A MINA
A notícia daquela descoberta
correra célere por toda a comarca, por toda a província, por todo o país. Há
muito tempo se suspeitava a existência de uma opulenta jazida de ouro ali
mesmo, na encosta da serra, entre a linha de córregos, que desabava da
montanha; ninguém se havia aventurado, todavia, a uma pesquisa mais demorada,
mais completa, mais eficiente, até que chegou da África do Sul, via Londres,
especialmente contratado para estudar o terreno, aquele engenheiro tostado do e
de chapéu de cortiça, que espantara logo a vila com a excentricidade das suas
roupas e a bizarria das suas maneiras.
Informado da exploração feita
pelo inglês, ordenou o coronel Jesuíno Botelho que se iniciassem logo as
escavações, para não perder tempo. Os maquinismos aperfeiçoados e modernos
estavam, já, em viagem, pedidos por telegrama;
enquanto, porém, não chegavam, iriam os homens perfurando o grande poço, em
busca do veeiro, que ficava, na opinião do técnico, a oitenta metros da
superfície.
O coronel Botelho não era, como a
generalidade dos fazendeiros de Itaobara, um espírito refratário ao progresso,
ao aperfeiçoamento do homem, aos empreendimentos suavizadores da vida. Educado
em um seminário de Ouro-Preto, adquirira, com alguns professores leigos, uma
noção positiva do mundo, e dos seus fenômenos; a disciplina religiosa
ficara-lhe, porém, como lastro do espírito, e era assim que ele se conduzia
pela terra, entre os ímpetos de conquistas e recuos de superstição. Por mais de
uma vez havia tomado iniciativas atrevidas, importando arados, cultivando o
melhor solo da fazenda; chegada, entretanto, a época da colheita, detinha-se em
casa, no seu quarto, dias inteiros, mandando, daí, despachar os trabalhadores,
e entregando o milho, o arroz, o feijão, as batatas, à fome das cotias, das
pacas, das capivaras, dos tatus e dos papagaios irrequietos.
A alegria com que o coronel via,
naquele ano, cavar a terra, no lugar da mina de ouro era, por isso, motivo de
surpresa para toda a gente que o conhecia.
— É a tal coisa, — dizia um,
perverso — para o milho, o feijão, o arroz, ele é religioso, e acha que se deve
cuidar só da alma; fala-se, porém, em ouro, e esquece tudo. Agora só pensa na
mina!
— E o buraco já está fundo! -
informava outro.
E estava, de fato. Não obstante
os aparelhos primitivos empregados na obra atrevida, o poço media, já, setenta
metros de profundidade, faltando apenas dez para o ponto em que devia começar a
galeria. E o coronel não desanimava, não se arrependia, demonstrava, timorato,
o menor propósito de recuo.
— Agora, vai mesmo! — diziam os
trabalhadores, fazendo subir, nas caçambas vagarosas, o barro, a areia, a pedra
arrancada às entranhas virgens da terra.
— O homem está doido! —
observavam outros com ironia, assinalando, admirados, o progresso dos
trabalhos.
Certo dia, achava-se o coronel à
mesa do almoço com a família, quando um operário lhe foi dizer, ansiado pela
rapidez da marcha, que haviam dado com a mina. As primeiras estrias de ouro
tinham aparecido, estando começada, já, a abertura da galeria. Boca
escancarada, de que o bigode ralo era simples reposteiro, o fazendeiro deu um
pulo, desamarrou o guardanapo, e saiu, correndo, no rumo do poço. E foi na
mesma carreira que se atirou para o elevador primitivo e tosco, descendo, aos
solavancos, os oitenta e quatro metros daquela perfuração audaciosa.
A emoção havia sido, porém, forte
demais para os seus nervos abalados. Surpreendido pela notícia no momento da
refeição, correra quase um quilômetro, sem parar. E era o efeito dessa
temeridade que o coronel ia sentindo à medida que o aparelho descia, e que
atingiu proporções assustadoras, antes, mesmo, de chegar ao fundo da escavação.
— Levem-me para cima! Levem-me! —
pediu Botelho, metendo a mão no colarinho da camisa, rompendo-a com violência.
— Levem-me daqui. Quero morrer lá em cima. Eu sufoco! Eu morro!
Vagaroso, como sempre, o elevador
pôs-se, de novo, a subir. E tal era a morosidade da sua marcha, que, ao chegar
no alto, o coronel jazia sem sentidos, agarrado por baixo dos braços pelos dois
homens que o acompanhavam.
Dois dias e duas noites esteve o
velho fazendeiro completamente desacordado. E no seu sono, entre a morte e a
vida, teve um sonho sinistro, horrendo, desvairado, que o agitava, como num
pesadelo.
A princípio, a sua fazenda era um
grande navio, que navegava na noite e no silêncio, dirigido por um comandante
alto e magro, que andava sempre embuçado, passeando, soturno, no tombadilho, de
um lado para outro. Passageiro da embarcação-fantasma, ele, Botelho, tentara,
por várias vezes, travar palestra com o capitão. Este afastara-se, porém, no
mesmo passo, sem uma palavra, sem um gesto, sem um olhar. De uma das vezes,
indignado, resolveu pedir-lhe explicações daquela descortesia: foi ao seu
encontro, tomou-lhe o caminho, e intimou-o:
— Olhe para mim, ou eu o
esbofeteio!
Pala em cima dos olhos, o
comandante quedou-se, calmo. E, como não atendesse à segunda intimação, avançou
Botelho no seu rumo, e, de um safanão, arrancou-lhe violentamente o boné. E
recuou, com um grito: diante dele estava, crânio calvo, órbitas vazias, dentes
à mostra num sorriso sinistro, um esqueleto, cujas mãos apareciam sob as mangas
do capote, chocalhando todos os ossos!
— Quem és tu? — gemera o coronel,
recuando, espavorido, até à amurada.
— Não me conheces? — respondeu,
fanhoso, o espetro apavorante, movendo o queixo sem carnes. — Eu sou a Morte. E
tu, que tanto me temes, um simples passageiro do meu navio!
E irônico:
— Já viste os teus companheiros
de viagem? Desce; vai vê-los.
À imposição das falanges nuas,
que lhe indicavam uma escada, ele descera um buraco semelhante àquele da mina,
mas cortado, lá em baixo, por uma grande galeria, na qual se abriam, de um lado
e de outro, numerosos camarotes, divididos em beliches. Diante de cada beliche
havia, porém, uma cortina de veludo preto, com unia cruz de galão dourado.
Suspendeu a primeira cortina, e recuou: o beliche era um caixão funerário, no
qual repousava, estirado, um esqueleto. Ergueu outra cortina, e
apresentou-se-lhe aos olhos o mesmo esquife, com o mesmo passageiro. Foi a
outro camarote, a outro mais, e ainda a outro, e em cada um deles, quatro
beliches, isto é, quatro caixões, e em cada caixão uma ossada. Cansado da
peregrinação, queria, já, um beliche desocupado, quando despertou.
De salto, pôs-se de pé.
— E a mina? — indagou, pálido, mãos
trêmulas, olhos arregalados.
— Está sendo aberta a galeria, —
informou, alguém, da família.
— Tapem-na! Soterrem-na!
Obstruam-na! — gritou, apavorado, as mãos na cabeça.
Nesta mesma noite, à luz de
quarenta archotes, começava a ser enterrada, como uma enorme sepultura ao
clarão de quarenta círios, a grande, a riquíssima, a famosa mina de Itaobara.
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Nota:
Humberto de Campos: "O Monstro e outros contos" (1932)
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