CORRER EGUADA
Se vancê fosse daquele tempo, eu
calava-me, porque não lhe contaria novidade, mas vancê é um guri, perto de mim,
que podia ser seu avô... Pois escuite.
Tudo era aberto; as estâncias
pegavam umas nas outras sem cerca nem tapumes; as divisas de cada uma
estavam escritas nos
papéis das sesmarias;
e lá um
que outro estancieiro
é que metia marcos
de pedra nas
linhas, e isso
mesmo quando aparecia
algum piloto que
fosse entendido do ofício e viesse bem apadrinhado.
Vancê vê
que desse jeito
ninguém sabia bem
o que era
seu, de animalada.
Marcava-se, assinalava-se o que se podia, de gado, mas mesmo assim,
pouco; agora, o que tocava à bagualada, isso era quase reiúno... pertencia ao
campo onde estava pastando. E mesmo nem tinha valor nenhum: égua baguala era só
para tirar-se as loncas, alguma bota.
Depois é
que apareceram uns lamões e
uns ingleses, melados,
que compravam o
cabelo: por isso às vezes se
cerdeava; mas eles pagavam uma tuta e meia.
Veja vancê: sempre a
estrangeirada especulando cousas de que a gente nem fazia caso...
Eguada xucra, potrada orelhana,
isso, era imundície, por esses campos de Deus; miles e milesl...
E
bicho brabo pra
se tropear, esse!...
Barulhento, espantadiço, disparador
e ligeiro, como trezentos
diabos!
Mas, como quera, era sempre um
divertimento macanudo, uma volteada de baguais!
Ah!…
Não há nada como tomar mate e
correr eguada!
Aí para
os meios de
Quaraim, nos campos
do major Jordão,
entrei uma vez
numa correria macota.
Foi logo depois da guerra do
Oribe. Havia como dez mil baguais entre éguas e potros orelhanos, cavalhada
largada, reiúna e marcada, que toda virou haragana, nos pajonais.
Os gados, que já eram mui
ariscos, viviam numa bolandina com as disparadas da bagualada.
Pro caso, diz que é o Negrinho do
Pastoreio que faz as disparadas dos cavalares... Isso é uma história comprida…
Um belo dia o major resolveu
fazer uma limpa naquele bicharedo alçado.
E preparou-se, com tempo.
Desfrutou a novilhada que pode,
no verão, arreglou as suas contas e mandou avisar e convidar o vizindário para correr a bagualada no veranico
de maio, que era para agarrar o bicharedo rachando de gordo e aguaxado, pesadão
e o tempo mais fresco para a cavalhada do serviço.
Amigo! Quando foi aos três dias
da lua nova a estância estava apinhada de gauchada. Como uns oitenta e tantos
torenas, campeiraços destorcidos, domadores e boleadores de fama.
Adelgaçava-se os
fletes com água a meia
costela, em qualquer lagoão,
e à soga; cascos bem aparados, agarradeiras bem cavadas,
endurecidas com uma untura de sebo de rim e carvão, aquentada com a ponta em
brasa de um tição de goiabeira; cola curta, toso baixo.
E a gauchada quase toda de em
pêlo. Uns de bombacha, outros de chiripá; muitos sem chapéu, muitos de lenço na
cabeça; tudo em mangas de camisa e faca atravessada.
O mais maula levava pelo menos
dois pares de bolas; três pares, isso era a rodo, e havia torena que chegava a
levar cinco: um na mão, os outros na cintura.
E tudo boleadeiras mui bem
feitas, de pedra pequena; porque vancê sabe que o cavalar tem o osso mais
quebradiço que a rês — e vai, se toma de mau jeito um bolaço pesado, aí no mais
já temos um avariado.
Pois é:
as três-marias retovadas
a preceito; e
as sogas macias,
pra não cortar;
e levava-se também uns quantos
ligares.
— Vancê não sabe o que é um
ligar? Não é só, não sr., o couro de terneirote pra fazer carona; é também uma
tira de guasca, chata, assim duma meia braça, com um furo dum lado e uma meia
ponta do outro. Conforme boleava um animal e ele caia, o campeiro chegava-se e
passava-lhe o ligar em cima do garrão
e apertava, acochava,
à moda velha;
hom!... era mesmo
como botar uma
liga de mulher, com perdão da
comparação!
Vancê compr’ende, não!
Ficava o nervo do garrão, arrochado pelo ligar; então o gaúcho
desenredava as boleadeiras e assinalava e mal isto, já o bagual se aprumava e
levantava-se, bufando, puava, pra rufar..., mas qual! saía em três pernas!... E
assim de seguida, em dois, três, oito ou mais, que cada corredor boleasse;
esses não podiam mais disparar, ficavam perneteando no meio do campo!
Então a gurizada, os piás, a
relho, iam entropilhando os ligados, que depois cada dono separava pelo sinal
feito.
Era assim, que, conforme ia
correndo a eguada, cada gaúcho ia boleando o bagual que mais lhe agradava; às
vezes saíam dois a um mesmo animal: aí, o que primeiro lhe sentava as pedras,
era o dono.
Mas também,
quanto porongo!... Quantas
vezes, depois duma
canseira, boleava-se e
caía um potro lindaço, cogotudo e
bem lançado, e ia-se ver, era um colmilhudo, com cada dente como uma
estaca... velho como
o cerro do
Batovi; ou era
um mancarrão de
montaria, aporreado e cuerudo..
outras vezes ainda… enfim, havia sempre embaçadelas!
Mas, como
ia dizendo: quando a
gente estava toda
a cavalo e
pronta, o estancieiro
ou o encarregado distribuía os
ternos, que espalhavam-se a todos os rumos, sobre as costas e rinconadas, para
fazer a tocada de lá desses fundos.
E
daí a pouco
já se levantavam
os primeiros rumores...
A bagualada estranhava
aqueles movimentos; os colhudos
começavam a relinchar,
ajuntando, pastorejando as
manadas; os entropilhados, farejando,
entreparavam-se, arpistas; outras pandilhas, de cola alçada, iam num trotão dançado,
bufando... e já cerravam numa correria em redondo e depois riscavam, campo
fora...
Lá adiante, o mesmo barulho;
noutro ponto, igual; dum rindo, numa trepada de coxilha, numa descida de
canhada, rufando duma restinga, os lotes de eguariços iam se encontrando,
entreverando-se; os campeiros vinham chegando e a gritos, a cachorro, a tiro,
ia-se tocando a bagualada de cada querência;
de todos os
lados cruzava-se a
contradança, que se
encaminhava sobre uma
linha já combinada; e aos poucos
ia crescendo o rodeio movediço, que engrossava, redemoinhava, espirrava,
tornava a embolar-se..
e de repente
fazia cabeça, fazia
ponta, e todo
disparava, fazendo tremer
a terra, roncando no ar, como uma trovoada.
Aí a
gente entrava a manguear, aos
dois lados, e
então é que
começava, de verdade,
o divertimento! Arrematava-se três, quatro, cinco fletes; corria-se sem
parar, seis, dez, doze léguas... e no fim estava-se folheiro!. .
Barbaridade! Nem há nada como
tomar mate e correr eguada!
Amigo! Aquele novelo não se
desmanchava mais; ao contrário, o que ia topando pela frente ou aos lados, de eguada, também corria e
atirava-se, incorporando-se; na culatra ia ficando uma estiva de potrilhos, de
flacos, de aplastados, dos que rodavam, dos que se quebravam e até dos que
morriam pisoteados por aquela massa cerrada de cascos.
E em cancha direita ou fazendo
voltas largas, não se respeitava sanga, banhado, tacuru, panela de caranguejo,
nem buraco de
tuco-tuco; ia-se acamando
as macegas, pisoteando
cardais, esmigalhando as manchas de trevo, e ia-se sempre a meia rédea.
Aí é que era o lindo!
Os fletes montados, alevianados,
corriam, alçados no freio; os tiros de bolas cruzavam-se nos ares… e aquilo era
largar as três-marias sobre a paleta do escolhido e o bagual logo rodava, no
enleio das sogas.
O gaúcho, apeava, ligava, tirava
as boleadeiras e já se bancava de novo pra nova nombrada,
Isto quando era por divertir.
Quando era para tropa, o melhor
era reiunar os boleados; isso era ligeiro: com um talho de faca, por detrás, na
raiz da orelha, esta caía pra diante, sobre o olho; o sangue também ajudava,
porque escorria e se empastava nas clinas; e podia ser potro cru e malevaço,
que ali no mais dava o cacho; podia fazer-se dele sinuelo.
Quando era
para limpeza, então
tocava-se a eguada
sobre um apertado
qualquer, sobre uma sanga bem funda, grota, manantial,
sumidouro, e atirava-se aí pra dentro, para destroçar, para acabar, atirava-se
aí para dentro toda a bagualada, que, do lance em que vinha, toda se afundava,
amontoava, esmagava e morria, sem poder recuar, perdida pela sua própria
brabeza, empurrada pelas pechadas dos que vinham, sarapantados, tocados de
trás!...
E o resto que se desguaritava e que
se podia ainda apanhar a laço e bolas, esse, degolava-se.
Dessa feita, nos campos do major
Jordão matamos pra mais de seis mil baguais. E cada gaúcho, na despedida, foi
tocando por diante a sua tropilhita nova.
Hoje... onde é que se faz disso?
É verdade que há muita cousa boa,
isso é verdade... mas ainda não há nada, como antigamente,
tomar mate e correr eguada...
Xô-mico!.. Vancê veja… eu até choro!...
Ah! tempo!…
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Nota:
João Simões Lopes Neto: "Contos Gauchescos" (1912)
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Nota:
João Simões Lopes Neto: "Contos Gauchescos" (1912)
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