OS OLHOS QUE COMIAM CARNE
Na manhã seguinte à do
aparecimento, nas livrarias, do oitavo e último volume da História do
Conhecimento Humano, obra em que havia gasto catorze anos de uma existência
consagrada, inteira, ao estudo e à meditação, o escritor Paulo Fernandes
esperava, inutilmente, que o sol lhe penetrasse no quarto. Estendido, de
costas, na sua cama de solteiro, os olhos voltados na direção da janela que
deixara entreaberta na véspera para a visita da claridade matutina, ele sentia
que a noite se ia prolongando demais. O aposento permanecia escuro. Lá fora,
entretanto, havia rumores de vida. Bondes passavam tilintando. Havia barulho de
carroças no calçamento áspero. Automóveis buzinavam como se fosse dia alto. E,
no entanto, era noite, ainda. Atentou melhor, e notou movimento na casa.
Distinguia perfeitamente o arrastar de uma vassoura, varrendo o pátio. Imaginou
que o vento tivesse fechado a anela, impedindo a entrada do dia. Ergueu, então,
o braço e apertou o botão da lâmpada. Mas a escuridão continuou. Evidentemente,
o dia não lhe começava bem. Comprimiu o botão da campainha. E esperou.
Ao fim de alguns instantes, batem
docemente à porta.
— Entra, Roberto.
O criado empurrou a porta, e
entrou.
— Esta lâmpada está queimada,
Roberto? — indagou o escritor, ao escutar os passos do empregado no aposento.
— Não, senhor. Está até acesa...
— Acesa? A lâmpada está acesa,
Roberto? — exclamou o patrão, sentando-se repentinamente na cama.
— Está, sim, senhor. O doutor não
vê que está acesa, por causa da janela que está aberta.
— A janela está aberta, Roberto?
— gritou o homem de letras, com o terror estampado na fisionomia.
— Está, sim, senhor. E o sol está
até no meio do quarto.
Paulo Fernando mergulhou o rosto
nas mãos, e quedou-se imóvel, petrificado pela verdade terrível. Estava cego.
Acabava de realizar-se o que há muito prognosticavam os médicos.
A notícia daquele infortúnio em
breve se espalhava pela cidade, impressionando e comovendo a quem a recebia. A
morte dos olhos daquele homem de quarenta anos, cuja mocidade tinha sido
consumida na intimidade de um gabinete de trabalho, e cujos primeiros cabelos
brancos haviam nascido à claridade das lâmpadas, diante das quais passara oito
mil noites estudando, enchia de pena os mais indiferentes à vida do pensamento.
Era uma força criadora que desaparecia. Era uma grande máquina que parava. Era
um facho que se extinguia no meio da noite, deixando desorientados na escuridão
aqueles que o haviam tomado por guia. E foi quando, de súbito, e como que providencialmente,
surgiu na imprensa a informação de que o professor Platen, de Berlim, havia
descoberto o processo de restituir a vista aos cegos, uma vez que a pupila se
conservasse íntegra, e se tratasse, apenas, de destruição ou defeito do nervo
óptico. E, com essa informação, a de que o eminente oculista passaria em breve
pelo Rio de Janeiro, a fim de realizar uma operação desse gênero em um opulento
estancieiro argentino, que se achava cego há seis anos e não tergiversara em
trocar a metade da sua fortuna pela antiga luz dos seus olhos.
A cegueira de Paulo Fernando, com
as suas causas e sintomas, enquadrava-se rigorosamente no processo do professor
alemão: dera-se pelo seccionamento do nervo óptico. E era pelo restabelecimento
deste, por meio de ligaduras artificiais com uma composição metálica de sua
invenção, que o sábio de Berlim realizava o seu milagre cirúrgico. Esforços
foram empregados, assim, para que Platen desembarcasse no Rio de Janeiro por
ocasião de sua viagem a Buenos Aires.
Três meses depois, efetuava-se,
de fato, esse desembarque. Para não perder tempo, achava-se Paulo Fernando,
desde a véspera, no Grande Hospital das Clínicas. E encontrava-se já na sala de
operações, quando o famoso cirurgião entrou, rodeado de colegas brasileiros, e
de dois auxiliares alemães, que o acompanhavam na viagem, e apertou-lhe
vivamente a mão.
Paulo Fernando não apresentava,
na fisionomia, o menor sinal de emoção. O rosto escanhoado, o cabelo grisalho e
ondulado posto para trás, e os olhos abertos, olhando sem ver: olhos castanhos,
ligeiramente saídos, pelo hábito de vir beber a sabedoria aqui fora, e com
laivos escuros de sangue, como reminiscência das noites de vigília. Vestia
pijama de tricoline branca, de gola caída. As mãos de dedos magros e curtos
seguravam as duas bordas da cadeira, como se estivesse à beira de um abismo, e
temesse tombar na
voragem.
Olhos abertos, piscando, Paulo
Fernando ouvia, em torno, ordens em alemão, tinir de ferros dentro de uma lata,
jorro d'água, e passos pesados ou ligeiros, de desconhecidos. Esses rumores
eram, no seu espírito, causa de novas reflexões.
Só agora, depois de cego,
verificara a sensibilidade da audição, e as suas relações com a alma, através
do cérebro. Os passos de um estranho são inteiramente diversos daqueles de uma
pessoa a quem se conhece. Cada criatura humana pisa de um modo. Seria capaz de
identificar, agora, pelo passo, todos os seus amigos, como se tivesse vista e
lhe pusessem diante dos olhos o retrato de cada um deles. E imaginava como
seria curioso organizar para os cegos um álbum auditivo, como os de
datiloscopia, quando um dos médicos lhe tocou no ombro, dizendo-lhe
amavelmente:
— Está tudo pronto... Vamos para
a mesa... Dentro de oito dias estará bom...
O escritor sorriu, cético. Lido
nos filósofos, esperava, indiferente, a cura ou a permanência na treva, não
descobrindo nenhuma originalidade no seu castigo e nenhum mérito na sua
resignação. Compreendia a inocuidade da esperança e a inutilidade da queixa.
Levantou-se, assim, tateando, e, pela mão do médico, subiu na mesa de ferro
branco, deitou-se ao longo, deixou que lhe pusessem a máscara para o clorofórmio,
sentiu que ia ficando leve, aéreo, imponderável. E nada mais soube nem viu.
O processo Plateu era constituído
por uma aplicação da lei de Roentgen, de que resultou o Raio-X, e que punha em
contacto, por meio de delicadíssimos fios de "hêmera", liga metálica
recentemente descoberta, o nervo seccionado. Completava-o uma espécie de
parafina adaptada ao globo ocular, a qual, posta em contacto direto com a luz,
restabelecida integralmente a função desse órgão. Cientificamente, era mais um
mistério do que um fato. A verdade, era que as publicações européias faziam,
levianamente ou não, referências constantes às curas miraculosas realizadas
pelo cirurgião de Berlim, e que seu nome, em breve, corria o mundo, como o de
um dos grandes benfeitores da Humanidade.
Meia hora depois as portas da
sala de cirurgia do Grande Hospital de Clínicas se reabriam e Paulo Fernando,
ainda inerte, voltava, em uma carreta de rodas silenciosas, ao seu quarto de
pensionista. As mãos brancas, postas ao longo do corpo, eram como as de um
morto. O rosto e a cabeça envoltos em gaze, deixavam à mostra apenas o nariz
afilado e a boca entreaberta. E não tinha decorrido outra hora, e já o
professor Platen se achava, de novo, a bordo, deixando a recomendação de que
não fosse retirada a venda, que pusera no enfermo, antes de duas semanas.
Doze dias depois passava ele, de
novo, pelo Rio, de regresso para a Europa. Visitou novamente o operado, e deu
novas ordens aos enfermeiros. Paulo Fernando sentia-se bem. Recebia visitas,
palestrava com os amigos. Mas o resultado da operação só seria verificado três
dias mais tarde, quando se retirasse a gaze. O santo estava tão seguro do seu
prestígio que ia embora sem esperar pela verificação do milagre.
Chega, porém, o dia ansiosamente
aguardado pelos médicos, mais do que pelo doente. O Hospital encheu-se de
especialistas, mas a direção só permitiu, na sala em que se ia cortar a gaze, a
presença dos assistentes do enfermo. Os outros ficaram fora, no salão, para ver
o doente, depois da cura. Pelo braço de dois assistentes, Paulo Fernando
atravessou o salão.
Daqui e dali, vinham-lhe parabéns
antecipados, apertos de mão vigorosos, que ele agradecia com um sorriso sem
endereço. Até que a porta se fechou, e o doente, sentado em uma cadeira,
escutou o estalido da tesoura, cortando a gaze que lhe envolvia o rosto.
Duas, três voltas são desfeitas.
A emoção é funda, e o silêncio completo, como o de um túmulo. O último pedaço
de gaze rola no balde. O médico tem as mãos trêmulas. Paulo Fernando, imóvel,
espera a sentença final do Destino.
— Abra os olhos! — diz o doutor.
O operado, olhos abertos, olha em
torno. Olha e, em silêncio, muito pálido, vai se pondo de pé. A pupila entra em
contacto com a luz, e ele enxerga, distingue, vê. Mas é espantoso o que vê. Vê,
em redor, criaturas humanas. Mas essas criaturas não têm vestimentas, não têm
carne; são esqueletos apenas; são ossos que se movem, tíbias que andam,
caveiras que abrem e fecham as mandíbulas! Os seus olhos comem a carne dos
vivos. A sua retina, como os raios-X,
atravessa o corpo humano e só se detém na ossatura dos que a cercam, e diante
das cousas inanimadas! O médico, à sua frente, é um esqueleto que tem uma
tesoura na mão! Outros esqueletos andam, giram, afastam-se, aproximam-se, como
um bailado macabro!
De pé, os olhos escancarados, a
boca aberta e muda, os braços levantados numa atitude de pavor, e de pasmo,
Paulo Fernando corre na direção da porta, que adivinha mais do que vê, e
abre-a. E o que enxerga, na multidão de médicos e de amigos que o aguardam lá
fora, é um turbilhão de espectros, de esqueletos que marcham e agitam os
dentes, como se tivessem aberto um ossuário cujos mortos quisessem sair. Solta
um grito e recua. Recua, lento, de costa, o espanto estampado na face. Os
esqueletos marcham para ele, tentando segurá-lo.
— Afastem-se ! Afastem-se —
intima, num urro que faz estremecer a sala toda.
E, metendo as unhas no rosto,
afunda-as nas órbitas, e arranca, num movimento de desespero, os dois glóbulos
ensangüentados, e tomba escabujando no solo, esmagando nas mãos aqueles olhos
que comiam carne, e que, devorando macabramente a carne aos vivos,
transformavam a vida humana, em torno, em um sinistro baile de esqueletos...
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Nota:
Humberto de Campos: "O Monstro e outros contos" (1932)
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