sábado, 24 de agosto de 2013

João Simões Lopes Neto: "O Boi Velho"

O BOI VELHO

Cuê-pucha!… é bicho mau, o homem!

Conte vancê as maldades que nós fazemos e diga se não é mesmo!... Olhe, nunca me esqueço  dum caso que vi e que me ficou cá na lembrança, e ficará té eu morrer… como unheiro em lombo de  matungo de mulher.

Foi na estância dos Lagoões, duma gente Silva, uns Silvas mui políticos, sempre metidos em  eleições e enredos de qualificações de votantes.

A estância era como aqui e o arroio como a umas dez quadras; lá era o banho da família. Fazia uma ponta, tinha um sarandizal e logo era uma volta forte, como uma meia-lua, onde as areias se  amontoavam formando um baixo: o perau era do lado de lá. O mato aí parecia plantado de propósito:  era quase que pura guabiroba e pitanga, araçá e guabiju; no tempo, o chão coalhava-se de fruta: era  um regalo!

Já  vê...  o  banheiro  não  era  longe,  podia-se  bem  ir  lá  de  a  pé,  mas  a  família  ia  sempre  de  carretão, puxado a bois, uma junta, mui mansos, governados de regeira por uma das senhoras-donas e  tocados com uma rama por qualquer das crianças.

Eram dois pais da paciência, os dois bois. Um se chamava Dourado, era baio; o outro, Cabiúna,  era preto, com a orelha do lado de laçar, branca, e uma risca na papada.

Estavam  tão  mestres  naquele  piquete,  que,  quando  a  família,  de  manhãzita,  depois  da  jacuba  de  leite,     pegava a aprontar-se, que a criançada pulava para o terreiro ainda mastigando um naco de pão e as crioulas  apareciam com as toalhas e por fim as senhoras-donas, quando se gritava pelo carretão, já os bois, havia muito  tempo  que  estavam  encostados  no  cabeçalho,  remoendo  muito  sossegados,  esperando  que  qualquer  peão os ajoujasse.

Assim correram os anos, sempre nesse mesmo serviço.

Quando entrava o inverno eles eram soltos para o campo, e ganhavam num rincão mui abrigado,  que havia por detrás das casas. Às vezes, um que outro dia de sol mais quente, eles apareciam ali por  perto, como indagando se havia calor bastante para a gente banhar-se. E mal que os miúdos davam  com eles, saíam a correr e a gritar, numa algazarra de festa para os bichos.

— Olha o Dourado! Olha o Cabiúna! Oôch!... oôch!…

E algum daqueles traquinas sempre desencovava uma espiga de milho, um pedaço de abóbora,  que  os  bois  tomavam,  arreganhando  a  beiçola  lustrosa  de  baba,  e  punham-se  a  mascar,  mui  pachorrentos, ali à vista da gurizada risonha.

Pois veja vancê..  Com o andar do tempo aquelas crianças se tornaram moças e homens feitos,  foram-se casando e tendo família, e como quera, pode-se dizer que houve sempre senhoras-donas e  gente miúda para os bois velhos levarem ao banho do arroio, no carretão.

Um dia, no fim do verão, o Dourado amanheceu morto, mui inchado e duro: tinha sido picado  de cobra.

Ficou  pois  solito,  o  Cabiúna;  como  era  mui  companheiro  do  outro,  ali  por  perto  dele  andou  uns  dias    pastando, deitando-se, remoendo. Às vezes esticava a cabeça para o morto e soltava um mugido... Cá pra mim  o  boi  velho  —  uê!  tinha  caraca  grossa  nas  aspas!  —  o  boi  velho  berrava  de  saudades  do  companheiro  e  chamava-o, como no outro tempo, para pastarem juntos, para beberem juntos, para juntos puxarem o carretão...

— Que vancê pensa!… os animais se entendem... eles trocam língua!...

Quando o Cabiúna se chegava mui perto do outro e farejava o cheiro mim, os urubus abriam-se, num trotão, lambuzados de sangue podre, às vezes meio engasgados, vomitando pedaços de carniça...

Bichos malditos, estes encarvoados!...

Pois, como ficou solito o Cabiúna, tiveram que ver outra junta para o carretão e o boi velho por  ali foi ficando. Porém começou a emagrecer... e tal e qual como uma pessoa penarosa, que gosta de estar sozinha, assim o carreteiro ganhou o mato, quem sabe, de penaroso. também...

Um dia de sol quente ele apareceu no terreiro.

Foi um alvoroto da miuçalha.

— Olha o Cabiúna! O Cabiúna! Oôch! Cabiúna! oôch!...

E vieram à porta as senhoras-donas, já casadas e mães de filhos, e que quando eram crianças tantas vezes foram levadas pelo Cabiúna; vieram os moços, já homens, e todos disseram:

— Olha o Cabiúna! Oôch! Oôch!...

Então, um notou a magreza do boi; outro achou que sim; outro disse que ele não agüentava o primeiro minuano de maio; e conversa vai, conversa vem, o primeiro, que era mui golpeado, achou que era melhor matar-se aquele boi, que tinha caraca grossa nas aspas, que não engordava mais e que iria morrer atolado no fundo dalguma sanga e... lá se ia então um prejuízo certo, no couro perdido.. 

E já gritaram a um peão, que trouxesse o laço; e veio. A mão no mais o sujeito passou uma volta de meia-cara; o boi cabresteou, como um cachorro...

Pertinho estava o carretão, antigão, já meio desconjuntado, com o cabeçalho no ar, descansando sobre o muchacho.

O peão puxou da faca e dum golpe enterrou-a até o cabo, no sangradouro do boi manso; quando retirou a mão, já veio nela a golfada espumenta do sangue do coração...

Houve um silenciozito em toda aquela gente.

O  boi  velho  sentindo-se  ferido,  doendo  o  talho,  quem  sabe  se  entendeu  que  aquilo  seria  um castigo, algum pregaço de picana, mal dado, por não estar ainda arrumado... — pois vancê creia! —: soprando o sangue em borbotões, já meio roncando na respiração, meio cambaleando o boi velho deu uns passos mais, encostou o corpo ao comprido no cabeçalho do carretão, e meteu a cabeça, certinho, no lugar da canga, entre os dois canzis... e ficou arrumado, esperando que o peão fechasse a brocha e lhe passasse a regeira na orelha branca...

E ajoelhou… e caiu… e morreu...

Os cuscos pegaram a lamber o sangue, por cima dos capins… um alçou a perna e verteu em cima...  e  enquanto  o  peão  chairava  a  faca  para  carnear,  um  gurizinho,  gordote,  claro,  de  cabelos cacheados,  que  estava  comendo  uma  munhata,  chegou-se  para  o  boi  morto  e  meteu-lhe  a  fatia  na boca, batia-lhe na aspa e dizia-lhe na sua língua de trapos:

—  Tome, tabiúna! Nó té... Nô fá bila, tabiúna!...

E ria-se o inocente, para os grandes, que estavam por ali, calados, os diabos, cá pra mim, com remorsos por aquela judiaria com o boi velho, que os havia carregado a todos, tantas vezes, para a alegria do banho e das guabirobas, dos araçás, das pitangas, dos guabijus!…

— Veja vancê, que desgraçados; tão ricos… e por um mixe couro do boi velho!... 

— Cuê-pucha!…é mesmo bicho mau, o homem!

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Nota:
João Simões Lopes Neto: "Contos Gauchescos" (1912) 

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