DEVE UM QUEIJO!…
O
velho Lessa era
um homem assinzinho...
nanico, retaco, ruivote,
corado, e tinha
os olhos vivos como azougue... Mas quanto tinha pequeno
o corpo, tinha grande o coração.
E
sisudo; não era
homem de roer
corda, nem de
palavra esticante, como
couro de cachorro. Falava pouco, mas quando dizia, estava dito;
pra ele, trato de boca valia tanto — e até mais — que papel de tabelião. E no mais, era — pão, pão;
queijo, queijo!
E, por falar nisto:
Duma feita no Passo
do Centurião, numa
venda grande que
ali havia, estava
uma ponta de andantes,
tropeiros, gauchada teatina, peonada, e tal, quando descia um cerro alto e
depois entrava na estrada, ladeada de
butiazeiros, que se estendem para os dois lados, sombreando o verde macio dos pastos, quando troteava de escoteiro, o velho
Lessa.
De ainda
longe já um
dos sujeitos o
havia conhecido e dito quem
era e donde;
e logo outro
— passou voz que aí no mais todos
iriam comer um queijo sem nada pagar...
Este fulano era um castelhano
alto, gadelhudo, com uma pêra enorme, que ele às vezes, por graça ou tenção reservada, costumava trançar, como para dar
mote a algum dito, e ele retrucar, e, daí, nascer uma cruzada de facões, para divertir, ao primeiro coloreado…
Sossegado da
sua vida o
velho Lessa aproximou-se,
parou o cavalo
e mui delicadamente
tocou na aba do sombreiro;
— Boa-tarde, a todos!
E apeou-se.
Maneou o mancarrão, atou-lhe as
rédeas ao pescoço e dobrou os pelegos, por causa da quentura do sol.
Quando ia
a entrar na
venda, saiu-lhe o
castelhano, pelo lado
de laçar... A
este tempo o negociante saudava o velho, dizendo:
— Oh! seu Nico! Seja bem
aparecido! Então, vem de Canguçu, ou vai?...
Antes que o cumprimentado
falasse, o castelhano intrometeu-se:
— Ah! es usted de Canguçu?...
Entonces... debe un queso!...
O paisano abriu um ligeiro claro
de riso e com toda a pachorra ainda respondeu:
— Ora, amigo... os queijos andam vasqueiros...
— Si, pa nosotros... pero Canguçu
pagará queso, hoy!....
O
vendeiro farejou catinga agourenta, no ar, e quis ladear o importuno; o
velho Lessa coçou a barbinha do queixo,
coçou o cocuruto, relanceou os olhinhos pelos assistentes, e mui de manso pediu
ao empregado do balcão:
— ‘Stá bem!... Chê! dê-me aquele
queijo!...
E apontou para um rodado dum
palmo e meio de corda, que estava na prateleira, ali à mão.
O gadelhudo refastelou-se sobre
um surrão de erva, chupou os dentes e ainda enticou:
— Oigalê!... bailemos, que queso
hay!...
Com a mesma santa paciência o
velho encomendou então o seu almoço — ovos, um pedaço de lingüiça, café — e depois pegou a partir o
queijo, primeiro ao meio, em duas metades e depois uma destas em fatias, como umas oito ou dez;
acabando, ofereceu a todos:
— São
servidos?
Ninguém topou: agradeceram; então disse ele ao
cobrador:
—
Che!... pronto! Sirva-se!...
O
castelhano levantou-se, endireitou as armas e chegando-se para o prato
repetiu o invite:
— Entonces?... está pago,
paisanos!...
— E às talhaditas começou a comer.
O velho Lessa — ele tinha pinta de tambeiro,
mas era touro cupinudo... pegou a picar um naco; sovou
uma palha; enrolou
o baio; bateu
os avios, acendeu
e começou a
pitar, sempre calado,
e moneando, gastando um tempão...
Lá na outra ponta do balcão um
freguês estava reclamando sobre uma panela reiúna, que lhe haviam vendido com o beiço quebrado...
Aí pelas seis talhadas o clinudo
parou de mastigar.
Bueno. . buenazo!... pero no puedo más!...
Mas o velho, com o facão espetou
uma fatia e of’receu-lhe:
— Esta, por mim!
— Si, justo: por usted, vaya!…
E às cansadas remoeu o pedaço.
E mal que engoliu o último
bocado, já o velho apresentava-lhe outra fatia, na ponta do ferro:
— Outra, a saúde de Canguçu!...
— Pero...
— Não tem pêro nem pêra...
Come...
—
Pê…
—
Come, clinudol...
E, no mesmo soflagrante, de
plancha, duro e chato, o velho Lessa derrubou-lhe o facão entre as orelhas,
pelas costelas, pelas
paletas, pela barriga,
pelas ventas… seguido,
e miúdo, como
quem empapa d’água
um couro lanudo.
E com esta
sumanta levou-o sobre
o mesmo surrão
de erva, pôs-lhe nos joelhos o prato com o resto do
queijo e gritou-lhe nos ouvidos: — Come!...
E o roncador comeu... comeu até
os farelos...; mas, de repente, empanzinado, de boca aberta, olhos arregalados,
meio sufocado, todo
se vomitando, pulou
porta fora, se
foi a um matungo e disparou
para a barranca do passo… e foi-se, a la cria!...
O reclamador da panela desbeiçada
deu uma risada e chacoteou, pra o rastro:
— ‘Orre, maula!... quebraram-te o
corincho!...
E o velhito, com toda a sua
pachorra indagou pelo almoço, se já estava pronto?...
— Os ovos..., a lingüiça..., o
café?…
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Nota:
João Simões Lopes Neto: "Contos Gauchescos" (1912)
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Nota:
João Simões Lopes Neto: "Contos Gauchescos" (1912)
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