O SERINGUEIRO
Capítulo I
À semelhança de um inseto
minúsculo e amedrontado que se refugiasse na base um penedo, fugindo a inimigos
invisíveis mas certos, a povoação de Graça, com a sua capela, e a sua dúzia de
casas, repousa, há mais de um século, no sopé da Ibiapaba. Às três horas da
tarde, quando o sertão imenso, para os lados da Meruoca, ainda fulgura
iluminado, já está ela mergulhada no seu manto cinzento, preparando-se para o
descanso da noite. É que o sol, descendo por trás da serra cortada a pique,
projeta sobre aquela parte do sertão a sombra larga da montanha, como se Deus a
quisesse esconder, antes das outras povoações cearenses, contra os incontáveis
perigos da terra e do céu.
Foi nesse pequeno recanto
sertanejo que o Joaquim Lucrécio, partindo das margens do Acaraú, onde era
lavrador, se deteve em 1878. O seu objetivo, de quem fugia ao flagelo que tudo
devastava, era alcançar a Serra Grande por uma das ladeiras de Leste. Ao
chegar, porém, às proximidades da encosta, caiu a primeira chuva. O Jaibara
encheu, arrastando na descida detritos de árvores e ossadas de animais. E como
a esperança de fartura voltasse ao coração dos homens, o retirante recebeu um
convite para o serviço e levantou, à margem do rio, a pequenina casa de palha
para abrigo da mulher e dois filhos, o João e a Carolina, que a morte poupara
no êxodo.
Foi aí, sob a proteção da serra
enorme e verde, que os dois irmãos se criaram, apurando a coragem nas lições da
natureza e na áspera vida de privações. Enquanto a velha mãe gemia, entrevada,
sobre a esteira de carnaúba estendida no chão de barro batido, e o pai, tostado
pela soalheira e curtido pela miséria, procurava trabalho nas fazendas
vizinhas, ia a menina à cacimba, no leito seco do rio, com o pote à cabeça,
buscar a água para os serviços domésticos, ao mesmo tempo que o irmão, mais
velho que ela dois anos, cortava, em companhia de outros da sua idade, as
folhas tenras das carnaubeiras para extração de cera e aproveitamento das
palhas na confecção de chapéus.
Assim cresceu a Carolina. Assim
cresceu o João.
Capítulo II
Aquela vida de penúria, em que se
sucediam, às vezes, os dias em que o
sustento de cada pessoa se limitava a um punhado de farinha e a um pequeno
pedaço de rapadura, não podia, porém, perdurar sem protesto. Carolina
tornava-se moça. Morena e pálida, opilada pela alimentação deficiente, possuía,
contudo, os traços finos, delicados, do mameluco originário, em que
predominavam, no entanto, as características da raça branca. Andava pelos
quinze anos e não parecia ter mais de treze. Apenas, traindo a idade, os seios
se lhe avolumavam opulentos, como uma árvore tenra que concentra toda a seiva
destinada ao tronco no esplendor e na glória dos frutos. Os cabelos, cor de
mel, apertados em trança descuidada, punham-lhe à mostra a testa bem feita,
desenhando-lhe, ao mesmo tempo, a correção da cabeça pequena. Os olhos negros, pareciam mais
negros na esclerótica acentuada pela anemia e os dentes mais alvos através dos
lábios descorados pela miséria. Não fosse o vestidinho sujo e roto, de riscado
grosseiro, e dir-se-ia uma dessas antigas imagens da Virgem, que tivesse
permanecido sepultada durante séculos e perdido, ao contato da terra, a alvura
fresca do marfim. O irmão, planta agreste do mesmo terreno pobre,
desenvolvia-se com a mesma lentidão. Lia-se-lhe, entretanto, nos olhos
pequenos, de luz concentrada, não a mesma resignação, mas o desejo incontido de
romper as cadeias que o prendiam à terra madrasta, e partir pelo mundo em busca
de pão, de dinheiro e de felicidade.
E esse dia chegou. Tinha ele
dezessete anos quando soube, no Graça, que se achava no Pacujá um paraoara, um
cearense enriquecido no Amazonas, o qual estava contratando trabalhadores para
o serviço de seringal. O primeiro pensamento do sertanejo foi correr à casa,
pedir licença ao pai, e abraçar a irmã e a velha mãe entrevada. Refletiu,
porém, rapidamente. Se fosse pedir o consentimento paterno certamente não o
obteria. O velho sentia-se doente, acabado. E com a convicção da morte próxima,
não admitiria, naturalmente, que faltasse à companheira, e à filha moça, o
único arrimo com que elas poderiam contar. Seria melhor, pois, não tornar mais
à casa, e partir sem o consolo, a dor e os riscos da despedida. No regresso,
com o dinheiro economizado, redimiria, com a fartura no lar humilde, o pecado
de ingratidão.
Partiu, assim, a pé, viajando à
noite, para o Pacujá. Apresentou-se ao paraoara e foi aceito. Três dias depois
chegava a Camocim, onde o esperava o navio. Dois dias rolou no convés da proa,
sacudido pelo balanço do mar. No terceiro surgiu-lhe no fundo de um estuário
coalhado de navios uma cidade enorme, com os seus trapiches de mil pernas
avançando sobre a água e as suas torres espetando o céu baixo, como chaminés de
navios imensos, formados desde o porto pelas casas de três andares. Era Belém,
o Pará. Outro navio pequeno, um "gaiola", achava-se, porém, à espera
dele e dos companheiros. Uma barcaça levou-os, amontoados, como gado humano, de
um para outro. E a viagem, agora por um rio, continuou. Do segundo dia em diante
o "gaiola" começou a parar de quinze em quinze minutos, ou de hora em
hora, atracando a pontes ligeiras, em que embarcava bolas de borracha, e desembarcava
sacas e caixas de mercadorias. Dia e noite a mesma faina. Até que, uma noite,
por volta das duas horas, todo o pessoal vindo com o paraoara teve ordem para
preparar-se, a fim de desembarcar. Um apito na curva do rio e, em breve,
aparecia uma pequena luz no alto de um barranco, dominando uma frágil ponte de
tábuas. Sombras imprecisas moviam-se na sombra.
— Salta, gente! gritou o
agenciador.
Sessenta e dois homens tristes,
macerados pela viagem e pelos sofrimentos na terra do berço, desembarcaram,
trazendo à mão, à cabeça, ou ao ombro, o seu saco, a sua trouxa, o seu baú.
E João Lucrécio estava entre
eles.
Capítulo III
Oito anos decorreram,
acumulando-se sobre esse dia ou, antes, sobre essa noite. Confiado a outro
seringueiro, veterano na faina, para que o iniciasse na extração do antigo ouro
negro, o rapazola do Graça sentiu, logo nos primeiros dias, o inominável
suplício do arrependimento. As estradas de seringueira que lhe haviam sido
destinadas ficavam em plena selva, longe dois dias do barracão. Para moradia,
encontrara, já, a barraca de palha, com soalho de troncos de palmeira, rachados
ao meio. Fora, ao lado da barraca, a pequena latada para a defumação da
borracha, e que lhes servia, ao mesmo tempo, de cozinha. Próximo, rolava, o
rio, para baixo, as suas águas escuras, deslizando entre duas paredes de
vegetação compacta, de que se desgarravam caules de açaizeiros, como braços de
condenados que, atravessando as grades de suas células, pedissem perdão ou
socorro. E em torno à barraca humilde, sufocando-a, asfixiando-a,
comprimindo-a, a mata imensa, ameaçadora, impenetrável, o tronco encostado ao
tronco, a fronde presa à fronde, e os cipós amarrando tudo em um verde feixe
compacto, no qual a estrada para o centro se abria pequena, estreita,
insignificante como um buraco de rato na majestade de um muro.
Às três horas da manhã o
companheiro levantava-se, empurrava a porta de esteira, empunhava o búzio, e um
rugido de dor, de angústia, de saudade, cortava a solidão silenciosa. Outro
búzio, ao longe, respondia, na mesma queixa resignada. E outro, ainda mais
distante. Eram os galés daquele presídio, vasto como um mundo, que se
comunicavam sem, às vezes, se conhecerem, dando a notícia de que ainda viviam.
E o silêncio caía em seguida, sepultando, de novo, centenas de homens vivos.
Preparando o café, ingerido às
pressas com farinha ou bolacha, tomava cada um o seu lampião de querosene, o
facão, a machadinha, e penetrava a estrada de Seringueiras, abrindo no coração
da selva espessa o olho vermelho do farol. Ao chegar a uma das árvores cuja
posição determinava as oscilações da vereda ziguezagueante, — árvore mártir,
sangrada mil vezes, durante anos seguidos, desde as raízes até a maior altura
do tronco, seis ou oito metros acima do solo - o seringueiro subia os
"mutás" ou giraus superpostos, indo lá em cima golpear a casca rugosa
e o cerne generoso, que logo lhe respondiam jorrando o seu leite. Fixadas, sob
os golpes, as tigelinhas de folha, o homem descia, e continuava, silencioso
como um fantasma, o seu caminho.
Surpreendia-o nessa peregrinação
a madrugada. Encontrava-o o sol, de que ele tinha notícia apenas pela claridade
doce que se coava pela copa das árvores,
cuja vastidão lhe impedia a vista do céu. Às onze horas, enfim, o seringueiro
desembocava outra vez, pelo lado oposto da estrada, diante da barraca. Almoçava
o feijão preparado na véspera. E reiniciava a romaria da madrugada, recolhendo
num grande frasco de folha, no "boião", o leite recebido pelas
tigelinhas, que ficavam junto às próprias árvores para o trabalho do dia
seguinte. À tarde, chegava à barraca, defumava o leite, preparava a borracha. E
posto ao fogão o feijão e o pedaço de carne seca ou de caça apanhada casualmente
durante o dia, deitava-se, fatigado, na rede macia, suja, ouvindo a orquestra
imensa, constituída por todas as vozes da natureza, que o insultavam, e o
vaiavam, e o desafiavam, da sombra das folhas, da cavidade dos troncos, do cimo
das árvores, da margem do rio - no coaxar dos sapos, no zumbir dos insetos, na
reza do vento, no estalido dos galhos, no rugido das onças, acordadas para
comer...
Capítulo IV
Ao fim de oito anos de trabalho
heróico e de economias desesperadas João Lucrécio solicitou a sua conta ao
patrão. Tinha de saldo na casa nove contos de réis. Pediu uma ordem para lhe
ser paga essa quantia no Pará, e embarcou no primeiro "gaiola". Viera
menino, e voltava homem. Não era mais o mesmo, nem de figura, nem de alma. A
natureza bárbara afeiçoara-o de novo, modelando-o à sua imagem. À tez queimada
do caboclo do nordeste substituiu a amarelidão doentia, e opilada, dos que
vivem na sombra. Um bigode alourado e grosseiro completava-lhe a fisionomia,
que uma cicatriz aberta pela unha de uma onça encontrada certa manhã no seu
caminho, modificara profundamente.
Ia, enfim, rever o seu Ceará, e,
nele, o seu pai, a sua mãe, a sua irmã, aos quais nunca enviara a mais ligeira
notícia. E perguntava a si mesmo:
— Viverão todos ainda?
Se alguém lhe pudesse responder,
ter-lhe-ia dito que o seu sonho era vão. A mãe, a velha Rosminda, morrera pouco
depois da sua partida, não de mágoa, porque em seu coração não havia mais lugar
para o sofrimento, mas de miséria e de fome. O pai falecera mais tarde,
vitimado pelo veneno de uma cobra, que o surpreendera na limpa de um roçado
alheio. Não, porém, sem ter visto, na vida, a sua filha mais ou menos amparada,
pois que a casara com o Vicente Monteiro, um rapaz das bandas do Cariré, que
possuía, de seu, algumas cabeças de gado, a casa de taipa e um roçado de milho.
Homem pobre, mas trabalhador e honrado.
Ao desembarcar em Camocim, João
Lucrécio soube, logo, pelas pessoas que foram a bordo procurar serviço da
estiva ou no desembarque de bagagens, que a seca lavrava, intensa, em todo o
sertão. E se ninguém lhe desse a notícia, ele tê-la-ia adivinhado pelo
movimento da pequena cidade marítima, arranchada sob as árvores da rua da
frente, patenteando na fisionomia e na nudez toda a extensão do seu infortúnio.
Intimamente, porém, rejubilou. A sua chegada, era, agora, oportuna, pois que
levava, no dinheiro que lhe enchia o bolso, a saúde, a fortuna, a alegria. E
imaginava, com volúpia íntima, o que seria o contentamento na casinha das
margens secas do Jaibara, quando ali chegasse com as suas quatro malas
pregueadas, e mostrasse à mãe entrevada, ao pai envelhecido, à irmã bonita, e
ainda moça, os cortes de fazenda, as sandálias de couro, os brincos de plaqué,
os lenços de cambraia vistosa, os trinta presentes, em suma, que lhes trazia. E
ainda mais quando apalpassem o dinheiro, as cédulas de quinhentos, de duzentos
e de cem mil réis, que eles, por lá, jamais tinham visto.
João Lucrécio desembarcou para um
hotel, em frente, mesmo, ao trapiche a que atracara o vapor. Pela madrugada,
tomava o trem, com passagem para a estação de Cariré. Às nove horas estava em
Granja. Ao meio-dia em Sobral. E às três horas na pequena vila onde pretendia
saltar, a fim de arranjar condução para o Graça. Ao verem sair do carro a sua
bagagem rica, e a sua figura de paraoara feliz, os retirantes que se abrigavam
nas vizinhanças da estação cercaram-no, pedindo-lhe uma esmola, a mão estendida.
O choro de vinte vozes, em que misturava a das mulheres, a dos velhos e a das
crianças, era como uma reza alta, que se avolumava a cada instante. O
seringueiro deu alguns níqueis, e procurou sair dali, naquela mesma tarde.
— Quer me comprar um cavalo e
dois burros, moço? — indagou um fazendeiro que pretendia desfazer-se do que
possuía, antes que a seca lhe matasse o que ainda restava.
— Quanto quer?
Feito o preço, João Lucrécio adquiriu
os três velhos animais. E como se lembrasse ainda dos caminhos, e preferisse,
para efeito da surpresa, viajar sozinho, mandou por as malas sobre os muares, e
montando no cavalo de sela, tocou-o sertão a dentro, e partiu.
Capítulo V
O sertão estava, então, todo
seco, sem a sombra de arvoredo ou vestígio d'água, entre o sopé da Ibiapaba e a
linha da Estrada de Ferro. Na quietude da tarde, João Lucrécio sentia isso. Ao
fundo, no horizonte, a serra azulava, como se corresse para ele, tão perto lhe
parecia, na atmosfera sem vapores. De um lado e de outro do caminho, os
mofumbos e marmeleiros agrestes estavam reduzidos a talos comburidos, como um
tabocal após a passagem do fogo. A noite caía lenta, envolvendo tudo, como um
sudário imenso, lançado sobre a terra pela piedade divina. O céu, estrelado e
baixo, parecia a cúpula enorme da tenda suntuosa de um poderoso rei oriental.
As estrelas luziam tanto, e pareciam tão próximas, que iluminavam a estrada.
Uma coruja começou a gargalhar à pequena distância, no galho em cruz de uma árvore
morta. João Lucrécio persignou-se, arrepiado. Lembrou-se que nunca fizera isso
no Amazonas, porque, por lá, mesmo nas horas de medo, nunca se lembrara de
Deus. O cavalo e os burros resfolegavam, sopravam forte, quebrando a serenidade
da noite. Grilos ziniam, insistentes. E ele, vivo, marchava, a passo, como um
fantasma, pela tristeza dos caminhos mortos.
Em certo momento divisou, porém,
à margem da estrada, uma casa humilde, sem luz. Resolveu fazer alto ali, para continuar
a viagem pela manhã. Aproximou-se tocando o cavalo na frente, puxando os muares
pelo cabresto.
— Ó, de casa! — chamou.
A porta de madeira tosca abriu-se
timidamente, e uma figura humana desenhou-se na meia escuridão.
— Boa noite! — saudou o paraoara.
— Deus lhe dê boa noite —
respondeu uma voz de homem.
— Seria possível, amigo, eu
passar a noite aqui, para seguir de madrugada?
— Se quiser, pode; mas, como o
senhor sabe, por aqui não tem água nem p'ra bicho, nem p'ra gente.
— Isso é o menos — atalhou João
Lucrécio, apeando-se. — Eu trago ração de milho e uma borracha com água. O que
eu quero é só licença para ficar.
Meia hora depois, na salinha da
casa pobre, ceava o paraoara o rancho comprado em Sobral: um pedaço de carne,
farinha, um quilo de bolacha, uma lata de sardinha e uma garrafa de vinho. Ao
lado dele, junto ao tamborete improvisado em mesa, o dono da casa um caboclo de
musculatura forte, escaveirado, acompanhava-o na refeição, a que se associava a
mulher, esquelética, em cujos olhos afundados nas órbitas luziam a dor e a
fome. Em poucos instantes o pequeno farnel foi todo devorado. E como se
sentissem, todos, por um momento, felizes, o seringueiro pôs-se a falar, com a
indiscrição alegre da meia embriagues.
— O senhor não é mesmo daqui.. —
aventurou o dono da casa, atordoado também pelo vinho que aceitara dó hóspede,
e que começava a atuar sobre a sua debilidade.
— Não, senhor — informou o
paraoara — Eu sou do Rio Grande do Norte. Vim por aqui para passear... Fui p'ra
Amazonas e fui feliz. Ganhei um dinheirinho, e agora vim ver isto por aqui...
Quero ver se compro alguma fazenda barata, lá para o pé da serra...
E, jovial, por efeito do álcool,
e, não menos, por vaidade, para escandalizar a miséria alheia:
— Dinheiro é que não falta!
E arrancou do bolso um forte maço
de cédulas, capeado por duas de quinhentos mil réis, que passou às mãos
trêmulas do sertanejo e da mulher, que as examinaram, piscando.
Em seguida, os donos da casa
armaram, mesmo na sala humilde, a rede do hóspede. Desejaram-lhe boa noite, e
recolheram-se, pensativos, para o fundo da cabana. Voava-lhes no cérebro o
bando agoureiro pensamentos sinistros, que nenhum dos tinha coragem de
confessar ao outro.
Capítulo VI
Qual dos dois falou primeiro, não
se poderia, talvez, descobrir. E ainda menos o que teria primeiro lembrado ao
outro o insulto que constituía, perante Deus, a presença, ali, daquele
estranho, tão despreocupado e tão rico, precisamente no dia em eles, tendo
perdido todos os haveres, representados pelo gado morto de sede e pelo roçado
destruído na fogueira do sol inclemente, pretendiam abandonar, a pé, aquelas
terras adustas, afim de se unir em Sobral aos milhares de retirantes que viviam
da caridade pública. A verdade é que, cerca de meia-noite, quando se não ouvia
na cabana escura senão o roncar compassado do viajante e, lá fora, em torno à
casa, o chocalho dos animais por ele trazidos, os dois, marido e mulher,
penetraram, pé ante pé, na sala pequena. Um baque surdo, e fofo, um gemido
abafado, um barulho de líquido em jorro, estremecimentos de um corpo que cessa
de viver, e foi tudo. Minutos depois a enxada do antigo lavrador cavava, na
escuridão da noite, atrás do curral vazio, uma cova estreita e rasa. E nela
desaparecia, para sempre, com a rede em que adormecera, o paraoara feliz.
Tiradas as peias dos animais, foram estes espantados para longe, afim de
afastar suspeitas, se estas surgissem. Acesa uma vela de carnaúba, contaram os
dois, de mãos sôfregas, no interior da casa, o dinheiro encontrado nos bolsos
do assassinado. Havia quatro contos e duzentos mil réis.
Vamos ver a bagagem, — convidou o
marido, com tremores na voz, como quem começa a despertar de um sonho terrível.
Abertas as malas foi examinado,
às pressas, o que nelas havia. Cortes de chita, espelhos, anéis, broches
baratos, vidros de perfume, pentes, miudezas para presentes humildes. E latas
de conservas, e doces. E roupas novas, algumas não vestidas ainda. De repente,
no meio de tudo, um papel, uma conta, que talvez esclarecesse a identidade do
morto.
— Lê tu, que sabes, — pediu o
caboclo, passando a conta à mulher.
A sertaneja soletrou o primeiro
nome. Soletrou o segundo, até o meio. Os lábios tremiam-lhe, como uma flor
murcha acossada pelo vento. O papel caiu-lhe da mão, e a vela depois,
apagando-se. E foi no escuro que ela, o estupor estampado na face, se atirou ao
pescoço do companheiro.
— Vicente, meu marido da minh 'alma!
— exclamou.
E agarrada ao esposo, num grito
de desespero, os olhos escancarados na treva:
— Era... meu irmão!...
---
---
Nota:
Humberto de Campos: "O Monstro e outros contos" (1932)
Nenhum comentário:
Postar um comentário