O CALDO
Capítulo I
Como continuação da rua principal
da pequena capital nortista, partia aquela estrada. Marginada de casas a
princípio, pouco a pouco, se tornando mais deserta, solitária, mais abandonada.
Serpeando aqui entre serrotes, cortando ali, retilínea, uma várzea;
comprimindo-se na garganta de uma serra ou pulando o rio com o auxílio de um
pontilhão, ganhava o sertão imenso, estabelecendo um longo traço de união entre
o mundo agitado e aqueles longínquos sertões pastoris. Por ela, matando-lhe a
relva teimosa sob os sapatos ferrados, haviam passado os primeiros
desbravadores; por ela tinham descido, nos anos de seca e de fome, os rebanhos
de sombras das populações flageladas; e por ela desciam e subiam agora as
boiadas, e as tropas de muares demandando o litoral ou o interior, carregadas
de algodão, de milho, de couros, de arroz, de queijos, produtos da terra, ou de
sal, de querosene, de fazendas, para o pequeno comércio sertanejo. Às vezes, em
uma das suas curvas longínquas, erguia-se uma nuvem de poeira amarelada, que
faiscava à claridade forte do sol. À medida que a nuvem se ia aproximando,
ia-se ouvindo um tilintar nervoso de guizos; e em um instante surgia,
chouteando, a tropa numerosa, carregada de caixas ou de fardos, puxada pela
burra-madrinha, animal inteligente e marchador, e fechada, atrás, pelos
comboieiros, de chapéu de carnaúba e lenço vermelho ao pescoço, sentados na
sela como imperadores de um povo itinerante.
— Toca p 'ra diante, Mimosa!...
— Endireita, Andorinha!...
E o estalo seco do chicote,
tocando a tropa.
Era no alto sertão, já, para além
da serra da Gameleira e da chapada dos Três Irmãos, mas à margem mesmo dessa
estrada, que se erguia a casa de comércio e de moradia do coronel Antônio
Solano. Antiga fazenda de gado e de cultura, havia, pouco a pouco, a
Baixa-Verde caído em decadência com o seu último proprietário. O canavial e o
engenho, que davam açúcar e aguardente para toda a região, tinham parado depois
de 13 de maio, por falta de trabalhadores. O mato invadira as plantações,
afogando-as, matando-as; e da velha casa engenho não restava agora senão uma
parte do telhado sujo, tendo a outra desabado há muitos anos. A de moradia,
essa, constava apenas da "venda", na frente, e uma sucessão de
quartos e salas em abandono, por onde errava, fugitivo e soturno, o vulto
pesado e grosseiro do coronel, último descendente de uma família ilustre e
poderosa, que dominara em todo aquele sertão.
Antônio Solano era o tipo
integral do sertanejo indomesticável. De estatura mediana, grosso e forte,
andava pelos quarenta e cinco anos, carão largo, moreno, bigode curto e grisalho.
Trazia o cabelo cortado rente, e possuía uns olhos pequenos, escuros,
escondidos, como dois tigres, sob a moita das sobrancelhas. Como não tivesse
família, pois que a mulher havia morrido e a filha havia casado, vivia ali
sozinho, com um criado de confiança, o Libório, que era, ao mesmo tempo, seu
cozinheiro, seu caixeiro e seu guarda-costas nas aventuras perigosas.
Com o abandono das culturas e a
extinção do gado, vendido pouco a pouco na vila de acordo com as necessidades,
vivia Antônio Solano, agora, do arrendamento de algumas braças de terra na
Baixa, e dos vagos negócios daquela casa de comércio à beira da estrada. De
longe em longe, uma ou duas vezes por dia, passava uma tropa. Os tropeiros
acomodavam os animais, sob o telheiro do antigo engenho, apeavam-se, compravam
aguardente, fósforos, farinha, rapadura, e, após um descanso ligeiro,
continuavam o seu caminho. E isso alimentava a mediania do proprietário.
Indolente por natureza, o antigo
fazendeiro não compreendia, contudo, como outros prosperavam na vizinhança. A
fortuna alheia fazia-lhe mal. E era para esquecer esse ressentimento que
soltava a brida, inteira, ao corcel da concupiscência, transformando-se em
sultão único daquelas redondezas. Mal desabrochava para a mocidade e para o
desejo o botão de rosa de um seio virgem, e logo murchava poluído pela lagarta
repugnante do seu beijo.
Contavam-se às dezenas as
mulheres atiradas por ele, ainda meninas, à degradação. Das raparigas que
faziam vida dissoluta nas vilas mais próximas, embebedando-se de aguardente nos
quartos da feira, uma ou outra não havia sido lançada nesse caminho pela sua
bestialidade revoltante.
Entre tantas vítimas uma houve,
no entanto, que não esqueceu o ultraje recebido. Chamava-se Maria Rosa, e era
clara e bonita. Aos quinze anos, após a morte do pai, com a mãe enferma de
sezão, fora, com o irmão pequeno, à Casa Grande, pedir ao coronel que os não
atirasse fora da terra por falta de pagamento. Quando o milho amadurecesse
obteriam o suficiente para o arrendamento da terra em que tinham a cabana e o
roçado.
Sentado fora do balcão, num
tamborete, os pés sem meias afundados nos chinelos de couro, vestindo calça e
camisa de riscado, pela abertura da qual aparecia, vultosa, a musculatura do
peito forte, o coronel fitava a menina como a cobra magnetiza o pássaro que vai
devorar. Sentia, já, mentalmente, os encantos virgens daquele corpo, a curva
suave daquele colo, a maciez daquela boca cheirando a fruta. O menino havia
ido, a mandado seu, pedir ao Libório, na cozinha, uma xícara de café. E quando
voltou, encontrou a irmã chorando, abotoando o casaquinho de cassa, mas tendo
na mão, nervosamente amarfanhado, o pedaço de papel com o recibo, por seis
meses, do arrendamento da terra.
Capítulo II
Um ano depois, pelo S. João,
achava-se o coronel Solano à porta da casa, de onde havia partido uma tropa
rumo do sertão. O cotovelo encostado no portal, a mão aberta sustentando a
cabeça, olhava, sem ver, a natureza que o cercava. À frente, muito longe, a
serra Dourada esfumava-se, coberta, aqui e ali, de lenços de bruma. Coleando
para a direita e para a esquerda, arenosa e cheia de sol, a estrada deserta era
como uma serpente imensa, de cauda presa ao sertão e cabeça mergulhada no mar.
Em uma árvore próxima, chiavam cigarras, limando o silêncio. O sertanejo ouvia
e olhava tudo isso estupidamente, quando, surgindo do oitão da casa, lhe
apareceu um vulto de mulher, que não pôde logo reconhecer. Trazia nos braços
uma criança adormecida, em um sujo pano de algodão.
Toda ela denunciava miséria,
penúria, sofrimento. O cabelo sem trato, amarrado ao alto da cabeça,
escapava-lhe, em falripas escuras, pelo pescoço, pelos ombros, pelo rosto.
Devia ser moça, mas trazia, já, nas feições, os estigmas da velhice precoce.
— Boa tarde, "seu"
coronel!
— Boa tarde! — respondeu, seco, O
sertanejo, sem mudar de posição.
— "Seu" coronel não me
conhece?
Antônio Solano examinava-a, sem
compreender.
— Eu sou a Maria Rosa, filha do
defunto Tranquilino, — aventurou a rapariga, medrosa.
E enquanto o coronel fechava a
cara:
— Eu vim trazer a vossa senhoria
o Antoninho, p'ra tomar a benção p'ro pai...
A essas palavras, ditas
timidamente, com um tremor por todo o corpo e a ponto, quase, de soltar a
criança, o antigo fazendeiro explodiu:
— Pai?... Que pai, nada!... Vocês
andam por ai como as cabras com os bodes, com um e com outro, arranjam os seus
moleques e, depois, o coronel Solano é que é o pai! Isso já é desaforo... Eu
não estou aqui para trabalhar para os filhos dos outros... Vá procurar o pai,
em outra parte!...
Pálida, ainda, dos martírios da
maternidade, das privações que sofria, Maria Rosa tornara-se cor de cera. O
filho deitado nos braços, quase caindo, os olhos súplices e sem uma gota de
pranto, recordava certas imagens toscas de Nossa Senhora que se vêem, às vezes,
nas igrejas coloniais. Parecia-lhe um sonho, o que ouvia. De repente, porém,
tomou coragem, e, quase num soluço:
— Ele é seu filho,
"seu" coronel... Eu juro... E se eu vim aqui, não foi por mim, foi
por ele... Minha mãe morreu, na semana passada... Meu leite secou.... E o que
eu vim pedir a vossa senhoria foi qualquer coisa para dar um caldinho p 'ra
ele...
E como quem diz, com terror, uma
coisa que lhe parece impossível:
— Senão ele morre...
— Caldos! Caldos!... — rugiu,
indignado, o coronel, dando de entrar para o balcão. — Aos meus caldos querem
viver vocês todos...
E, braço estirado, no rumo da
Baixa:
— Vá embora!... Já!...
— Vossa senhoria nega um caldo
para seu filho... Não é? — fez a rapariga, com firmeza.
— Vá embora!... Já lhe disse! —
tornou Solano, colérico.
Capítulo III
A noite começava a cair,
envolvendo o sertão imenso. Uma cinza tênue e contínua envolvia as coisas,
gastando-lhes os contornos. As seriemas soltavam ao longe o seu canto monótono
de aves engasgadas. As moitas, povoadas de insetos, chiavam, como fervessem ao
fogo. Uma primeira estrela abriu no céu, como uma açucena num lago sem ondas. E
outras foram miúdas, piscando os olhos pequeninos.
Pesado, grosso, a cabeça
inteiramene o coronel Antônio Solano pouco mudara, em vinte anos. A casa era a
mesma. O criado o mesmo. E o mesmo, ainda, o lampião de querosene suspenso do
teto sobre a mesa de jantar, onde se estendia a metade de uma toalha de algodão
e se via, sobre a toalha, um prato e um talher.
— Libório, — chamou o ancião,
tomando lugar à cabeceira da mesa; — traga o jantar.
A figura de um preto alto, cabeça
alva como a do patrão, atravessou o compartimento, rumo da cozinha. E, um
momento depois, voltava com um prato fundo, onde fumegava um caldo de carne, em
que flutuavam fragmentos de tempero e bolhas de gordura. Colocou-o diante do
coronel, e retirou-se, de novo, em direção à cozinha, para trazer, mais tarde,
o arroz, o cozido, o feijão.
A colher na mão, Antônio Solano
curvou-se para a frente, e bebeu a primeira colherada. Tomou a segunda. Se
houvesse à sua frente um espelho, teria visto, talvez, nesse momento, que um
homem, esgueirando-se pela porta, se aproximava, pé ante pé, da sua cadeira,
com os olhos postos no seu pescoço taurino... Tomou a terceira colher... Dentes
cerrados, o homem era novo e trazia à mão uma faca meticulosamente afiada, como
a dos açougueiros. E o coronel tinha a boca cheia pela quarta colherada, quando
uma grande mão lhe empurrou, violenta, o rosto no prato, ao mesmo tempo que uma
lâmina certeira, navalhante, lhe decepava completamente, e de um golpe, cabeça
vigorosa!
Quando o criado voltou com o
cozido, soltou-o no chão, de pavor: o prato do caldo estava cheio de sangue,
que transbordava pela toalha, pela mesa, pelo soalho encardido; e no prato,
mergulhado no caldo sangrento, o rosto do patrão.
Capítulo IV
A essa hora, uma lâmina em punho,
fugia, em carreira desordenada, pulando as moitas, rumo da Baixa, um rapagão
moreno, de vinte anos. Era o Antônio, filho da Maria Rosa.
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Nota:
Humberto de Campos: "O Monstro e outros contos" (1932)
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