sábado, 24 de agosto de 2013

João Simões Lopes Neto: "O Mate do João Cardoso"

O MATE DO JOÃO CARDOSO

 — A la fresca!… que demorou a tal fritada! Vancê reparou?

Quando nos apeamos era a pino do meio-dia... e são três horas, largas!... Cá pra mim esta gente  esperou que as franguinhas se pusessem galinhas e depois botassem, para depois apanharem os ovos  e  só  então  bater  esta  fritada  encantada,  que  vai  nos  atrasar  a  troteada,  obra  de  duas  léguas...  de  beiço!...

Isto até faz-me lembrar um caso.. . Vancê nunca ouviu falar do João Cardoso?... Não?..  É pena.  

O João Cardoso era um sujeito que vivia por aqueles meios do Passo da Maria Gomes; bom  velho, muito estimado, mas chalrador como trinta e que dava um dente por dois dedos de prosa, e  mui amigo de novidades.

Também... naquele tempo não havia jornais, e o que se ouvia e se contava ia de boca em boca,  de  ouvido  para  ouvido. Eu,  o  primeiro  jornal  que vi  na  minha  vida  foi  em Pelotas mesmo, aí  por  1851.

Pois, como dizia: não passava andante pela porta ou mais longe ou mais distante, que o velho  João Cardoso não chamasse, risonho, e renitente como mosca de ramada; e aí no mais já enxotava a  cachorrada, e puxando o pito de detrás da orelha, pigarreava e dizia:

 Olá! Amigo! apeie-se; descanse um pouco! Venha tomar um amargo! É um instantinho...   crioulo?!…

O andante, agradecido à sorte, aceitava… menos algum ressabiado, já se vê.

—  Então  que  há  de  novo?  (E  para  dentro  de  casa,  com  uma  voz  de  trovão,  ordenava:)  Oh!  crioulo! Traz mate!

E já se botava na conversa, falava, indagava, pedia as novas, dava as que sabia; ria-se, metia opiniões, aprovava umas cousas, ficava buzina com outras...

E o tempo ia passando. O andante olhava para o cavalo, que já tinha refrescado; olhava para o sol que subia ou descambava… e mexia o corpo para levantar-se.

Bueno! são horas, seu João Cardoso; vou marchando!…

— Espere, homem! Só um instantinho! Oh! crioulo, olha esse mate!

E  retomava  a  chalra.  Nisto  o  crioulo  já  calejado  e  sabido,  chegava-se-lhe  manhoso  e cochichava-lhe no ouvido:

— Sr., não tem mais erva!…

— Traz dessa mesma! Não demores, crioulo!...

E o tempo ia correndo, como água de sanga cheia.

Outra vez o andante se aprumava:

— Seu João Cardoso, vou-me tocando… Passe bem!

— Espera, homem de Deus! É enquanto a galinha lambe a orelha!… Oh! crioulo!… olha esse  mate, diabo!

E outra vez o negro, no ouvido dele:

— Mas, sr!… não tem mais erva!

— Traz dessa mesma, bandalho!

E  o  carvão  sumia-se  largando  sobre  o  paisano  uma  riscada  do  branco  dos  olhos,  como encarnicando...

Por fim o andante não agüentava mais e parava patrulha:

— Passe bem, seu João Cardoso! Agora vou mesmo. Até a vista!

— Ora, patrício, espere! Oh crioulo, olha o mate!

— Não! não mande vir, obrigado! Pra volta!

Pois sim…, porém dói-me que você se vá sem querer tomar um amargo neste rancho. É um instantinho... oh! crioulo!

Porém o outro já dava de rédea, resolvido à retirada.

E o velho João Cardoso acompanhava-o até a beira da estrada e ainda teimava:

—  Quando  passar,  apeie-se!  O  chimarrão,  aqui,  nunca  se  corta,  está  sempre  pronto!  Boa  viagem! Se quer esperar... olhe que é um instantinho... Oh! crioulo!…

Mas o embuçalado já tocava a trote largo.

Os mates do João Cardoso criaram fama… A gente daquele tempo, até, quando queria dizer que  uma cousa era tardia, demorada, maçante, embrulhona, dizia — está como o mate do João Cardoso!

A verdade é que em muita casa e por muitos motivos, ainda às vezes parece-me escutar o João  Cardoso, velho de guerra, repetir ao seu crioulo:

— Traz dessa mesma, diabo, que aqui o sr. tem pressa!...

— Vancê já não tem topado disso?…


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Nota:
João Simões Lopes Neto: "Contos Gauchescos" (1912)

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