A NOIVA
Após um dia de trabalho intenso,
consumido no manuseio de velhos volumes adquiridos nos alfarrabistas para uma
obra erudição, o poeta Silvestre de Morais vira desabrochar nas alturas,
através da janela aberta, as primeiras estrelas daquela da noite de verão.
Fora, no jardim, as árvores repousavam, imóveis, como se rezassem, mudas,
preparando-se para adormecer. De espaço a espaço, um morcego cortava com a
lâmina da asa o manto espesso da noite, como um pequenino aeroplano sinistro
que se exercitasse, rápido, em funambulescos vôos de fantasia.
Com os dedos da mão esquerda
mergulhados nos cabelos revoltos, o poeta lia, debruçado sobre o volume, à luz
da lâmpada suavemente velada, aquelas histórias de fogo e de sangue, quando, de
repente, os seus olhos se contraíram diante de uma surpresa. Abaixou mais a
cabeça, escancarou mais o livro, e viu: entre as duas páginas abertas, fulgia,
como um risco de ouro, um fio de cabelo, brilhante, fino, quase imperceptível.
Encantado com a descoberta, o sonhador arrancou-o, com a ponta de um alfinete,
do esconderijo em que o tempo o sepultara, estendeu-o, cuidadoso, ao comprido
da página lida, e quedou-se a olhar aquela réstia de luz cristalizada,
admirando-lhe a maciez, o brilho, a delicadeza.
— De onde teria vindo aquele
misterioso raio de sol? Como teria caído ali, entre as páginas daquele volume
de tragédias? Que cabeça feminina se teria curvado sobre aquelas folhas
tenebrosas que reviviam, passados tantos séculos, os mais terríveis dramas de
amor?
Meditava assim o poeta, com os
olhos fitos no faiscante fio de ouro, quando as suas pálpebras se cerraram,
tocadas pelas mãos invisíveis do sono. E, como sempre acontece aos que sonham
sem dormir, o sonho, continuou, no sono, o encanto da realidade.
De olhos fechados, Silvestre de
Morais continuava, por isso, a ver, como se os tivesse abertos, o dourado fio
de seda. Olhava-o e, não sabe como, via-o, aos poucos, crescer, desdobrar-se,
multiplicar-se. Intrigado, fitou melhor o raiozinho fulgurante, e recuou, com
espanto. Agora não era mais o livro, o que via: em lugar da página amarelecida,
o que lhe aparecia, cortado pelo cabelo de ouro, era um rosto feminino muito
pálido, muito triste, macerado, como o das monjas. Atentou melhor, e viu, mais
detidamente: diante dele, olhos em lágrimas, cabelos de ouro esparsos pela
fronte úmida, havia uma mulher, jovem e linda, que lhe pedia, as mãos
estendidas:
— Meu senhor, eu venho buscar,
convosco, a salvação da minh'alma. Há dois séculos espero, ansiosa, esta hora,
este momento, o volver desta página, de que dependeu, até hoje, a minha
felicidade. O meu destino está, neste instante, nas vossas mãos. E, por Deus,
sede generoso!
Atônito, maravilhado, sem
compreender aquela aparição subitânea, Silvestre olhava, com a interrogação nas
pupilas, a visão dolorosa, como a pedir-lhe, em silêncio, a explicação do
mistério. Faces em lágrimas, olhos súplices, a moça adivinhou a inquietação,
porque, de pronto, lhe explicou, estendendo para ele, como dois lírios de
oratório, as mãos pequeninas e pálidas;
— Tende piedade do meu
infortúnio, meu senhor! Para que servirá, tão humilde, entre vossos dedos, esse
fio de cabelo? Dai-mo, pois que me dareis, com ele, a minha salvação!
Insensibilizado pela surpresa, e,
não menos, pela graça triste daquela aflição infantil, o poeta quedou-se,
imóvel, sem uma palavra de recusa ou de assentimento. E foi diante da sua
insensibilidade que a visão maravilhosa lhe contou, sem conter as lágrimas nem
recolher as mãos de pétala murcha, a história da sua infelicidade e o segredo
da sua angústia.
— Eu sou uma noiva que paga, meu
senhor, num castigo que se eterniza, o tributo da sua ventura passageira. Meu
noivo era um poeta, como vós. Um dia, líamos, os dois, como Paolo e Francesca,
o livro que tendes em mão, quando um fio do meu cabelo voou, indiscreto, e
pousou nos seus dedos. Galanteador e apaixonado, ele o levou aos lábios,
beijou-o, e como nos chamassem do jardim onde líamos à claridade do crepúsculo,
ele marcou, com o fio imprudente, a página do livro que nos encantava. No dia
seguinte, porém, meu noivo adoeceu, e morreu, sem que eu o visse. Amedrontados
com a sua morte repentina, os seus parentes dispersaram os seus móveis, as suas
roupas, os seus livros, distribuindo-os pelos pobres. E, entre os volumes atirados
ao oceano do mundo, foi esse que se acha, hoje, em vosso poder.
— Continua... Continua... — pediu
o poeta, pálido, com tremores nas mãos tateantes.
— Anos depois, — prosseguiu a
visão, nervosa, aflita, precipitando as palavras, — anos depois, eu, por minha
vez, morri e fui, pelos anjos, levada à presença de Deus misericordioso. Era
pura e havia, na terra, espalhado pelos humildes, pelos simples, pelos pobres,
as flores do meu coração. O Senhor fitou-me, porém, severo, e perguntou onde
estava um dos fios do meu cabelo. E como lhe contasse como o perdera, ele me
fulminou com a sentença terrível: eu só entraria na mansão do eterno repouso,
da perfeita bem-aventurança, no dia em que voltasse com o fio desaparecido;
porque, nenhuma virgem é digna de viver entre os anjos, gozando as doçuras do
paraíso, tendo deixado nas mãos de um homem um fio, que seja, do seu cabelo!
— E por que não te apoderaste
dele há mais tempo? — indagou, mais tranqüilo, o poeta.
— Não foi possível, meu senhor.
Há duzentos anos, quase, eu acompanho a marcha deste livro. Durante oitenta
anos fiquei a seu lado, em uma biblioteca, esperando que alguém o pedisse, o
abrisse, libertando o fio do meu cabelo. Ninguém o pediu, ninguém o abriu,
ninguém o leu. Atravessei com ele o mar. Vi-o em várias mãos, sem que alguém,
entretanto, folheasse a página de que dependia o meu destino. Sois vós o
primeiro. Se, depois, recusardes o que vos suplico, morrerá, para mim, a última
esperança de paz e libertação!
E torcendo as mãozinhas murchas,
pálidas, como duas flores de cera:
— Tende piedade, meu senhor!
Dai-me o fio do meu cabelo!
Comovido, abalado pelo espetáculo
daquela angústia, Silvestre estendeu-lhe, na ponta dos dedos, o raiozito de sol
pedido com tanta sofreguidão, com tanta doçura, com tanta insistência, pela
visão dolorida.
— Toma. Leva-o... — disse,
entregando-lho.
Com o vento fresco da madrugada,
o poeta acordou. Olhou o livro aberto, sobre o qual pousava, ainda, espalmada,
a sua mão emagrecida. Procurou o fio de ouro, que vira marcando a página, antes
de adormecer. Não o encontrou.
O vento, com certeza, o havia
levado...
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Nota:
Humberto de Campos: "O Monstro e outros contos" (1932)
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