sábado, 24 de agosto de 2013

João Simões Lopes Neto: "Chasque do Imperador"

CHASQUE DO IMPERADOR 

— Quando foi do cerco de Uruguaiana pelos paraguaios em 65 e o imperador Pedro 2 veio cá, com toda a frota da sua comitiva, andei muito por esses meios, como vaqueano, como chasque, como confiança dele; era eu que encilhava-lhe o cavalo, que dormia atravessado na porta do quarto dele, que carregava os papéis dele e as armas dele.

Começou assim: fui escalado para o esquadrão que devia escoltar aquele estadão todo.

Quando a força apresentou-se ao seu general Caxias, o velho olhou... olhou... e não disse nada.

Cada um, firme como um tarumã; as guascas, das melhores, as garras, bem postas, os metais, reluzindo; os fletes tosados a preceito, a cascaria aparada... e em cima de tudo, — tirante eu — uma indiada macanuda, capaz de bolear a perna e descascar o facão até pra Cristo, salvo seja!...

Pois o velho olhou…, olhou…, e ficou calado. E calado saiu.

O tenente que nos comandava, relanceou os olhos como numa sufocação e berrou:

— Firme! E dando um torcicão forte na banda, começou a mascar a pêra, furioso.

E ali ficamos; de vez em quando um bagual escarceando, refolhando, escarvando...

Daí a pouco, de em frente, das casas, veio saindo unia gentama, muito em ordem, de a dois, de a três.

Na testa vinha um homem alto, barbudo, ruivo, de olhos azuis, pequenos, mas mui macios. A esquerda  dele,  dois  passos  menos,  como  na  ordenança,  o  velho  Caxias,  fardado  e  firme,  como sempre.

O outro, o ruivo, assim a modo um gringo, vinha todo de preto, com um gabão de pano piloto, com veludo na gola e de botas russilhonas, sem esporas.

Pela pinta devia ser mui maturrango.

Não trazia espada nem nada, mas devia ser um maioral porque todos os outros se apequenavam pra ele. Quem seria?.. 

O tenente descarregou umas quantas vozes; e nós estávamos como corda de viola!...

O  ruivo  passou  pela  nossa  frente,  devagar;  mirou  um  flanco  e  outro,  e  falou  com  o  velho, mostrando um ar risonho no rosto sério.

O velho acenou ao tenente, que tocou o cavalo e firmou a espada em continência.

Então o ruivo disse:

— ‘Stá bem, sr. tenente; estou satisfeito! Mande-me aqui um dos seus homens, qualquer...

— O tenente bateu a espada e deu de rédea, e parou mesmo na minha frente..  eu era guia da fila testa.

—  Cabo Blau Nunes! Pé em terra! Um!... Dois!…

Estava apeado e perfilado, com a mão batendo na aba levantada do meu chapéu de voluntário.

—  Apresente-se!

E  baixinho,  fuzilando  nos  olhos,  boquejou-me:  —  aquele  é  o  imperador;  se  te  enredas  nas quartas, defumo-te!

Ora!... Caminhei firme e quando cheguei a cinco passos do ruivo, tornei a quadrar o corpo, na postura dos mandamentos.

Aí o velho Caxias perguntou:

—  Sabes a quem falas?

—  Diz que ao senhor imperador!

—  Sua majestade o imperador, é que se diz.

— A sua majestade o imperador!

Vai então, o tal, que pelo visto, era mesmo o tão falado imperador, disse, numa vozinha fina:

—  Bem; cabo, você vai ficar na minha companhia; há de ser o meu ordenança de confiança. Quer?...

—  O senhor imperador vai ficar mal servido: sou um gaúcho mui cru; mas para cumprir ordens e dar o pelego, tão bom haverá, melhor que eu, não!

Aí o homem riu-se e o velho também. E vai este indagou:

—  Conheces-me?

—  Como  não?!...  Desde  45,  no  Ponche  Verde;  fui  eu  que  uma  madrugada  levei  a  vossa excelência  um  ofício  reservado,  pra  sua  mão  própria...  e  tive  que  lanhar  uns  quantos  baianos abelhudos que entenderam de me tomar o papel... Vossa excelência mandou-me dormir e comer na sua barraca, e no outro dia me regalou um picaço grande, mui lindo, que...

—  Bem me parecia, sim... E ainda és o mesmo homem?

—  Sim, sr., com algum osso mais duro e o juízo mais tironeado!

—  É que sua majestade vai precisar de um chasque provado, seguro... há perigo, na missão...

—  Uê! seu general!... Meu pai e minha mãe hoje, é esta!

E beijei a minha divisa de cabo.

O  imperador pôs a mão no meu ombro e disse:

—  Estimo-te. Podes ir... e cala-te.

E vancê creia... — que diabo! — tive um estremeção por dentro!...

Eu pensava que o imperador era um homem diferente dos outros... assim todo de ouro, todo de brilhantes, com olhos de pedras finas...

Mas, não senhor, era um homem de carne e osso, igual aos outros... mas como quera... uma cara tão séria… e um jeito ao mesmo tempo tão sereno e tão mandador, que deixava um qualquer de rédea no chão!...

Isso é que era!…

Fiz  meia-volta  e  fui  tomar  o  meu  lugar;  o  esquadrão  desfilou,  apresentando  armas  e  fomos acampar.  Logo  a  rapaziada  crivou-me  de  perguntas...  mas  eu,  soldado  velho,  contei  um  par  de rodelas, queimei campo a boche, mas não afrouxei nada da conversa; não vê!...

De tardezita já entrava de serviço.

A  não  ser  nas  conversas  particulares  daqueles  graúdos  —  pois  tudo  era  só  seu  barão,  seu conselheiro, seu visconde, seu ministro —, eu sempre via e ouvia o que se passava.

E a bem boas assisti.

Um dia apresentaram ao imperador um topetudo não sei donde, que perguntou, mui concho:

—  Então vossa majestade tem gostado disto por aqui?

—  Sim, sim, muito!

—  Então por que não se muda pra cá, com a família?...

Outro,  no  meio  da  roda,  puxou  da  traíra,  sovou  uma  palha  de  palmo,  e  começou  a  picar  um naco;  esfregou  o  fumo  na  cova  da  mão,  enrolou,  fechou  o  baio  e  mui  senhor  de  si  ofereceu-o  ao imperador.

—  É servido?

—  Não, obrigado; parece-me forte o seu fumo...

—  Não sabe o que perde!... Então, com sua licença!...

E bateu o isqueiro e começou a pitar, tirando cada tragada que nuveava o ar!


Havia  um  que  era  barão e  comandava  um  regimento,  que  era mesmo  uma  flor; tudo moçada parelha e guapa.

O  imperador gabou muito a força, e aí no mais o barão já lhe largou esta agachada:

—  Que  vossa  majestade  está  pensando?...  Tudo  isto  é  indiada  coronilha,  criada  a  apojo, churrasco  e  mate  amargo...  Não  é  como  essa  cuscada  lá  da  Corte,  que  só  bebe  água  e  lambe  a... barriga!...

Este mesmo barão, duma feita que o d. Pedro procurou no bolso umas balastracas para dar uma esmola e não achou mais nada, desafivelou a guaiaca e entregando-a disse:

— Tome, senhor! Cruzes! Nunca vi homem mais mão-aberta do que vossa majestade…, olhe que quem dá o que tem, a pedir vem... mas... quando quiser os meus arreios prateados... e até a minha tropilha é só mandar... só reservo o tostado crespo e um qualquer pelego...

—  Mas, sr. barão, nem por isso eu dou o que desejara…
—  Ora qual!. . Vossa majestade não dá a camisa... porque não tem tempo de tirá-la!...

Numa das marchas paramos num campestre, na beira dum passo, perto dum ranchito.

Daí a pouco, com uma trouxinha na mão apareceu no acampamento uma velha, que já tinha os olhos  como  retovo  de  bola.  Por  ali  andou  mirando,  e  depois  entrando  mesmo  no  grupo  onde  ele estava, disse:

—  Bom dia, moços! Qual de vocês é o imperador?

—  Sou eu, dona! Assente-se.

A velha olhou-o de alto a baixo, calada, e depois rindo nos olhos: 

—  Deus te abençoe! Nossa Senhora te acompanhe, meu filho! Eu trago-te este bocadinho de fiambre!

E  abrindo  o  pano,  mui  limpinho,  mostrou  um  requeijão,  que  pela  cor  devia  de  estar  um gambelo, de gordo e macio. D. Pedro agradeceu e quis dar uma nota à velha, que parou patrulha.

—  Não!  não!...  Tu  vais  pra  guerra...  Os  meus  filhos  e  netos  já  lá  andam...  Eu  só  quero  que vocês não se deixem tundar!...

Houve uma risada grande, da comitiva. A velhota ainda correu os olhos em roda e indagou:

—  Diz que o seu Caxias também vem aqui... quem é?

—  Sou eu, patrícia!... Conhece-me?

—  De  nome,  sim,  senhor.  O  meu  defunto,  em  vida  dele,  sempre  falava  em  vancê...  Pois  os caramurus iam fuzilar o coitado, quando vancê apareceu... Lembra-se?... E vai, quando o seu general Canabarro  fez  a  paz  entre  os  farrapos  e  os  legais,  o  meu  defunto  jurou  que  onde  estivesse  o  seu Caxias, ele havia de ir... mas morreu, pro via dum inchume, que apareceu, aqui, lá nele. Mas, como por aqui, correu que vancê ia pra guerra dos paraguaios, o meu filho mais velho, em memória do pai, ajuntou os irmãos e os sobrinhos e uns quantos vizinhos e se tocaram todos, pra se apresentarem de voluntários, a vancê!… Vancê dê notícias minhas e bote a benção neles; e diga a eles que não deixem o  imperador  perder  a  guerra...  ainda  que  nenhum  deles  nunca  mais  me  apareça!...  Bem!  com  sua licença... Seu imperador, na volta, venha pousar no rancho da nhã Tuca; é de gente pobre, mas tudo é limpo com a graça de Deus... e sempre há de haver uma terneira gorda pra um costilharl... Passar bem! Boa viagem... Deus os leve, Deus os traga!...

O  imperador — esse era meio maricas, era! — abraçou a velha, prometendo voltar, por ali, e quando ela saiu, disse:

— Como é agradável esta rudeza tão franca!

Numa cidade onde pousamos, o imperador foi hospedado em casa dum fulano, sujeito pesado, porém mui gauchão.

Quando foi hora do almoço, na mesa só havia doces e doces... e nada mais. O imperador, por cerimônia provou alguns; a comitiva arriou aqueles cerros açucarados. Quando foi o jantar, a mesma cousa: doces e mais doces!... Para não desgostar o homem, o imperador ainda serviu-se, mas pouco; e de noite, outra vez, chá e doces!

O imperador, com toda a sua imperadorice, gurniu fome!

No outro dia, de manhã, o fulano foi saber como o hóspede havia passado a noite e ao mesmo tempo acompanhava uma rica bandeja com chá e... doces...

Aí o imperador não pôde mais… estava enfarado!…

— Meu amigo, os doces são magníficos... mas eu agradecia-lhe muito se me arranjasse antes um feijãozinho... uma lasca de carne...

O  homem ficou sério… e depois largou uma risada:

— Quê! Pois vossa majestade come carne?! Disseram-me que as pessoas reais só se tratavam a bicos  de  rouxinóis  e  doces  e  pasteizinhos!…  Por  que  não  disse  antes,  senhor?  Com  trezentos diabos!... Ora esta!... Vamos já a um churrasco... que eu, também, não agüento estas porquerias!...

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Nota:
João Simões Lopes Neto: "Contos Gauchescos" (1912)

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