O MONSTRO E OUTROS
CONTOS
À
Paulo César de Andrade
Pelas margens sagradas do Eufrates, que fugia, então,
sem espuma e sem ondas, caminhavam, na infância maravilhosa da Terra, a Dor e a
Morte. Eram dois espetros longos e vagos, sem forma definida, cujos pés não deixavam
traços na areia. De onde vinham, nem elas próprias sabiam. Guardavam silêncio,
e marchavam sem ruído olhando as coisas recém-criadas.
Foi isto no sexto dia da Criação. Com o focinho
mergulhado no rio, hipopótamos descomunais contemplavam, parados, a sua sombra
enorme, tremulamente refletida nas águas. Leões fulvos, de jubas tão grandes
que pareciam, de longe, estranhas frondes de árvores louras, estendiam a cabeça
redonda, perscrutando o Deserto. Para o interior da terra, onde o solo começava
a cobrir-se de verde, velando a sua nudez com um leve manto de relva moça, que
os primeiros botões enfeitavam, fervilhava um mundo de seres novos, assustados,
ainda, com a surpresa miraculosa da Vida. Eram aves gigantescas, palmípedes
monstruosos, que mal se sustinham nas asas grosseiras, e que traziam ainda na
fragilidade dos ossos a umidade do barro modelado na véspera. Algumas marchavam
aos saltos, o arcabouço à mostra, mal vestidas pela penugem nascente. Outras se
aninhavam, já, nas moitas sem espinhos, nos primeiros cuidados da primeira
procriação. Batráquios de dorso esverdeado porejando água, fitavam mudos, com
os largos olhos fosforescentes e interrogativos, a fila cinzenta dos outeiros
longínquos, que pareciam, à distância, à sua brutalidade virgem, uma procissão
silenciosa, contínua, infinita, de batráquios maiores. Auroques taciturnos,
sacudindo a cabeça brutal, em que se enrolavam, encharcadas e gotejantes,
braçadas de ervas dos charcos, desafiavam-se, urrando, com as patas enfiadas na
terra mole.
Rebanho monstruoso de um gigante que os perdera, os
elefantes pastavam em bando, colhendo com a tromba, como ramalhetes verdes,
moitas de arbustos frescos. Aqui e ali, um alce galopava, célere. E à sua
passagem, os outros animais o ficavam olhando, como se perguntassem que
focinho, que tromba, ou que bico, havia privado das folhas aquele galho seco e
pontiagudo que ele arrebatava na fuga. Ursos primitivos lambiam as patas, monotonamente.
E quando um pássaro mais ligeiro cortava o ar, num vôo rápido, havia como que
uma interrogação inocente nos olhos ingênuos de todos os brutos.
Em passo triste, a Dor e a Morte caminham, olhando, sem
interesse, as maravilhas da Criação. Raramente marcham lado a lado. A Dor vai
sempre à frente, ora mais vagarosa, ora mais apressada; a outra, sempre no
mesmo ritmo, não se adianta, nem se atrasa. Adivinhando, de longe, a marcha dos
dois duendes, as coisas todas se arrepiam, tomadas de agoniado terror. As
folhas, ainda mal recortadas no limo do chão, contraem-se, num susto impreciso.
Os animais entreolham-se inquietos e o vento, o próprio vento, parece gemer
mais alto, e correr mais veloz à aproximação lenta, mas segura, das duas
inimigas da Vida.
Súbito, como se a detivesse um grande braço invisível, a
Dor estacou, deixando aproximar-se a companheira.
Para que mistério — disse, a voz surda, — para que
mistério teria Jeová, no capricho da sua onipotência, enfeitado a terra de
tanta coisa curiosa?
A Morte estendeu os olhos perscrutadores até os limites
do horizonte, abrangendo o rio e o Deserto, e observou, num sorriso macabro, que
fez rugir os leões:
— Para nós ambas, talvez...
— E se nós próprias fizéssemos, com as nossas mãos, uma
criatura que fosse, na terra, o objeto carinhoso do nosso cuidado? Modelado por
nós mesmas, o nosso filho seria, com certeza, diferente dos auroques, dos
ursos, dos mastodontes, das aves fugitivas do céu e das grandes baleias do mar.
Trá-lo-íamos, eu e tu, em nossos braços, fazendo do seu canto, ou do seu urro,
a música do nosso prazer... Eu o traria sempre comigo, embalando-o, avivando-lhe
o espírito, aperfeiçoando-lhe à alma, formando-lhe o coração. Quando eu me
fatigasse, tomá-lo-ias, tu, então, no teu regaço... Queres?
A Morte assentiu, e desceram, ambas, à margem do rio;
onde se acocoraram, sombrias, modelando o seu filho.
— Eu darei a água... — disse a Dor, mergulhando a concha
das mãos, de dedos esqueléticos, no lençol vagaroso da corrente.
— Eu darei o barro... — ajuntou a Morte, enchendo as
mãos de lama pútrida, que o sol endurecera.
E puseram-se a trabalhar. Seca e áspera, a lama se desfazia
nas mãos da oleira sinistra que, assim, trabalhava inutilmente.
— Traze mais água! — pedia.
A Dor enchia as mãos no leito do rio, molhava o barro, e
este, logo, se amoldava, escuro, ao capricho dos dedos magros que o comprimiam.
O crânio, os olhos, o nariz, a boca, Os braços, o ventre, as pernas, tudo se
foi formando, a um jeito, mais forte ou mais leve, da escultora silenciosa.
— Mais água! — pedia esta, logo que o barro se tornava
menos dócil.
E a Dor enchia as mãos na corrente, e levava-a à companheira.
Horas depois, possuía a Criação um bicho desconhecido.
Plagiado da obra divina, o novo habitante da Terra não se parecia com os
outros, sendo, embora, nas suas particularidades, uma reminiscência de todos
eles. A sua juba era a do leão; os seus dentes, os do lobo; os seus olhos, os
da hiena; andava sobre dois pés, como as aves, e trepava, rápido, como os
bugios.
O seu aparecimento no seio da animalidade alarmou a
Criação. Os uros, que jamais se haviam mostrado selvagens, urravam alto, e
escarvavam o solo, à sua aproximação. As aves piavam nos ninhos, amedrontadas e
os leões, as hienas, os tigres, os lobos, reconhecendo-se nele, arreganhavam os
dentes ou mostravam as garras, como se a terra acabasse de ser invadida,
naquele instante, por um inimigo
inesperado.
Repelido pelos outros seres, marchava, assim, o Homem
pela margem do rio, custodiado pela Dor e pela Morte. No seu espírito inseguro,
surgiam, às vezes, interrogações inquietantes. Certo, se aqueles seres se
assombravam à sua aproximação, era porque reconheciam, unânimes, a sua condição
superior. E assim refletindo, comprazia-se em amedrontar as aves, e em
perseguir em correrias desabaladas pela planície, ou pela margem do rio,
esquecendo por um instante a Dor e a Morte, os gamos, os cerdos, as cabras, os
animais que lhe pareciam mais fracos.
Um dia, porém, orgulhosas do seu filho, as duas se
desavieram, disputando-se a primazia na criação do abantesma.
— Quem o criou fui eu! — dizia a Morte. — Fui eu quem contribuiu
com o barro!
— Fui eu! — gritava a outra. — Que farias tu sem a água,
que amoleceu a lama?
E como nenhuma voz conciliadora as serenasse,
resolveram, as duas, que cada uma tiraria da sua criatura à parte com que havia
contribuído.
— Eu dei a água! — tornou a Dor.
— Eu dei o barro! — insistiu a Morte.
Abrindo os braços, a Dor lançou-se contra o monstro,
apertando-o, violentamente, com as tenazes das mãos. A água, que o corpo
continha, subiu, de repente, aos olhos do Homem, e começou a cair, gota a
gota... Quando não havia mais água que espremer, a Dor se foi embora. A Morte
aproximou-se, então, do monte de lama, tomou-o nos ombros, e partiu...
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Nota:
Humberto de Campos: "O Monstro e outros contos" (1932)
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