O JURAMENTO
— Nunca mais, meu prezado senhor,
tive tranqüilidade na minha vida; e vinte séculos que viva, vinte existências
que tenha na terra, serão para pagar com o remorso de cada dia, ou, antes, de
cada noite, o horror daquela vingança!
"Cap Finisterre" havia
deixado, na véspera, o porto do Havre, quando travamos relações, eu e aquele
cavalheiro, no "bar" do navio. Era um homem velho, magro, de grande
ossatura, tipo de Quixote dos Pampas, a que não faltava, sequer, a barbicha
comprida e rala, suja como a dos bodes. Não obstante os meses passados no clima
suave da Europa, a sua pele conservava aquela tonalidade escura e áspera das
feias do vento e do sol. Os olhos, miúdos, vivos, desconfiados, escondiam-se órbitas fundas, sob as sobrancelhas pesadas, como
duas onças em duas furnas, mascaradas de erva grosseira. Chamava-se Ramon
Gonzalez y Gonzalez, e era, dizia ele, industrial à margem do rio Bermejo, no
extremo norte da Argentina. Possuía, ali, serrarias de madeira, além de algumas
fazendas de gado, no sul, onde vivia ultimamente, em luta, sempre, com a
natureza bravia.
— O caso, porém, que me atormenta
a vida, meu caro senhor, ocorreu no norte, há trinta anos. Eu tinha, então,
quarenta.
A noite estava linda, como, em
geral, as noites de estio, ao largo da costa francesa, à entrada do Atlântico.
Uma lasca de lua, fina e loura, tomava posse do céu, em nome de Maomé,
dando-lhe, com as suas estrelas, a feição de grande pavilhão turco. De baixo,
do bojo do navio, subia o ronco fatigado das máquinas, no esforço esclerótico
das caldeiras. E, de quando em quando, o ruído fresco de uma vaga arrebentada
no costado de ferro, e caindo de novo, em forma de chuva grossa, sobre as
espumas de outra onda nascida para morrer.
— Foi em Corrientes que eu a
conheci, — começou o ancião, enquanto virava o seu terceiro "whisky and
soda". — Filha de um velho amigo meu, era quase menina, quando a vi, na
visita que fiz ao pai, meu antigo companheiro de colégio. E, ao regressar a
Concepción dei Bermejo, onde ficavam as minhas propriedades, levava-a nos
olhos, na alma, no coração. Chamava-se Consuelo, era cândida e fugitiva como as
espumas deste oceano que rebenta lá fora. Tamanha foi, em suma, a impressão que
me deixou, que, um mês depois, eu regressava a Corrientes, para pedir-lhe a
mão, em casamento.
— Casou...
— Não; não casei. Consuelo não
quis, e o pai, vendo-a vinte e quatro anos mais moça do que eu — ela andava
pelos dezesseis — não a contrariou. Conformei-me com isso, mas pedi-lhes que se
conservassem meus amigos; que me não esquecessem; que me olhassem como um
parente; que me fossem, enfim, visitar em Concepción, para que não ficasse, de
tudo aquilo, o menor ressentimento. Dentro em mim, porém, rugia o jaguar do
egoísmo, o despeito do leão velho, que não pudera devorar, como sonhara, a
corça tenra que vira na campina. Aquele coração havia de, um dia, pertencer-me.
Era o meu juramento de morte.
Bateu na mesa, com a sua grande
mão de esqueleto, e pediu:
— Garçon, outro
"whisky"
Limpou a boca com as costas das
mãos, como quem está habituado a beber nas tavernas ou no campo, às pressas,
sobre o dorso de um cavalo. E reatou:
— No fim do ano, em Dezembro,
foram a Concepción, visitar-me, o pai e a filha. Cerquei-os de gentilezas, de
festas, de carinho. Fazíamos passeios longos, os três. E foi em um destes que
se deu a desgraça.
— A desgraça?
— Sim, senhor. Tínhamos planejado
uma visita ao alto Soledade, onde eu havia adquirido uma grande extensão de
terras, para extração de madeiras. O senhor não conhece o alto Bermejo...
Conhece? Era floresta virgem, soturna, impenetrada. Desembarcamos em Guahija,
pequeno porto para exportação de lenha, e entramos pela mata, viajando a manhã
toda. O senhor não imagina o que são aquelas matas! Eu tenho a impressão de que
as selvas do seu Amazonas são assim. Árvores que dois homens não abarcam,
cerram fileiras, uma ao lado da outra, numa extensão de centenas de
quilômetros. E lá em cima, sobre esses milagres de colunas poderosas, é o toldo
verde e fechado, que não deixa passar gota de chuva e que o sol só atravessa,
ao meio-dia, em forma de claridade... E começava a entardecer, quando fomos
assaltados pelos índios xurupinás, que são os mais terríveis toda a região.
— E então?
— Então, foi o infortúnio.
Presos, manietados com cipós, fomos conduzidos ao acampamento dos indígenas,
sete léguas diante, mato a dentro... E como me recordo, ainda, dessa travessia
pela floresta, tarde toda, e depois, noite fechada! Olhos arregalados de
terror, os pulsos arroxeados pelos cipós, Consuelo não tinha uma lágrima, e caminhava
mais arrastada do que pelos seus próprios pés. Os cabelos, os seus lindos
cabelos negros e fartos, libertos da opressão do chapéu de feltro, rolavam-lhe
pelos ombros, pelo colo, pela testa, cobrindo-lhe, às vezes, o rosto todo.
E abrindo um parêntese na
narração:
— O senhor já viu coisa que mais
excite um homem, despertando-lhe toda a bestialidade, do que o corpo da mulher
martirizada? Semi-nua, com os lindos seios morenos pulando quase da camisa
esfarrapada, o colo arranhado, o rosto porejando sangue, pelo esforço físico e
pelo pudor, Consuelo acordava-me na alma de namorado sem esperança um
pensamento diabólico. Eu marchava para a morte, mas marchava calmo, resignado,
feliz. Talvez não trocasse, naquele momento, aquele caminho, recoberto de
espinhos dilacerantes, pelo mais florido da terra!
Outra incidência:
— Porque, o senhor sabe, acaso, o
que é amar uma criatura, sabendo que nunca a possuirá? Já imaginou, porventura,
o que é ver, saber, conhecer que a mulher que se ama, que se adora, e que nos
despreza, vai cair nos braços de outro homem, dando a outrem, com o seu beijo,
com a flor do seu corpo moço, a felicidade que sonhamos para nós? Se sabe, se
imagina isso, pode compreender a minha serenidade, ao ver na iminência de ser
destruída, sem crime da minha parte, e para sempre, a taça em que eu pretendia
beber... Consuelo não seria minha, não me daria o seu beijo, o seu corpo, mas também,
não pertenceria, nunca mais, a ninguém...
Mergulhou as mãos, nervosamente,
nos magros cabelos grisalhos, arrepiados no crânio, como penas da crista de um
pavão, e reatou:
— Antropófagos, os xurupinás
devoraram, nesse mesmo dia, os dois homens da condução. No dia seguinte, pela
manhã, comeram o meu amigo. Restávamos eu e Consuelo.
Uma pausa, e tornou:
— A mim, eu sabia que me não
devorariam tão cedo. Eu estava abatido, cadavérico. A paixão vinha-me
devorando, há meses, secretamente, como o fogo ao algodão. Estava quase
ossificado. E eu sabia que o índio não come, nunca, a presa nessas condições.
Prefere engordá-la, cevá-la, tratando-a durante semanas, durante um ano
inteiro.
— E a moça?
— Consuelo era linda e forte. Vi
quando a mataram, com uma pancada vigorosa no crânio... Como são feios os
miolos, aparecendo, ensangüentados, entre a pasta dos cabelos!... Vi quando um
dos seus seios, tão redondo, tão rígido, tombado do jirau, rolou na areia do
chão, onde um velho cachorro o tomou nos dentes, indo devorá-lo escondido... Vi
quando a esquartejaram, quando a retalharam, quando a distribuíram, em pedaços
sangrentos. Impassível, como num sonho, eu via tudo. E Só despertei do meu
pasmo, quando um dos índios, o chefe, que tostava o seu pedaço na fogueira fumarenta
de gordura, me veio perguntar, em um gesto, que pedaço eu queria. Olhei as
postas de carne fria, sobre as quais as moscas zumbiam, com fúria: a mão miúda,
de dedos contraídos, em um dos quais estava, ainda, um anel que eu lhe dera; um
dos pés, meio devorado e com as cartilagens penduradas; as entranhas, a cabeça
quase esfacelada, pendurada a um esteio pelos cabelos; a sua perna; a sua coxa;
um dos seus braços, o mais lindo que eu tenho visto... Indiquei um pedaço de
carne roxa, que aparecia, repugnante, entre as vísceras, o qual me foi trazido,
e que eu comecei, também, a devorar.
Estremeceu todo, e concluiu,
enquanto um arrepio de horror me sacudia:
— Era o coração. Havia cumprido o
meu juramento...
E batendo, com força, na mesa:
— "Garçon", outro
duplo!
---
---
Nota:
Humberto de Campos: "O Monstro e outros contos" (1932)
Nenhum comentário:
Postar um comentário