermelha e um lenço
de ramos sobre os seios murchos, como frutos sorvados. E dizia:
— Isto é lá cama, nem a
minha avó!
E alto:
— Vocês não têm um quarto com janela? Mudava-se para
lá a cama, sempre
há mais ar.
— Há, ao pé da cozinha. É o
meu.
Foram ambos
ver. Era um
casinholo arruído. Quase no teto, uma
fresta piramidal e profunda,
sem vidros, dava uma claridade amarela: ouviam-se ratazanas roer o forro, familiarmente.
A vizinha resmungou:
— Pior a emenda que o
soneto! — E com um ar distraído: — Doenças destas, ou bem tratadas ou então...
As últimas palavras fizeram calefrios na espinha do
rapaz. A Joaquina corria-lhe a mão pelos
cabelos, com ternura de mãe.
E olhava-o esquecida, uma tristeza contemplativa cheia de
pressentimentos e emoções. Uma lágrima caiu na mão
do rapaz. Ele então quis olhar firme, com a coragem de um homem, mas alguma coisa estrangulou-o, e deixou
escapar um soluço...
Quando acabou de
chorar, a Joaquina tinha-o no colo, dava-lhe beijos, dizendo-lhe consolações banais e cheias de
mimo. E dali a nada:
— Olha, filho, se ela
pudesse tratar-se no hospital.
Ele ficou aflito, todo desconsolado:
— Mas ficava aqui só. Não a via nunca —
objetou.
— Qual! Aos domingos dão licença para visitar
as enfermarias, lá isso dão. — E
explicava: havia muita caridade, boas roupas, tudo de linho, e quanto a médicos... a mestrança... upa!
O João, com as pernas apoiadas na parede,
a cabeça no avental
da vizinha, resistia tremendo. Cortava-lhe a resolução,
como uma lâmina frígida, esta ideia excêntrica
e rubra:
— Se ela morresse...
Tinha os olhos
cheios de lágrimas limpidamente angélicas e uma palidez definhada retocava de um
mimo casto a graça
correta do seu rostinho ingénuo.
Por mais esforços que fizesse
deixava-se ir vencendo por um quebramento pesado de fatalidades lívidas. A
Joaquina fazia também grande esforço
querendo parecer forte, exteriormente alegre, e a cada passo o seu ar tranquilo e descuidoso obscurecia-se de angústias,
que o seu coração de burguesa
bolsava em golfadas. E dizia como para si:
— Mandei chamar o
médico para ver a minha vizinha. Se ela
for de parecer que vá para o hospital, agarramos nela
e toca! O meu homem é muito dos
enfermeiros. Um deles, o Bento, é afilhado; o Zeferino é até compadre de águas
bentas. Ia bem
recomendada, não tem dúvida.
Lá isso.. Tratada
que nem uma princesa, olá! — E
circunvagando a vista pelos andrajos do quarto:
— Que nesta pocilga, meu
rico, até morrem os que têm saúde. Nem sei como vocês aqui viviam e lidavam. — Cuspia de nojo,
e ressentida:
— Aí Tudo por causa
daquele negro daquele bêbedo. Deus me não castigue,
pela sua misericórdia!
Ao anoitecer,
a doente, empacotada
numa maca, foi
aos ombros de quatro galegos para o hospital. Era um cortejo
doloroso. As mulheres chegavam às portas, arregaçadas,
no meio de filhos
descalços. Algumas diziam — coitadinha!...
de uma janela, a costureira
explicava o caso para o segundo andar,
e duas ou três tinham
lágrimas e torciam os
aventais, lamentando as coisas deste mundo. A maca era velha e
rangente; o vento da noite erguia a espaços
o oleado carcomido e aparecia então na caixa do leito o corpo imóvel e morto da velha, coberta com o capote,
indecisamente esboçado. Ia atrás o João,
descoberto e aflito, triste na sua pobreza descalça e órfã, como um cão fiel
que esqueceram. A Joaquina, parada
à porta, chorava.
Uma ovarina passou,
inquiriu do pranto. A
outra mostrou-lhe com o
dedo a
maca, que desaparecia no cotovelo da rua, e disse:
— Aquela já
cá não volta. — Escurecera de todo.
Um homem de blusa acendia os
lampiões.
No hospital,
a, maca pousou.
Dois moços vieram para expulsar o
pequeno, que queria ficar com a mãe.
Sozinho, abandonado e partido de soluços, foi-se acocorar numa
porta; ficava diante, com uma grandeza sepulcral, a
parede branca do edifício,
glacial e esburacada de janelas, onde uma luz vaga, mortiça, esmorecia. Junto da porta
a sentinela girava,
e no pátio, através das grades, figuras
de apóstolos enfileiravam a sua
majestade de pedra junto da
parede, em pedestais geométricos e frios. Ali estava
a mãe! O que
iriam fazer dela? Nunca entrara na enfermaria: como seria? E
figurava camas de palha cheias de podridão, em que se
estorcem corpos de galegos
e mulheres tísicas, numa promiscuidade
canalha. Sentia sufocações no peito: nem podia chorar! E a rua, no
entanto, sonora de passadas de transeuntes, operários que
recolhiam, garotos felizes que vadiavam gritando, oferecia
aspetos alegres e cenas de vidas bem alimentadas no quente aconchego dos
ménages probos e robustos de labor. Uma
saudade lacerante entrou no coração do garoto; e, como nunca, encarou a sua vida miserável. Quando entrou em
casa teve medo: uma solidão mortal na
cozinha, as ratazanas tripudiando no saguão; abandono, pobreza em tudo. E
seria assim sempre! O pai
na prisão. A velha
no hospital. Que desgraça,
que desgraça a sua!..
No dia seguinte era preciso comer. Por conselho da
vizinha foi vender jornais, para não perder
os fregueses. Ao meio-dia foi saber da mãe. Expulsaram-no de novo, com uma
vara. Perdeu a vontade
de comer, voltou para casa aniquilado,
amarelo e vazio.
— Se ela morreu! —
dizia. . E pavores
imensos, soturnos fantasmas de umas transparência mágica, surgiam-lhe de
noite aos portais, gemendo credos de
monges, e mostrando dentuças formidolosas. Uma tarde estava no lugar da Joaquina, com os pequenos. Entravam uns e
outros a beber vinho: ao balcão um grupo
conversava, entre a fumarada dos
cachimbos. À voz da
vizinha gritou:
— João!
Ele foi. A Joaquina disse:
— D'amanhã em diante,
hás de levar o Notícias a este
senhor. — Apontava um velho seco, olho
morto, ar veterano, de blusa azul.
O João olhou timidamente.
— Pois sim, meu senhor,
pois sim — disse ele. — Seja pelo amor de Deus. Em que rua é, meu senhor?
— Não é rua — fez o homem.
— Tu entras pela porta do carro, percebes? É no Hospital de S. José! Vais por ali dentro,
percebes? Tudo por ali fora. Há umas
grades, entendes? Vais por ali adiante e vês uma casa baixa, entendes? Tem uns degraus: é aí.
A porta está aberta para
quem quer. Renda barata, entendes? — Ria-se, um riso enorme, adunco, de
carnívoro.
Os mais tinham gestos comprovativos. Um até disse isto:
— Livra-te de lá morares,
rapaz.
O João não percebia nada. Como era no hospital, observou:
— É onde está a mãe?
O velho tossiu cavamente.
— Talvez já fosse minha
inquilina, percebes? Mas entram e saem muitas, nem reparo.
— Sim, sim — fez o outro.
O homem juntou:
— Lá, os semestres têm
vinte e quatro horas entendes? —
Tornaram a rir-se. O que era velho tinha dentes aguçados
e negros de cárie: quando ria,
esgares de grotesco bárbaro
repuxavam-lhe as maçãs do rosto tostado, de ídolo. Os
anos tinham-lhe polvilhado os cabelos, hirsutos como juncos secos.
No outro dia mal
amanheceu, o pequeno entrou a
porta do carro', subiu a rampa, encostado à Escola. No terreiro parou
para orientar-se. A porta parava um
estranho carro negro, linhas de cofre, todo crivado de buracos, lúgubre e frio como um caixão. Sobre a tampa havia uma
urna esculpida, meio coberta com um pano
e toscamente executada. Um homem sentava-se na almofada; tinha o seu capote
azul, o seu chapéu de oleado e a cara vulgar dos caleceiros nem maus nem bons, imbecilmente honrados. Outros dois,
em mangas de camisa, traziam fardos de dentro,
feitos de serapilheiras esburacadas, mendigas. O João mal reparou naquilo: tinha
visto a casa baixa ao fundo da rampa
gradeada: era ali que lhe mandavam deixar o Notícias. Foi lá. O velho estava
em mangas de camisa
almoçando café, à entrada.
Era um corredor estreito para onde abriam óculos de vidro de
pequenos compartimentos claros e cheios
de ar; a luz crua da manhã caía do alto, pelas vidraças abertas. Ao fim do corredor, um altar negro frisado de
douraduras saía da parede, e em cima um
Cristo de pau, entre velas intactas e cheias de moscas mortas, estendia os braços cilíndricos, dourados a casquinha.
Um arame escuro, de algum timbre distante, riscava a
brancura do teto e unia outros arames
convergidos de cada
compartimento, como uma
espinha de peixe. Oxidada e velha, uma lâmpada de latão
caía de cima com a sua luz inútil na
claridade diurna. Tudo aquilo era de um
aspeto lúgubre e frio através de que
se sonhavam infortúnios e alucinamentos. O João
esteve a mirar tudo: estaria ali a mãe? Era o hospital — devia
estar. E via o velho ensopar em café grandes
pedaços de pão; olhava...
— Aqui está o jornal —
disse. E ficou-se. Tinha ganas de perguntar pela mãe;
acanhava-se. Ao fundo,
a lâmpada pendia, como
num nicho. O altar negro e frisado
de ouro lembrava uma capela
de jazigo. Tirou o barrete, reverente:
— Ó meu senhor..
— Que é? — fez o velho. E
tasquinhando: — É o Notícias, hem? Aposto que traz o caso da sopeira dos Calafates!
— Ó meu senhor, isto aqui é
igreja?
— É hospital: tu não vês?
— É hospital...
E a medo, uma ansiedade íntima:
— A minha mãe está aí,
está, meu senhor?
Tremiam-lhe os lábios, e conhecia-se a dolorida expansão
de um amor de ave, implume e doce, que
descobriu amparo. O velho olhou-o com ironia, depois teve dó, um dó alarve, quase insolente.
— Procura-a se queres —
respondeu.
E o seu dedo escuro e cheio de nós apontava
os óculos dos pequenos cubículos,
abertos sobre o corredor. O garoto entrou a medo,
como numa igreja: como era baixo, não chegava aos
vidros. Havia um banco: agarrou nele, assentou-o
junto da primeira porta, subiu corajosamente com a pasta debaixo do braço. Esteve a olhar, a olhar.
— É um homem — disse ele.
O guarda parara de comer; na dilatação da sua pupila
poder-se-ia adivinhar a alegria surpresa
de quem vai pregar uma boa peça.
— É um homem, é —
concordou.
— Dorme, coitadinho. — E,
penalizado: — Tão magro!.. Tem filhos,
meu senhor, tem?
O velho não respondeu. A esse tempo, já o pequeno tinha o
banco ao pé da segunda porta e subia.
— É uma velha — notou ele.
— Olhe, meu senhor, está a rir. Cada olho!
— Ri-se de ti talvez —
comentou o guarda. E para o afastar do óculo: — Está doida; sai daí.
O João detinha-se muito pálido e nervoso, pressentindo
alguma coisa horrível. E não podia
descer.
— Mas ela não mexe! —
Tremia de medo. — Meu senhor!
— O que é? ...
— Aqui é o hospital? . .
Diga, é o hospital?
— Pois o que há de ser? Não
vês as camas, os doentes.
O João hesitava, agitado.
Não disse nada, desceu devagar, com a
cabeça pendida numa absorção angustiosa. Pôs o banco ao pé do terceiro
óculo; subiu.
— É a mãe! — Tinha os
últimos alentos na voz; uma revolta de amores, desconfianças e luto, impulsionara agora de
súbito nessa organização inerme uma
desusada atividade, quase uma audácia. Saltou para o chão, arremessando ó banco.
Ia abrir a
porta. O guarda
correu para ele, deu-lhe um encontrão brutal! — Eh rapaz!. . Diabo! — Segurava o
fecho, olhando.
— Pelo amor de Deus, pelo
amor de Deus! — implorava o pequeno — É a mãe, é a minha. Deixe-me ir
falar-lhe, deixe, meu senhor.
E de mãos postas:
— Pela sua saúde, por alma dos seus
defuntos! — E com um desespero explosivo: — Ora isto! ora isto! — Levava os
punhos cerrados aos olhos; um choro
dilacerante abalava-o. Tomou as mãos
do guarda: — Só pedir-lhe
a bênção, meu senhor; vou-me logo
embora, vou-me logo embora!
Essa alma dura do velho verteu compaixão.
— Mas não podes, não
tenho ordem, percebes? — E dava razões:
ela estava com cáusticos, com uns
emplastros na espinha: tinha acabado de tomar o remédio; era um banho forte, que fazia
dormir. E que bem tinha visto pelo óculo,
pois não era verdade? Não lhe tinha visto os olhos fechados? Era sono, está claro!
E que, se queria
vê-la boa, não a
fosse agora acordar, a
pobre velhota. — Percebes?
— Amanhã vens tu
aqui, entendes?, de manhãzinha
cedo, e talvez já ela esteja
capaz de te ver; entendes? Pois isto é que é.
Ele, de cabeça baixa, refletia.
— Vossemecê não me
engana, não? Sou um
pobre de Cristo, vivo dos jornais;
não vê? — E apresentava a pasta. O guarda compadecia-se.
— Não engano, homem: para
que te havia de enganar? E boa!
Armava no rosto uma sinceridade benévola e rudemente
ingénua. O João saía vagaroso.
— Então amanhã, meu senhor.
Adeus. Seja por alma de quem lá tem.
Ao fundo dos degraus deteve-se para voltar a cabeça. E
ficou-se a murmurar pensativo:
— Mas quando uma pessoa
está doente, não apanha ar. Ali têm as janelas escancaradas.
— Ia devagar,
embebido, com os jornais na
pasta. — Eles sempre
são cirurgiões — disse —, entendem mais que um qualquer. — E a espaços:
— Então amanhã. Hei de
lhe contar que estou muito obrigado à vizinha; nem que fosse minha mãe. — E chegou à
rua, ergueu o pregão. Todo o mundo era
feliz e sorria. Ninguém reparava nele.
Disseram-lhe depois que a mãe morrera, e a sua vida
mudou. Nunca mais foi visto no sítio
nem tornou a levar ao velho o
Notícias, todas as manhãs. Dormia nas escadas, de manhã vendia os
jornais, o resto do dia passava-o nas ruas,
sentado pelos bancos das praças, dormitando canalhamente ao sol. E a suavidade de
gênio, a doçura
"implume dos seus olhos derivaram numa rispidez,
numa malícia de garoto.
Entre os da sua idade começou a ter predomínio; era o das
partidas subtis, o que comandava as troças que
o bando fazia aos velhos, o que ia
gritar nas escadas, o que armava
intrigas, desenvolvia contendas, e nos magotes repartia socos e pontapés, no meio da grita e das
risadas dos taberneiros. Durante dois anos
viveu esta boémia das ruas, tripudiando no meio ínfimo a sua turbulência e a sua alegria. Às vezes tinha fome: ia pedir
nas ruas escuras, com o barrete na mão, a quem passava. E o seu coração sofria
todos os maus modos e todas as
humilhações, sem rebeldia.
Nesta senda privou com
os incorrigíveis, conheceu
os mendigos, os
gatunos e as velhas de capote verde, sem meias, que esmolam
nos adros das igrejas,
em lamentações dolorosas. Uma
vez a polícia entrou numa casa de
malta, na véspera de uma parada, e varreu quanto lá achou para a prisão. Os pequenos foram
metidos na Casa da Correção e os gatunos
no Limoeiro, por contas
antigas. Sentiu duramente o cárcere,
e sinceramente chorou a vadiagem
dos antigos dias, em que o seu pé vivo, forte e ágil,
pisara livremente as ruas em corridas ruidosas,
em pândegas de boa marca. Na reclusão, os seus dias medidos por
ocupações sujeitas a uma tabela e a um
horário foram enlutados no tédio
e no sentimento da própria inutilidade:
levantava-se antes de nascer o
sol com os demais companheiros estremunhados, tiritando do frio que ao longo dos corredores
se esfuziava cantando; um sino batia horas acima das
abóbadas, e o eco ondulava de cela em
cela, como o soluço de uma alma penitente, a quem não perdoam; pelas profundas janelas do antigo convento, pedaços
de céu faziam manchas lúcidas de
espiritualização inefável, em que o
olhar dos pupilos se dilatava com grandes tristezas de oprimidos. Caminhavam formados dois a
dois para a capela, à oração da manhã. Depois cada um ia
para a sua oficina, ou para a aula de estudo.
Os rudes prefeitos passavam lúgubres, lívidos
e cheios de consumpção, e os seus olhos ferozes corriam
sobre as cabeças humildes dos rapazes, curvados sobre os livros ou sobre os
trabalhos de oficina. Aos domingos ouviam missa; uma
charanga tocava no
pátio e os jornais convidavam o público a ir ver o colégio, louvando os desvelos do diretor e proclamando
os resultados da instituição beneficente. Ali tomou ele próprio, aprendendo a
ter asseio, correção e aprumo;
aos dezoito anos o Ferreira tomou-o para
aprendiz; era uma
pessoa cheia de
si própria, estatura avantajada,
completamente formada, que
passara incorruptível no meio viciado do hospício, resistindo aos vícios
mórbidos e fatais da caserna, e salvo, numa
palavra, da ociosidade e do desprezo de si mesmo.
Resolveram encontrar-se,
o João e Carolina, todas as noites, à
hora em que fechava a oficina; iriam passear, falando dos
seus negócios sem temer ditinhos da
vizinhança. Ele instara vivamente para que se ligassem; era assim melhor, não sofriam tanto as saudades da ausência e
estariam à vontade; e se a coisa tinha
que ser, que fosse quanto antes. Carolina lutava um pouco; todos os seus cuidados
eram o pai; quando ele
chegasse a casa e
os visse, que diria? E suplicante,
uma meiguice infantil, obrigava
João a ceder, com
pequeninas carícias voluptuosas e
finas. As noites eram frias e escuras, orvalhadas no alto de cintilações de estrelas, arquipélagos de
luz num Pacífico lôbrego e sem fim. Reuniam-se a
uma certa hora
no Largo da Estrela, e
de braço dado, estreitamente unidos,
com declarações pelintras empoladas de palanfrório sem nexo,
diziam um ao outro o seu amor
eterno, citando cantigas, pequenos versos
de manjerico, procurando a
sombra, desviando-se das zonas
claras projetadas pelos
lampiões, como proscritos
cônscios da sua
culpa. De ordinário vinham por S. Pedro de Alcântara, S.
Roque, até ao Chiado. Àquela hora as
ruas atulhavam-se de gente abafada em capotes felpudos, carruagens cheias de mulheres melancólicas; um largo
ruído emergia da luz, da vida e da enorme
respiração da cidade,
espapando-se nos ares num tom
indistinto e abafado. À
porta da Havanesa
um forte grupo
enchia o asfalto;
caras em sombra saíam das golas
altas; de todos os lados partiam rumores de palestras que,
apanhadas de relance, davam
a diversidade mais curiosa e frisante; marialvas pálidos e bonitos, altas pernas
apertadas em calças prenhes de joelheiras,
chupavam cigarros em grupo, provocando as costureiras que recolhiam dos armazéns; militares
secos, sonoros de esporas,
uma curva de espinha,
discutiam às esquinas. À porta da Casa Singer, destacando em sombra a crua luz irradiante do lustre, um cónego
forte e barbeado, envolvia-se na sua capa, baixo
perfil de javardo
estupidamente grave. De um lado e
outro, a fileira de transeuntes seguia, gente de todas
as castas, mulheres embuçadas em mantas, rapazes débeis e palreiros,
velhos dilettanti da
ópera que faziam a digestão
com charutos fortes; ao trote de grandes
parelhas, as famílias iam para S. Carlos, recostadas nos cochins dos
coupés; e Carolina, invejosa da vida que
não vivia e da opulência
que a deslumbrava, ia
picando as cenas de comentários
amargos, um vago rancor
de proletária. O João murmurava
de vez em quando:
— Isto é o tom, isto
é o tom! — Gente pasmada parava em frente das vitrines
do Seixas, admirando oleografias, porcelanas,
pequenas esculturas suíças. em frente
quase, no Elie Bernard,
as amas de toucas de renda apartavam polichinelos,
pequenas arcas de Noé, para
frescas crianças de banqueiros,
aconchegadas de arminhos e louramente
ideais. No Leonel,
as senhoras de cauda princesse,
perfis orgulhosos de marquesas, palidamente altivas,
viam cetins da estação,
fortes veludos de pregas elétricas,
opulência cara. Sentia-se
apregoar o Jornal da Noite. Divas de mantilha, marmóreas de riz, elegâncias de figurino, vendiam-se a quem
passava com pequenas tosses e psts! Eles
atravessavam a multidão, isolados no
ruído como estrangeiros. A Rua
Nova do Carmo tinha menos
gente, menos luz.
No fundo do Margotteau, uma luz soturna
agonizava sobre estofos
amontoados, pilhas e coxins, bancas
de jogo marchetadas e brilhos
de lustres, pendentes do
teto. Sobre o Rossio caía a cúpula
tenebrosa da noite,
como um assombro legendário;
em D. Maria, acima da
arcada, pontinhos de gás escreviam
espetáculo; em
torno da praça rolavam os trens;
soldados risonhos saracoteavam-se na
penumbra entre os grupos de
velhos celibatários; o Martinho estava
cheio de estudantes e literatos;
e contratadores de senhas, cauteleiros e americanos em marcha faziam um
ruído infernal e contíguo, o tohu-bohu
das capitais exaltadas pela nevrose
da noite. Eles
iam seguindo vagarosamente. Fechavam as lojas. Chegavam de
ordinário a casa muito tarde. A
vizinhança dormia. No relógio da Estrela badalavam quartos, som lúgubre. Passavam a
noite amando-se, jurando a si
mesmos fidelidades eternas e amores
fenomenais, enquanto a vela de sebo posta a um canto, deitava clarões amarelos e um cheiro sufocante de morrão.
Afinal o João fez conduzir para casa da rapariga o seu
baú, os seus arranjos. A vizinhança
falou do escândalo, nunca se
vira uma pouca-vergonha assim,
o mundo estava perdido.
Muitos diziam:
— Já a comadre bebe! Mas
deixa que o pai saberá...
Só a Marcelina achou natural.
— Cada qual governa-se —
sentenciava ela.
Os primeiros dias
correram-lhe distraidamente, nas
espiras de um amor canino
e desonesto.
O João aparecia tarde na oficina, cheio de sono e de
fadiga. E sofria as meias palavras do
Ferreira, a sua grosseira rabugice de velho rigorista, via-o atirar as coisas com mau modo, girar
nervosamente por entre
os bancos de trabalho com o olhar relampejante através dos óculos.
Para o aprendiz, o melhor tempo era o recolher do trabalho, ao cair da
noite: ia quase a correr para casa, subia
a escada a quatro e quatro; Carolina estava de ordinário costurando, com um
casibeque de lã, lenço na cabeça,
a face de uma palidez transparente e doce.
Ele tomava-lhe delicadamente a cabeça, com as duas mãos; beijavam-se com uma sofreguidão provocante, e toda ela
vergava languidamente no peito do
aprendiz, sonhando as divagações mais sublimes. Nunca saíam, senão noite feita.
Diante de uma mulher,
o João experimentava um aconchego tépido, delicioso: com ela, a sua força, a sua forma
vigorosa e superior, acobardava-se, quebrantava-se, caía: era
então dos sentidos. Não se lembrava
de olhar em torno de si,
no desleixo da casa, nua,
repartida em compartimento baixos e retangulares,
sem luz e esfolados nas ombreiras,
com laivos de oca barbarescos no rodapé. Pelas paredes
encostavam-se móveis antigos e coxos; leitos
de ferro, de varais tortos,
tinham colchões estripados e
cobertores de uma
farrapice sórdida; em volta nem um
objeto limpo e cuidado, nem uma cor alegre e rutilante, em que a vista
pascesse uma satisfação honesta; todas as formas duras e cruas das coisas tinham um
desleixo antigo, de anos, e desmantelavam-se como bem lhe parecia. Pelos
aspetos, via-se a
história de Carolina, a
sua orfandade, as ausências do coveiro na
desolação das covas, como
um desterrado. Na cozinha,
a chaminé derruía
lambida da fumarada, cheia
de terra e tijolos partidos, abrindo como uma goela
calcinada e pulverulenta.
Teias de aranha, espessas e papudas,
faziam prateleiras aos cantos. Num poial húmido e cheio de covas, rimas de pratos sujos, de almoços
antigos, estavam para ali de
semanas; sobre o peito da janela, uma palmatória de barro tinha um
coto de sebo; a
miséria enrodilhava-se pelas coisas, numa frialdade canalha e vilíssima, em
que se acusava uma existência sem destino,
sem direção, sem o exemplo da
outra. Nenhum móvel
no seu lugar, o lavatório
vazio, uma bacia
numa cadeira, saias enxovalhadas nos ferros dos leitos e o gato lambendo-se sobre
um xaile. E à medida que passava o tempo
e os dois conviviam, Carolina que, no começo, por pudor, fora um pouco cuidadosa, entrou em entregar tudo ao
acaso, para ali, ao deixa-te estar que
estás bem. Enquanto só, era ela quem lavava a sua roupa, de mês a mês. Quando o João se ligou com ela, foi impossível continuar aquilo. Eram precisas
camisas engomadas, roupas, lenços brancos, quem costurasse, quem cuidasse com amor, sem fadiga, sem mal-estar,
todos os pormenores do lar de todas as pequenas necessidades do trajo.
Carolina nunca engomara.
Foi perguntar à Marcelina
como era. A velha deu
explicações: que se
molhava primeiro a" roupa em
goma fervida, com um trapinho, e depois se punha a enxugar muito bem, a enxugar.. Carolina lavou corajosamente as camisas do
aprendiz, mas não ficaram brancas — que birra! E, resignada, aqueceu o ferro, pôs em prática quanto ouvira da
velha; mas o ferro
tostou-lhe o pano deixando
uma nódoa escura
e fumegante; ela ficou toda
desconsolada, lacrimosa, temendo
ralhos, quando o João viesse. Fazia um mês que se tinham visto no arraial. E Carolina, refletindo,
comparava os dias à medida que eles se distanciavam
do primeiro: as coisas não são algumas vezes o que parecem; nem tudo o que luz é ouro — lá diz o rifão.
Era verdade! E entristecia-se. O jantar
foi menos animado que os
anteriores. O João não tinha vontade,
era sempre a mesma coisa. . E em
conversa disse os seus pratos mais prediletos, em que havia mexilhão, cabeça de
porco, refogados. Ela estranhou a palavra.
— Refogado! — disse sem perceber bem. Olhava o teto. —
Refogado!
— Sim, não sabes? — fez ele
admirado daquela ignorância. E pôs-se a dar explicações, a dizer como era. E dali a pouco:
— Em coisas de cozinha, a
modos que sei mais que tu. — E sem mudar de tom:
— Diabo! Que te ensinaram então! — Carolina
ressentiu-se um pouco. Estiveram distraídos nessa
noite; queriam ambos disfarçar, ter excessos, exuberâncias, brincadeiras, pequenas
ternuras piegas, mas de repente esqueciam-se
e paravam, sem saber porquê, absorvidos. Ele perguntava-lhe:
— Em que estás pensando?
Carolina
encolhia impercetivelmente os
ombros, um meio
sorriso sem expressão.
— Nada. — E ao acaso: — No
meu pai. Porque perguntas? — Estiveram assim
. Viam-se os seus esforços para entabularem palestra e parecer como nos
outros dias, mas um tédio
e uma contemplação íntimas dominava-os,
atraiçoando-os.
— Amanhã é domingo —
observou Carolina. E com admiração:
— Já amanhã é domingo, hem?
— É verdade — perguntou ele
—, tenho roupa?
Carolina sentiu-se empalidecer. Balbuciou:
— Tens. —
O seu desejo seria
aventurar uma explicação, dizer o
que sucedera, afiançar a sua boa
vontade, pedir perdão da sua simpleza selvagem, mas que
vergonha!... Qualquer rapariga
engomava, varria, sabia
cozinhar, manter limpas as coisas,
brancas as ombreiras, sadias
de traça
as roupas guardadas nas gavetas e
nos baús: e só ela, a burra, nada sabia, aquele grande cavalão! Tomou coragem!
— Olha.. — disse, e ficou-se; sentia-se palpitar.
— Que é?
Na calada a asma do gato resfolegava.
— É que eu. . — curvava a cabeça com a vista obscurecida de
lágrimas. O João ergueu-lhe a
cabeça com a mão,
tomando-a pelo queixo, com carinho quase.
— Que diabo tens tu, filha?
Então! Que diabo quer dizer essa aquela! — E sem obter resposta: — Se
tens alguma coisa, Carolina... — E comovido, admirado: — Mas ofendeste-te do que eu disse
há pouco? Nem reparei, foi sem tenção de
te magoar. — Beijava-a repetidamente, procurando chamá-la a uma tranquilidade conciliadora e a uma justa
apreciação de palavras.
— Não vês que te amo tanto,
hem? Não vês? Uma pessoa, às vezes, nem repara
nas coisas que diz; vês tu?
Ela abafava soluços, com o lenço.
— Não é nada, não é nada:
isto é do meu gênio a modos tristonho — dizia ela —; que eu bem sei que não sirvo para nada,
bem me conheço. Para que serve um diabo
assim?.. Nada sei fazer, nunca tive quem
me ensinasse, pela minha desgraça! Até
nem roupa...
O João acudiu logo:
— Se não está arranjada
é o mesmo; lá isso
não tem dúvida; não nos havemos de ralar por tão pouco. Ora! Manda-se
à engomadeira; alguma vez aprenderás. — E enxugava-lhe as lágrimas. — Sua tola!
Agora a choramingar. — E dava-lhe
pequeninos beijos, abraços amigos, dispensando-lhe solicitudes paternais.
— Vale lá a pena!
— resumia. — Não sabes, acabou-se. Ninguém nasce sabendo, isso é velho. Ninguém te ensinou... não tens culpa; é boa!...
Mas no seu ânimo encrespara-se um mau humor que o ralava,
e uma irritação sem alvo fazia-o passear
com rapidez, acentuando as passadas no solo. Não saiu no domingo, ficou à
janela fumando. Via
passar na rua grupos todos asseados,
mulheres vermelhas e fortes,
cheias de saúde e de alegria. E
sem querer punha-se a compará-las com
Carolina, tão linfática, tão desleixada e tão pouco limpa. Homens iam de charuto, fumegando
com pompa, bengala, suas botas
engraxadas, camisa muito branca.
E ele não tivera camisa lavada, nem gosto para dar o seu
giro às hortas ou ao passeio.
E molestado,
roído, retirou-se para
dentro, foi estender-se ao comprido
na cama.
— Ai! — suspirou. — A gente
sempre faz cada uma! — E ficou-se imóvel, refletindo,
com saudades dos tempos em que era livre
e tinha camisas lustrosas, todas brancas, cheirando
frescamente a sabão.
Pouco a pouco o aprendiz pôs-se a reparar em tudo, na
casa, nos objetos de uso, na
cozinha, nas lavagens.
Carolina não tinha nenhum
desses instintos delicados
e espontaneamente
artísticos, que são a
revelação da mulher; nos seus
menores labores era de uma incorreção
tosca e de uma rotinice escura. Não varria
a casa, ou varria-a
mal; nenhum método, nenhuma paciência, nenhum amor
em conservar as coisas.
O João mandara para
casa uma cômoda, cadeiras, um pequeno espelho, duas
jarras de louça azul, e ele mesmo tinha disposto
tudo, esfregado o solo,
as portas, consertado as
bancas e o leito,
nas horas vagas. Mas dias depois o pó cobria tudo, havia sinais das mãos gordurentas de Carolina nos puxadores
das gavetas; a cama estava sempre desmanchada, com o sinal dos corpos. Ele
perguntou-lhe uma vez:
— Que fazes tu, quando eu vou
para a oficina?
— Costuro alguma coisa,
durmo. É tão triste!...
— Mas, filha, deves
arranjar a casa.. — aventurou ele.
Carolina ficou-se. A sua natureza preguiçosa, habituada
aos ócios, quebrava-se de fraquezas,
bocejos e espreguiçamentos, só de lembrar-se do trabalho que tinha a fazer. Às vezes lutava, fazia uma
grande atividade, mexendo por um canto e
por outro, mas vinha a fadiga, o aborrecimento: atirava-se para cima dos colchões.
— Se eu não posso!...
O aprendiz
dera-lhe vestidos novos, uma
pequena capa de xadrez,
mantas, roupa de patente
com abertos. E tudo andava pendurado pelas portas, à poeira
e aos encontrões, desmazeladamente. Passava horas penteando os seus cabelos
ruivos, anelados e finos de lustro macio e espessura abundante, fantasiando penteados, ensaiando laços, cuias
arrebitadas, vaidadezinhas de criança. Outras vezes
amanhecia preocupada, taciturna,
nervosa, salivando pelos
cantos; fazia o almoço
muito cedo. O João ainda
ficava às vezes na cama;
ela ia devagarinho olhá-lo; aproximava-se curiosa, absorta no vulto do aprendiz que arfava sob as roupas mornas. E
cheia de vertigens, de subitâneas paixões que rebentavam do seu temperamento em espirais
de desejos, lançava-se a ele, abraçando-o
como doida, fazendo as protestações mais vivas e os
amuos mais doces, tentando
vendar-se sob uma face nova, inventando mesmo ardores, manias e excêntricos frenesis
inexplicáveis. No meio de tudo isto, e
afora estes arrulhos, o seu desarranjo era o mesmo; não lhe passava pela cabeça
que cativaria o seu homem
tornando-lhe o lar alegre, limpo,
fresco, fazendo luzir a boa
ordem, a boa administração e o decoro nos mais simples pormenores da residência. Fora do pecado
mortal, não tinha préstimo, nem imaginação, nem propósito.
E neste meio o seu corpo desenvolvera-se um pouco; os
seios ampliaram-se numa curva graciosa,
de contorno quase casto;
e esmaltado de palidez mórbida,
lasciva e um pouco cismadora, o seu rosto era doce,
de uma harmonia dolente,
como certas pinturas de virgens
mártires que oram em atitudes pias, no
fundo das capelas da arte gótica.
Um dia o João achou-a fétida, cheirando a saias velhas;
nunca mais lhe saiu esta ideia da mente;
entrou a achá-la esquelética e cansada; ao deitar-se fazia um
esforço para não parecer saciado,
mas os
seus beijos eram frios, convencionais, espaçados. Ela reclamava,
cobrindo-o da sua paixão como de um cáustico,
querendo reapoderar-se de um amor
que lhe sentia fugir
e padecendo, embalde,
ciúmes de todo o mundo. E começou a
desconfiar, a seguir o João à oficina, a
furtar-lhe as voltas. Nas
menores palavras que ele dizia encontrava
dois sentidos, o aparente
e o oculto, que parecia envolver sempre um sarcasmo, uma ameaça, um insulto.
Foi uma luta tremenda; a sós falava alto,
altercava consigo mesma,
dizia pragas, arquitetando
projetos de vingança e planos de sedução.
Havia horas em
que a
sua vontade era
morrer, tomar qualquer corrosivo,
precipitar-se da muralha
de S. Pedro de Alcântara; outras vezes
estalava de aflições, contorcia-se em desvairamentos
supremos, querendo chorar, soluçar, pôr
em evidência a sua sorte.
Quando ele vinha, afetava
rosto sereno, uma certa
despreocupação feliz; mas a sua gana era apertar-lhes as goelas, para que outra o
não gozasse. Enquanto o João comia,
ela, encostada à
porta da cozinha punha-se a
fitá-lo do fundo da sua paixão danada, cheia
de ideias trágicas. Uma noite
agarrou-o pela cintura, os olhos envidraçados:
— Tinha mesmo vontade de te matar!
— disse, sôfrega.
O João riu-se olhando-a; mas
ficou logo todo sério, abrasado naquela ânsia, e uma corrente galvânica percorria-o, nascida no olhar dela,
sequioso e feroz, cheio de gula e de
fel.
Vieram então as
pequenas especulações, as pequenas ciladas sujeitas todas a um plano geral de má índole, de reserva e de
ciúme — da parte de Carolina. Umas
vezes era o jantar que não estava pronto a
horas, outras reclamava bugigangas de adorno, fitinhas, meias de
riscas escarlates.
O João
satisfazia tudo, ouvia
tudo, mas era-lhe
indiferente esta ou aquela deliberação; tudo achava capaz,
assisado, justo.
Já não era o mesmo.
Emagrecera nas faces e
andava pálido, com os
olhos fundos de cansaço. Tinha agora
para mirar as mulheres
uma atenção persistente, uma fixidez de olhar que as
percorria todas, desde os cabelos até aos
pés. E muitas vezes
na rua voltava-se para trás,
seguindo as que lhe passavam perto. As suas
predileções eram todas para as
roliças, e sentia furores pelas trigueiras, em cujo
lábio superior via ensombrar-se a penugenzinha de um boço,
donativo de vivacidade de
temperamento e escandecências do sangue.
— Mulher que se sinta nas
mãos ! — notava ele rudemente.
Esta transição demarcava o homem feito e precocemente
liberto das últimas infantilidades,
homem com características de apetite, frenesis e vacilações de caráter.
A cara emborbulhara-se-lhe de barba, tinha-lhe engrossado
a voz e acentuava-se um cunho imperioso no seu modo de dizer.
Na oficina, quando
de manhã aparecia em algum daqueles desalentos profundos, nascidos da desordem das noites, os
colegas riam-se, cobrindo-o de chufas e apoquentando-o com perguntinhas
velhacas. Do seu banco, o Ferreira
não dava palavra, mas de vez em
quando saía-lhe um canto nasal, espaçado por grandes silêncios, que era
a sua fórmula
de raiva brusca, recalcada por sessenta anos de prudência. Os
íntimos porém queriam da boca do João
saber por força como tinha sido, se adormecera tarde e se a lua-de-mel
continuava. Entre risadas apupavam-no dos bancos de trabalho:
— É o mês dos gatos, não
admira — diziam.
Ele dava cavaco em ouvindo estes dichotes. Ficara mal com
os dois ou três mais atrevidos,
jurando que faria alguma ainda. O
seu gênio concentrava-se num silêncio reflexivo, quase
triste. Era muito exato
às horas de
trabalho, pacientíssimo aos ralhos da rapariga, vivia pouco em casa,
recolhia tarde. Ela uma vez
observou-lhe:
— Tu já não és o mesmo
rapaz, João!
— Aí vens com tolices —
disse ele.
Carolina
invadia-se de um terror desconhecido, toda
entregue a uma desconsolação.
Uma tarde a Marcelina apareceu:
— Adeus, filha, adeus. — E
notando a cômoda, as cadeiras: — Viva! Isto é que é! isto é que é.. Viu-se tafularia maior? — E mirando Carolina:
— Que senhoraça, que
senhoraça! Toda no chefe.
A sua espiguilha no casibeque,
sua cruz ao pescoço!. . Ai! quem tem homem não sabe o que tem. Vejam como tudo está mudado. — E baixo: —
Quanto custou cada metro? — Apalpava
a fazenda do vestido,
esfregando-a, estudando a espessura.
E expluiu logo em narrativas, que
a mulata tornara para o hospital, e morrera! — Minhas ricas quatro moedas, que fiquei
a ver navios.
— E azorragando os caloteiros abria a
caixa de tartaruga, tomava
rapé com os dedos em leque, sorvendo com grande delícia, o olhar piedoso.
— Como te vais dando com
ele? — inquiriu passado tempo.
— Bem; então como? É muito
bom rapaz, lá isso sempre o direi.
— Bom gênio, hem?
— Bom gênio... —
E vencendo uma repugnância,
afetando grande franqueza
para com a velhona:
— Olhe, todos
nós temos as nossas
coisas, percebe?
— Está visto, está visto.
Que bom só Deus.
Fizeram um
silêncio beato. A Marcelina
desconfiava já que tinha
havido mocada. Interrogou cheia
de curiosidade:
— Mas houve alguma coisa?
— Não. O que havia de
haver? Hoje em dia, uma mulher precisa saber de tudo. Eu confesso a verdade: de engomados não
sei. Quem é pobre não usa certas coisas.
— Nisso foi eu sempre com a
primeira. Não é por me gabar. Que engomo encanudados
ainda hoje, como poucas. — E explícita: — E
que é uma das coisas mais custosas de fazer, o engomado!. .
Só o polimento!...
— É verdade, é verdade —
dizia Carolina.
— Mas o quê? Ele disse
alguma piada por isso?
— Estranhou. Ele nunca se zanga.
— Armava no
rosto uma soberania indomável. — Zangar-se? Oh!. .. tenho-o aqui
fechado — e estendia o punho — mas...
— Ora diz a verdade: tu
queres contar-me alguma. Cos diabos! Bem sabes como eu
sou. Fala à vontade. Se eu
te puder valer... prás
amigas estou às ardes.
— Olhe, é verdade. O João,
nos primeiros dias, eram excessos que nem eu sei.
Andávamos sempre aos
abraços, às festinhas, nunca
nos separávamos. Mas há uns dias
que o vejo apoquentado, metido consigo; come e vai-se com Deus; hoje não gostou do jantar; passa as
noites fora, recolhe-se altas horas; a minha
desgraça!
A velha pasmava.
— Pois olha,
fartou-se cedo, o melro. Então será
de má boca? Mas não desconfias de
nada? Não lhe deste tu motivo?
— Que eu saiba não. Talvez se aborreça por eu
não saber bem governar a casa. Sempre disse: nunca Deus me dará fortuna em
coisa nenhuma!
A Marcelina refletia. E dali a pouco:
— Queres tu experimentar
as cartas? A ver o que
dizem. —
Carolina estremeceu.
— Credo! Tenho medo. — E mais baixo: — Dizem
que aparece o diabo!...
Ficaram caladas. E depois.
— A mim ninguém me tira
da cabeça que o João anda de olho
com alguma gaja!
Puseram-se a falar no tempo. Marcelina ergueu-se para
sair.
— Se ele te não
quiser, filha, não
morrerás de fome por isso. Graças
a Deus, enquanto houver
homens, qualquer mulher se governa.
Tive muito disso, tive. Ai!. .
Tomara-me nesse tempo!
Desceu a escada. À porta observou, piscando maganamente o
olho:
— Não fui das que gozei menos,
não. Que até condes
beijaram este palminho de cara. Ai! Bom tempo! — E serviçal:
— eu indagarei, eu indagarei a coisa.
A rapariga não
dormiu nessa noite. Ergueu-se
ainda lusco-fusco, cabeça pesada,
uma fadiga enorme nos ombros. Sentia
que a sua vida
oscilava na notícia que a
Marcelina trouxesse, como
num fulcro de aço uma agulha magnética. Ao meio-dia, de feito, a velha
voltou, olho arregalado, agilidade de alcoviteira
no andar, rebolando-se, com as barbicas assanhadas.
— Sabes tu, sabes tu? Vai
todas as noites ao Moinho de Vento palestrar com uma sirigaita do primeiro andar, mesmo à
esquina do pátio, por cima da loja de
louça. Está ali horas ao relento, a tomar gargarejos: só uma carga de pau!
— Por isso ele vem
tarde!...
— Vejam as habilidades do
Santo Antoninho de quinta, hem? Aí está para que ele se
empenhou tanto comigo, para chegar à
tua fala; vês
tu? — Atafulhava as ventas
de simonte. Carolina ficara
morta de surpresa, de terrores, e
desesperação.
— A minha desgraça! —
repetia. — A minha desgraça!...
— Quem me contou tudo foi a
Matildes, uma que engoma para fora; eu estava
mesmo parvinha de todo, nem o queria crer, vê tu lá. A gente vê caras, não vê corações: é certo.
E para mais é todo
amigalhaço do irmão da dita pessoa;
andam sempre de súcia, grandes chalaças, sim senhor; franquezas de tabaco;
para onde quer que vão,
vá de vinhaça, comes
e bebes, com toda a grandeza! Ai! hoje presentemente, minha rica,
nem uma criatura sabe para o que está
guardada. Algum dia, em acontecendo uma destas, parece que até ia tudo raso. Havia justiças, muita obediência;
então com quem brincavam eles?
Hoje... Eu até
fiquei sem vontade de comer;
tarrenego! e depois veio-me a dor.
— Dava um estalo com a língua. — Mas deixa estar que to cantarei.
Carolina nem ouvia.
— E agora? — disse
ela com um gemido,
atirando-se com uma grande angústia sobre os colchões, miserável na sua
deceção.
A Marcelina tentava fazê-la sentar, compondo um rosto
compungido. E dizia a espaços:
—Ó filha,
pelo amor de Deus! Isso não é agora morte de homem. Há muitos
modos de governo. Estávamos
servidas se fôssemos agora a
morrer por todos os malandros que
se raspam, em nos apanhando.
E, como achando o modo de tudo resolver, enquanto a outra
chorava:
— Olha, podes-te empregar
na fábrica, dois tostões por dia: leva-se lanche. — E muito baixo: — Para quem quer reinar, nada
melhor. — Piscava o olho: — Percebes,
percebes? — E desenvolvia projetos, propunha expedientes.
— Encontras logo arranjo;
nas fábricas então é como passastes. Conheço lá
muitas que andam ali
mais estimadas, que eu sei; elas bem vestidas, bem doiradas,
arranjo de seu, ali o jantarinho de carne todos os dias...
— Gente sem vergonha!
— comentou Carolina, com voz cantada
pelo pranto.
— Ora, histórias,
filha, histórias! — E sentenciosa: —
Que nisto de vergonha, cada qual toma da que gosta. Em se
evitando falas do povo, deixa andar.
Dois dias que a gente anda por cá. . — E generalizando a doutrina que pregara: — Se vamos assim, então não há
ninguém de vergonha no mundo. — Carolina
abanava a cabeça. A velha, com ademanes de mestra, cuspia-lhe no ânimo a sua piedade de estafermo.
— Ainda estás muito verde,
minha rica! — dizia.
Caíram em silêncio.
Às vezes soluços fundos
estrangulavam a garganta da rapariga?
— E eu que cri em tudo! —
lamentava ela.
— E não querer ver? Eu iria
pôr a mão nos livros sagrados.
Mão me salve, se julguei que sucederia isto. — E com voz
cantada: — Vamos nós agora ver o fio da
meada. Como diabo sairá ele desta?
— Como sairá? Casando com a
outra. Vejam como. Lá tem o irmão que a defenda.
Só eu não tive quem me aconselhasse.— E desfazia-se num choro íntimo, dizendo a sua infelicidade. — Morre
quem faz falta, só Deus me não chama pra
si..
Havia tempo que
homens altercavam na rua,
entre sons de guitarra. De repente,
uma voz avinhada disse um
fado choroso, em que se
despediam almas e se davam facadas, em
verso. Rameiras de grandes caudas
de goma riam com estrépito, dizendo doçuras roucas, de uma
vadiagem canalha. Carolina
gemera:
— Ai vida, vida! Só aquelas
nunca estão tristes!
A velha tinha-se erguido, interessada na algazarra da
rua, curiosa de espreitar a pândega como
um antigo comensal expulso. A voz dizia:
Pobres donzelas honradas.
Quanto de vós tenho dó!...
Carolina, de cabeça um pouco erguida, tinha ficado a
escutar; toda a gente ria quando ela
chorava!.. Em que coração acharia
interesse? — E via de pé a sua desdita envolta
em fumos negros, olhá-la cheia
de rancor inquebrantável. Queria
recordar-se da sua meninice,
como quem se refugia, mas
diante dela desfilavam
recordações lúgubres, surgiam grupos de mortos, filas de ciprestes, um coveiro encanecido que erguia a enxada,
cantando.
Não tinha a menor ideia do que fosse ter mãe ou ter
amigos. No seu contacto com a gente,
entrevira apenas o tenebroso fundo da bestialidade que referve em cada
homem, com um fragor
de luxúria cruel. Vivera
sempre em si própria,
sem a reminiscência de uma carinho que alma piedosa lhe houvesse prodigalizado.
Quantos beijos deixara
roubar aos moços do cemitério e quantas
palavras tinha merecido aos gatos-pingados, todas vinham ervadas da mesma ideia e o mesmo intento. E assim
crescera naquela incultura de espírito sem
guia, sentindo dentro avigorentar-se-lhe apenas uma tendência
— a de cadela fértil,
que vai entregar-se. Através
da sensação rudemente nascida olhara o mundo, esfaimada e torpe como se fora
um verme descomunal das sepulturas,
incapaz, pelos desolados cenários que tinha contemplado nos seus dias de criança, de dar
acesso na sua alma
às multíplices emoções e suscetibilidades histéricas, que fazem da
mulher o precioso recetor das coisas mais subtis que a língua não exprime e os
olhos mal sabem formular.
Tinha-se dado
ao primeiro que chegara,
e sem receios de
pudor. Fora a Marcelina a
causa de tudo.
Para que lhe viera
contar de padres babosos e varinas amancebadas?
E detida,
cônscia de um desalento mortal, sentia
na penumbra os olhos
de Marcelina caídos sobre a sua
cabeça com um brilho fatídico. Fora, riam com estrépito no
meio de disputas sórdidas. A
velha tomou-lhe a mão,
aproximaram-se ambas da janela.
— Queres um conselho mesmo
cá de dentro, queres?
— Que é? — fez a rapariga.
A outra estendeu o braço na direção das janelas de tabuinhas, e o-seu dedo
engelhado apontou as cabeças de altos
penteados que destacavam com relevo negro
no tom vermelho dos quartos iluminados da casa caraira.
— Olha — disse ela. E com
gesto de quem se impõe, de quem se mete por uma pessoa dentro: — Lembra-te do que te digo
hoje. — A sua voz insistia, escolhendo
os tons persuasivos, doces, sinceros, e ao mesmo tempo as suas palavras discretas, ditas no fundo de um
segredo, vinham com uma intenção pérfida,
cheia de depravação. Carolina ficou hirta perante aquelas insinuações, olhando com os seus olhos cheios
de febre a cara franzida,
esperta, dessa megera que dominara o seu destino impelindo-a
na perdição e apontando-lhe como um fim
lógico, consequente e feliz. Grandes desvairamentos pulavam-lhe no crânio, exagerando-lhe
os sons, tornando-lhe as figuras sarcásticas e as sombras lúgubres. E as fontes pulavam-lhe, como
molas premidas que reagem; e o seu espírito dilacerado de aflições saturava-se de
alguma coisa estranha, como o indiferentismo ou a idiotice.
Nessa noite o João
entrou a desoras; cambaleava de bêbedo, cantarolando todo cheio de terra, como quem tivesse caído
pelas ruas, à porta das tabernas. Ela viu-o chegar sem se
mostrar surpresa, como quem
esperava mais. Mas disse,
ao meter-se na cama, estas palavras sem nexo:
— A fábrica...
E com um movimento impercetível de lábios:
— O colégio...
E ficou a pensar, imóvel, com os olhos fitos na luz.
Estas duas palavras representaram dali em
diante o seu destino, guiaram-na por um caminho espinhoso que sonhara ridente,
em horas de contemplação e plenitude.
Ao João era
manifesto o tédio daquela vida e o mal-estar daquela união. Pouco a pouco, com transições insensíveis, as
palavras dele adquiriam notas ásperas,
grandes frenesis inesperados, uma taciturnidade crescente, moedora e constante. Ela experimentava pelo seu turno
uma altivez ferida e rebelde de mulher
espezinhada e esquecida por outra;
em certos dias estrangulava de raivas
surdas, em que resfolegava,
a espaços, a
ânsia de humilhar, infamar, perder alguém;
fazia árias estrondosas pela
casa fora, garganteando pelintramente como no teatro; mas a noite
vinha gradual; ficava logo invadida mortalmente de uma
grande tristeza, de uma inexplicável passibilidade indiferente ao estímulo, dominada
de pressentimentos e
arquitetando toda trêmula
futuros famintos,
esfarrapados e enfermos. Não passava
uma tarde sem ver
a Marcelina; juntas parolavam durante horas,
desenrolando planos misteriosos
e discutindo futuros. A
velha revelava pormenores
do ofício, as subtilezas de que
lançam mãos certas mulheres, o segredo
de provocar, chamar, sorrir, andar na rua, mostrar as riquezas
do busto, conservar a face rosada, mesmo depois de uma noite de orgia. Carolina reagia
com monossílabos apenas, a esta
insinuação torpe; mas
abandonada pelo João, a falar
a verdade, que faria? Foi assim que ela determinou entrar na fábrica, em Alcântara. O João não opôs resistência; via o
meio de afastar aquela rapariga importuna
que o estorvava nos seus projetos, nos seus namoros. Ia todas as manhãs muito cedo, com o seu passo miúdo e
rápido, saracoteada e risonha, com
a sua
manta de borlas,
uma capa de
escocês verde, saia de folhos,
o lanche num cabazinho da Ilha.
No caminho encontrava
as companheiras, moças alegres e
desembaraçadas, cheias de risos,
largando chalaças de mordacidade equívoca. E iam todas por ali
fora. Os merceeiros dirigiam-lhes afagos
pérfidos, apupavam-nas os galegos sujos, os estudantes e os soldados. Que pândega! Respondiam a tudo com grandes
risadas bêbedas. Uma então, a Jerónima,
trigueira, a face picada de bexigas, até dava encontrões nos polícias, piscando os olhos: e todas
se divertiam a valer. À entrada
da fábrica, os operários davam-lhes abraços, com grande
intimidade; tratavam-se todos por tu,
como uma algazarra incorrigível, até que o fiscal, de barba branca, o seu casacão amarelo, um cachimbo preto de
nogueira, abria as portas da oficina. No
corredor, os operários dividiam-se em turmas;
uns iam para o empalamento dos cigarros; outros iam picar o
tabaco; alguns cortavam rótulos para as
caixas de charutos. Se o burburinho crescia em torno das longas mesas de trabalho, o fiscal erguia a voz:
— Nada de algazarra! Parece que estamos nalguma feira! — E
todos falavam baixo, contando histórias pagãs de gente sem
vergonha, de uma sordidez de viela. Sem grande esforço Carolina
aceitou estes hábitos que se lhe afiguravam
de uma naturalidade legítima, tão sincera e tão cômoda. Afeiçoara-se à Jerônima,
participando das suas opiniões, dos seus ditos, da sua fama. Ao escurecer o fiscal dizia, dando uma grande
palmada na mesa:
— Seja louvado Nosso
Senhor Jesus Cristo! — E todos largavam o trabalho,
tomavam os seus chapéus, os seus
xales, os seus capotes; na escuridão
do corredor estalavam beijos, pares
canalhas escorregavam nas escadas, havia
gritos e a chusma em tumulto, numa desordem vadia, atulhava rapidamente
o pátio, combinando ceias, encontros,
relações impuras. Foi a vida
melhor que Carolina
viveu. Aquela grande
liberdade infiltrara-lhe uma alegria espontânea,
uma grande destreza, um vigor
manifesto. Ganhava dinheiro, além disso; caída nas graças do
fiscal, obtinha sempre uma féria bem favorecida, sua
gorjeta para alfinetes.
Teve a partir daqui,
pelo menos, uma dúzia de amantes,
amantes de uma semana, de um
dia, preferidos à noite, esquecidos no dia seguinte,
e concorrendo todos para a
sustentação de um luxo
que pouco a
pouco se ia manifestando em Carolina. Um domingo apareceu em casa da alcoviteira, toda penteada
à moda, com um chapelinho de fitas
verdes, um casaco
bordado de contas, meia
de riscas, leque...
A velha discutia com duas raparigas o preço de um vestido de fazenda,
que mostrava com largos elogios.
— É um ovo por um real,
minha rica — dizia. — Um vestido como novo!
— Mas seis mil réis é muito
bom dinheiro, santinha!
— Pois olhem que da peça é
o triplo do custo. Agora façam lá
o que quiserem. — E voltada para Carolina:
— Viva o luxo! Viv'ò luxo! Vais observando que eu
tinha razão no que dizia. — E com insistência: — Tendo tino não
há coisa melhor, meu anjo. — E baixo,
tomando-a de parte: — E ele?
Carolina encolheu os ombros desdenhosa, um ar de
desprezo. A velha disse-lhe ao ouvido:
— Quem paga a renda da
casa?
— Meu pai. Há dois meses
que o não vejo, por tal sinal.
— Pois filha, se o
João não te serve para nada, que se
ponha
ao fresco, quanto antes. Primeiro
teu governo.
— Sim, sim — disse ela
pensativa.
E, dirigida pela alcoviteira, começou a viver só.
Desde esse dia,
as aventuras vieram-lhe por
centenas. Conheceu todas as espécies
de homens a quem se impingia
às horas, por baixo preço.
As gengivas tinham-se-lhe
descarnado, pintava os
beiços com carmim e para o giro
da noite cobria-se toda de pó-de-arroz. Forçava-a a profissão a peque-nos sacrifícios,
no intento de agradar aos que a buscavam. Comprimia os pés em sapatinhos altos, golpeados no peito para
deixar ver a meia de cores.
Apertava a cintura e os flancos com espartilhos que a
estrangulavam em duas metades, deixando-lhe o tórax afunilado
e hirto, o fígado opresso e a respiração
entrecortada. À hora dos teatros, quando nas ruas da cidade baixa fervilha inquieta a multidão dos que digerem,
e giram buscando par os velhos viciosos e os
rapazes definhados, ela descia
do seu bairro obreiro mais Jerónima,
paramentadas ambas de arrebiques pelintras — à pingadeira, como lhe chamavam. Tinham horror
à polícia, procuravam as sombras da rua chegadas
uma à outra, e olhando quem ia com o riso postiço das rameiras de profissão.
A espaços, automaticamente
quase, segredavam aos homens amabilidades sórdidas desenrolando toda a
gíria do oficio.
E ao pararem para apertar as mãos dos cocheiros e dos
trolhas circunvagavam a vista de um modo
inquieto a ver se — andava algum.
As noites assim passeadas até desoras fatigavam-nas de
morte. De manhã nem se podiam mexer, uma
paralisia de músculos, as articulações endurecidas, um travor na boca saburrosa, das más digestões
desordenadas. Sucedia por vezes amanhecer-lhes
pelas escadas no outro extremo da cidade, ou nas hospedeiras de má
nota onde vão anichar-se as últimas escoriações da torpeza.
Expulsavam-nas então com o nojo que
nasce da saciedade, escada abaixo, sem lhes
pagarem muitas vezes.
Se retrucavam, era sempre a mesma ameaça que as ia fazer
calar — a polícia e o livrete. Aquelas
duas palavras punham-lhes baques nas fontes, suores de rins e um calafrio mortal pelo dorso.
Na rua, os
dichotes dos vendilhões e dos galegos
cuspiam-lhes na face obscenidades
de tremer. Riam-se, retrucando algumas vezes. Mas a humilhação era
frisante e seguiam sempre sob
o terror
da chacota ou da prisão. A indolência de Carolina era agora
mais refinada que nunca, deixou de ir à
fábrica, passava os dias na enxerga da pocilga, dormitando.
E de uma vez
teve fome, sábado por sinal. Contraíra
já os últimos vícios suplementares da devassidão,
fumava, bebia, e nas tavernas, em estando bêbeda,
punha-se a dizer com voz
rouca fados ignóbeis, no meio
dos cocheiros excitados e ao som
dorido da guitarra.
Os velhos apeteciam-na de preferência, pelo seu ar moço e
pelos seus cabelos ruivos. Havia um
coronel reformado que lhe
dava dinheiro para
sapatos catitas. Era um velho
gordo, de óculos, todo grave na sua sobrecasaca preta. Gostava
delas bem calçadinhas,
meia esticada, e começava
sempre pelo pé, acariciando-o de
diminutivos ternos.
Era o seu melhor amigo, aquele senhor tolerante, e de uma
vez desaparecera. Vieram os maus dias
então, a polícia vigiava as casas de má nota, e prendera a Jerônima uma noite...
Carolina lembrou-se de voltar à fábrica. Sentia-se
doente, fatigada daquela vida de acaso
que lhe não tinha
dado senão fomes, maus
tratos e terrores. Mas encontrou
já ocupado o lugar que deixara na oficina. Quando descia ao pátio, deu com o fiscal, que se pôs a olhar para ela
muito tempo. E dali a nada lhe disse,
voltando a cabeça:
— Como você anda já...
Aquela comiseração
afligiu-a cruelmente, e
chorou todo o dia, mirando no espelho
a cara chupada e amarela, onde entre círculos roxos luziam dois olhos febris.
Dias depois, a polícia,
que a espreitava, conseguiu surpreendê-la em flagrante, é dali a
nada era inscrita
no livro de cinco mil
nomes, uma das glórias,
já hoje, desta florescente cidade que passa os seus dias enchendo de moeda
falsa os Brasis, e servindo óleo de
bacalhau ao melhor de cem mil tuberculosos.
Datam daqui todos os episódios da existência que teve o
seu epílogo há três dias, numa das camas da
enfermeira de Santa Ana,
no Desterro. Foi o tio Farrusco
quem cobriu de terra, sem comoção
nem saudade, o corpo, espedaçado pelo seu escalpelo, da
rapariga corroída de
podridões sinistras, abandonada do berço ao túmulo, e pasto
unicamente de desejos infames e de desvairamentos
vis. Tenho sobre a minha banca neste momento a sua caveira fria, limpa
de películas e cartilagens,
branca e escarninha, cujas
maxilas escancaram diante de mim, numa
careta trágica, a sua concavidade cheia de sombra. Este despojo inerte, rendilhado
e esponjoso pelos estragos do hidrargírio, embalde interroga a
meditação que me abisma,
sobre as causas prováveis da
grande desmoralização atual.
1878.
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Fialho de Almeida - Contos (1881)
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Fialho de Almeida - Contos (1881)
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