MORFINA
Quando o Carvalho Souto, meu
companheiro de escritório, sofreu aquele acidente de automóvel em que fraturou
duas costelas e o braço esquerdo, eu, ia vê-lo quase diariamente à Casa de
Saúde Santa Genoveva, na Tijuca. A solicitude persistente com que velava pelo
meu amigo, fez-me, em pouco tempo, íntimo dos médicos do estabelecimento. E de
tal maneira que, trinta e quatro dias depois, quando o Souto recebeu o boletim
concedendo-lhe "alta", eu contava já um amigo novo, na pessoa amável
e mansa do Dr. Augusto de Miranda, que exercia, então, ali, as funções de
subdiretor. Filho de médico, e neto de médico, Miranda nascera, pode-se dizer,
no quarto ano de medicina. Aos sete anos
já utilizava o seu pequenino serrote de fazer gaiolas, serrando, com ele, a
perna dos passarinhos que apareciam com alguma unha doente.
Mediano de estatura, robusto de
tórax, cabelos alourados e olhos entre o azul e o verde, o subdiretor da Casa
de Saúde Santa Genoveva era uma figura grave e simpática. O rosto largo, e
escanhoado, transpirava a energia serena e boa das almas fortes e tranqüilas.
Daí a confiança que entre nós rapidamente se estabeleceu, a franqueza com que
me falou, naquela manhã, de uma das suas doentes que ali se achava, ainda,
hospitalizada.
— Quer vê-la? Vamos... —
convidou.
A Casa de Saúde Santa Genoveva
está situada, como se sabe, na Estrada Velha da Tijuca, em um ponto pitoresco,
dominando a cidade. Ensombram-lhe as cercanias de antigo solar, algumas dezenas
de mangueiras enormes, e árvores outras, de fronde compacta e agasalhadora. Sob
uma dessas mangueiras, estirada em uma espreguiçadeira de pano branco e vermelho,
achava-se uma senhora alta, de rosto longo e olhos cavados, mas apresentando na
fisionomia cansada e enferma os traços da antiga distinção. Devia ter sido
bela, com os seus cabelos negros de ondulação larga. E elegantíssima de porte,
a avaliar pela graça do busto posto em relevo na postura em que se encontrava.
— Preste atenção, vamos
passando... Depois que você conhecer a história trágica de sua vida,
voltaremos... — disse-me o Dr. Miranda.
Entramos por uma estrada de
mangueiras vetustas, e, enquanto caminhávamos lentamente na manhã fresca, o
subdiretor, a voz tranqüila e pausada, me falava desta maneira:
— Aquela senhora que acaba de
ver, foi casada com um dos meus companheiros de turma na Faculdade, e é a
heroína de uma das tragédias mais terríveis que vieram ter aqui dentro o seu
desfecho...
— O marido morreu? — indaguei.
— Não. Ela, porém, o perdeu sem
que ele morresse: está desquitada.
As senhoras desquitadas, são, em
nossa terra, as viúvas dos maridos vivos.
Apanhou, no chão, um pequeno ramo
uma nódoa na estrada limpa, e reatou:
— Filha de um advogado que morreu
sem fortuna, esta moça, aos dezessete anos, casou com o colega de que lhe falo,
o qual fez um dos mais belos cursos do seu tempo, mas não foi igualmente feliz
na vida prática. No primeiro ano de casamento, veio-lhe um filho. Linda
criança! Vi-a uma tarde, na rua, em companhia do pai, e não esqueci, jamais, a
sua graça infantil... Quatro anos depois de casados, foi esta senhora uma noite
atacada de cólica hepática de extraordinária violência. O marido recorreu à
terapêutica indicada no caso, mas inutilmente. Compadeceu-se, e aplicou-lhe uma
injeção de morfina. A doente sentiu alívio imediato, e dormiu, até à noite. Ao
acordar, pôs-se a gemer novamente, e, em seguida, a gritar. Nova injeção. Novo
sono. No dia seguinte, à tarde, voltaram os gemidos queixando-se ela dos mesmos
padecimentos. Gemia, debatia-se, gritava, reclamando a injeção. Profissional
inteligente, o marido certificou-se de que, verdadeira a princípio, a dor,
agora, era simplesmente simulada. A morfina havia exercido a sua influência
funesta! Por isso, não deu a injeção. Desiludida de alcançar o que pretendia, a
esposa calou-se. E a tranqüilidade voltou, de novo, à intimidade do casal.
— E a tragédia?
— Espere, que a história é
longa... Ao fim de algumas semanas, começou o meu colega a observar na senhora
uns ímpetos de temperamento, uns excessos de paixão que o encantavam, porque
ele era homem, mas que o preocupavam porque era médico e o alarmavam porque era
marido. Pôs-se vigilante, e descobriu a verdade terrível: a esposa, seduzida
pelas sensações das injeções que ele lhe aplicara, era presa, já, da
morfinomania, consumindo diversas ampolas por dia! A sua assinatura havia sido
falsificada, já, por mais de uma vez, no papel do consultório, em receitas de
responsabilidade, pondo em perigo a sua reputação profissional.
O Dr. Miranda parou, por um
momento, para acender um cigarro, e tornou:
— Com a sua experiência de
clínico, o marido compreendeu a ineficiência do seu esforço individual para
salvar a companheira infeliz. Por esse tempo, havia chegado da Europa um colega
nosso, o Dr. Stewenson, que se tinha especializado na Alemanha e na Suíça na
cura da toxicomania. Era um belo homem e um belo espírito, e o marido daquela
senhora foi à sua procura, e expôs lealmente o seu caso doméstico. Pediu-lhe
que tomasse sob os seus cuidados a
esposa, e levou-a, no dia seguinte, ao consultório. Stewenson marcou o início
do tratamento para outro dia. A moça foi, sozinha. O médico fê-la entrar para o
seu gabinete, e fechou-o a chave. Em seguida, encheu duas seringas, aplicando
uma injeção na cliente, e outra em si mesmo. E rolaram, os dois, abraçados,
como dois loucos... Stewenson era morfinômano, e o seu anúncio como especialista
contra os entorpecentes não visava senão atrair as senhoras viciadas,
conquistando companheiras para os seus delírios...
— Que horror!...
— Ao fim de algumas semanas, o
marido da pobre moça descobria a extensão tomada pelo seu infortúnio. A esposa,
ela própria, confessou-lhe tudo, fornecendo-lhe os elementos para apurar a
verdade. E ele apurou que era duas vezes desgraçado: o Dr. Stewenson era amante
de sua mulher!... Diante disso, veio a separação, com o desquite. Não tendo
sido judicial, o meu antigo colega de turma passou a dar uma pensão à esposa,
que fixou residência apartamento em Copacabana, ficando ele num hotel no centro
da cidade. Ele era, porém, um homem de temperamento apaixonado, e não podia esquecer
a criatura a quem amara tanto, e que lhe havia dado as horas de paixão mais intensas
da vida. Nenhuma outra mulher lhe satisfazia os sentidos e o coração. E ei-lo,
na da noite, alta madrugada, abandonando o seu hotel e indo secretamente, bater
à porta do apartamento de Copacabana, tornando-se um dos amantes de sua antiga
mulher.
— Mas, isso é verdade? —
perguntei,
— É verdade, e é ciência, —
respondeu-me o Dr. Miranda.
Havia rodeando um tronco de
mangueira, um banco circular, de pedra. Sentamo-nos. E o subdiretor da Casa de
Saúde Santa Genoveva reatou:
— A esposa, agora entregue a si
mesma, continuava a tomar morfina, absorvendo doses espantosas. Uma tarde,
achando-se em casa, encheu a seringa, e meteu a agulha na parte anterior da
coxa. Apertou o sifão. O líquido desapareceu da agulha. No mesmo instante,
porém, a pobre rapariga soltou um grito. Uma nódoa vermelha surgira-lhe diante
dos olhos. E essa nódoa se transformou em chamas, em labaredas enormes, que a
envolviam como se a tivessem precipitado numa fogueira. Um calor intenso,
infernal, subia-lhe pelo corpo todo, e tudo era vermelho, tudo era fogo ante os
seus olhos horrivelmente abertos. As mãos na cabeça, o pavor estampado na face,
a infeliz gritou para a criada, que lhe fazia companhia: "Chamem meu
marido, que eu estou morrendo!". Dizia, aos gritos, que estava sendo
queimada viva, e rasgava as roupas, correndo pela casa, batendo-se nos móveis,
pois que se achava completamente cega, não vendo senão línguas de fogo, chamas
que se enroscavam no seu corpo, em furiosos turbilhões. Quando o ex-marido chegou,
encontrou-a totalmente nua, o sangue a correr-lhe da testa. E descobriu, logo,
a origem daquela crise: a agulha alcançara a artéria, entrando a morfina,
diretamente, na circulação... Daí a sensação de incêndio dentro do qual se
debatia, e a impressão de labaredas que a envolvessem e as tivesse diante dos
olhos... Não podendo detê-la sozinho, chamou o ex-esposo dois empregados do
prédio, que a subjugaram, e a amarraram, inteiramente despida, na cama, a fim
de receber a única medicação aconselhável no caso, e evitar que se mutilasse na
fúria com que se atirava pelo chão, pelos armários, pelas paredes...
— Coitada!
— Afinal, passou a crise. Dias e
dias tinha ela permanecido entre a vida e a morte. Após as injeções sedativas
desamarraram-na. Mas ficara com os braços feridos, as mãos feridas, o rosto
ferido... O ex-esposo foi, então, de uma solicitude acima de todo louvor... Não
a abandonou um só instante. Amor ou piedade, o certo é que ficou a seu lado até
que a viu fora de perigo... Um dos primeiros cuidados da pobre moça, logo que
recobrou os sentidos, foi ver o filhinho, que contava, então, cinco anos, e
ficara com o pai, que o internara em um colégio em Botafogo. O desejo era
legítimo, e, ao vê-la melhor, o pai foi buscar o menino. A desventurada, chorou
muito, beijou muito o garoto, e, como fosse hora do almoço, o meu colega foi
para a mesa, com outras pessoas da família que ali se achavam de visita,
ficando a mãe e o filho no quarto próximo. De repente as Pessoas que se
encontravam à mesa ouviram um grito: "Corram que eu estou matando meu
filho! Corram, pelo amor de Deus!". Correram todos, e soltaram, diante do
que viam, um grito de terror. A morfinômana tinha as mãos crispadas em torno do
pescoço da criança, e estrangulava-a sem querer! Queria retirar as mãos, e não
podia! Ao contrário do seu desejo, os dedos cada vez mais se contraíam,
comprimindo as carnes do pequenito, que se tornara roxo, e cuja língua saía,
já, da boca, com um filete de sangue... "Salvem meu filho!... Matem-me,
mas salvem meu filho!...", gritava a pobre. Bateram-lhe nas mãos até lhe
ferirem os dedos. Quase lhe quebram os braços, com as pancadas que lhe deram,
para libertar a criança. Quando o conseguiram, era tarde. Minutos depois, o
pequenino morria...
O subdiretor da Casa de Saúde
Santa Genoveva não procurou ver o espanto que se estampava em meu rosto.
Acendeu outro cigarro, e pôs-se de pé. Fiz o mesmo.
— Agora, — continuou, — a
desventurada senhora que ali viu, está boa. Mas a nossa vigilância em torno
dela é enorme.
— Para que não volte à morfina?
O Dr. Miranda sacudiu a cabeça,
lentamente:
— Não. Para que não corte, como
tem tentado, as mãos com que estrangulou o seu filho!
E pusemo-nos a andar, de
regresso, a cabeça baixa, em silêncio, um ao lado do outro.
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Nota:
Humberto de Campos: "O Monstro e outros contos" (1932)
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