A PROMESSA
Capítulo I
Foi um alvoroço na vila quando se
soube que alguns rapazes do lugar haviam sido sorteados para o Exército. Há
meses, andara por lá, tomando nota dos nomes, um capitão, que levara o endereço
de todos; e ninguém se lembrava mais dele, nem da sua farda, quando chegou
aquela notícia, alarmando as mães, afligindo as noivas, mas entusiasmando, ao
mesmo tempo, a mocidade vigorosa da terra, atingida pela convocação.
— No tempo do Paraguai — diziam
os velhos, cachimbando monotonamente à sombra fresca das latadas, — o remédio
era o mato. Ou, então, passar o facão na mão direita e cortar uns dois dedos
para não puxar o gatilho.
E enumeravam-se os que, por esse
modo, haviam fugido ao recrutamento:
— Foi assim que escaparam o
Bernardo Viúvo, o Joaquim André, o defunto Casimiro, o defunto Rogério e o
falecido Manuel Simeão, pai de Sotero Boa-Vista.
A contribuição humana lançada, de
chofre, sobre a vila do Araçá, era, porém, de molde a não permitir deserções.
Nada menos de oito rapazes tinham sido chamados ao serviço das armas, para o
qual todos se apresentaram sem temor ou constrangimento, antes com alegria, com
vivacidade arrogante, como se esperassem de há muito aquele apelo ao seu brio
patriótico. Para festejar o acontecimento, foi formada, na véspera da partida
dos conscritos, uma passeata, que percorreu as quatro ruas do lugarejo, puxada
por uma banda de música. Oradores fizeram-se ouvir, concitando aqueles
conterrâneos à prática de atos heróicos, elevando o nome da sua vila natal na
disciplina dos quartéis e nos campos de batalha. E, na manhã seguinte, metidos
na sua melhor roupa de cassineta ou de brim, montando os melhores cavalos do
município e acompanhados por numerosos cavaleiros amigos, os rapazes partiram a
galope, a fim de tomar o trem dezoito quilômetros adiante, com destino à capital.
Capítulo II
Entre as mães que ficaram
chorando, nenhuma, porém, chorava tanto, como a velha Maria Inácia, mãe do João
Vicente. Pobre, vivendo menos do trabalho do que do amor daquele filho, era ele
tudo na sua vida obscura. Quando o capitão passara pela vila, tomando o nome
aos rapazes, tinha ela mais uma filha e um filho. O filho havia morrido e a
filha casara-se. E, a partir desse dia, João Vicente, o mais novo, se tornara o
seu tesouro e o seu mundo. Era um rapagão forte, claro, vistoso. Alegre e
brincalhão, passava as noites em festas e serenatas, fazendo sonhar as moças do
lugar. Exímio tocador de violão, não havia noite de lua que ele não a
atravessasse acordado, indo cantar e tocar, com outros, companheiros de
infância e de mocidade, nas proximidades dos prédios em que havia raparigas
bonitas. E os dias, passava-os em casa, ajudando a mãe a tratar da chácara
pequena, ou a ensaiar modinhas chorosas para as distrações boêmias da noite. Por
isso mesmo, por vê-lo criança, infantil, aos vinte anos, era que a mãe sentia
mais a sua falta. Pessoas amigas haviam-lhe dito, que, tratando-se do filho
único, lhe seria fácil conseguir a sua dispensa do serviço militar; de tal maneira,
porém, o João Vicente se opusera a essa idéia, ameaçando até de a abandonar na
sua velhice sem arrimo de coração, que a mísera se viu na contingência de
sufocar o choro da alma, deixando-o partir, animoso, galhardo, risonho, entre
as palmas das moças, e o soluço comovido das outras mães.
Capítulo III
Seis meses tinham decorrido após
a partida do Araçá, quando chegou ao
quartel a ordem de aprestar o batalhão. A rebelião no sul havia estalado, assumindo
proporções inesperadas pelo governo, e reclamando a remessa, para a região
conflagrada, de novas unidades militares. Vários regimentos haviam sido já
dizimados, de um lado, e de outro. Os feridos enchiam os hospitais, pondo um
forte cheiro de sangue na atmosfera.
E o batalhão partiu.
Doze dias depois, estavam as
forças de que era um dos componentes acampadas nas vizinhanças de uma pequena
cidade do interior, na zona de guerra, quando o João Vicente recebeu, com a sua
companhia, munição de combate. Em torno do corpo, nos bolsos do cinturão forte,
os cartuchos punham um peso novo, que, no entanto, pouco o afligia. E eram nove
horas da manhã quando o batalhão, após uma pequena marcha de dois quilômetros, teve
ordem de desalojar os rebeldes de uma trincheira, entre o serrote e o rio. Sob
a fuzilaria do inimigo, e, principalmente, sob o fogo de uma metralhadora mascarada
por um monte de pedras, o batalhão investiu, a peito descoberto. Dois
companheiros ficaram no chão, feridos. A uma ordem de comando, os soldados
deitaram-se, e começou a avançada lenta, morosa, ventre na terra, o queixo
arrastando na grama, avançada de répteis, de animais coleantes, cuspindo fogo
pelo cano escuro dos fuzis.
Dentes cerrados, olhos ardentes,
a mão crispada na arma, carregando-a e descarregando-a continuamente, João
Vicente avançava, palmo a palmo, sob o fogo do inimigo. À grande fila que se
formara no instante da investida tornava-se cada vez mais curta e mais rala. As
balas zuniam sobre a sua cabeça como uma agulha diabólica, que costurasse a
atmosfera. Se olhasse para trás, para o caminho percorrido de bruços,
desanimaria, talvez, ao ver o campo semeado de corpos, — uns estorcendo-se sob
as dores dos ferimentos, outros paralisados, já, pela morte instantânea, os
olhos vidrados, a boca escancarada, golfando sangue. João Vicente não sabia,
porém, naquele momento, se tinha companheiros, ou se avançava só. A
metralhadora estalava na sua frente, como a motocicleta da morte. O seu leque
de balas varria tudo. Estava ele, mesmo assim, quase a vinte metros do monte de
pedras. Mais dez metros e, se não fosse descoberto, estaria, pela posição, fora
do alcance da arma terrível. O suor descia-lhe da testa, cegando-o. Mais cinco
metros foram vencidos... Mais três... E outros, ainda. A quatro metros não se
conteve mais: abandonando o fuzil, o sabre na mão, deu um salto de tigre,
atirando-se, com todo o peso do corpo, como uma bala de canhão, sobre a pilha
de granito, que se desmoronou com estrondo para o fosso da trincheira, levando
de roldão o assaltante, a metralhadora, e, de mistura, com os blocos de pedra,
os dois atiradores que a manejavam!
Calada por essa maneira a arma
que mais os hostilizava, os assaltantes, desprezando a fuzilaria, puseram-se de
pé e investiram contra a trincheira, rangendo os dentes. E, em breve, após um
curto combate à arma branca, em que homens da mesma pátria se retalhavam, se
dilaceravam, se estraçalhavam com fúria sanguinária, tomavam os legalistas
posse do reduto, onde o sangue coagulado se misturava, repugnante, entre
zumbidos de moscas, com dejeções humanas e com a lama da chuva da véspera.
Promovido a cabo, João Vicente
tomou, ainda, parte em dois combates e em diversos reconhecimentos. Bravo,
calmo, destemido, portara-se sempre, em uns e em outros, a contento do
comandante, que lhe havia prometido, já, as fitas de sargento. Não era, porém,
mais, aquele rapagão claro das serenatas do Araçá. A barba forte, que raspava
toda antigamente, tomava-lhe agora o rosto, envelhecendo-o, dando-lhe os ares
daqueles cangaceiros do nordeste, que via passar, às vezes, a cavalo, pela
vila, com a faca de um lado, a garrucha de outro, e o clavinote na lua da sela.
A vida militar absorvera o boêmio. Era, agora, um soldado.
Capítulo IV
Com a partida dos sorteados, o
Araçá era como um organismo que tivesse sofrido uma sangria. Sem as suas festas
dos sábados e as suas serenatas das noites de lua, as casas passaram a fechar
mais cedo e a abrir mais tarde Parecia que aqueles oito rapazolas enchiam,
sozinhos, as ruas da vila. Por toda parte reinava uma tristeza de morte.
Ao chegarem à capital, ao
quartel, alguns escreveram. E as cartas, ligeiras e simples, passavam de mão em
mão como relíquias, que eram. O coração da vila acompanhava-os; até que uma
grande emoção a abalou, meses depois, com a notícia de que o. batalhão em que
haviam sido incorporados, partira, entre festas da população da cidade, para as
campanhas fratricidas do sul.
De quantas almas sangravam no
Calvário da Saudade, nenhuma havia, porém, como a da velha Maria Inácia, mãe de
João Vicente. Desde o momento em que o filho partiu, acendera ela uma lamparina
de azeite em frente ao oratório tosco, forrado de azul, onde a Senhora das
Dores chorava, o coração transpassado por uma espada. De joelhos, as mãos
juntas, os olhos súplices, postos no rosto consolado da imagem, prometera, no
arrebatamento da sua fé e do seu temor:
— Minha Mãe Santíssima! vós, que
sois mãe, velai pelo meu filho! Guiai-o através de todos os males,
preservando-o da morte e dos perigos do mundo! E eu vos prometo trazer sempre
acesa, dia e noite, esta luz aos vossos pés!
E dia e noite não faltou, jamais,
aquela chama votiva aos pés da Senhora das Dôres. Três, quatro, cinco vezes,
nas horas de sono, levantava-se a velhinha, no seu xale preto, para examinar se
ainda havia azeite no copo e se a pequena rodela de cera e cortiça daria,
ainda, até de manhã. Parecia-lhe ao coração alarmado que aquela chama era a
própria vida do seu filho e que, se se apagasse, a sua existência se apagaria
com ela. E, nesse delírio, redobrava de cuidado, vigiando a chama tímida como
se velasse à cabeceira de um enfermo, sob a ronda traiçoeira da morte.
Até que, uma noite, foi um
desespero. Fatigada pelas vigílias contínuas, a velhinha adormeceu mais
profundamente na cadeira, ao lado do oratório. Quando despertou, madrugada
alta, o quarto estava escuro.
— Meu Deus! meu filho morreu!...
gritou, num acesso de terror, os olhos arregalados na treva, as mãos tateando,
trêmulas, a caixa de fósforos na mesinha do oratório.
A velha criada que lhe fazia
companhia acorreu, tropeçando nos móveis, e, riscando o fósforo, reacendeu a
lamparina.
— Luiza, meu filho morreu!... O
João morreu, Luiza!... gritou, abraçando-se à velha serviçal.
— Sossegue, "nhá"
Nacinha! sossegue: não morreu, não! Tenha fé em Deus! — pedia a outra,
procurando. tranqüilizá-la, tendo embora a alma assustada por aquele prenúncio.
A datar desse dia, a vida de
Maria Inácia passou a ser uma agonia contínua, entrecortada de preces, diante
do oratório. As promessas multiplicaram-se. Até que, uma noite, em um momento
de maior aflição, ofereceu, com toda a sua alma devota:
— Minha Senhora das Dores! trazei
meu filho são, e salvo, ainda uma vez, à minha vista, que eu vos dou a minha
vida!
E com todo o fervor da contrição,
num acesso de choro:
— A minha vida pela dele, Minha
Mãe Santíssima!... A minha vida pela dele!... Mas que eu ainda veja meu
filho!...
Capítulo V
Dois meses depois da promessa, e
oito da partida dos sorteados, com as primeiras chuvas do inverno, a vila do
Araçá se tornou toda festiva, como nas suas solenidades religiosas. No adro da
igreja, com os músicos vestidos de branco, a filarmônica esperava o momento de
romper com toda a sonoridade dos metais, quebrando o silêncio dos campos
vizinhos com um dos seus "dobrados" retumbantes. As crianças corriam
pelo capim espontante, molhando os pés nas gotas de sereno, ou da chuva da
noite. Comerciantes, fazendeiros, agricultores, trajando as roupas
domingueiras, conversavam porta dos estabelecimentos. É que voltavam ao Araçá,
em gozo de licença, quatro dos oito conscritos do ano, que se haviam portado
heroicamente em campanha. E, entre eles, já no posto de sargento, vinha,
queimado do sol e com os sinais da fadiga no semblante, o João Vicente, filho
de Maria Inácia. De repente, um grito:
— Lá vêm eles!...
Na extremidade do caminho, longe,
levantava-se uma nuvem de poeira. E, momentos depois, penetrava na praça, de
roldão, a cavalhada luzidia dos parentes e dos amigos com os quatro soldados à
frente, ao mesmo tempo que, tornando mais comunicativo o arrepio de entusiasmo,
a banda de música atacava, com toda fúria dos instrumentos, o
"dobrado" mais ruidoso do repertório.
Capítulo VI
Aproximava-se o dia do regresso
dos rapazes. Todo aquele mês havia sido de festas, de homenagens aos bravos
soldados conterrâneos. E à medida que se escoavam as horas, mais se confrangia
a alma de Maria Inácia. O seu coração não se saciava de acariciar o filho. As
noites, levava-as acordada, passando-lhe as mãos pelos cabelos, cobrindo-o com
o lençol, beijando-lhe a cabeça adormecida. Nos primeiros dias, estava certa de
que a Senhora das Dores consideraria uma loucura a promessa que lhe fizera, e a
perdoaria. Pouco a pouco, porém, a proporção que se aproximava o dia do
regresso, foi a su'alma se inquietando. Prometera dar a sua vida pela do filho,
se ainda o abraçasse uma vez. Deus o trouxera aos seus braços, ao seu carinho,
à sua presença. Devia cumprir o voto? E, se não cumprisse, Deus não a
castigaria no coração, arrebatando-o ao mundo, nos novos combates em que
tomasse parte?
Esse pensamento afligia-a. Até
que, de repente, resolveu:
— Não, eu devo cumprir a
promessa. Devo, sim. Antes eu do que meu filho. E eu resistiria, acaso, à dor
de perdê-lo, se o perdesse por culpa: minha, por falta minha perante Deus?
Capítulo VII
Os dias que antecederam o
regresso dos rapazes à sede da guarnição tinham sido de chuvas torrenciais. Na
serra, principalmente, havia chovido muito. E, avolumado pelos riachos da
montanha, o rio Araçá rolava agora transformado em torrente, arrastando galhos
de árvores e moitas de aninga no turbilhão das suas águas escachoantes.
Comprimido pelas ribanceiras, que ia lambendo numa volúpia furiosa de sátiro,
fazia vertigem vê-lo. De quando em quando, um ruído cavo alarmava os moradores
ribeirinhos. Era a queda de um barranco, de uma barreira da margem, que logo se
dissolvia em rodopios, na retorta diabólica daquelas águas.
A viagem estava marcada para as
nove da manhã seguinte. Amorosa, meiga, solicita, Maria Inácia passou todo o
dia ao lado do filho, extremando-se em cuidados, em meiguice, em desvelos.
Beijava-o de instante a instante, abraçando-o com toda a força da sua fraqueza,
como se quisesse apegar-se a ele, e não o soltar mais.
À noite houve uma festa de
despedida em casa de um dos licenciados. Maria Inácia ficou em casa, ajoelhada
diante do oratório, rezando. Pela madrugada, o João entrou. Vinha suado,
cansado, exausto de dançar.
— Despe-te, meu filho, e dorme, —
disse-lhe a velha, abençoando-o.
Os galos amiudavam. Uma brisa
fresca sacudia as árvores, fazendo estalar no chão os pingos da chuva
acumulados nas folhas. Pé ante pé, o xale ao ombro, Maria Inácia entrou no
quarto do João. Ajoelhou-se à sua cabeceira, beijou-lhe a testa, os cabelos, a
mão abandonada para fora da cama. Ergueu-se, tomando o rumo da porta, e, de lá,
enviando um último olhar ao filho adormecido, saiu como uma sombra.
À margem do rio, parou, olhando a
torrente. As águas gorgolejavam sinistramente lá em baixo, no escuro.
Ajoelhou-se, persignou-se, e balbuciou, trêmula, a oração dos mortos. Chegou o
xale mais para o corpo magro, num arrepio. E, fechando os olhos, deixou-se
rolar, como um fardo, pelo declive da ribanceira ...
Só dois dias depois, três léguas
abaixo da vila, entre duas pedras, foi pescado o cadáver. As mãos, que tanto
haviam rezado, tinham sido, já, devoradas pelos peixes.
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Nota:
Humberto de Campos: "O Monstro e outros contos" (1932)
Belíssimos os contos de Humberto de Campos. Alguns deles chegam a inspirar aquela sensação gostosa de terror. Esse, no caso, desperta até uma certa angústia, pois não esperamos, realmente, que a mãe morra. Um dos meus preferidos dele, juntamente com "O monstro" e "Os olhos que comiam carne". Abraços
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