sábado, 17 de agosto de 2013

Humberto de Campos: "A Luz dos Mortos"

A LUZ DOS MORTOS

Madrugada ainda, com os pássaros adormecidos nos ramos, a escolta abandonou a vila e pôs-se a caminho. Eram quinze homens, apenas, sob o comando de um sargento, conhecedores, todos, dos menores recantos daquelas paragens. Antigos sertanejos, arrastados um a um para a cidade pelo desejo de vestir farda, voltavam agora reunidos aos campos natais, com a missão de bater, no tabuleiro das campinas ou na garganta das serras, um forte agrupamento de bandoleiros.

Carabina ao ombro, fardados à vontade — uns de calça vermelha e camisa de riscado, outros de blusa de policial e calça arregaçada até o joelho, e todos, ou quase todos, descalços, — a escolta dirigiu-se, sem ordem de marcha, para a várzea das Pedras, onde os bandidos haviam aparecido na véspera. Das matas quietas subia, e espalhava-se, um cheiro forte de folhas machucadas, natureza virgem se martirizasse em um grande sonho voluptuoso. As sarças rasteiras, abrindo os cálices roxos em que a Noite se embebedara de orvalho, acordavam, úmidas, emergindo do labirinto das próprias ramas, polvilhadas de terra e de sereno.

Manuel Albino, o sargento que comandava a pequena força policial, era um desses tipos de sertanejo habituado às longas peregrinações pelo interior. Estatura mediana, cobreado pelo sol, pela vida ao ar livre, orçava pelos quarenta anos. O bigode, alourado e sem trato, fechava-lhe a boca forte, como se quisesse opor às palavras uma cortina de silêncio. Não se distinguia dos companheiros senão pela fita do braço, e naquelas marchas penosas, tão cheias de perigos a cada passo, era menos um chefe que um camarada.

Ao amanhecer, os soldados já haviam andado três léguas. Das margens da estrada arenosa voavam, rápidos, trilando, pequenos pássaros assustados. Aqui e ali, na mata ressuscitada, uma árvore morta sonhava com os encantos da vida, oferecendo ao sol, em cima, no espetro do último galho, o óbolo de uma flor humilde, cujo cipó se lhe agarrara ao tronco para ir dar, no alto, ao astro namorado, a cheirosa esmola daquele beijo. Insetos trilavam nas touceiras, e em tal quantidade, que, invisíveis, eram como se todas as folhas fossem de metal, e se friccionassem numa grande carícia dolorosa.

Em meio da várzea enorme, onde o dorso das pedras alvas, semeadas na campina verde, recordavam rebanhos pastando, os soldados acamparam.

— É preciso olho vivo, — aconselhou o sargento.  — Eles devem andar de perto, e é bom que não nos apanhem de surpresa.

— Quer que eu vá reconhecer o terreno? — ofereceu-se uma das praças, o João Simeão, caboclo baixo e entroncado, que havia feito estágio no Exército e gostava de empregar, em serviço, os termos de técnica militar.

Meia hora depois, escondendo-se de pedra em pedra, arrastando-se, coleando, o caboclo regressava. Os bandoleiros, em número superior a vinte, haviam dormido na Pedra Grande, na outra extremidade da várzea, de onde, àquela hora, se preparavam para a retirada. Partindo imediatamente e levando boa marcha, a tropa ainda os apanharia em campo aberto, antes que penetrassem na caatinga, escondendo-se nas moitas, ou alcançassem o Serrote Preto, de onde ninguém os desalojaria.

Ao meio-dia, quando o sol, no meio do céu, devorava com os seus dentes dourados a sombra dos troncos, dos penedos e dos homens, a campina foi alarmada, de súbito, pelos primeiros tiros da escolta. Predispostos à morte, a lutar até o último alento de vida, os cangaceiros puseram-se em defesa, entrincheirando-se nas pedras. A tropa fez o mesmo, e começou a fuzilaria intensa, viva, desesperada, em que as balas dos soldados se cruzavam, rápidas, zunindo, com as cargas de chumbo dos cangaceiros.

A luta, em tais circunstâncias, dependia mais de Deus do que da habilidade dos homens. Cada pedra plantada no campo, era o escudo gigantesco de um combatente. E as balas, e os punhados de chumbo, achatavam-se estalando, nesses escudos, arrancando-lhes estilhaços ou fazendo voar, leves, pequenas nuvens de poeira.

O grupo dos bandoleiros era o de João Severino, antigo feitor da fazenda Água-Viva, nas fronteiras da Paraíba com o Ceará. Menino ainda, vivia João Severino com pai, no sítio dos Cajueiros, herança dos seus antepassados, quando o coronel Cazuza Rocha, fazendeiro vizinho, propôs a compra da pequena propriedade. O pai recusara o negócio, mas, como o coronel era poderoso, tomou-lhe a casa, a terra, a plantação e o gado miúdo que lá existia. Levado para a cadeia, o agricultor esbulhado morreu. A mulher morreu de mágoa, pouco depois. Com o ódio rugindo no coração, João Severino fizera-se homem, na Água-Viva. E era, já, feitor, homem de confiança da fazenda, quando uma noite, montou a cavalo e desapareceu. No dia seguinte, pela manhã, era o coronel Cazuza encontrado morto, no alpendre, tendo no peito, enterrada em toda extensão da lâmina, uma faca de ponta, cujo cabo, de prata lavrada, se viam as iniciais do antigo menino dos Cajueiros. Perseguido pelas autoridades, o rapaz reuniu uma dezena de homens decididos, depois outra, e ali estava, agora, no seu oitavo encontro com a polícia, depois de haver saqueado, durante dois anos e meio, várias coletorias do interior.

Escolhido pouco a pouco, O pessoal do bandoleiro era, todo, de primeira ordem. Dos vinte e dois homens que o compunham, nenhum deles, ali, pensava na morte. Atacar, matar, a tiro ou a faca, era a sua profissão natural. Não se tivesse a escolta abrigado nas pedras, e não teriam perdido uma bala de rifle ou um caroço de chumbo grosso. Descalços, ceroula amarrada na perna, camisa de algodão ordinário por cima da ceroula, chapéu de couro, ou de carnaúba, com barbicacho, era esse o fardamento da maioria. Batiam-se como leões, e morriam como cães. Para eles, só havia uma coisa vergonhosa no mundo: morrer em casa, na rede, sem deixar uma nódoa de sangue no chão. E era disputando um fim heróico, buscando, em uma bala, a morte gloriosa e invejada, que ali estavam, o joelho direito na terra, a cartucheira ou o polvarilho a tiracolo, a arma à altura do rosto, à espera de um ponto vulnerável do inimigo para atingi-lo na pontaria certeira.

Do lado oposto, não era menos vivo o interesse pela vitória. De rojo, com o queixo no chão e a carabina à altura do solo, o sargento disparava seguidamente contra os bandoleiros, que se dissimulavam a uns cinqüenta metros, por trás do seu grupo de rochas. E disparava, atento, o dedo no gatilho, quando uma bala, dirigida transversalmente, o apanhou de lado, varando-lhe o pulmão. Ferido de morte, a arma tombou-lhe das mãos com a última bala na agulha. Uma palidez repentina cobriu-lhe o rosto, acompanhada de estremecimentos leves, por todo o corpo.

Do esconderijo próximo, a dez metros, um soldado humilde, o Marciano, que defendia heroicamente o seu rochedo, assistia, aflito, ao epílogo daquela bravura. O seu coração de sertanejo, encostado ao da terra, palpitava contra ela. Seria possível que, a dez passos de distância, o seu companheiro, o seu comandante, o seu chefe, morresse naquela agonia, como um bicho, sem que alguém lhe pusesse na mão a luz de uma vela com que descobrisse, entre as trevas eternas, o misterioso caminho do céu? A arma esquecida na mão, olhos ansiosos, procurava em torno, na nudez gloriosa das coisas, solução para aquele desespero da sua alma. E, em torno, era a várzea deserta, verde, em que pedras, agora, lhe pareciam sepulcros abandonados. Perto, longe, adiante, em toda extensão da campina, apenas os cardos, de folhas chatas, lhe estendiam as mãos cobertas de espinhos. E, na rocha, por trás da qual se abrigava, o chumbo e as balas do inimigo, assobiando, zunindo, estalando. De repente, esquecendo o inimigo, a vi da, tudo, para lembrar-se unicamente da salvação de uma alma, o soldado cingiu-se ainda mais estreitamente à terra, e começou a vencer, coleando, rasgando o peito no pedregulho, a cabeça encostada no solo, o espaço que o separava da outra pedra. Descoberto pelo inimigo, a fuzilaria aumentou na sua direção. Era, porém, já, tarde, pois que o espaço havia sido vencido.

A boca ensopada de sangue, o sargento agonizava. Marciano olhou em roda, e, diante da majestade da natureza piedosa, teve um gesto que redimia a miséria dos homens; ajoelhou-se ao lado do moribundo, arrancou do bolso uma caixa de fósforos, riscou um, e colocando-lhe nos dedos, ajudou-o, rezando, a morrer. Os olhos erguidos para o céu azul e imenso, todo ele voltado para Deus, as suas mãos sustinham entre os dedos ásperos do moribundo a pequenina chama vacilante. E, a voz angustiosa, todo possuído pela emoção, murmurava, lento, com todo ardor de sua fé, aquela oração que ouvira, tantas vezes, gemer à cabeceira dos agonizantes:

— Parte.. alma cristã... deste mundo... em nome de Deus Padre Onipotente... que padeceu por ti... em nome do Espírito Santo.. que sobre ti foi derramado... em nome dos Anjos e Arcanjos... em nome...

Na sua comoção religiosa o soldado esquecera-se, porém, de si mesmo. E não estava, ainda, no meio daquela oração de morte, em que se misturam a piedade e o terror, ao entregar a Deus, com os olhos na altura, a alma do companheiro, uma bala o apanhou também, certeira, atravessando-lhe a cabeça.

Duas horas depois a luta estava terminada com a fuga dos bandoleiros. E quando a pequena tropa legal se arregimentou para partir, os soldados encontraram, atrás de uma pedra, dois cadáveres, que seguravam, com os dedos hirtos, os restos do mesmo fósforo...
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Nota:
Humberto de Campos: "O Monstro e outros contos" (1932)

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