A LUZ DOS MORTOS
Madrugada ainda, com os pássaros
adormecidos nos ramos, a escolta abandonou a vila e pôs-se a caminho. Eram
quinze homens, apenas, sob o comando de um sargento, conhecedores, todos, dos
menores recantos daquelas paragens. Antigos sertanejos, arrastados um a um para
a cidade pelo desejo de vestir farda, voltavam agora reunidos aos campos
natais, com a missão de bater, no tabuleiro das campinas ou na garganta das
serras, um forte agrupamento de bandoleiros.
Carabina ao ombro, fardados à
vontade — uns de calça vermelha e camisa de riscado, outros de blusa de
policial e calça arregaçada até o joelho, e todos, ou quase todos, descalços, —
a escolta dirigiu-se, sem ordem de marcha, para a várzea das Pedras, onde os
bandidos haviam aparecido na véspera. Das matas quietas subia, e espalhava-se,
um cheiro forte de folhas machucadas, natureza virgem se martirizasse em um
grande sonho voluptuoso. As sarças rasteiras, abrindo os cálices roxos em que a
Noite se embebedara de orvalho, acordavam, úmidas, emergindo do labirinto das próprias
ramas, polvilhadas de terra e de sereno.
Manuel Albino, o sargento que
comandava a pequena força policial, era um desses tipos de sertanejo habituado
às longas peregrinações pelo interior. Estatura mediana, cobreado pelo sol,
pela vida ao ar livre, orçava pelos quarenta anos. O bigode, alourado e sem
trato, fechava-lhe a boca forte, como se quisesse opor às palavras uma cortina
de silêncio. Não se distinguia dos companheiros senão pela fita do braço, e
naquelas marchas penosas, tão cheias de perigos a cada passo, era menos um
chefe que um camarada.
Ao amanhecer, os soldados já
haviam andado três léguas. Das margens da estrada arenosa voavam, rápidos,
trilando, pequenos pássaros assustados. Aqui e ali, na mata ressuscitada, uma
árvore morta sonhava com os encantos da vida, oferecendo ao sol, em cima, no
espetro do último galho, o óbolo de uma flor humilde, cujo cipó se lhe agarrara
ao tronco para ir dar, no alto, ao astro namorado, a cheirosa esmola daquele
beijo. Insetos trilavam nas touceiras, e em tal quantidade, que, invisíveis,
eram como se todas as folhas fossem de metal, e se friccionassem numa grande
carícia dolorosa.
Em meio da várzea enorme, onde o
dorso das pedras alvas, semeadas na campina verde, recordavam rebanhos
pastando, os soldados acamparam.
— É preciso olho vivo, —
aconselhou o sargento. — Eles devem
andar de perto, e é bom que não nos apanhem de surpresa.
— Quer que eu vá reconhecer o
terreno? — ofereceu-se uma das praças, o João Simeão, caboclo baixo e
entroncado, que havia feito estágio no Exército e gostava de empregar, em
serviço, os termos de técnica militar.
Meia hora depois, escondendo-se
de pedra em pedra, arrastando-se, coleando, o caboclo regressava. Os
bandoleiros, em número superior a vinte, haviam dormido na Pedra Grande, na
outra extremidade da várzea, de onde, àquela hora, se preparavam para a
retirada. Partindo imediatamente e levando boa marcha, a tropa ainda os
apanharia em campo aberto, antes que penetrassem na caatinga, escondendo-se nas
moitas, ou alcançassem o Serrote Preto, de onde ninguém os desalojaria.
Ao meio-dia, quando o sol, no
meio do céu, devorava com os seus dentes dourados a sombra dos troncos, dos
penedos e dos homens, a campina foi alarmada, de súbito, pelos primeiros tiros
da escolta. Predispostos à morte, a lutar até o último alento de vida, os
cangaceiros puseram-se em defesa, entrincheirando-se nas pedras. A tropa fez o
mesmo, e começou a fuzilaria intensa, viva, desesperada, em que as balas dos
soldados se cruzavam, rápidas, zunindo, com as cargas de chumbo dos
cangaceiros.
A luta, em tais circunstâncias,
dependia mais de Deus do que da habilidade dos homens. Cada pedra plantada no
campo, era o escudo gigantesco de um combatente. E as balas, e os punhados de
chumbo, achatavam-se estalando, nesses escudos, arrancando-lhes estilhaços ou fazendo
voar, leves, pequenas nuvens de poeira.
O grupo dos bandoleiros era o de
João Severino, antigo feitor da fazenda Água-Viva, nas fronteiras da Paraíba
com o Ceará. Menino ainda, vivia João Severino com pai, no sítio dos Cajueiros,
herança dos seus antepassados, quando o coronel Cazuza Rocha, fazendeiro
vizinho, propôs a compra da pequena propriedade. O pai recusara o negócio, mas,
como o coronel era poderoso, tomou-lhe a casa, a terra, a plantação e o gado
miúdo que lá existia. Levado para a cadeia, o agricultor esbulhado morreu. A
mulher morreu de mágoa, pouco depois. Com o ódio rugindo no coração, João Severino
fizera-se homem, na Água-Viva. E era, já, feitor, homem de confiança da
fazenda, quando uma noite, montou a cavalo e desapareceu. No dia seguinte, pela
manhã, era o coronel Cazuza encontrado morto, no alpendre, tendo no peito,
enterrada em toda extensão da lâmina, uma faca de ponta, cujo cabo, de prata
lavrada, se viam as iniciais do antigo menino dos Cajueiros. Perseguido pelas
autoridades, o rapaz reuniu uma dezena de homens decididos, depois outra, e ali
estava, agora, no seu oitavo encontro com a polícia, depois de haver saqueado,
durante dois anos e meio, várias coletorias do interior.
Escolhido pouco a pouco, O
pessoal do bandoleiro era, todo, de primeira ordem. Dos vinte e dois homens que
o compunham, nenhum deles, ali, pensava na morte. Atacar, matar,
a tiro ou a faca, era a sua profissão natural. Não se tivesse a escolta
abrigado nas pedras, e não teriam perdido uma bala de rifle ou um caroço de
chumbo grosso. Descalços, ceroula amarrada na perna, camisa de algodão
ordinário por cima da ceroula, chapéu de couro, ou de carnaúba, com barbicacho,
era esse o fardamento da maioria. Batiam-se como leões, e morriam como cães.
Para eles, só havia uma coisa vergonhosa no mundo: morrer em casa, na rede, sem
deixar uma nódoa de sangue no chão. E era disputando um fim heróico, buscando,
em uma bala, a morte gloriosa e invejada, que ali estavam, o joelho direito na
terra, a cartucheira ou o polvarilho a tiracolo, a arma à altura do rosto, à
espera de um ponto vulnerável do inimigo para atingi-lo na pontaria certeira.
Do lado oposto, não era menos
vivo o interesse pela vitória. De rojo, com o queixo no chão e a carabina à
altura do solo, o sargento disparava seguidamente contra os bandoleiros, que se
dissimulavam a uns cinqüenta metros, por trás do seu grupo de rochas. E
disparava, atento, o dedo no gatilho, quando uma bala, dirigida
transversalmente, o apanhou de lado, varando-lhe o pulmão. Ferido de morte, a
arma tombou-lhe das mãos com a última bala na agulha. Uma palidez repentina
cobriu-lhe o rosto, acompanhada de estremecimentos leves, por todo o corpo.
Do esconderijo próximo, a dez
metros, um soldado humilde, o Marciano, que defendia heroicamente o seu
rochedo, assistia, aflito, ao epílogo daquela bravura. O seu coração de
sertanejo, encostado ao da terra, palpitava contra ela. Seria possível que, a
dez passos de distância, o seu companheiro, o seu comandante, o seu chefe,
morresse naquela agonia, como um bicho, sem que alguém lhe pusesse na mão a luz
de uma vela com que descobrisse, entre as trevas eternas, o misterioso caminho
do céu? A arma esquecida na mão, olhos ansiosos, procurava em torno, na nudez
gloriosa das coisas, solução para aquele desespero da sua alma. E, em torno,
era a várzea deserta, verde, em que pedras, agora, lhe pareciam sepulcros
abandonados. Perto, longe, adiante, em toda extensão da campina, apenas os
cardos, de folhas chatas, lhe estendiam as mãos cobertas de espinhos. E, na
rocha, por trás da qual se abrigava, o chumbo e as balas do inimigo,
assobiando, zunindo, estalando. De repente, esquecendo o inimigo, a vi da,
tudo, para lembrar-se unicamente da salvação de uma alma, o soldado cingiu-se
ainda mais estreitamente à terra, e começou a vencer, coleando, rasgando o
peito no pedregulho, a cabeça encostada no solo, o espaço que o separava da
outra pedra. Descoberto pelo inimigo, a fuzilaria aumentou na sua direção. Era,
porém, já, tarde, pois que o espaço havia sido vencido.
A boca ensopada de sangue, o
sargento agonizava. Marciano olhou em roda, e, diante da majestade da natureza
piedosa, teve um gesto que redimia a miséria dos homens; ajoelhou-se ao lado do
moribundo, arrancou do bolso uma caixa de fósforos, riscou um, e colocando-lhe
nos dedos, ajudou-o, rezando, a morrer. Os olhos erguidos para o céu azul e
imenso, todo ele voltado para Deus, as suas mãos sustinham entre os dedos
ásperos do moribundo a pequenina chama vacilante. E, a voz angustiosa, todo
possuído pela emoção, murmurava, lento, com todo ardor de sua fé, aquela oração
que ouvira, tantas vezes, gemer à cabeceira dos agonizantes:
— Parte.. alma cristã... deste
mundo... em nome de Deus Padre Onipotente... que padeceu por ti... em nome do
Espírito Santo.. que sobre ti foi derramado... em nome dos Anjos e Arcanjos...
em nome...
Na sua comoção religiosa o
soldado esquecera-se, porém, de si mesmo. E não estava, ainda, no meio daquela
oração de morte, em que se misturam a piedade e o terror, ao entregar a Deus,
com os olhos na altura, a alma do companheiro, uma bala o apanhou também,
certeira, atravessando-lhe a cabeça.
Duas horas depois a luta estava
terminada com a fuga dos bandoleiros. E quando a pequena tropa legal se
arregimentou para partir, os soldados encontraram, atrás de uma pedra, dois
cadáveres, que seguravam, com os dedos hirtos, os restos do mesmo fósforo...
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Nota:
Humberto de Campos: "O Monstro e outros contos" (1932)
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