CATIMBAU
"Belém, 18 de janeiro — Os
jornais desta capital noticiam a trágica morte ocorrida há dias nos campos da
ilha de Marajó, município de Soure. O destemido vaqueiro Narciso Viana, aí
cunhado Catimbau, famoso domador de touros, prometeu à sua namorada que, em
troca de um beijo, laçaria um touro bravio que esta lhe indicou.
Narciso perseguiu o animal, fez
prodígios de equitação, rivalizando em rapidez com a destreza do touro. Afinal,
atirou o laço, enrolando-se este acidentalmente, em torno do vaqueiro, que foi
cuspido da sela.Estando a ponta do laço presa à cilha foi estrangulado o bravo
sertanejo, sendo arrastado pelo cavalo cerca de légua e meia.
Os companheiros da fazenda do
infeliz cavaleiro, conseguiram, depois de grande correria, apoderar-se do sangrento
cadáver de Narciso Viana, entregando-o à sua namorada, que, involuntariamente,
causara a sua morte (Telegrama da Agência Americana).
Entre os vaqueiros do
Campo-Alegre, a famosa fazenda marajoara, era Catimbau, sem dúvida, o mais
destemido. À tarde, quando a campina, extensa a perder de vista, começava a
cobrir-se da cinza tênue com que a noite polvilha o seu caminho, era ele o
primeiro a esporear o cavalo na extremidade da planície, e a estacar, de
repente, no alpendre da casa, o chapéu de couro para a nuca, o chicote na mão,
disposto, após doze horas de campo, como se voltasse de um passeio domingueiro.
Era um caboclo forte e ágil. O
rosto moreno, queimado de sol, que Os olhos risonhos alegravam, iluminava-se
todo, quando com a dentadura sã, das raças primitivas. Toda a sua figura
constituía, enfim, uma festa de bravura e de saúde, que enchia de inveja os
homens e matava de paixão as mulheres.
Na sua vida de herói, filho e rei
daquelas amplidões verdes, havia, contudo, tristeza secreta: a que lhe nascera
há dois anos, pelo S. João, na festa do Aquiri, fazenda do Joaquim Inácio,
quando conhecera a Rosinha, caçula do João Soares e o botão que ia ser, no ano
próximo, a rosa mais linda, e mais fresca daquelas redondezas.
A filha do João Soares era o tipo
clássico da cabocla paraense. Cabelo escorrido e longo, atirado em cascata para
as costas; morena, como as rolas do terreiro; nariz correto e fino; olhos
negros e úmidos; era, toda ela, candura e tentação. Duas cousas, porém, não
saíam da imaginação de Catimbau: o colo farto da rapariga, arfante como as
ondas do rio depois da "pororoca", e aquela boca miúda e vermelha, de
uma mobilidade atordoante e que mostrava, ao menor sorriso, dois rosários de
dentes pequenos, que eram, aos seus olhos de homem do campo, como pingos de
leite no focinho rosado de um bezerrinho novo.
Beijar aquela boca, sugar aquelas
gotas de leite, tornara-se para o vaqueiro a maior ambição do seu destino. Para
ver a rapariga, mesmo de passagem, viajava cinco léguas, três vezes por semana.
Para isso, inventava os pretextos mais ingênuos: ora perseguição a um garrote
da fazenda, tocado à força naquela direção, ora a caça a uma novilha que ele
sabia onde se achava, mas que ia procurar, sempre, para as bandas do João
Soares. E cada uma dessas vezes, eram horas perdidas de conversa no alpendre:
ele, escanchado no cavalo, o cotovelo esquerdo pousado na lua da sela, a curva
da perna direita dobrada, em posição de descanso; ela, feliz, assustada,
risonha, esmagando os seios virgens na tábua escura do parapeito.
A despedida era todo um poema de
ternura que, quase, não tinha fim. A mão na mão, os olhos nos olhos, ficavam
assim minutos seguidos, sem uma palavra nos lábios. Até que, fria, trêmula,
numa sacudidela violenta dos nervos, Rosinha pedia, fechando os olhos e
soltando-se violentamente da férrea pressão dos seus dedos:
— Ande... Vá embora!
E, esporeando o cavalo, em dois
corcovos, o caboclo partia.
Certa vez, a voz cortada pela
emoção, Catimbau resistiu:
— Não vou!
E enunciando um desejo que lhe
estava, de há muito, no coração:
— Só irei se você me der um
beijo!
A resposta, dessa vez, foi uma
carreira, rápida, de veadinha arisca, para o interior da casa. De outra feita,
porém, Rosinha prometera, corando:
— Olhe, agora, não... Pelo
Natal... Pelo Natal eu dou... Serve?
— Olhe lá, hein? Promessa é
promessa! observou o vaqueiro.
De agosto a dezembro o pensamento
de Catimbau não se prendeu a outra cousa. Agitada pela esperança da felicidade,
a sua imaginação galopava mais que o seu cavalo. Para que o beijo prometido
fosse mais doce, e não comprometesse outros, pela repugnância talvez despertada
na rapariga, deixara de fumar. Para perfumar a boca alimentava-se de coalhada e
comia, no campo, das frutas mais cheirosas da ilha. E foi assim que, com o
coração aos pulos como um potro bravo, chegou, enfim, ao mês do Natal.
O dia da Conceição, oito de
dezembro, era de festa, de novo, no Aquiri. De toda parte da ilha iriam
vaqueiros e moças, para a festa de Nossa Senhora. E lá estaria, também, a
Rosinha, cuja beleza se acentuava à medida que se tornava mulher e o amor
penetrava, como uma aurora, aos abismos floridos da alma.
Quando Catimbau chegou à fazenda
do Joaquim Inácio, a casa já estava cheia de gente. Dançava-se na sala, no
alpendre e, na cozinha. Ao ver, de longe, o movimento dos pares, o coração do
caboclo apertou-se. Rosinha estaria dançando? E com quem? Ao aproximar-se,
porém, da casa, a alma se lhe desabrochou no rosto franco, num sorriso de
felicidade: resistindo às solicitações dos outros rapazes, Rosinha estava a um
canto do alpendre, à sua espera. À tarde, com o sombrear da campina, os
convidados saíram, todos, para o alpendre para o terreiro. Para aguardar a
noite, e dar um pouco de repouso aos músicos, sugeriu-se uma pega aos novilhos.
E a idéia recebida com uma salva de palmas pelas mulheres, e por um gesto de
entusiasmo pelos vaqueiros, sempre dispostos a pôr em evidência a sua bravura
na carreira e a sua destreza no manejo do laço.
Em frente a casa, a uns cinqüenta
metros, ficava o curral, onde uma pequena boiada que chegara pela manhã
aguardava o dia seguinte para continuar a viagem, rumo do Soure. Estalando os
chifres, amontoando-se ora a um canto do cercado, ora noutro, as reses
permaneciam de pé, sem repouso. À menor aproximação de uma pessoa, agitavam-se
todas em redemoinho, na previsão instintiva da fatalidade iminente.
Um dos vaqueiros encaminhou-se
naquele rumo, para escolher um barbatão. A porteira entreabriu-se, e o primeiro
boi que estourou no pátio, foi um garrote alvação, de chifres tortos e pescoço
de touro precoce. Ao sentir-se em liberdade, o animal estacou, irresoluto, como
se procurasse destino. Ao ver, porém, a poucos metros um vaqueiro que corria ao
seu encontro, atirou-se pela planície em carreira desabalada, levando na
esteira, cada vez mais próximos, cavalo e cavaleiro. Este era Ventania,
campeiro famoso da fazenda Água- Doce, e rival, nas "pegas", do
Catimbau.
Curvado para diante, apoiado
apenas nos estribos, em poucos segundos o rapaz alcançava o garrote,
emparelhava-se com ele, segurava-lhe a cauda distendida na carreira, enrolava-a
na mão, e, num movimento súbito, atirava o animal ao solo, pulando-lhe em
seguida em cima, paralisando-o de focinho no chão.
— Catimbau!... Catimbau!... —
gritavam as moças e os outros vaqueiros, partidários do campeiro do
Campo-Alegre.
Ao lado da namorada, o caboclo
mostrava-se indiferente a tudo aquilo.
Que lhe importavam a glória, a
fama de vaqueiro, se ele possuía, ali, o coração da Rosinha? Que o Ventania lhe
arrebatasse todos os louros, mas deixasse aqueles, de homem que ama, e que é
amado... Ademais, enchia-lhe a alma um pressentimento doloroso. Parecia-lhe
que, se saísse dali, do lado da noiva, lhe aconteceria alguma coisa.
A sua indiferença ao feito do
outro começava, porém, a causar estranheza. Onde estava, então, a sua coragem
tão proclamada? Os partidários do Ventania principiavam a sorrir, vitoriosos;
os amigos Catimbau murmuravam, contrafeitos. E quem deu por isso, por essa
atmosfera de prevenção que se formava, foi Rosinha.
— Por que você não vai? —
indagou, mimosa.
— Para não sair de junto de você.
— E se eu lhe pedisse que fosse?
— Eu ia... Mas, com uma
condição... Que você me desse hoje o beijo que me prometeu para o Natal...
A moça ficou toda vermelha. As
orelhas pequenas tornaram-se-lhe de lacre, como duas cristas de galo garnizé.
Meditou, porém, um instante. A fama, a nomeada, a dignidade de vaqueiro do seu
namorado, do seu noivo, do homem que era o seu orgulho, estavam em perigo. E
foi resoluta, decidida, que, numa violência sobre si mesma, prometeu:
— Eu dou... Vá...
De um arranco, pulando sobre o
parapeito, estava Catimbau escanchado no seu cavalo castanho, o sorriso nos
lábios, um brilho estranho nos olhos, o laço enrodilhado no arção. Uma salva de
palmas cobriu-lhe o gesto inopinado.
— Solta o touro! — gritou o
caboclo.
Um momento mais, e, arrancando
pela porteira meia-aberta, sacudindo-lhe os paus para os lados, irrompia no
campo a maior peça da fazenda, um touro negro, de sangue crioulo, que, após
vários meses de vida arisca e selvagem, havia sido, na véspera, recolhido ao
curral.
Pernas estendidas, o corpo
ligeiramente vergado para a frente, as mãos na rédea, o olhar de ave de rapina
que espera a passagem da presa, a corda do laço pendente da sela, Catimbau
aguardava o arranco do touro. E quando o bicho estourou fora da cerca, só se
ouviu uma dupla exclamação, rápida, seca, repentina, como um grito de guerra:
— Upa!... Upa!...
E o cavalo partiu, depois de dois
galões, com uma assombrosa elasticidade dos músculos, no encalço da fera.
Levando o touro uma vantagem de
trinta metros, o cavaleiro alcançou-o, em dois segundos. Negaceando, virando,
torcendo, o boi dificultava a pega, que o próprio vaqueiro evitava, preferindo
demorar a batalha para dar maior campo à variedade da destreza. De repente, no
meio da várzea, em uma grande manobra elegante, Catimbau deixou o touro
distanciar-se.
— É o laço... É o laço!...
exclamaram todos, que conheciam, ponto por ponto, os processos do vaqueiro
famoso.
E não se enganavam. Ao fundo da
planície imensa e verde, que se tornava azul na proporção da distância, o touro
e o cavalo eram como duas formigas em uma grande bandeja de esmeralda.
Arrancando o laço à ilharga da sela, sentindo-lhe a extremidade bem amarrada ao
arção, Cabimbau cravou as esporas no cavalo, apertou os joelhos à barriga do
animal, e soltou o grito clássico do momento de perigo:
— Ecôoo!...
Compreendendo o sinal, cavalo e
touro dispararam no máximo da velocidade e do esforço. Duas flechas que
cortassem o ar, impelidas pelo arco de um gigante, não seriam mais rápidas. Não
era uma carreira: era uma vertigem.
— Ecôoo!...
A cinco metros da rês, viu-se, ou
imaginou-se ver, do alpendre, a corda rodar, num círculo, sobre a cabeça do
vaqueiro. E a um impulso violento, justo, certeiro, aquele arco partiu, rodou,
desceu, indo cair, preciso, sobre a cabeça do touro.
— Laçou!... Laçou!... — gritaram
vozes nervosas, no alpendre e no terreiro.
Súbito, a corda esticou.
Dir-se-ia que ia partir, rebentar, estalar.
Cavaleiro e touro, ao choque
formidável, estremeceram, sem parar. Mas, a este choque, correspondeu uma nova
cena imprevista: o corpo de Catimbau, arrancado da sela num salto sinistro, foi
postar-se, de pé, entre o touro e o cavalo!
— Nossa Senhora! ...
— Meu Deus... — gritaram quarenta
vozes, no alpendre.
As mãos nos olhos, as mulheres
não queriam ver. Olhos arregalados, porém, os homens compreenderam tudo: ao
atirar a corda, esta dera volta em torno ao pescoço do vaqueiro, o qual, ao
esticar o laço, fora arrancado da sela, estrangulado!
Ao longe, na campina, o touro e o
cavalo presos um ao outro pela corda distendida continuavam a correr, em
direção à mata distante. E, de pé, sustido pela corda, arrastado como um
bólide, pela várzea, corria, também, com eles, o cadáver do vaqueiro.
Cavaleiros partiram, céleres, com
estrépito, em uma nuvem de poeira. Ao alcançarem o touro e o cavalo, estes
aproximavam-se da mata misteriosa, mas, já sem o companheiro sinistro. A cabeça
do vaqueiro foi encontrada primeiro, coberta de sangue e terra. O corpo foi
achado depois.
Uma hora mais tarde, a cabeça
decepada de Catimbau recebia na boca sangrenta, no alpendre da fazenda, diante
dos companheiros comovidos, o seu prometido beijo do Natal...
---
---
Nota:
Humberto de Campos: "O Monstro e outros contos" (1932)
Lindo demais esse conto. Fantástico. Humberto de Campos como sempre...
ResponderExcluir